Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
201/20.5T8MGL.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA
LEI APLICÁVEL
DEVERES ACESSÓRIOS
DEVER DE DILIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA
ÓNUS DA PROVA
DANOS PATRIMONIAIS
BANCO
Data do Acordão: 02/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O IBAN (International Bank Account Number) é uma estrutura normalizada de número de conta de pagamento, constituindo o elemento que, nas transferências electrónicas internacionais, permite identificar a conta bancária a que se destina o pagamento e competindo ao banco segui-lo ao executar a ordem de transferência.

II. Tendo o ordenante de uma transferência electrónica indicado certo IBAN e sendo o pagamento efectuado na conta correspondente a esse IBAN, embora pertencente a pessoa diferente do beneficiário, também indicado pelo ordenante, não pode este responsabilizar o banco em que está sediada aquela conta por pagamento indevido, alegando violação do dever de verificar se a pessoa beneficiária correspondia, efectivamente, à indicada na ordem de transferência.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

Recorrente: Villa Degli Olmi, S.p.a.

Recorrida: Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Vale do Dão e Alto Vouga, CRL

1. A pedido de Villa Degli Olmi, S.p.a., e Shanghai Zhengdao Wine Co. Ltd., o o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu condenou a ré, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Vale do Dão e Alto Vouga, CRL, a pagar à primeira autora a quantia de € 42 663,58, acrescida de juros, vencidos, desde 18 de Março de 2020, e vincendos, contados à taxa supletiva fixada para os juros civis, com fundamento em responsabilidade extracontratual resultante da violação negligente do dever de verificação de todos os requisitos da transferência bancária, da quantia de € 42 730, 80, ordenada pela segunda autora a favor da primeira, designadamente do dever de verificar se a beneficiária correspondia à indicada na ordem de transferência.

2. Na sequência da impugnação desta sentença pela ré, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de cujo dispositivo consta:

Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença impugnada e, consequentemente, absolve-se a apelante, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Vale do Dão e Alto Vouga, CRL, do pedido”.

3. Inconformada, vem a autora reclamar para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no qual os Mmos. Juízes a quo concederam provimento ao recurso apresentado pela Ré, revogando a sentença proferida em primeira instância que a havia condenado a pagar à autora Villa Degli Olmi SPA a quantia de € 42.663,58 (quarenta e dois mil seiscentos e sessenta e três euros e cinquenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, sobre tal capital, contados desde o dia 18 de Março de 2020, até integral e efectivo pagamento, calculados à taxa legal supletiva fixada para os juros civis;

2. A decisão proferida pelo Mmo. Juiz a quo de primeira instância na parte da condenação da Ré à A., ora Recorrente, não merece qualquer censura, não se aceitando os fundamentos da sua revogação, devendo o acórdão proferido ser revogado, repondo-se a decisão proferida pela Douta sentença, nos seus exatos termos.

3. Na presente ação, as Autoras, entre elas a Recorrente, requereram a condenação da Ré ao pagamento da quantia de € 42.730,80, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal de 4%, contados desde a data da transferência, realizada no dia 20 de Fevereiro de 2020, no valor vencido de € 716,47, até efectivo e integral pagamento, porquanto a Ré violou as suas obrigações enquanto Instituição Bancária de verificação da identidade entre o destinatário da transferência bancária realizada pela A. chinesa à A. italiana e a identidade do titular da conta onde foi creditado o referido montante, sendo responsável civilmente – responsável civil extracontratual – pelo dano causado – que se quantifica no montante transferido.

4. Ficou provado, em síntese, que em virtude de um ataque informático de que foram alvo, alguém teria entrado num dos seus sistemas informáticos, ou da empresa italiana ou da empresa chinesa, tendo acedido aos mails da empresa italiana e alterado a documentação apondo os dados da conta domiciliada em Portugal titulada por um terceiro, procedendo ao envio de dados fraudulentos à autora chinesa, constatando posteriormente que a conta com o IBAN  ...46, sediada na Recorrente, para a qual foi transferida a quantia de €42.730,80, é titulada por AA, sujeito desconhecido das Autoras com o qual nunca celebraram qualquer contrato.

5. A autora italiana contactou a Recorrida com o objectivo de bloquear a quantia em questão, tendo sido informada que a mesma já tinha sido creditada e levantada pelo titular da conta, sendo que apesar de a autora chinesa ter indicado que a beneficiária da sua transferência era a autora italiana, a Recorrida creditou o montante transferido pela autora chinesa na conta corrente com o IBAN  ...46, cujo titular era AA.

6. Não ficou provado que a Ré, Recorrida, cumpriu todos os deveres de verificação que lhe eram exigíveis em face dos elementos de que dispunha.

7. A questão que se pretende resolver nos presentes autos prende-se com a responsabilidade da Ré, ora Recorrida, no dano ocorrido na esfera jurídica da A., ora Recorrente, na sequência da transferência bancária ordenada pela co-Autora nestes autos – a sociedade chinesa Shangai Zhengdao Wine Co. Ltd. à Recorrente, Villa Degli Olmi, sem aferir que a transferência ordenada não se destinava à conta onde foi efectuado o pagamento, constando da ordem de transferência quer o número de identificação bancária quer o nome do beneficiário destinatário desse pagamento, pois que a conta era titulada por um terceiro que não a Recorrente. Ou seja, pretendeu-se assim, verificar se estão preenchidos os vários pressupostos da responsabilidade civil para condenação do Banco Réu, Recorrida.

8. O juiz de primeira instância considerou haver responsabilidade do Banco recorrido – Caixa de Crédito Agrícola do Vale do Dão e Alto Vouga – enquanto que os Juízes de Segunda Instância consideraram não estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil para que o Banco possa ser responsabilizado de tal dano.

9. Os Mmos. Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra consideraram ser aplicável aos autos o Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica (RJSPME) aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro de 2018 e consequentemente a norma (art. 129.º) que não considera o prestador de serviço de pagamento responsável pela execução ou execução incorrecta da ordem de pagamento no caso de incorrecção Identificador Unico pelo utilizador do serviço de pagamento (art. 129.º). Sendo também aplicável a Directiva (EU) 2015/2366 por ser aplicável a pagamentos fora da União e em diferentes moedas.

10. No entender da Recorrente, posição que mereceu acolhimento pelo Juiz de primeira instância, é aplicável aos autos o Reg. 2015/847 do Parlamento e do Conselho, de 20 de Maio de 2015 relativo às informações que acompanham as transferências de fundos e a Lei 83/2017, de 18 de agosto que estabeleceu as regras nacionais, e bem assim o Aviso n.º 2/2018, de 26 de Setembro de 2018 do Banco de Portugal e nesse sentido o Banco/Ré responsável pela não averiguação necessária aquando da creditação na conta de destinatária, não agindo com a diligência que lhe era devida e exigível sendo deste modo responsável pelo crédito da quantia na referida conta que não estava titulada pelo nome do beneficiário da transferência/pagamento ordenado

11. O Tribunal a quo como enferma, no entender da Recorrente, num erro de base que se prende com a necessidade de afastar a Directiva (EU) 2015/847 por aplicação da Directiva (EU) 2015/2366 quando ambas podem e devem ser vistas como complementares. No caso dos autos a conta de destino não era titulada pelo Beneficiário da transferência, impendendo sobre o Banco de pagamento tal averiguação.

12. As referidas Directivas coabitam entre si e não se excluem. Pois, independentemente da questão da eventualidade da indicação correcta ou incorrecta do IBAN e da (i)responsabilidade do Banco de pagamento, impende sobre o prestador do serviço de pagamento do ordenante a obrigação de verificação dos dados constantes da transferência bancária e a recuse em caso de divergência entre o titular da conta e o beneficiário da transferência. Em caso de divergência, deve de isso informar o ordenante. Contudo, conforme resulta da decisão da matéria de facto, não foi dado como provado que a Ré tenha cumprido todos os deveres de verificação que lhe eram exigíveis em face dos elementos de que dispunha.

