Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
685/10.0 TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: REVOGAÇÃO
CHEQUE
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
REQUISITOS
BANCO SACADO
DANO
NEXO DE CAUSALIDADE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL / CHEQUE.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO EXECUTIVA / TÍTULO EXECUTIVO / RECURSOS.
Doutrina:
- Adelaide Menezes Leitão, Normas de Protecção e Danos Puramente Patrimoniais, pp. 713 e 716.
- Alberto Luís, ROA, ano 59º.
- Eduardo Santos Júnior, Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, pp. 502 e 503.
- Januário Gomes, Contratos Comerciais, p. 208.
- Olavo Cunha, Cadernos de Direito Privado, nº 25, pp. 23; Cheque e Convenção de Cheque, pp. 615, 626, 703.
- Pereira Coelho, O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, p. 19.
Legislação Nacional:

CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, E SS., 562º, 563º E 566º, Nº 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 46º, Nº 1, AL. C), 721.º-A, 729.º, N.º3
DEC. LEI Nº 454/91, DE 28-12: - ARTIGOS 1.º-A (ADITADO PELO DEC. LEI Nº 316/97, DE 19-11), 11.º, N.º 1, AL.),N.º5, 40.º.
DECRETO Nº 13.004, DE 12-1-1927, NA SUA ACTUAL REDACÇÃO: - ARTIGOS 14º, Nº 2, 23.º, 24.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 2-2-2010, WWW.DGSI.PT;
-DE 12-10-2010, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 10-5-2012, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 6-12-2012, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 18-12-2012, EM WWW.DGSI.PT .
-*-
ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA DO STJ Nº 4/08.
Sumário :

1. Na acção de responsabilidade civil extracontratual do banco sacado decorrente da devolução de cheque apresentado a pagamento com fundamento em revogação ilegítima recai sobre o tomador do cheque o ónus da prova da existência quer do dano, quer do nexo de causalidade entre a revogação ilegítima e o dano.

2. A devolução do cheque com alegada “falta ou vício de vontade” apenas é susceptível de integrar os pressupostos da ilicitude e da culpa, sendo insuficiente para demonstrar o dano.

3. A verificação do dano ressarcível depende da alegação e prova de que, não fora a revogação e a devolução ilegítima do cheque apresentado a pagamento, o mesmo seria ou poderia vir a ser descontado pelo banco sacado.

A.G. 

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – R., Ldª,

instaurou a presente acção declarativa contra

BANCO B., SA,

pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 105.875,00, com juros à taxa legal até integral pagamento e com a sobretaxa de 5% a partir do trânsito em julgado da sentença.

Alega que a sociedade H. Ldª, emitiu, assinou e entregou-lhe 3 cheques sacados sobre o R. para pagamento de uma dívida, cheques que a A. apresentou a pagamento nos 8 dias seguintes à data da respectiva emissão, tendo o R. recusado o seu pagamento e impedindo, de forma ilícita, a cobrança dos mesmos.

Foi proferido saneador-sentença a julgar a acção totalmente procedente, condenando o R. a pagar à A. a quantia de € 105.875,00, com juros vincendos à taxa legal até pagamento e ainda da sobretaxa de 5% a partir do trânsito em julgado da sentença até efectivo e integral pagamento.

O R. apelou, mas a Relação confirmou a sentença.

O R. interpôs recurso de revista que foi admitida como excepcional, nos termos do art. 721º-A do CPC, extraindo-se das extensas e prolixas alegações as seguintes conclusões:
a) A A. não provou a existência do dano, apenas alegando a esse respeito o que consta dos arts. 25º, 32º e 33º da petição, sem qualquer produção de prova e sem a adequada fundamentação, tendo considerado que o montante do dano é igual ao valor dos cheques;
b) Existe contradição jurisprudencial relativamente à questão da prova do dano em casos em que a devolução do cheque se funda injustificadamente na revogação do cheque e não na falta de provisão;
c) Tendo sido alegado pela recorrente e tendo sido reconhecido que a conta sacada não se encontrava provisionada para pagamento dos cheques, competia à A. a prova do dano;
d) Não tendo sido demonstrado o dano nem se presumindo o mesmo, deve ser revogado o acórdão recorrido, sendo a R. absolvida do pedido.

Houve contra-alegações.

