Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
72/18.1T9RGR-G.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS (RELATORA DE TURNO)
Descritores: HABEAS CORPUS
FUNDAMENTOS
REVISÃO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 08/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDENTE / NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

No âmbito do habeas corpus, ao STJ não incumbe, nem cabe nos seus poderes de cognição, analisar questões que extravasam os fundamentos previstos no art. 222.º, n.º 2, do CPP, como sucede quando o peticionante alega que está impedido de ter acesso à justiça (v.g. aos recursos extraordinários de revisão de sentença que pretende que sejam interpostos, matéria essa que não cabe conhecer nesta providência excecional).

Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 72/18.1T9RGR-G.S1

Habeas corpus

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório
1. AA, detido no EP ..., veio, por si, apresentar pedido de habeas corpus alegando o seguinte:

AA, recluso inocente sequestrado/raptado/escondido no E.P. ..., com identificação ...65, nacionalidade portuguesa, vem, por este meio, apresentar novo Habeas Corpus, com base em continuar escondido, raptado, sequestrado em ..., impedido de ter acesso à Justiça e aos recursos de revisão de sentença extraordinários no processo em questão bom como no processo que originou tudo isso, processo 131/08...., que de acordo com esse STJ tem direito, mas que até à data ainda não foram feitos apesar da minha contínua insistência junto à ordem dos advogados para o efeito, mas essa só tem interesse em negar e obstruir a Justiça porque tem plena consciência que é uma das principais responsáveis por tudo o que AA foi injustiçado e ter, quando provado, de responder pelos seus crimes, tanto na pessoa da sua presidente como dos seus associados.

Assim sendo, é da responsabilidade de quem de Poder e legitimidade garantir acesso à Justiça e acabar com o crime, contínuo, que está a ser cometido contra um cidadão deste País que não pede nada que não tenha direito, concedido pelas Leis e legislação do País.

Desde já, agradece toda a atenção e compreensão dispensada em relação ao solicitado, ficando à V./disposição para o que for necessário para o efeito.

Sem outro assunto de momento, subscreve com elevada estima e consideração.

2. A Srª. Juiz prestou a informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1, do CPP, nos seguintes termos:

Por decisão proferida em 02/12/2020, e já transitada em julgado em 02/02/2021 (cfr. Ref. Citius ... e ...37), foi o Arguido AA condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punível pelo art.º 365.º, n.º 1 e 3, al. a), do Código Penal, na pena de 01 (um) ano de prisão.

Cumpre esclarecer que, no que diz respeito à tramitação adjectiva dos presentes Autos, que a mesma decorreu nos seguintes contornos:

- A acusação pública foi deduzida em 14.02.2020 (ref.ª ...73), ali sendo ordenada a nomeação de defensor oficioso ao arguido.

- Foi nomeado defensor o Dr. BB, o qual pediu escusa e, nessa sequência, foi nomeado o Dr. CC (cfr. ref.ªs ...74 e ...38).

- Os autos foram remetidos à distribuição para julgamento e, por despacho proferido em 13.10.2020 (Ref.ª ...18) foi designado o dia 25.11.2020 para audiência de discussão e julgamento, tendo no mesmo despacho que designou a audiência de julgamento sido solicitada a elaboração de relatório social para determinação da sanção.

- Após, em 14.10.2020, o Ilustre Defensor oficioso nomeado, Dr. CC pediu escusa de patrocínio à Ordem dos Advogados (Ref.ª ...89).

 - Nessa sequência, foi nomeada nova Defensora Oficiosa ao arguido, a Ilustre Defensora, Dr.ª DD (Ref.ª ...30).

- Entretanto, foi junto aos autos o comprovativo da notificação do arguido para a audiência de julgamento e bem assim o relatório social para determinação de sanção.

- No dia 25.11.2020, em sede de audiência, constatou-se a ausência da Ilustre Defensora entretanto nomeada ao arguido. Encetado contacto com a mesma, a II. Defensora referiu que não se poderia deslocar ao Tribunal nem substabelecer em nenhum colega (Ref.a ...59).

- Procedeu-se à nomeação de defensor oficioso para o acto, como consta da respectiva acta cuja referência atrás se indicou denota, tendo-se nomeado pelo SINOA, a Dr.a EE.

Ademais, encontrando-se o arguido regularmente notificado, e tendo-se considerado que não era absolutamente indispensável a sua presença, desde o início da audiência do julgamento, para a boa decisão da causa e descoberta da verdade material, realizou-se o julgamento, tanto mais que, quanto à situação económica, pessoal e familiar do arguido estava junto aos autos o relatório social para determinação da sanção.