13. A Recorrida, através da obrigação que lhe é exigida enquanto serviço de pagamento, competia verificar se o beneficiário da transferência era o titular da conta e, não sendo, apurar o motivo da divergência, sendo tal obrigação acrescida considerando o valor elevado da transferência, que em muito supera os valores legalmente indicados para efeitos de obrigatoriedade de identificação e diligência por parte das instituições bancárias, previstos na al. b) do n.º1 do art.23.º da Lei n.º83/2017, de 18 de Agosto.

14. A Recorrida deveria ter conferido os dados da transferência, recusando o crédito do montante transferido se não coincidisse ou existisse divergência ou omissão entre os dados do titular da conta e os dados indicados na transferência, devolvendo os montantes à ordenante pois ao não fazê-lo violou as obrigações e todas as regras de cuidado e diligência que lhe são legalmente impostas, causando um dano às Autoras, pois que a autora Villa Degli Olmi SPA não recebeu a quantia de €42.730,80 e autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD mantém em aberto a dívida para com o seu fornecedor que terá que regularizar.

15. Conforme resulta provado, a A. Chinesa efectuou a referida transferência bancária, confiando que se os dados indicados (beneficiário, morada, domiciliação da conta, etc…) estivessem em divergência com os dados associados à conta bancária indicada, e que encontram em exclusivo no poder do banco beneficiário onde a conta se encontra domiciliada, esta recusaria a transferência devolvendo o montante transferido à remetente, sendo uma expectativa mais do que legítima, já prestou as informações legalmente exigidas, considerando serem as correctas – na confiança de que o destinário da transferência fosse o destinatário da conta.

16. Somente Recorrida através da obrigação que lhe é exigida enquanto serviço de pagamento do beneficiário, conseguiria facilmente verificar se o destinatário da transferência era o titular da conta e não sendo deveria ter apurado o porquê da divergência. O que não fez resulta provado não ter feito (factos provados em ccc), ddd) eee) fff)).

17. Considerando o valor elevado da transferência a responsabilidade do banco é ainda maior, pois que em muito supera os valores legalmente indicados para efeitos de obrigatoriedade de identificação e diligência por parte das Instituições bancárias, previstas na al. b) do n.º 1 do art. 23 da Lei 83/2017, de 18 de agosto.

18. Conforme resulta do art. 8.º do Reg. (EU), 2015/847, do Parlamento Europeu e do Conselho e art. 69.º do Aviso BP n.º 2/2018, a Recorrente deveria conferir, recusando a creditação do montante transferido se não coincidisse ou existisse divergência ou omissão entre os dados do titular da conta e os dados indicados na transferência, devolvendo os montantes à ordenante, conforme regulamentos bancários o impõem.

19. A Recorrida, ao creditar o montante transferido pela Recorrente, na sua conta corrente correspondente ao IBAN  ...46, apesar da referida conta não ser titulada pela Villa Degli Olmi, Spa, actuou negligentemente violando as obrigações e todas as regras de cuidado e diligência que lhe são impostas, e provocando de forma directa e necessária, sendo o dano correspondente ao empobrecimento da A. no seu património, no montante corresponde ao da transferência efectuada.

20. Nos termos do art. 73.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Instituições Financeiras, DL. 298/92 de 31 de Dezembro, com as suas sucessivas alterações, “As instituições de crédito devem assegurar, em todas as atividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, garantindo que a sua organização empresarial funcione com os meios humanos e materiais adequados a assegurar condições apropriadas de qualidade e eficiência”. Ainda, e o art. 74.º do mesmo diploma esclarece que “Os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados.”

21. Nesse sentido, o aviso do Banco de Portugal n.º 5/2008, veio promover os princípios básicos que devem nortear a implementação de um sistema de controlo interno que, de modo a reforçar o que já vinha no revogado aviso do Banco de Portugal n.º 3/2006, e estabelecendo que as entidades bancárias devem agir de forma a minimizar, nomeadamente os riscos financeiros, operacionais, legais, incluindo o risco de fraudes, irregularidades e erros, assegurando a sua prevenção e detecção tempestiva.

22. Pois bem, além disso, no âmbito da sua gestão de controlo de risco, dever de diligência e de adopção de politicas ao combate ao branqueamento de capitais, as Instituições Financeiras, onde se inclui a recorrida, tem obrigações acrescidas de cuidado, averiguação, controlo e de identificação dos intervenientes em operações financeiras, conforme resulta do Regulamento (EU) 2015/847 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015 (doravante Reg. 2015/847), relativo às informações que acompanham as transferências de fundos, diploma aplicável às Instituições de Crédito de Financeiras sedeadas nos Estados-membros da EU.

23. Veio o Reg. 2015/847 exigir mais informações por parte dos intervenientes na realização das transferências de fundos cujos requisitos técnicos se encontram previstos no Reg. 260/2012, de 14 de Maio, no que às obrigações do prestador de serviços de pagamento do beneficiário diz respeito, ou seja, à Recorrente, estabelecendo o art. 7.º e 4.º do Regulamento 2015/847 em relação às transferências que excedam 1 000 EUR, antes de creditar a conta de pagamento do beneficiário ou de colocar os fundos à disposição deste, o prestador de serviços de pagamento do beneficiário verifica a exatidão das informações relativas ao beneficiário tais como o NOME DO BENEFICIÁRIO da transferência de fundos.

24. Caso a Recorrida tivesse cumprido as obrigações que sobre si impendem teria facilmente constatado que VILLA DEGLI OLMI e AA não correspondem entre si, devendo, por conseguinte rejeitar a transferência, conforme do disposto no art. 8.º do Diploma, o que não aconteceu!

25. Na senda do mencionado regulamento, conforme aflorado, a Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto (doravante somente Lei 83/2017), que estabelece medidas e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo estabeleceu normas de execução do regulamento (UE) 2015/847, do qual resulta, desde logo, que as entidades, entre as quais a Recorrente, estão obrigadas na sua actuação, ao cumprimento dos deveres de identificação e diligência (art. 11.º n.º 1 al. b) encontrando-se tal dever de identificação e diligência regulado nos artigos 23.º e seguintes.

26. Encontra-se estabelecido que a verificação da identidade do cliente é efectuada antes da realização de qualquer transação comercial (art.26.º), havendo um dever de recusa de realização de transações ocasionais quanto não obtenham tais informações por parte dos clientes (art. 50.º da Lei 83/2017).

27. Ainda na mesma linha, o Banco de Portugal regulamentou as medidas que os prestadores de serviços de pagamentos devem adoptar para detectar as transferências de fundos em que as informações sobre o ordenante ou o beneficiário são omissas ou incompletas – aplicando-se, mutatis mutandis quando as mesmas são divergentes – e os procedimentos que as mencionadas instituições devem adoptar para gerir as transferências de fundos que não sejam acompanhadas das informações requeridas pelo Reg. 2015/847, previstas no seu Aviso n.º 2/2018, publicado em Diário da Republica na 2.º série – n.º 186, de 26 de setembro de 2018, o qual estabelece nos artigos 18 e seguintes os procedimentos a adoptar pelas Instituições no que ao dever de identificação e diligência diz respeito em cumprimento com o disposto no art. 23.º e seguintes da Lei 83/2018, mais regulando as políticas e procedimentos para a detecção da omissão de informação sobre o ordenante ou o beneficiário (art. 68.º) e a gestão de transferência de fundos em que as informações são omissas, incompletas ou contêm caracteres ou dados inadmissíveis, ou, pela própria natureza da norma e divergência entre os dados fornecidos e os dados constantes pelas entidades (art. 69.º).

28. É assim evidente que os Bancos, entre eles a Recorrida, pelo tipo de actividade que exercem tenham de obedecer a um padrão de diligência superior ao exigido ao interveniente médio, devendo garantir tanto tecnicamente como a nível de recursos humanos, elevados padrões de qualidade a fim de evitar possíveis erros e detectar fraudes, segundo a qual os bancos tem de se munir de meios técnicos e humanos para cumprir com as obrigações que a lei lhes impõem..