Ao abrigo do art. 721º-A do CPC, apesar da dupla conforme, o recurso de revista foi admitido a título excepcional.

Cumpre decidir.

II – Factos provados
1. A A. é uma sociedade por quotas e exerce a sua actividade social no ramo da realização e produção de festivais e concertos musicais, agenciamento artístico e promoção de espectáculos.
2. A A. e a sociedade H., Ldª, outorgaram um contrato de prestação de serviços (doc. 2 junto com a p.i.)
3. A A., pelo contrato de prestação de serviços, obrigou-se a contratar artistas para actuarem no Festival do Alviela, que se realizou nos dias 24, 25 e 26-8-07, no lugar de Vaqueiros, concelho de Santarém.
4. A A. contratou os artistas Pedro Abrunhosa, Da Weasel, Xutos e Pontapés, Mundo Secreto e 4 Taste para actuarem no referido Festival e nas mencionadas datas.
5. A A. tinha de receber da sociedade H., Ldª, a quantia de € 125.000,00, acrescido de IVA à taxa legal em vigor no montante de € 26.250,00, o que perfaz a quantia de € 151.250,00.
6. A sociedade H., Ldª, efectuou o pagamento à A. da quantia de € 45.375,00 para cumprimento do disposto na cláus. 3.1. a do contrato de prestação de serviços (doc. 2).
7. Para cumprimento do disposto na cláus. 3.1.b. do Contrato de Prestação de Serviços (doc. 2), a sociedade H., Ldª, propôs pagar à A. a quantia remanescente de € 105.875,00 ainda em dívida, em 3 tranches, nos dias 31-8-07, 3-9-07 e 6-9-07, pelo que emitiu, assinou e entregou à A., no dia 24-8-07, 3 cheques sacados sobre a conta n.º 38343410001 do Banco R. nos montantes respectivos de € 35.290,86, € 29.166,00 e € 42.030,58.
8. O gerente da sociedade H., Ldª, emitiu os cheques para garantir e usufruir dos serviços prestados pela A., mas durante o período que mediou a entrega dos cheques e o prazo de 8 dias desde a data aposta como de emissão, veio revogá-los com o fundamento em falta ou vício na formação da vontade.
9. Tais cheques podiam ser apresentados a pagamento nas datas apostas, ou seja, nos dias 31-8-07, 3-9-07 e 6-9-07, conf. docs. 3, 4 e 5 juntos com a petição inicial.
10. A A. apresentou a pagamento os cheques nºs 3938791968, 483874197 e 5738791966 do Banco B., nos valores respectivos de € 35.290,86, € 29.166,00 e € 42.030,58, no Banco C, agência da Parede, no prazo de 8 dias desde a data aposta como de emissão, tendo sido recusado o pagamento com o fundamento em “falta ou vício na formação da vontade”, conforme consta do carimbo aposto no verso dos cheques (docs. 3, 4 e 5, juntos com a p. i.).
11. Os aludidos cheques foram apresentados a pagamento pelo C. no Serviço de Compensação do Banco de Portugal, e neles figura como sacadora a sociedade H., Ldª.
12. O Banco sacado, ora R., no decurso do prazo de apresentação a pagamento dos cheques, ou seja, nos 8 dias seguintes à data aposta como de emissão, recusou o pagamento dos mesmos com fundamento na revogação, procedendo à sua devolução, respectivamente, em 3-9-07, 4-9-07 e 10-9-07, por motivo de “falta ou vício na formação da vontade”, como expressamente consta do seu verso.
13. Essa devolução obedeceu a instruções expressas dadas ao R. pela sacadora e consolidadas na fórmula consagrada e sintetizadora de “falta ou vício na formação da vontade”.

14. A A. não recebeu os montantes constantes dos aludidos 3 cheques.

III – Decidindo:

1. Resolvida, pelo Ac. de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 4/08, a questão da natureza jurídica da responsabilidade do banco sacado, perante o tomador, em casos de revogação e de devolução ilegítima de cheque que este lhe tenha apresentado para desconto, a única questão que o presente recurso suscita gira em torno da verificação do dano e do nexo de causalidade, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.

Trata-se de apreciar se para o reconhecimento do direito de indemnização reclamado pelo tomador do cheque devolvido basta a prova da existência da revogação ilegítima, fazendo corresponder o dano patrimonial ao montante inscrito no cheque devolvido sem indicação de falta de provisão, ou se, além disso, é necessário que se prove que foi a devolução do cheque, com aquele específico fundamento, que motivou a insatisfação do direito de crédito que o mesmo titulava.

