Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2781
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOITINHO DE ALMEIDA
Descritores: SOCIEDADE ENTRE CÔNJUGES
SOCIEDADE POR QUOTAS
Nº do Documento: SJ200310090027812
Data do Acordão: 10/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7096/02
Data: 02/18/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : O artigo 1714°, n°2 do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que a noção de sociedade de capitais abrange as sociedades por quotas, quer a sociedade tenha sido constituída ab initio por ambos os cônjuges, quer posteriormente a eles tenha sido reduzida.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A", Intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra B e C e esposa, D pedindo a declaração da nulidade da primeira Ré e a condenação dos restantes a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia de Escudos 3.403.434$00, acrescida de juros de mora desde 28 de Julho de 1988, à taxa legal.

Alegou para o efeito e em substância que a nulidade invocada resulta do facto de a sociedade ser constituída exclusivamente pelos Réus C e mulher e que a quantia pedida respeita a fornecimentos não pagos feitos à primeira Ré.

A acção foi julgada procedente sendo declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de constituição da sociedade denominada B e condenados os Réus C e mulher a pagar à Autora a quantia pedida, acrescida de juros vencidos desde a citação, às taxas sucessivamente em vigor e até integral pagamento.

Por acórdão de 18 de Fevereiro de 2003, a Relação de Lisboa julgou procedente o recurso de apelação interposto pelos Réus e, em consequência, revogou a sentença recorrida, condenando a Ré B. a pagar à Autora a quantia de Escudos 3.403.434$00, acrescida de juros desde a citação e até integral pagamento.

Inconformada, recorreu a Autora para este Tribunal, concluindo as alegações da sua revista nos seguintes termos:

1. São nulas as sociedades por quotas, que depois da entrada em vigor do C. Civil de 1966, se constituíram entre dois únicos sócios, sendo marido e mulher, casados sob o regime de comunhão de adquiridos.

2.Tal nulidade opera ipso jure.

3. O n°1 do artigo 8° do Código das Sociedades Comerciais, sendo como é uma norma inovadora, não pode aplicar-se às situações jurídicas anteriormente constituídas.

4.Porque nula a sociedade B, são os R.R. seus sócios fundadores pessoal e solidariamente responsáveis para com a Recorrente pelo pagamento da quantia a que se reportam os autos.

5.Foram violados entre outros os artigos 1714° do Código Civil de 1966 e o artigo 12° do C. Civil.

6.Deve, pois, o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que confirme a douta sentença proferida em primeira instância.

2. Quanto à matéria de facto remete-se para a decisão da primeira instância (artigos 713°, n°6 e 726°, do Código de Processo Civil).

3. Considera a Recorrente que o n°2 do artigo 1714° do Código Civil consagra a proibição de qualquer sociedade entre dois cônjuges ,o que só admite a excepção prevista no n°3 do mesmo artigo , ou seja, a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade de capitais.

É certo que o artigo 8°, n°1 do Código das Sociedades Comerciais permite "a constituição de sociedades entre cônjuges, bem como a participação destes em sociedades, desde que só um deles assuma responsabilidade ilimitada", mas esta disposição constitui uma norma inovadora que não admite aplicação retroactiva (artigo 12°, n°1, do Código Civil).

Não tem razão a Recorrente.

Sobre esta questão pronunciou-se o acórdão uniformizador de jurisprudência de 1 de Outubro de 1996 (DR, I Série, de 20 de Novembro de 1996 e Boletim do Ministério da Justiça n°460, p.125) no sentido de que "As sociedades por quotas que, depois da entrada em vigor do Código Civil de 1996 e mesmo depois das alterações nele introduzidas pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 e antes da vigência do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei 262/86, de 2 de Setembro ficaram reduzidas a dois sócios, marido e mulher, não separados de pessoas e bens, não são, em consequência dessa redução, nulas". Tendo em conta a fundamentação do acórdão, esta solução impõe-se no caso de sociedade constituída ab initio entre os dois cônjuges.

Com efeito, entendeu-se aí que a constituição de uma sociedade por quotas se encontra abrangida pela excepção prevista no n°3 do artigo 1714°, do Código Civil uma vez que tal sociedade deve ser considerada "sociedade de capitais" e que a "participação" aí mencionada abrange a de ambos os cônjuges.

E entendeu-se ainda que o artigo 8°, n°1 do Código das Sociedades Comerciais, de que resulta a validade da constituição de uma sociedade por quotas entre cônjuges, deve ser considerado como uma disposição de natureza interpretativa, aplicável retroactivamente.

Não vemos qualquer razão para não seguir este acórdão, confirmado pelo acórdão de 23 de Setembro de 1999 (BMJ, n°489, p.370), em hipótese semelhante à dos presentes autos. A solução nele consagrada é também imposta pelo princípio comunitário da interpretação do direito interno, na medida do possível, em conformidade com o direito comunitário (veja-se, entre outros, o acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 14 de Julho de 1994, proferido no caso Faccini Dori-Col.p.I-3325). Com efeito, são apenas admitidos como fundamento de nulidade das sociedades comerciais a que se refere a Directiva n°68/151/CEE, do Conselho, de 9 de Março de 1968 (edição especial portuguesa, Capítulo 17, Fascículo 1, p.3) os mencionados no artigo 11°, em que se não inclui a hipótese em apreço. Ora, esta directiva vinculava o nosso País à época da constituição da sociedade em causa (14 de Outubro de 1986) e o direito português permite a interpretação consagrada naqueles acórdãos.

Termos em que se nega a revista.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 9 de Outubro de 2003

Moitinho de Almeida

Ferreira de Almeida