29. Assim, no caso de não ser possível para o próprio ordenante conferir o IBAN com o beneficiário real da transferência, como no caso em apreço, deve o ordenante indicar o real beneficiário pretendido – o que foi efectuado indicando o nome da sociedade VILLA DEGLI OLMI – devendo o banco do beneficiário, única entidade que se encontra na posse de todos os elementos identificativos do titular da conta, averiguar a correspondência de dados.

30. A actuação da Recorrida, ao não conferir os dados fornecidos, é desde logo violador das regras de identificação impostas pela Lei 83/2017, de 18 de Agosto e do Reg. 2015/847 e do Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2018.

31. Não obstante a clara violação das mencionadas normas legais, o acórdão recorrido afasta a sua responsabilidade alegando não estarem cumpridos todos os requisitos da responsabilidade civil para que seja condenada ao ressarcimento dos danos, mais concretamente alega estar em falta a verificação do pressuposto da ilicitude, especificamente a falta dos requisitos da 2.ª variante da ilicitude, particularmente no que diz respeito a que a tutela dos interesses particulares protegidos pela norma.

32. No entanto, na verdade as referidas normas além da protecção de interesses colectivos, também têm como finalidade a tutela de interesses particulares e não só como mero reflexo dos interesses colectivos, Pois bem, com as referidas normas pretendeu-se, também salvaguardar a segurança dos particulares e os seus direitos individuais tais como os próprios direitos de crédito de cada um dos cidadãos e empresas. Assim, através das referidas normas vem-se protegidos direitos fundamentais dos cidadãos constitucionalmente consagrado.

33. No caso em apreço a Recorrida agiu de forma negligente no que concerne ao cumprimento do dever de verificação de todos os requisitos para a transferência, que lhe era exigido e cujos dados teve acesso pois foram fornecidos pela Ordenante, podia realizar e não logrou fazer, sendo responsável pelo deposito do montante numa conta titulada por um terceiro, não destinatário da quantia e bem assim pelo seu levantamento.

34. A acrescer à violação dos deveres directamente relacionados com a identidade do destinatário da ordem de transferência, nos termos supra referidos, também impendia sobre a Recorrida um especial dever de cuidado e de controlo sobre operações suspeitas e, conforme resulta da matéria de facto provada, foram realizadas várias operações suspeitas na conta domiciliada na Recorrida.

35. É indubitável que com a sua conduta a Recorrida violou de forma ilícita o direito da Recorrente Villa Degli Olmi SPA sobre o montante transferido pela autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD, mostrando-se a negligência da Recorrida adequada a causar o dano correspondente ao desapossamento da quantia em questão, devendo assim o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se integralmente a decisão recorrida”.

4. A ré apresentou resposta, concluindo:

1ª – Neste caso trata-se de uma transferência eletrónica de fundos, dado que a movimentação entre contas bancárias foi realizada em cumprimento de ordem transmitida por meios eletrónicos e a concretização da ordem de pagamento foi também executada, de modo automático, através da utilização de meios também eletrónicos, portanto, sem intervenção manual.

2.ª - Como se pode ler no considerando 7 da DIRETIVA (UE) 2015/2366 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 25 de novembro de 2015 relativa aos serviços de pagamento no mercado interno:

“Nos últimos anos, assistiu-se a um aumento dos riscos de segurança relacionados com os pagamentos eletrónicos.

Isto deve-se à maior complexidade técnica dos pagamentos eletrónicos, ao volume cada vez maior deste tipo de pagamentos à escala mundial e ao aparecimento de novos tipos de serviços de pagamento. A existência de serviços de pagamento seguros constitui uma condição indispensável para o bom funcionamento do mercado de serviços de pagamento. Os utilizadores de serviços de pagamento deverão ser, pois, protegidos de forma adequada contra esses riscos. Os serviços de pagamento são essenciais para o funcionamento de atividades económicas e sociais da máxima importância.

3.ª - O Decreto-Lei n.º 91/2018 de 12/11 que veio transpor para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno, determina no artigo 3.º n.º 3 que o título iii, que ressalvadas as exceções previstas nos artigos 76.º e 100.º, é aplicável às parcelas da operação de pagamento efetuadas em Portugal em qualquer moeda, caso um dos prestadores de serviços de pagamento esteja situado em Portugal e o outro prestador esteja situado fora da União.

4.ª – O artigo 129.º n.º e 2 do Decreto-Lei n.º 91/2018 de 12/11, determina a exclusão da responsabilidade do prestador de serviços de pagamento no caso de uma ordem de pagamento ser executada em conformidade com o identificador único, mesmo no caso em que o identificador único fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento seja incorreto.

5.ª – O identificador único é o IBAN.

6.ª – A exclusão da responsabilidade deve ser interpretada no sentido de que, quando uma ordem de pagamento for executada em conformidade com o identificador único fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento, que não corresponde ao nome do beneficiário indicado por esse mesmo utilizador, a limitação da responsabilidade do prestador de serviços de pagamento, prevista nessa disposição, aplica-se quer ao prestador de serviços de pagamento do ordenante quer ao prestador de serviços de pagamento do beneficiário.

7.ª - O requisito da ilicitude, para efeito da responsabilidade civil extracontratual, pode apresentar-se de duas formas, previstas no artigo 483.º n.º 1 do C. Civil: a violação de um direito de outrem, ou a violação da lei que protege que protege interesses alheios.

8.ª - A segunda forma de ilicitude, pode resultar tanto da infração das leis que embora protejam interesses particulares, não conferem aos respetivos titulares um direito subjetivo a essa tutela, tanto de leis que, tendo também ou até principalmente em vista a proteção de interesses coletivos, não deixam de atender aos interesses particulares subjacentes.

9.ª - Para que o lesado, nos casos do segundo tipo de ilicitude, tenha direito a indemnização, é necessário que se verifiquem três requisitos: o primeiro que à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal, o segundo que a tutela dos interesses particulares, figure de facto, entre os fins da norma violada, sendo necessário que a tutela dos interesses privados não seja, um mero reflexo da proteção dos interesses coletivos, que, como tais, a lei visa salvaguardar, e finalmente que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.

10.ª - A tutela do interesse privado dos utilizadores do sistema internacional de pagamentos, não figura entre os fins das normas do REGULAMENTO (UE) 2015/847 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, da Lei n.º83/2017, e do Aviso BP n.º 2/2018, que visam a proteção do sistema financeiro através da prevenção, deteção e investigação do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, faltando neste caso o requisito especial isto é, que a tutela dos interesses particulares, figure de facto, entre os fins da norma violada.

11.ª - Na transferência – transação número de referência ... no VALOR DE EUR 42.663,58 - as informações sobre o ordenante e o beneficiário não se mostram omissas, nem incompletas, e foram preenchidas por meio dos carateres ou dados admissíveis em conformidade com as convenções do sistema de mensagens ou de pagamento e liquidação utilizado – SWIFT, tendo a R. cumprido os procedimentos previstos no art.º 8.º do REGULAMENTO (UE) 2015/847 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 20 de maio de 2015.

12.ª – Como dispõe o art.º 8.º do REGULAMENTO (UE) 2015/847 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 20 de maio de 2015: o prestador de serviços de pagamento do beneficiário aplica procedimentos eficazes baseados nos riscos, incluindo procedimentos baseados nos riscos a que se refere o artigo 13.º da Diretiva (UE) 2015/849, para determinar quando deverá executar, rejeitar ou suspender uma transferência de fundos que não seja acompanhada das informações completas exigidas sobre o ordenante e o beneficiário, e para tomar medidas de acompanhamento adequadas, e caso tenha conhecimento, aquando da receção de transferências de fundos, de que são omissas ou incompletas as informações a que se refere o artigo 4.º, n.ºs 1 ou 2, o artigo 5.º, n.º 1, ou o artigo 6.º, ou que não foram preenchidas por meio dos carateres ou dados convencionados em conformidade com o sistema de mensagens ou de pagamento e liquidação a que se refere o artigo 7.º, n.º 1, o prestador de serviços de pagamento do beneficiário rejeita a transferência ou solicita as informações exigidas sobre o ordenante e o beneficiário, antes ou depois de creditar a conta de pagamento do beneficiário ou de colocar os fundos à disposição deste, em função dos riscos.