2. No mencionado AUJ, foi tomada posição clara sobre a vigência do art. 14º, nº 2, do Decreto nº 13.004, de 12-1-27, segundo o qual, no decurso do prazo de apresentação do cheque a pagamento, o banco sacado “não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação”, preceito que, assim, abre as portas à imputação da responsabilidade civil extracontratual ao banco sacado nos termos jurisprudencialmente fixados.

Em sede de apreciação do pressuposto da responsabilidade correspondente ao nexo de causalidade, afirmou-se no mesmo AUJ que:

“… de facto, um banco que recusa o pagamento dum cheque revogado determina que, segundo as regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, o tomador se veja privado do respectivo montante.

Da revogação resulta normalmente o afastamento do pagamento voluntário por parte do sacador e é utópico presumir-se que este disponha de outros bens acessíveis que garantam solvabilidade (se a ordem de revogação visa evitar o pagamento dum cheque validamente emitido e detido pelo tomador, naturalmente que o sacador procurará evitar outras vias de cobrança, designadamente a executiva).

Temos, então, que o banco é, em princípio, responsável pelo pagamento ao tomador de uma indemnização correspondente ao valor dos cheques ou, pelo menos, ao valor do prejuízo resultante do seu não pagamento, se se entender que o mesmo não é idêntico ao valor dos cheques não pagos.

Podia dizer-se, em contrário do supra exposto, que não se verificaria o nexo causal entre o dano e o facto culposo se a conta sacada não se encontrasse provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento.

Porém, a ser assim, o réu teria de recusar o seu pagamento com tal fundamento, uma vez que do contrato de cheque resulta apenas para o banco a obrigação de pagar cheques regularmente emitidos e desde que a conta se encontre provisionada”.

Ainda que não tenha sido uniformizada a jurisprudência sobre o critério de determinação do dano e sobre o nexo de causalidade entre a actuação do banco sacado e esse dano, dos considerandos do mesmo aresto uniformizador extrai-se que, em princípio, aquele dano corresponderá ao valor do cheque, se outro não se apurar e se, em vez da sua devolução com fundamento na falta de provisão, o banco sacado aceitar os efeitos de uma revogação ilegítima por parte do sacador e formalizar a devolução com esta declaração.

Em tais pressupostos, a entidade bancária que era demandada foi condenada no pagamento dos valores inscritos nos cheques que haviam sido revogados e devolvidos com esse fundamento, conquanto houvesse prova efectiva de que, na ocasião daquela devolução, a conta bancária do sacador dos cheques não dispunha de provisão que permitisse o seu pagamento.

Foi acerca deste ponto que se manifestaram as divergências que ficaram expostas em diversos votos de vencido, em todos estes se fazendo notar uma aparente contradição entre a afirmada necessidade de prova do dano material a cargo do lesado, típica da responsabilidade extracontratual, e a ausência de factos reveladores de um dano efectivo causalmente imputado à actuação ilícita do banco sacado.

Importa, pois, retomar a discussão neste ponto, tanto mais que a jurisprudência posterior deste mesmo Supremo Tribunal não é uniforme a este respeito.

3. Da doutrina nacional, quer anterior, quer posterior ao aludido AUJ, poucos contributos se colhem para a dilucidação da questão.

Em trabalho sobre responsabilidade bancária, Alberto Luís, conquanto afirme a existência de responsabilidade extracontratual quando o banco sacado, sem fundamento, nega o desconto de cheque sacado sobre uma conta bancária, praticamente se limita a remeter para os pressupostos gerais da responsabilidade civil (ROA, ano 59º), questão que não suscita, neste momento, qualquer dificuldade, em face do teor explícito do referido AUJ.

Depois da publicação do referido aresto uniformizador, Olavo Cunha, confirmando o entendimento jurisprudencial consolidado, vincou que o ónus da prova de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual recai sobre o tomador do cheque, afirmando que a revogação ilegítima de cheque faz incorrer o banco sacado em “responsabilidade civil extracontratual que se traduza numa indemnização de montante correspondente ao valor dos cheques (indevidamente revogados)”, sem mais explicações quanto à matéria sobre a qual persistem as divergências (Cadernos de Direito Privado, nº 25, pág. 23).