- Após, foi designada data para a leitura da sentença, tendo-se notificado a II. Defensora do arguido da data designada para o efeito, e, no dia 2 de Dezembro de 2020, procedeu-se à respectiva leitura da sentença, a qual foi notificada pessoalmente ao arguido em 28.12.2020 (Ref.ª ...90).

- O arguido esteve preso à ordem dos presentes autos até ao dia 19.10.2021, data em que foi ligado ao Processo 131/08...., por ter sido revogada a liberdade condicional que lhe tinha sido aplicada (Ref.ª ...87).

- Através de e-mail datado de 09/07/2022 (ref. Citius ...), o Arguido veio aos presentes Autos "solicitar a intervenção de V./Exas., uma vez que, está impedido de ter a acesso ao processo n. º 72/18.1T9RGR tanto pela ordem dos advogados bem como pela advogada nomeada e montado pela mesma, que tudo têm feito para impedir que se faça a revisão de sentença, mesmo quando o STJ, recomendou-a e afirma ser um direito do cidadão.

Ninguém aceita ir e ficar na prisão devido a jogo sujo da Justiça, baseada em negociações, para safar e beneficiar amigos, colegas, terceiros, etc.

Com base no exposto, verifica-se efetivamente a necessidade da V./intervenção com o máximo de urgência afim de garantir acesso à Justiça e consequente libertação imediata de AA, porque o que tem acontecido a nível Judicial é uma autêntica tortura e crime, isto é inaceitável num Estado Democrático de Direito.

Desde já, agradece toda a atenção e compreensão dispensada em relação ao solicitado, ficando à V./disposição para o que for necessário para o efeito"

- através de promoção com a ref. Citius ... o Ministério Público promoveu que se desse conhecimento do requerimento do arguido ao seu defensor, para os fins que tivesse por convenientes.

- Por despacho com a ref. Citius ..., foi determinado que se desse tal conhecimento ao defensor do Arguido, e considerando o teor do e-mail em causa e que a matéria ali abordada havia sido já alvo de análise e apreciação, foi declarado que nada mais havia a determinar (na sequência de despachos com as ref. Citius ..., ...08, ...00, ...95, ...40, ...85, ...42 e ...30).

*

Ora, estatui o artigo 222.º do CPP que:

1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei oupor decisão judicial.

E. nos termos do artigo 223.º, n.º 1 do CPP, resulta que "a petição é enviada imediatamente ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com informação sobre as condições em que foi efectuada ou se mantém a prisão ".

Assim, remetem-se os elementos em conformidade, seguindo na senda do propugnado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Eduardo Maia Costa (Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, p. 911), "Não é admissível a rejeição liminar da petição, ainda que o pedido seja manifestamente infundado" (...) "de forma que a providência terá que ser sempre julgada em audiência ".

Em face de tudo o exposto, entendemos que não existe fundamento para ser considerada ilegal a prisão sofrida pelo arguido.

***

Elabore-se apenso com cópia do presente despacho e certidão das peças cujas referências se encontram identificadas na exposição supra mencionada, a saber, referências ...60, ...37, ...73, ...74, ...38, ...18, ...89, ...30, ...59, ...90, ...60 e ...87, ...91, ...50, ...08, ...00, ...95, ...40, ...85, ...42 e ...30.

Subam de imediato estes autos de apenso ao S.T.J..

Envie via electrónica, de imediato, todo o expediente que componha o apenso de habeas corpus para o S.T.J..

Remessa imediata via seguro de correio.

Notifique o arguido e o Ministério Público.

Dê a conhecer este despacho ao T.E.P.

Autoriza-se, desde já, uma futura e eventual solicitação de acompanhamento dos autos.

D.N.

*

No mais, e no que se reporta aos requerimentos com as referências ...39 e ...33, antes de mais, ao Ministério Público.

3. Tendo entrado a petição neste Supremo Tribunal, após distribuição, teve lugar a audiência aludida no art. 223.º, n.º 3, do CPP, pelo que cumpre conhecer e decidir.

II Fundamentação
4. No que interessa à presente decisão, invoca, em síntese, o aqui peticionante que apresenta este novo Habeas Corpus, por estar ilegalmente preso (nas suas palavras “continuar escondido, raptado, sequestrado em ...”), acrescentando que está “impedido de ter acesso à Justiça e aos recursos de revisão de sentença extraordinários” no processo em questão e no processo n.º 131/08.... (que alega estar na origem de tudo), recursos esses a que tem direito e que, ainda não teriam sido apresentados, apesar da sua insistência junto da Ordem de Advogados.
Vejamos então.
5. Dispõe o artigo 222.º (habeas corpus em virtude de prisão ilegal) do CPP:

1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

São taxativos os pressupostos do habeas corpus (que também tem assento no art. 31.º da CRP), o qual não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste.