13.ª - Os n.º s 1 e 2 do art.º 69.º do Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2018 exigem que para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 8.º e no n.º 1 do artigo 12.º, ambos do Regulamento (UE) 2015/847, e sem prejuízo do disposto no artigo 148.º da Lei, que o prestador de serviços de pagamento do beneficiário e o prestador de serviços de pagamento intermediário implementem procedimentos eficazes baseados no risco para determinar quando devem rejeitar, suspender ou executar uma transferência de fundos cujo acompanhamento em tempo real revele que as informações sobre o ordenante ou o beneficiário estão omissas, incompletas ou não foram preenchidas por meio dos carateres ou dados admissíveis em conformidade com as convenções do sistema de mensagens ou de pagamento e liquidação utilizado, por forma a determinar se rejeitam, suspendem ou executam uma transferência de fundos em conformidade com o disposto no número anterior, sendo que, o prestador de serviços de pagamento do beneficiário e o prestador de serviços de pagamento intermediário consideram o risco de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo associado à operação, e em particular se o tipo de informação omissa ou incompleta suscita preocupações em matéria de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, se foram detetados um ou mais indicadores de risco elevado, de entre os identificados nos termos do n.º 11 do artigo 68.º deste Aviso, que indiciam que a transação apresenta um risco acrescido de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, ou que levanta suspeitas de que os fundos provêm de atividades criminosas ou estão relacionados com o financiamento do terrorismo.

13.ª – O n.º 5 do artigo 7.º do REGULAMENTO (UE) 2015/847 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 20 de maio de 2015, considera que foi efetuada a verificação prevista nos n.ºs 3 e 4 se a identidade do beneficiário tiver sido verificada nos termos do artigo 13.º da Diretiva (UE) 2015/849, e as informações obtidas ao abrigo dessa verificação tiverem sido conservadas nos termos do artigo 40.º da referida diretiva; ou se for aplicável ao beneficiário o disposto no artigo 14.o, n.º 5, da Diretiva (UE) 2015/849.

14.ª – De acordo com o n.º 2 do artigo 147º da Lei nº 83/2017, que transpõe parcialmente a Diretiva 2015/849/EU, para os efeitos do disposto no n.º 5 do artigo 7.º do Regulamento (UE) 2015/847, considera-se que foi efetuada a verificação prevista nos n.os 3 e 4 daquele artigo se a identidade do beneficiário tiver sido verificada ou atualizada nos termos das subsecções I e IV da secção III do capítulo IV da presente lei.

15.ª - O n.º 1 do art.º 23.º da Lei nº 83/2017, refere que as entidades obrigadas observam os procedimentos de identificação e diligência previstos, quando estabeleçam relações de negócio.

16.ª – De acordo com o artigo 24.º da Lei nº 83/2017, a identificação dos clientes e dos respetivos representantes é efetuada no caso de pessoas singulares, mediante recolha e registo dos seguintes elementos identificativos: fotografia, nome completo, assinatura, data de nascimento, nacionalidade constante do documento de identificação, tipo, número, data de validade e entidade emitente do documento de identificação, número de identificação fiscal ou, quando não disponha de número de identificação fiscal, o número equivalente emitido por autoridade estrangeira competente, profissão e entidade patronal, quando existam, endereço completo da residência permanente e, quando diverso, do domicílio fiscal, naturalidade, e outras nacionalidades não constantes do documento de identificação.

17.ª – Determina o artigo 25.º da Lei nº 83/2017, que para efeitos da verificação da identificação das pessoas singulares, as entidades obrigadas exigem sempre a apresentação de documentos de identificação válidos, dos quais constem os seguintes elementos identificativos: fotografia, nome completo, assinatura, data de nascimento, nacionalidade constante do documento de identificação, tipo, número, data de validade e entidade emitente do documento de identificação, número de identificação fiscal ou, quando não disponha de número de identificação fiscal, o número equivalente emitido por autoridade estrangeira competente, profissão e entidade patronal, quando existam, endereço completo da residência permanente e, quando diverso, do domicílio fiscal, naturalidade, e outras nacionalidades não constantes do documento de identificação, e que a comprovação dos dados referidos é efetuada sempre que os clientes e os respetivos representantes disponham dos elementos necessários para o efeito e manifestem à entidade obrigada a intenção de recorrer aos mesmos através da utilização eletrónica do cartão de cidadão com recurso à plataforma de interoperabilidade da administração pública, após autorização do titular dos documentos ou do respetivo representante, através de Chave Móvel Digital, com recurso a plataformas de interoperabilidade entre sistemas de informação emitidos por serviços públicos, nos termos do Regulamento (UE) 910/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de julho de 2014.

18.ª A R. efetuou a verificação da identidade do titular da conta, nos termos das disposições legais e administrativas aplicáveis”.

5. Foi proferido no Tribunal da Relação de Coimbra o seguinte despacho:

I. Admissão do recurso.

Considerando que a recorrente, Villa Degli Olmi, SPA, vencida no recurso de apelação, que não versa sobre o estado das pessoas, é dotada de legitimidade e está em tempo, admito o recurso que interpôs do acórdão correspondente, que é de revista, que sobe imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (art.ºs 138.º, n.ºs 1 e 2, 139.º. n.ºs 1 e 2, 248.º, n.º 1, 627.º, n.ºs 1 e 2, 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 637.º, 638.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, 675.º, n.º 1, e 676.º, n.º 1, a contrario, do CPC).

II. Expedição do recurso.

Expeça o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 641.º, n.º 1, do CPC)”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se o Banco deve ser responsabilizado pelos danos causados à autora derivados da violação dos seus deveres, designadamente o dever de aferir que a transferência ordenada não se destinava ao beneficiário do pagamento.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

a) A autora Villa Degli Olmi SPA é uma sociedade comercial de direito italiano, com sede em Via ..., ... ..., em Itália, que se dedica, de forma lucrativa, à produção, engarrafamento e comercialização de vinhos e de produtos vinícolas;

b) A autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD é uma sociedade comercial de direito chinês, com sede em ...., S..., na China, que se dedica, de forma lucrativa, à comercialização de vinhos e bebidas espirituosas;

c) A ré é uma instituição de crédito que, além do mais, realiza operações bancárias e financeiras em Portugal;

d) No exercício das actividades comerciais referidas em a) e b) as autoras estabelecem relações comerciais entre si há vários anos, celebrando anualmente entre si diversos contratos de compra e venda de vinhos;

e) Através dos quais a autora Villa Degli Olmi SPA fornece garrafas de vinho à autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD, obrigando-se esta a pagar previamente a mercadoria fornecida;

f) No mês de Janeiro de 2020 a autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD pediu à autora Villa Degli Olmi SPA que lhe fornecesse garrafas de vinho, dando tal pedido origem ao contrato de compra e venda n.º 01/2020, datado de 7 de Janeiro de 2020;

g) Na sequência do contrato de compra e venda mencionado em f) a autora Villa Degli Olmi SPA forneceu garrafas de vinho à autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD;

h) Emitindo em consequência de tal fornecimento a factura n.º ...70, com o valor de €42.730,80, que enviou à autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD;

i) Na qual apôs como referência para pagamento a conta com o IBAN  ..., SWIFT UNCRITM1N21, do banco ... - VIA RETRONE 5 OLMO - BB;

j) No mês de Fevereiro de 2020 a autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD informou a autora Villa Degli Olmi SPA que havia procedido ao pagamento da quantia referida em h);

k) Decorridas cerca de duas semanas, e na sequência de uma nova encomenda de vinho, a autora Villa Degli Olmi SPA comunicou à autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD que não havia recebido tal quantia;

l) Na sequência da comunicação mencionada em k) a autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD enviou à autora Villa Degli Olmi SPA a informação bancária respeitante à transferência do montante referido em h);

m) Decorridos alguns dias, após confrontada pela autora Villa Degli Olmi SPA com falta de recebimento do aludido montante, a autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD informou-a que havia transferido a quantia de €42.730,80 para uma conta bancária sediada em Portugal, indicando a “Villa Degli Olmi” como beneficiária da transferência, juntando comprovativo emitido pelo banco chinês com quem trabalha;