Em anterior obra intitulada Cheque e Convenção de Cheque referia que, “embora não tenha qualquer relação contratual com o terceiro beneficiário e portador do cheque, o banco assume um compromisso, no mercado em que actua, de honrar os cheques que foram sacados sobre as suas contas”, de modo que “ao recusar-se ilicitamente a fazê-lo, incorre em responsabilidade pelos danos que causar, sem prejuízo dos efeitos decorrentes da sua relação contratual” (pág. 615). E, mais adiante, reportando-se precisamente a casos de revogação ilegítima, acrescenta que, “em qualquer circunstância, o sacado incorre em responsabilidade perante o portador do cheque que não paga, devendo ressarcir os danos que o seu comportamento tiver causado na esfera jurídica do beneficiário” (pág. 626), asseverando ainda que, “pressupondo que a conta disponha de provisão suficiente, que não exista justa causa que obste ao pagamento do cheque e que este é apresentado no prazo estabelecido para o efeito, o sacado deve proceder ao pagamento do cheque, sob pena de incorrer em responsabilidade extracontratual para com o beneficiário” (pág. 703).[1]

4. Como se disse, a questão enunciada não obteve da posterior jurisprudência deste Supremo Tribunal resposta uniforme, sendo detectadas essencialmente duas soluções, a saber:

a) Suficiência da prova da revogação ilegítima, respondendo o banco pelo valor inscrito no cheque, ainda que, na ocasião da apresentação a pagamento, a conta sacada não se encontre provisionada;

b) Necessidade de o tomador provar que existe um nexo de causalidade adequado entre a revogação ilegítima do cheque (devolvido com esse fundamento) e o não pagamento determinante do dano.

5. Concretizando:

O Ac. do STJ, de 10-5-12 (www.dgsi.pt), centrou a discussão no pressuposto do nexo de causalidade. Estando provado que “à data de apresentação a pagamento dos cheques … as contas não se encontravam provisionadas com fundos necessários para proceder ao seu integral pagamento”, afirmou-se que “um banco é, em princípio, responsável pelo pagamento, ao tomador, de uma indemnização correspondente ao valor dos cheques ilicitamente não pagos ou, pelo menos, ao valor do prejuízo resultante do seu não pagamento, se se entender que o mesmo não é idêntico ao valor dos cheques não pagos”, e que se verifica um “nexo causal entre o dano e o facto culposo mesmo que a conta sacada não se encontre provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento”.

No Ac. do STJ, de 12-10-10 (www.dgsi.pt), em que nenhuma prova fora feita quanto à existência ou não de provisão, a responsabilidade do banco sacado pelo pagamento do valor inscrito no cheque foi sustentada no facto de a recusa de pagamento determinar, “segundo as regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, que o tomador se veja privado do respectivo montante, não sendo prognosticável que o sacador disponha de outros bens acessíveis que garantam a respectiva solvabilidade”.[2]

Diversa solução pode ser colhida do Ac. do STJ, de 18-12-12 (www.dgsi.pt) relatado pelo mesmo relator do AUJ nº 4/08. Incidindo sobre uma situação em que se apurara que na data da apresentação a pagamento do cheque a conta sacada não apresentava fundos monetários que possibilitassem o desconto, aí se diz ser “condição de procedência da acção a prova de que o portador não recebeu o montante do cheque e que a causa do não recebimento foi a revogação ilícita dele”, fazendo recair sobre o tomador lesado o ónus de alegar e de provar “que o prejuízo que lhe foi causado foi o não recebimento do cheque e que a causa do não recebimento foi a revogação ilícita dele”.

Solução semelhante já fora também adoptada no Ac. do STJ, de 2-2-10 (www.dgsi.pt), onde se considerou não provada a existência de um dano real numa situação em que a conta sacada não dispunha de saldo que permitisse o desconto dos cheques que foram apresentados a pagamento.

6. Importa tomar posição.

O cheque reflecte a existência de um direito de crédito do portador relativamente ao sacador que, de acordo com as regras das obrigações cartulares, deve ser exercido através da sua apresentação a pagamento ao banco sacado. Suposta a sua regularidade formal e a legitimidade do portador, o cheque será descontado na medida em que a conta sacada se encontre provisionada, sem embargo de algum acordo complementar entre o banco sacado e o sacador que porventura permita o descoberto em conta ou a realização de outra operação bancária atípica no campo largo dos instrumentos de concessão de crédito.