Aliás, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Lisboa: Editorial Verbo, 1993, p. 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.

Convém ter presente, como se refere no art. 31.º, n.º 1 CRP, que “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Ou seja, esta providência, que inclusivamente pode ser interposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (art. 31.º, n.º 2 CRP), tem apenas por finalidade libertar quem está preso ou detido ilegalmente e, por isso, é uma medida excecional e muito célere.

De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

E, o que é que se passa neste caso concreto?

Olhando para a certidão deste Habeas corpus verifica-se que o peticionante não está preso, nem detido à ordem do processo nº 72/18.1T9RGR.

Logo, por aí, podíamos desde logo indeferir a presente providência, uma vez que falece um pressuposto essencial deste habeas corpus requerido no âmbito do processo nº 72/18.1T9RGR (art. 222.º, n.º 1, do CPP).

Por outro lado, as matérias que pretende discutir relativas a supostas ilegalidades, relacionadas com alegado impedimento de acesso à Justiça e conflitos com a Ordem de Advogados ou com o Conselho Distrital não cabem no âmbito da apreciação da providência de habeas corpus (que não é um recurso) e na qual não se vai analisar o mérito da decisão/sentença que determina a prisão, nem tão pouco analisar despachos ou eventuais erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais ou seus representantes), já que esses devem ser apreciados em sede própria (de acordo com as regras processuais vigentes).

Ora, no habeas corpus apenas podemos analisar se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

O peticionante, apesar de já não estar preso (em cumprimento de pena de um ano de prisão, que lhe foi aplicada por sentença transitada em julgado) à ordem dos autos n.º 72/18.1T9RGR, porque entretanto lhe foi revogada a liberdade condicional que lhe havia sido concedida no processo n.º 131/08...., encontra-se desde 19.10.2021 preso em cumprimento do remanescente da pena imposta nesse processo n.º 131/08...., tendo o termo dessa pena previsto para 12.04.2024, conforme liquidação homologada pelo TEP, no processo nº 40/14.....

Apesar da petição do habeas ter sido dirigida ao processo n.º 72/18.1T9RGR, tendo em atenção o princípio do aproveitamento dos atos (art. 193.º do CPC aplicável ex vi do art. 4.º do CPP), podemos prosseguir e analisar se ocorre qualquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

Mas, o que acontece é que, como se expôs, também nesse processo n.º 131/08.... o arguido está preso em cumprimento de pena - em consequência da revogação da liberdade condicional - sendo certo que ali tinha sido condenado, por acórdão de 27.06.2012, transitado em julgado em 23.10.2013, pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22.01, na pena de 6 anos de prisão.

Portanto, está preso em cumprimento de pena de prisão, por entidade competente e por facto que a lei permite.

O habeas corpus não serve, nem pode ser utilizado para desabafar, solicitar explicações/justificações, esclarecimentos ou imputar responsabilidades a terceiros, como o faz indevidamente o peticionante.

No âmbito desta providência, ao STJ não incumbe, nem cabe nos seus poderes de cognição, analisar questões que extravasam os fundamentos previstos no art. 222.º, n.º 2, do CPP, como sucede quando o peticionante alega que está impedido de ter acesso à justiça (v.g. aos recursos extraordinários de revisão de sentença nos dois aludidos processos que, como sabido, apenas podem ser interpostos, desde que se verifiquem os respetivos pressupostos, matéria essa que, de qualquer modo, não cabe conhecer nesta providência excecional).

Tendo em atenção o alegado pelo peticionante, visto o teor da certidão junta aos autos e atento o disposto no art. 222.º, n.º 2, do CPP, não ocorre qualquer fundamento para o deferimento deste habeas corpus, sendo legal a sua prisão.

Assim, conclui-se que esta providencia excecional carece manifestamente de fundamento que a justifique.

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III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus formulado por AA.

Custas pelo requerente, com 4 UC`s de taxa de justiça e, sendo ainda condenado, nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP, na importância de 6 UC`s a título de sanção processual.

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Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria, pelos dois Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente da Secção (todos de turno).

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Supremo Tribunal de Justiça, 08.08.2022

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Cid Geraldo (Juiz Conselheiro Adjunto)

Jorge Arcanjo (Juiz Conselheiro Adjunto)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro Presidente)