n) Após ter sido informada pela autora Villa Degli Olmi SPA de que não tinha qualquer conta bancária sediada em Portugal, a autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD enviou-lhe cópia do e-mail que alegadamente havia recebido daquela, proveniente do e-mail ...;

o) Sendo que nas suas comunicações com a autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD, a autora Villa Degli Olmi SPA utilizava o endereço de e-mail ...;

p) No e-mail mencionado em n) foi solicitado à autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD que procedesse à transferência para a conta bancária com o IBAN  ...46, sediada na agência do ... da ré, sendo beneficiária “Villa Degli Olmi S.p.A”;

q) Na sequência do e-mail mencionado em n) e p) a autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD, no dia 19 de Fevereiro de 2020, ordenou a transferência do montante de € 42.730,80 para a conta mencionada em p);

r) Dando para o efeito a respectiva ordem de transferência ao Agricultural Bank Of China, onde tem domiciliada a sua conta bancária com o n.º ...76;

s) Indicando como beneficiária de tal transferência a autora Villa Degli Olmi SPA e convicta, em face do e-mail mencionado em n) e p), que a conta bancária identificada em p) era por ela titulada;

t) O e-mail mencionado em n) e p) foi remetido à autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD por desconhecidos depois de terem entrado no sistema informático de uma das autoras;

u) Tendo acedido aos e-mails da autora Villa Degli Olmi SPA;

v) E apondo no e-mail mencionado em n) e p), no qual foi utilizado um endereço semelhante ao mencionado em o), a conta bancária nele identificada;

w) Tendo sido o endereço “...” registado na cidade ..., sita na Nigéria;

x) A conta bancária mencionada em p), para a qual a autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD transferiu a quantia referida em q) era titulada por AA;

y) As autoras não celebraram qualquer contrato com AA, que não conhecem;

z) Nem lhe deviam, ou devem, qualquer quantia;

aa) Não tendo a autora Villa Degli Olmi SPA quaisquer negócios em Portugal ou com portugueses, nem sendo titular de contas bancárias sediadas em Portugal;

bb) A autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD nunca teve intenção de transferir a quantia referida em q) para AA;

cc) Mas antes para a autora Villa Degli Olmi SPA;

dd) Apenas tendo transferido a quantia de € 42.730,80 para a conta mencionada em p) em virtude do referido em t) a v);

ee) Na sequência da transferência bancária mencionada em q) a ré, no dia 20 de Fevereiro de 2020, creditou na conta mencionada em p) o montante de € 42.663,58;

ff) Correspondente à quantia mencionada em q) deduzida das comissões bancárias de transferência;

gg) Tendo sido a transferência mencionada em q) realizada através do sistema de Transferência Electrónica Interbancária;

hh) E intermediada pelo Banco Comercial Português;

i) A conta bancária referida em p) é uma conta de depósitos à ordem e foi aberta no dia 21 de Janeiro de 2020 com um depósito inicial de € 100,00 (cem euros), a pedido de AA;

jj) Que para o efeito se deslocou à agência da ré sediada no ...;

kk) Tendo AA, de naturalidade brasileira, apresentado e disponibilizado à ré, no dia da abertura da conta, cópia do seu cartão de cidadão... n.º ... O ZY O, emitido pela República Portuguesa no dia 13/01/2016;

ll) Mais tendo declarado residir na Rua ..., ..., ..., freguesia ..., concelho ..., e trabalhar para a sociedade D. Unipessoal, Lda como empregado de balcão, preenchendo e assinando a ficha de informação de cliente;

mm) Disponibilizando posteriormente à ré um contrato de trabalho celebrado entre si e a sociedade D. Unipessoal, Lda., no dia 23 de Janeiro de 2020;

nn) No qual consta, além do mais, que a sociedade D. Unipessoal, Lda., admite AA ao seu serviço no dia 23 de Janeiro de 2020 com a categoria de empregado de balcão, pagando-lhe a retribuição ilíquida mensal de € 635,00 (seiscentos e trinta e cinco euros) sujeita a descontos legais, acrescida de subsídio de refeição de €4,77 por cada dia útil de trabalho prestado;

oo) No dia 31 de Março de 2020 a conta bancária identificada em p) registou o primeiro movimento depois do depósito inicial de €100,00;

pp) Tratando-se de um crédito, vulgo entrada de dinheiro, no montante de € 14.229,00 (catorze mil duzentos e vinte e nove euros), com a descrição transferência SEPA - Number One Electr;

qq) Após o crédito da quantia mencionada em pp) a conta bancária identificada em p) registou um movimento a débito, vulgo saída de dinheiro, no dia 3 de Fevereiro de 2020, no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) com a descrição TRANSF SEPA - CC;

rr) Registando no dia 4 de Fevereiro de 2020 outro movimento a débito no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) com a descrição TRANSF SEPA - DD;

ss) E no dia 6 de Fevereiro de 2020 outro movimento a débito no montante de € 4.200,00(quatro mil e duzentos euros) com a descrição TRANSF SEPA - EE;

tt) No dia 20 de Fevereiro de 2020 foi creditado o montante referido em ee) com a descrição ...31;

uu) Após o crédito mencionado em tt) foram registados na conta bancária identificada em p) os seguintes débitos:

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 20 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA -DD;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 21 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA -DD;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 22 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA -CC;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 24 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA -CC;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 25 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA -DD;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 26 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA -DD;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 27 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA -CC;

- € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 28 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA -DD;

-  € 5.000,00 (cinco mil euros) no dia 29 de Fevereiro de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - FF; e

-  € 2.860,00 (dois mil oitocentos e sessenta euros) no dia 2 de Março de 2020 com a descrição TRANSF SEPA - DD;

vv) Tendo no dia 28 de Fevereiro de 2020 sido registado um crédito no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros), com a descrição Trf. SEPA devolvida;

ww) Ficando a conta bancária referida em p), em consequência dos débitos mencionados em uu), no dia 2 de Março de 2020 com um saldo de € 3,20 (três euros e vinte cêntimos);

xx) Tendo nesse mesmo dia sido registado um crédito no montante de € 50,00 (cinquenta euros) com a descrição Dep. Numerário, ficando a conta com o saldo de € 53,20 (cinquenta e três euros e vinte cêntimos);

yy) No dia 18 de Março de 2020 a autora Villa Degli Olmi SPA contactou, através de telefax, a ré e solicitou-lhe que procedesse ao bloqueio da quantia referida em q) a fim de que fosse transferida para o banco chinês da autora Shanghai Zhengdao Wine CO.LTD;

zz) Tendo a ré respondido no dia 19 de Março de 2020 que não era possível proceder ao bloqueio solicitado pelo facto de a conta bancária identificada em p) não possuir saldo para tal;

aaa) O mesmo respondendo a ré ao Banco Comercial Português em consequência do pedido de devolução da transferência que este lhe dirigiu no dia 23 de Março de 2020;

bbb) No dia 24 de Março de 2020 a autora Villa Degli Olmi SPA apresentou participação criminal tendo por objecto os factos mencionados em n) a ff);

ccc) Pela circunstância de as informações sobre o ordenante e o beneficiário não se mostrarem omissas, nem incompletas, e terem sido preenchidas por meio dos caracteres ou dados admissíveis em conformidade com as convenções do sistema de mensagens ou de pagamento e liquidação utilizado, a ré, tal como sucedeu com o banco intermediário, não detectou quaisquer informações sem significado, nem indicadores de risco elevado, que determinassem a rejeição ou a suspensão da transferência referida em q) a s);

ddd) Tendo procedido ao crédito mencionado ee) e ff) de forma informática automática;

eee) Sem verificar a discrepância entre a identidade da beneficiária da transferência bancária mencionada em q) a s) e a identidade do titular da conta bancária referida em p);

fff) Não tendo detectado até à data referida em yy), através dos meios que tem disponíveis, nomeadamente na unidade de informação financeira, quaisquer informações que determinassem a rejeição ou a suspensão da transferência mencionada em q) a s);

ggg) A conta bancária identificada em p) foi encerrada no dia 31 de Julho de 2020, tendo nessa data AA procedido ao levantamento da quantia de € 53,20 que nela se encontrava depositada;

hhh) Na sequência do levantamento mencionado em ggg) a conta bancária identificada em p) ficou com saldo igual a zero;

iii) Os primeiros quatro dígitos da conta bancária mencionada em p) identificam que a mesma se encontra domiciliada em Portugal;

jjj) A ré foi citada para contestar os presentes autos no dia 28 de Julho de 2020.