Nesta medida, tal como ficou assinalado no AUJ nº 4/08, o banco sacado tem a obrigação de cooperar no sentido de o portador do cheque conseguir a sua cobrança do seu crédito pelos meios normais, de tal modo que a aceitação de uma revogação infundada, dentro do prazo de apresentação a pagamento, preencherá o pressupostos da ilicitude e da culpa do banco sacado quando seja invocada a responsabilidade extracontratual perante o portador do cheque.

Trata-se de responsabilidade civil que tem por referência uma relação creditícia estabelecida entre o sacador e o tomador do cheque, de que a instituição bancária nem sequer é parte, podendo afirmar-se, com Eduardo Santos Júnior, que, em tais circunstâncias, “o dano traduz-se na perda – no caso do direito de crédito, normalmente, de carácter patrimonial – sofrida em consequência de lesão ou do desrespeito pelo direito …” e que “no âmbito da lesão do crédito, o dano consistirá, pois, no prejuízo patrimonial decorrente da impossibilidade de cumprimento, do incumprimento definitivo ou do incumprimento temporário, por parte do devedor, em razão ou também em razão da acção interferente de terceiro (este último aspecto, bem entendido, transcendendo já o âmbito do apuramento do dano, para entrar no domínio do problema da acção de terceiro e nexo de causalidade)” (Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, págs. 502 e 503).

Também Adelaide Menezes Leitão, depois de referir que “o nexo de causalidade não é substancialmente o da medida da reparação, mas antes o da questão prévia da possibilidade de imputação de um resultado danoso ao agente”, conclui que “o sistema do nexo de causalidade funciona, deste modo, como pressuposto da responsabilidade civil que visa dar resposta ao problema do papel do agente na produção do dano e se esse papel é suficiente para consubstanciar a «causa» do dano” (Normas de Protecção e Danos Puramente Patrimoniais, págs. 713 e 716).

7. Em sede do instituto genérico da responsabilidade civil extracontratual que essencialmente se encontra concentrado nos arts. 483º e segs. do CC, não existe norma alguma que permita presumir a existência de danos a partir da mera invocação da prática de um facto ilícito, recaindo sempre sobre o lesado o ónus da prova respectivo, a par do ónus da prova da verificação de um nexo de causalidade adequado estabelecido entre o dano e o facto ilícito.

Por outro lado, ponderando as regras estabelecidas quanto à emissão e apresentação a pagamento de cheque sacado sobre conta bancária, a instituição bancária apenas está obrigada a efectuar o pagamento da quantia inscrita no cheque quando, na ocasião da sua apresentação, a conta se encontre provisionada.

Por isso, a aceitação por parte do banco sacado da revogação ilegítima de um cheque tenha sido declarada pelo respectivo sacador por si só é insusceptível de conferir ao respectivo tomador um direito que em caso algum seria satisfeito se acaso a devolução se fundasse na efectiva falta de fundos bastantes para se efectivar o desconto.[3]

Ou seja, a devolução do cheque com fundamento na revogação e com invocação injustificada de “falta ou vício na formação da vontade”, porventura para, desse modo, o sacador evitar o desconto ou se furtar a determinados efeitos reflexos emergentes da devolução com fundamento na “falta de provisão”, apenas permite afirmar a existência de um facto ilícito imputável ao banco sacado, em resultado da violação de normas legais destinadas a tutelar direitos de terceiros, revelando-se insuficiente para o reconhecimento do direito de indemnização dependente da prova da verificação de um dano equivalente ao valor inscrito no cheque.

Sem embargo de se reconhecerem as dificuldades que recaem sobre o tomador do cheque quando seja confrontado com uma situação como a dos autos, não vemos como possam ultrapassar-se de outro modo as exigências colocadas pela consagração legal de um regime de responsabilidade civil extracontratual em que não é atribuído relevo a danos abstractos e em que é sempre exigido o apuramento de danos concretos, cuja quantificação deve ser feita em função de um critério assente na teoria da diferença bem espelhado nos arts. 562º, 563º e 566º, nº 2, do CC.

Dificuldades semelhantes suportam outros interessados, noutras situações, em que igualmente se exige a alegação e prova de factos de pendor negativo, as quais devem ser resolvidas, como é regra, através da valoração efectiva dos meios de prova e de contraprova apresentados, e não mediante a imediata inversão do ónus da prova.

Aliás, sendo a responsabilidade civil imputada à actuação ilícita do banco sacado traduzida na aceitação indevida de uma revogação do cheque declarada pelo sacador, aquelas dificuldades de alegação e, sobretudo, de prova podem ser superadas através de mecanismos processuais que vinculam o demandado a cooperara no esclarecimento dos factos controvertidos, impedindo, por exemplo, a invocação do sigilo bancário. Com efeito, na qualidade de demandado, além de ter interesse no esclarecimento espontâneo da situação, para se eximir da responsabilidade que lhe seja assacada, o banco está especialmente onerado com a resposta a notificações que lhe sejam dirigidas com vista ao apuramento da real situação em que se encontrava a conta bancária sacada ou com a clarificação de outros aspectos relevantes para a demonstração dos danos e/ou do nexo de causalidade.

Neste contexto, a constatação daquelas dificuldades iniciais revela-se, por si, insuficiente para atribuir à mera prática de um facto ilícito a capacidade para revelar quer a existência do nexo de causalidade, quer do dano, fazendo-o corresponder automaticamente ao valor inscrito no cheque, sem atenção à real situação em que se encontrava a conta sacada.

De outro modo, com a admissibilidade de uma tal solução e com a sua generalização a outras situações, para além de se desrespeitar o critério legal, afastar-nos-íamos ainda do objectivo central que deve perseguir o instituto da responsabilidade civil extracontratual, o qual está apontado à reparação de danos causalmente imputados à actuação ilícita do agente, e não propriamente à aplicação ao agente de outros efeitos punitivos. A função primordial da responsabilidade civil extracontratual é a de operar, na medida do possível, a reconstituição natural da situação que existiria se acaso não houvesse ocorrido o facto ilícito ou, não sendo possível tal reconstituição, compensar monetariamente o lesado, colocando-o aproximadamente na situação em que ficaria se não tivesse ocorrido aquele facto, não devendo apelar-se a um instituto com funções essencialmente reparadoras que desempenhe outros objectivos que são tutelados por outras regras (função punitiva, função reguladora, etc.).

8. No caso concreto, apenas está provado que:

- A A. apresentou a pagamento 3 cheques que haviam sido sacados a seu favor pela sociedade H., Ldª, os quais foram apresentados a pagamento dentro do prazo regulamentar;

- Foi recusado o seu pagamento com o fundamento em “falta ou vício na formação da vontade”;

- Esta devolução obedeceu a instruções expressas que foram dadas ao R. pela sacadora e que ficaram consolidadas na fórmula sintetizadora de “falta ou vício na formação da vontade”;

- A A. não recebeu os montantes constantes dos aludidos 3 cheques.

9. A matéria de facto integra indubitavelmente os pressupostos da ilicitude e da culpa, na medida em que foi violada pelo R. uma regra da actividade bancária e dos títulos de crédito que não poderia ignorar.

Porém, recuando no trajecto processual, verificamos que na petição inicial a A. se limitou a alegar a ocorrência da revogação ilegítima do cheque fundada na “falta ou vício de vontade” (arts. 17º e 18º da petição), sem a mais ligeira preocupação pelos demais pressupostos da responsabilidade civil correspondentes ao dano patrimonial efectivo e ao nexo de causalidade entre a actuação do banco e o dano causado.

A este respeito, alegou apenas o que consta dos arts. 24º, 25º, 32º e 33º, ou seja, que tinha o direito de ser indemnizada por “perdas e danos, como consequência da sua recusa em pagar os cheques apresentados a pagamento dentro do prazo legal”, estabelecendo a correspondência imediata entre “o montante do prejuízo” e os “valores titulados nos cheques”. Ou seja, a A. limitou-se a alegar que os cheques foram devolvidos com o referido fundamento, dentro do período legal de apresentação a pagamento, mas não alegou e, por isso, não pôde nem poderá demonstrar a existência de um prejuízo patrimonial causalmente imputado ao comportamento do banco R. e que correspondesse ao valor dos cheques, essencialmente dependente do facto de a conta sacada dispor de numerário suficiente para que, na ocasião, se concretizasse o desconto dos cheques.