E há um único facto considerado não provado no Acórdão recorrido, que é o seguinte:

Na execução da ordem de transferência mencionada em q) a s) a ré cumpriu todos os deveres de verificação que lhe eram exigíveis em face dos elementos de que dispunha.

O DIREITO

O presente recurso é interposto no âmbito de uma acção de responsabilidade civil. Trata-se, mais precisamente, de uma acção em que a autora Villa Degli Olmi, conjuntamente com outra autora (Shanghai Zhengdao Wine Co.), pede a condenação da ré Caixa de Crédito Agrícola em indemnização por responsabilidade civil extracontratual.

Não existindo qualquer relação contratual entre a ré Caixa de Crédito Agrícola e a autora Villa Degli Olmi – não existindo, aliás, qualquer relação contratual entre a ré e nenhuma das autoras –, bem se compreende que o pedido venha enquadrado na responsabilidade extracontratual.

Seja como for, é sabido que a responsabilidade civil depende da reunião de certos requisitos, vulgarmente elencados como facto, ilicitude, culpa, nexo de causalidade e dano, que cabe, em princípio, ao lesado alegar e demonstrar.

A autora Villa Degli Olmi alega que deveria ter sido beneficiária de certa transferência mas que esta nunca chegou, efectivamente, à sua conta bancária e que isto se deve à violação negligente, por parte da ré, do dever de verificação de todos os requisitos de certa transferência bancária.

Veja-se se é possível dar por demonstrada esta violação, o que implica, naturalmente, averiguar que deveres impediam sobre a ré no que respeita à operação de transferência bancária.

Como bem explica o Tribunal recorrido, a transferência bancária, também denominada ordem de transferência é a convenção pela qual o titular de uma conta bancária ordena ao seu banco que transfira um determinado montante pecuniário para uma outra conta bancária, de um terceiro ou do próprio aberta nesse ou noutro; o primeiro sujeito qualifica-se ordenante e o segundo beneficiário.

No caso de uma transferência electrónica, como a que ocorreu nos autos, a movimentação entre contas é realizada em cumprimento de uma ordem transmitida por meios electrónicos e a concretização da ordem de pagamento é também executada através da utilização de meios também eletrónicos, ou seja, a movimentação é realizada de modo automático e sem intervenção manual.

Mas o caso dos autos tem uma particularidade adicional: além de uma transferência electrónica ou automática, está em causa uma transferência internacional[1] que, ainda por cima, teve origem na China, o que significa que envolve interveniente (ordenante) não situado no espaço da União Europeia. A transferência qualifica-se, portanto, como uma transferência efectuada fora do espaço SEPA (Single Euro Payments Area), ou seja, fora da Área Única de Pagamentos em Euro.

Tudo isto torna, naturalmente, mais difícil determinar a legislação aplicável e identificar os deveres que impendiam sobre a ré. A decisão sobre a legislação aplicável foi, aliás, o que conduziu à divergência das duas instâncias.

O Tribunal de 1.ª instância considerou que “[a]s transferências bancárias em que a moeda utilizada não é o euro ou em que as instituições do ordenante, do beneficiário, ou de ambos, não estão sediadas no espaço europeu não estão devidamente regulamentadas, inexistindo um quadro legal que estabeleça integralmente os direitos e as obrigações recíprocos dos clientes e das instituições aquando da contratação, execução e concretização deste tipo de operações”.

Ainda assim, convocando, entre outros, os artigos 4.º e 7.º do Regulamento (UE) 2015/847 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 Maio de 2015, os artigos 11.º, n.º 1, al. b), 23.º, n.º 1, 24.º. n.º 1, al. b), 26.º, n.º 1, e 50.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto e o artigo 4.º do Aviso n.º 2/2018, de 26 de Setembro de 2018, do Banco de Portugal, concluiu que impendiam sobre a ré “deveres de diligência, neutralidade, lealdade, discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados, actuando de acordo com o princípio da repartição de riscos e da segurança das aplicações, tendo em conta o interesse dos depositantes, dos investidores, dos demais credores e de todos os clientes em geral”.

Entendendo que “[á] ré incumbia, na execução da ordem de transferência, a verificação de todos os requisitos da mesma e executá-la nos exactos termos ordenados, nomeadamente verificando se a beneficiária correspondia à indicada na ordem de transferência e que a ré não executou, através dos seus funcionários, como lhe competia, a operação de transferência em estrito cumprimento do solicitado, não dando cumprimento ao dever de diligência a que estava obrigada”, concluiu que “[a] ré agiu de forma negligente no que concerne ao cumprimento do dever de verificação de todos os requisitos para a transferência, que lhe era exigido, podia realizar e não logrou fazer”.

Por sua vez, o Tribunal recorrido sustentou que era relevante o DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro, que aprova o novo Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica (RJSPME), transpondo a Directiva (UE) 2015/2366.

Destacando o disposto no artigo 129.º do DL n.º 91/2018, que considera o prestador do serviço de pagamento por identificador único incorrecto irresponsável pela não execução ou pela execução incorrecta da operação de pagamento, no caso de incorrecção do identificador fornecido pelo utilizador do serviço de pagamento, sem prejuízo da sua vinculação ao dever de colaborar, com o prestador de serviços de pagamento do ordenante, nos esforços razoáveis orientados para a recuperação dos fundos envolvidos na operação de pagamento, concluiu que a ré se não mostrava adstrita ao dever de indemnizar a que, com fundamento numa culpa negligente, havia sido vinculada pela sentença impugnada.

Com interesse, consta, a final, da fundamentação do Acórdão recorrido:

A regra da irresponsabilidade do prestar de serviço de pagamento que executada a ordem de pagamento de harmonia com o identificador único que lhe foi fornecido é, de resto, a que melhor responde à exigência de equilíbrio dos interesses divergentes em presença e ás necessidades de eficiência e fluidez do trato ou giro bancário, designadamente internacional.

Regra que, aliás, decorre dos princípios gerais, como resulta da circunstância de, na ausência de norma específica reguladora da responsabilidade do banqueiro por errada execução de ordens de pagamento, doutrina de incontestável valia científica já sustentar a solução da irresponsabilidade daquele, no caso de erro de transmissão que lhe fosse alheio. Assim, se o erro fosse do mandante, porque, por exemplo, identificou erradamente o beneficiário, levando o banco a fazer uma transferência errada, as consequências recairiam sobre aquele; só no caso de haver erro do banqueiro, porque, por exemplo, recebeu a ordem correcta e executou algo diverso, é que a responsabilidade seria dele16.

Maneira que, considerado o modo como é regulada a responsabilidade do banco que concretiza a ordem de pagamento, aquele apenas tem que se preocupar em a executar a favor do beneficiário especificado no identificador único e só relativamente a este ponto deve agir conformidade com a grau de diligência e de prudência a que está vinculado, não ficando incurso em responsabilidade se a incorrecção do identificador único lhe não for imputável, como é, nitidamente, o caso do recurso, em que aquela incorrecção é assacável a um acto criminoso de terceiro a que a apelante é inteiramente alheia.

A responsabilidade do prestador de serviços de pagamento circunscreve-se à execução correcta da operação de pagamento, de harmonia com o identificador único fornecido pelo utilizador, elemento exclusivo de identificação do outro utilizador do serviço de pagamento que a lei considera inequívoco e, caso os fundos envolvidos na operação cheguem a destinatário errado devido a um identificador único incorrecto fornecido pelo ordenante, e que não seja possível recuperar, o dano correspondente não deverá ser imputado ao executor da ordem de pagamento. Este apenas deve usar da diligência devida para verificar - se isso for tecnicamente possível, e não exigir uma intervenção manual - a coerência intrínseca do identificador único e só no caso de este se revelar intrinsecamente incoerente é que deve recusar a execução da ordem de pagamento. De resto, este dever de diligência melhor quadra ao prestador de serviço de pagamento do ordenante, que no caso figurado, deve recusar a ordem de pagamento e de tudo isso informar o ordenante.

De outro aspecto, considerado o meio utilizado para a execução do serviço de pagamento - meios electrónicos automatizados assentes estruturalmente num identificador único que deve ser fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento para identificar inequivocamente outro utilizador desse serviço ou a respetiva conta de pagamento - não era exigível à apelante que procedesse à verificação manual da ordem de pagamento, único meio adequado à detecção da discrepância da identidade do beneficiário da transferência e da identidade do titular da conta de destino, sob pena de completa paralisação, ou na hipótese mais benigna, de entorpecimento ou de disrupção do giro bancário e de inobservância sistemática do prazo de execução das ordens de pagamento. E não é exigível à apelante, como, pelas mesmas razões, também não o é ao banco do ordenador nem ao banco intermediário, dado que o sistema de pagamento utilizado assenta, sempre e só, de modo desmaterializado e automatizado, no princípio do identificador único: nenhuma das instituições bancárias intervenientes estava vinculada a outros deveres de diligência que não o da verificação da indicação do identificador único - no caso, do IBAN - o que explica que tanto o banco do ordenador como o banco intermediário também se não tenham apercebido da apontada discrepância.

Nenhuma das instituições bancárias intervenientes estavam, pois, adstritas a outros deveres de diligência que não o da verificação da indicação do identificador único, podendo todas confiar - como confiaram - na correcção do identificador que foi indicado pelo utilizador do serviço de pagamento, no caso o ordenador da transferência, dado que nenhuma tinha razões para crer - ou dever crer - que o identificador único tinha sido criminosamente adulterado. A não se entender assim, cabe perguntar porque razão seria de exigir apenas à apelante e não também à instituição bancária utilizada pelo ordenador um igual grau subido de diligência, sendo certo que a instituição bancária chinesa - escolhida pelo ordenador -usando dos especiais deveres de diligência que a apelada exige da apelante, também se poderia ter apercebido, pela estrutura do IBAN utilizado como identificador, que a conta de pagamento era detida por instituição bancária localizada em Portugal, país diverso daquele em que se situa o beneficiário, real ou efectivo, da transferência. O mesmo se podendo dizer da ordenante, já que é razoável presumir que conhecia o IBAN da beneficiária real da transferência visto que com esta mantinha relações comerciais há vários anos e, portanto, bem podia ter-se apercebido que o identificador único que indicou - IBAN - não correspondia ao daquela.

Como decorre, sem controversão, da matéria de facto adquirida para o processo, a indicação como conta de pagamento a detida pela apelante resultou da intrusão ilícita de desconhecidos nos sistemas informáticos de uma das autoras e na adulteração das respectivas comunicações electrónicas, designadamente do IBAN da conta da beneficiária da transferência. Este facto, é de todo, alheio à apelante - e a todas as instituições bancárias que intervieram no serviço de pagamento - o mesmo se não podendo dizer, com este grau de segurança, relativamente ás autoras dado que a causa próxima ou primária que está na base dos eventos que conduziram ao resultado danoso se produziu na sua esfera: a permeabilidade dos respetivos sistemas informáticos a intromissões ilícitas de terceiros, com a qual a recorrente - e os demais bancos intervenientes na operação de pagamento - não tinham que contar. Imputar, nessas condições, a responsabilidade pelo dano à apelante, representaria, de certo modo, o alijar da responsabilidade do ordenador - e também da instituição financeira que escolheu para a execução do serviço de pagamento -pelo desencadear do processo que desaguou no dano reparável.

Quem criou o risco da ocorrência de danos foram esses terceiros desconhecidos - e mesmo as próprias autoras - e foi esse risco que terminou por se materializar no resultado danoso e foi esse risco - e não outro -que conduziu à produção do resultado concreto, do que decorre que este resultado é objetivamente imputável a terceiros e não à apelante. Esta - como já se sublinhou - bem pode socorrer-se do princípio da confiança, dado que não lhe era exigível que contasse com a adulteração do identificador único que lhe foi indicado e que a indicação deste não provinha, efectivamente, do ordenador, do que decorre que o dano consequente não pode ser objetivamente imputado a violação, pela apelante, de um qualquer dever de cuidado, conclusão que é harmónica com o critério da imputação objetiva, segundo o qual é indispensável que seja o perigo típico ou potenciado pela conduta o perigo que se concretiza. E esse perigo, que veio a concretizar-se no dano, não foi criado pela recorrente - mas por terceiros.

Como quer que seja, dado que a recorrente concretizou o acto de pagamento em conformidade com o identificador único que lhe foi indicado e que o erro que feria esse indentificador não lhe é imputável, não responde pela execução incorrecta da operação de pagamento, valendo para o nosso caso - dada a sua fundamental homotropia - a solução ou a doutrina da irresponsabilidade do prestador do serviço estabelecida pelo acórdão do Tribunal de Justiça supracitado, que se retira tanto da apontada norma de fonte comunitária como da que provém de fonte interna. Doutrina para a qual pode ser adiantada esta razão material: garantir a eficiência a fluidez e agilidade dos sistemas de pagamento, que abstraem, por inteiro, da causa ou relação subjacente, e reclamam a utilização de procedimentos desmaterializados automatizados, que notoriamente, não se compadecem ou nem sequer são compatíveis com a adstrição das instituições bancárias a deveres de diligência diversos da verificação do indentificador único e, muito, menos com a conferência manual da correspondência desse identificador com qualquer outro elemento e, correspondentemente, da regularidade da ordem de pagamento”.

Exposto tudo isto, cumpre decidir.

O Regulamento (UE) 2015/847 estabelece as regras relativas às informações sobre o ordenante e o beneficiário que devem acompanhar as transferências de fundos, em qualquer moeda, para efeitos de prevenção, detecção e investigação do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, quando pelo menos um dos prestadores de serviços de pagamento implicados na transferência de fundos estiver estabelecido na União (cfr. artigo 1.º do Regulamento).

Por sua vez, a Lei n.º 83/2017, estabelece medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, transpondo parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva 2015/849/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro e das actividades e profissões especialmente designadas para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo. Estabelece ainda as medidas de execução do Regulamento (UE) 2015/847, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo às informações sobre o ordenante e o beneficiário que devem acompanhar as transferências de fundos, em qualquer moeda, para efeitos de prevenção, detecção e investigação do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.

Finalmente, o Aviso n.º 2/2018 dá cumprimento aos mandatos dirigidos ao Banco de Portugal pelos diversos diplomas em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, designadamente a Lei n.º 83/2017.

Logo se verifica que nenhum destes normativos é decisivos para o caso dos autos, designadamente para o efeito de se retirar normas destinadas a proteger interesses do tipo dos que a autora Villa Degli Olmi sustenta terem sido lesados.

A autora Villa Degli Olmi imputa à ré a violação do dever de verificação de eventuais incorrecções nos elementos indicados pelo ordenante de uma transferência bancária, portanto, de um dever que é dirigido à protecção dos interesses privados dos intervenientes em transferências bancárias. Ora, o que decorre daqueles normativos são deveres de outro tipo – deveres pré-ordenados à realização do interesse público da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.

Tem razão o Tribunal recorrido quando afirma:

[p]atentemente, estes normativos e as diversas normas injuntivas de conduta que neles se contêm visam a tutela de interesses colectivos ou supra-individuais, não sendo ordenadas para a tutela, ainda que meramente reflexa, de interesses concretos de que sejam portadores os vários intervenientes numa transferência de fundos, designadamente os do ordenante dessa transferência. Neste sentido, aquelas normas de conduta não têm a virtualidade de servir de normas de protecção e, portanto, para preencherem a apontada cláusula de ilicitude”.