Por tais motivos, contrariando a tese que prevaleceu nas instâncias, impõe-se a revogação do acórdão recorrido.

10. O tribunal de 1ª instância conheceu do mérito da acção no despacho saneador, assentando praticamente na aferição da ilicitude da actuação do banco sacado. Com base em tal pressuposto foi proferido o acórdão recorrido.

Neste contexto, embora tenha sido exposta a divergência relativamente à apreciação de todos os contornos da responsabilidade civil extracontratual emergente da devolução ilegítima de cheques, não se mostra viável a este Supremo Tribunal seguir a via da ampliação da decisão da matéria de facto, por forma a recolher outros elementos necessários a integrar a solução jurídica que se deixou exposta, nos termos e para efeitos do disposto no art. 729º, nº 3, do CPC.

11. É verdade que a devolução de cheque, com indicação da falta de provisão, é susceptível de determinar, em abstracto, diversos efeitos que poderão ter ficado prejudicados pela actuação ilícita do banco sacado.

Com efeito, a recusa de desconto de cheques sobre uma conta que porventura não se encontre total ou parcialmente provisionada, pode implicar as seguintes consequências:

- Notificação do sacador, a fim de regularizar a situação de falta de provisão em 30 dias, com a cominação da rescisão da convenção de cheque, proibição de emitir novos cheques sobre o banco sacado, proibição de celebrar ou manter convenção de cheque com outras instituições e inclusão na listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco (art. 1º-A do Dec. Lei nº 454/91, de 28-12, aditado pelo Dec. Lei nº 316/97, de 19-11);

- Posterior comunicação ao Banco de Portugal para inclusão na referida listagem (arts. 2º e 3º);

- Integração de uma das modalidades em que pode traduzir-se o crime de emissão de cheque sem provisão (arts. 23º e 24º do Decreto nº 13.004, de 12-1-1927, na sua actual redacção, e art. 11º, nº 1, al. a), do Dec. Lei nº 454/91, de 28-12), sendo que a regularização do cheque dentro do referido prazo permite extinguir a responsabilidade criminal (art. 11º, nº 5), ao passo que a condenação pela prática do crime pode integrar, para além da pena principal, as medidas acessórias previstas no art. 12º;

- Constituição de título executivo susceptível de permitir ao sacador a instauração de uma acção executiva para cobrança coerciva da quantia inscrita no cheque (art. 40º da LUC e art. 46º, nº 1, al. c), do CPC);

- Possibilidade de reutilização do cheque para nova apresentação a pagamento.

Tratando-se de aspectos que, sob uma determinada perspectiva, poderiam influir na decisão do caso, designadamente em termos de se ponderar a verificação de um dano conexo com a eventual perda de oportunidade causalmente imputada à actuação ilícita do banco sacado, os mesmos não podem, em concreto, ser ponderados nem pelas instâncias, nem por este Supremo Tribunal, na medida em que no momento oportuno não foram alegados pela A. os factos pertinentes.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, de modo que se revoga o acórdão recorrido e, julgando improcedente a acção, é absolvida a Ré do pedido.

Custas da revista e nas instâncias a cargo da A.

Notifique.

Lisboa, 21-3-13

Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva

---------------------

[1] Também Januário Gomes, em Contratos Comerciais, pág. 208, depois de dar a sua adesão à jurisprudência uniformizadora, limita-se a referir que “a violação da proibição legal em causa consubstancia uma situação de ilicitude … parecendo-nos que entre as situações que a lei visa proteger estão, não apenas as gerais associadas à fé pública do cheque e à sua circulação, mas também as especiais, centradas na posição do portador legítimo do cheque”.
[2] A solução de responsabilizar o banco sacado mesmo em casos em que a conta não se encontre provisionada foi também assumida no Ac. do STJ, de 6-12-12, em www.dgsi.pt.

[3] Não cremos que possa sequer colocar-se a problemática da relevância negativa da causa virtual, pois, como refere Pereira Coelho, em O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, pág. 19, essa problemática só se colocaria numa situação em que se configurasse um facto que provocou um dano, o qual seria causado por outro facto se aquele não tivesse lugar. Ora, a mera devolução do cheque com fundamento em revogação ilegítima, por si, não configura qualquer dano efectivo, dependendo este inteiramente do facto de a conta sacada se encontrar devidamente provisionada.