Em suma, a autora Villa Degli Olmi alega que a ré tinha o dever de verificar a informação fornecida pelo ordenante da transferência bancária, incluindo o de verificar se aquele que viria a ser o beneficiário correspondia ao indicada na ordem de transferência, e que não o cumpriu. A verdade, porém, é que não logrou sequer provar que daqueles normativos – ou de quaisquer outros – decorresse para a ré um dever com este conteúdo.

Mais do que isso: como sustenta o Tribunal recorrido, é defensável que o caso deva ser enquadrado no Título III do RJSPME; ora, deste resulta que a ré não pode ser responsabilizada nos casos como o dos autos.

O RJSPME foi aprovado e publicado em anexo ao DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro, sendo o título III relativo à prestação e utilização de serviços de pagamento.

Encontra-se aí uma norma que regula a responsabilidade do prestador do serviço de pagamento por identificador único incorrecto.

Trata-se do artigo 129.º, sobre identificadores únicos incorrectos, com o seguinte teor:

1 - Se uma ordem de pagamento for executada em conformidade com o identificador único, considera-se que foi executada corretamente no que diz respeito ao beneficiário especificado no identificador único.

2 - Se o identificador único fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento for incorreto, o prestador de serviços de pagamento não é responsável, nos termos dos artigos 130.º e 131.º, pela não execução ou pela execução incorreta da operação de pagamento.

3 - No entanto, o prestador de serviços de pagamento do ordenante deve envidar esforços razoáveis para recuperar os fundos envolvidos na operação de pagamento com a colaboração do prestador de serviços de pagamento do beneficiário, o qual, para o efeito, lhe deve prestar todas as informações relevantes (…)”.

Esta norma reproduz, quase ipsis verbis, o disposto na Diretiva (UE) 2015/2366.

Diz-se no artigo 88.º da Directiva, igualmente subordinada ao título identificadores únicos incorrectos:

1. Se uma ordem de pagamento for executada de acordo com o identificador único, considera-se que foi executada corretamente no que diz respeito ao beneficiário especificado no identificador único.

2. Se o identificador único fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento estiver incorreto, o prestador de serviços de pagamento não é responsável, nos termos do artigo 89.º , pela não execução ou por falhas na execução da operação de pagamento.

3. No entanto, o prestador de serviços de pagamento do ordenante envida esforços razoáveis para recuperar os fundos envolvidos na operação de pagamento. O prestador de serviços de pagamento do beneficiário colabora também nesses esforços comunicando ao prestador de serviços de pagamento do ordenante todas as informações relevantes para a cobrança dos fundos”.

O Tribunal de 1.ª instância afastou a aplicação do RJSPME, dizendo:

“(…) para além de tais normas legais se reportarem aos serviços de pagamento no mercado interno, estando em causa nos presentes autos uma transferência internacional efectuada através de país fora da Zona Euro, não afastam o dever de controlo exigido às instituições bancárias, designadamente à ré, nomeadamente a obrigação de verificação da coincidência entre a identidade do beneficiário da transferência e a identidade do titular da conta de destino”.

Mas, ao contrário do que disse o Tribunal de 1.º instância, não há razões para afastar a aplicação do RJSPME e, em particular, do disposto no seu Título III.

A norma delimitadora do âmbito de aplicação do RJSPME, ou seja, o artigo 3.º, n.º 3, dispõe:

“O título III, ressalvadas as exceções previstas nos artigos 76.º e 100.º, é aplicável: (…)

c) Às parcelas da operação de pagamento efetuadas em Portugal em qualquer moeda, caso um dos prestadores de serviços de pagamento esteja situado em Portugal e o outro prestador esteja situado fora da União”.

Quer dizer: estando um dos prestadores de serviços de pagamento situado em Portugal (o banco para onde foi dirigida a transferência era a Caixa de Crédito Agrícola) e o outro dos prestadores situado fora da União Europeia (o banco de onde procedeu a transferência era o Agricultural Bank of China), é aplicável o título III do RJSPME e, consequentemente, a norma da qual decorre a ausência de responsabilidade da ré pela execução incorrecta da transferência (rectius: pela execução contrária à vontade real da ordenante).

Recorde-se que o IBAN fornecido pela ordenante era o IBAN que ela pretendia fornecer, embora com base no pressuposto (errado) de que ela pertencia à Villa Degli Olmi (em que foi induzida pela situação criada pelo hacker).

Ilustre-se o que se passou no caso dos autos, através dos seguintes factos provados:

ccc) Pela circunstância de as informações sobre o ordenante e o beneficiário não se mostrarem omissas, nem incompletas, e terem sido preenchidas por meio dos caracteres ou dados admissíveis em conformidade com as convenções do sistema de mensagens ou de pagamento e liquidação utilizado, a ré, tal como sucedeu com o banco intermediário, não detectou quaisquer informações sem significado, nem indicadores de risco elevado, que determinassem a rejeição ou a suspensão da transferência referida em q) a s);

ddd) Tendo procedido ao crédito mencionado ee) e ff) de forma informática automática;

eee) Sem verificar a discrepância entre a identidade da beneficiária da transferência bancária mencionada em q) a s) e a identidade do titular da conta bancária referida em p);

fff) Não tendo detectado até à data referida em yy), através dos meios que tem disponíveis, nomeadamente na unidade de informação financeira, quaisquer informações que determinassem a rejeição ou a suspensão da transferência mencionada em q) a s).

Só pode haver um elemento de informação com a aptidão de definir o destino da transferência, sob pena de se prejudicar a fluência e a celeridade intrínseca a tipo de transacções (electrónicas ou automáticas), e este é o IBAN.

O IBAN (International Bank Account Number) é uma estrutura normalizada de número de conta de pagamento[2], constituindo o elemento de informação que, nas transferências electrónicas internacionais, permite identificar a conta bancária a que se destina o pagamento[3].  Compete ao banco seguir esta informação ao executar a ordem de transferência.

O facto de não se ter provado que a ré cumpriu todos os deveres de verificação que lhe eram exigíveis em face dos elementos de que dispunha não é elemento que releve, cabendo, justamente, à autora Villa Degli Olmi provar que a ré não cumpriu algum dos deveres que sobre ela impedia.

Observe-se ainda que a Caixa de Crédito Agrícola não deixou de colaborar no esforço de recuperar os fundos envolvidos na operação; pelo contrário, respondeu e prestou todas as informações que lhe foram solicitadas pelos intervenientes na operação [cfr. factos provados yy), zz) e aaa)], conforme lhe era exigível (cfr. artigo 129.º, n.º 3, do RJSPME).

Respondendo, por fim, a uma questão formulada, a certa altura, na sentença (“para que serve a indicação do nome do beneficiário na ordem de transferência, indicação essa que é obrigatória?”), dir-se-ia que o nome do beneficiário não é, de facto, inútil, podendo e devendo servir diversas finalidades como, por exemplo, o de identificar a quem se destina o pagamento quando a conta tenha pluralidade de titulares ou a quem se dirige a informação automática da ordem de transferência que é usual enviar-se nestes casos. O que não pode é, pelas razões apontadas, ser determinante na mesma medida do IBAN ou desempenhar, em concorrência com ele, a mesma função.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente Villa Degli Olmi, S.p.a.


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Lisboa, 16 de Fevereiro de 2022

Catarina Serra (Relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano


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[1] Explica António Menezes Cordeiro [Direito Bancário, Coimbra, Almedina, 2014 (5.ª edição), p. 566] que as transferências bancárias internacionais são transferências em que a deslocação de fundos se faz para um banco estrangeiro.
[2] De acordo com a informação recolhida na página do Banco de Portugal (https://www.bportugal.pt/page/iban), o IBAN é, mais precisamente, “uma estrutura normalizada de número de conta de pagamento. Consagrou-se como um standard internacionalmente aceite com a publicação da norma ISO 13616”.
[3] Até há alguns anos atrás, a mesma função era desempenhada, nas transferências nacionais, pelo NIB (Número de Identificação Bancária); actualmente, pode usar-se também – e é frequentemente usado –, nesse contexto, o IBAN.