Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
557/17.7T8PTL.G1.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: RESTRIÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO DE REVISTA
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
EXCEÇÃO DILATÓRIA
Data do Acordão: 11/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A admissão de um recurso (vg. de revista) com base apenas num fundamento especial (vg. daqueles elencados no nº. 2 do artº. 629º do CPC), tem como consequência que o objeto do mesmo fique tão somente circunscrito à apreciação da questão que está na base da sua admissão, sem que possa alargar-se a outras questões.

II - A autoridade de caso julgado de uma decisão não abrange os seus fundamentos de facto, pelo que os mesmos não gozam dessa eficácia extraprocessualmente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório



1. No Tribunal Judicial da ... (atual ...), os autores, AA e BB, instauraram (em 21/07/2021) contra o réu, CC, todos com os demais sinais nos autos, a presente ação declarativa, sob forma de processo comum, pedindo no final a condenação do último:

a) A pagar ao autor a quantia de € 2.500,00, a título de danos patrimoniais, e a quantia de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora vincendos desde citação até efetivo e integral pagamento;

b) A pagar ao autor todos os danos patrimoniais futuros que venham a ser apurados na sequência da perícia médica legal e ainda aqueles que resultarem da extração dos chumbos que se encontram alojados no corpo do autor, em consequência da agressão física que foi alvo por parte do réu, os quais deverão ser fixados em sentença que vier a ser proferida a final;

c) A pagar à autora a quantia de € 5.000, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Para o efeito, e em síntese, alegaram:

Que o R. (então, respetivamente, marido da autora e pai do autor), nas circunstâncias de tempo, lugar e modo descritas no articulado da petição inicial, disparou voluntária e intencionalmente uma arma contra o A., causando-lhe diversos ferimentos e lesões, tendo ainda ameaçado ambos os A.A. de morte, dando causa, com esse seu comportamento, aos concretos danos que descrevem e cuja indemnização os últimos requerem.


2. Ordenada a citação do R., por carta registada, com AR. (então detido em estabelecimento prisional), e não tendo o mesmo apresentado contestação, veio, entretanto, o seu mandatário constituído arguir a falta e a nulidade dessa citação.


3. Após diligências ordenadas pelo juiz com vista a indagar, a esse propósito, da situação, foi proferido, em 27/08/2018, despacho a indeferir a arguição pelo réu da referida nulidade (considerando-se que o mesmo foi devidamente citado), tendo-se de seguida declarado confessados os factos articulados na petição inicial (à luz do disposto no artº. 567º, nº. 1, do CPC), após o que se determinou o cumprimento do nº. 2 desse mesmo preceito legal).


4. O réu interpôs desse despacho decisório, o qual foi na altura indeferido (não sendo admitido), com o fundamento de que esse despacho não admitia então recurso autónomo imediato, apenas podendo ser impugnado com o recurso que viesse a se interposto da sentença/decisão final (artºs. 644º, nºs. 1, 2 – a contrario – e 3 do CPC).


5. Seguiu-se a prolação da sentença que no final decidiu:

A) Condenar o R. a pagar:

i) Ao autor, a quantia de € 32.500,00 (sendo € 2.500,00 a título de indemnização pelos danos patrimoniais, e € 30.000,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais), acrescida de juros de mora, calculados à taxa prevista para as obrigações civis, contados desde a data da citação do réu para contestar a ação e até efetivo e integral pagamento;

ii) À autora, a quantia de € 5.000,00 (a título de indemnização pelos danos não patrimoniais), acrescida de juros de mora, à taxa prevista para as obrigações civis, contados desde a data da citação do réu para contestar a ação e até efetivo e integral pagamento;

B) Absolver o réu do demais peticionado.


6. Inconformado com tal sentença, dela apelou o R. – impugnando igualmente nesse recurso a sobredita decisão interlocutória que lhe indeferiu arguição de falta e nulidade da citação.


7. Por acórdão de 20/02/2020, o Tribunal da Relação de ... (TR...), por unanimidade e com idêntica fundamentação, julgou improcedente o recurso na sua totalidade, confirmando quer a sentença, quer a sobredita decisão interlocutória que indeferiu a arguição de nulidade.


8. Novamente irresignado com tal acórdão do TR..., o R. dele interpôs recurso de revista (invocando fazê-lo à luz do artº. 671º, nºs. 1 e 2 al. a), do CPC e em alternativa/subsidiariamente, ou seja, caso tal recurso de revista normal não fosse de admitido, então requeria que fosse admitido como revista excecional invocando para o efeito o artº. 672, nº. 1 als. a), b) e c), do CPC), tendo concluído as alegações de recurso nos seguintes termos:

« 1 - Não se conformando, por estar em tempo (prazo de 30 dias para interposição suspenso, nos termos da legislação Covid 19, de 09/03/2020 a 03/06/2020 ) vem o Recorrente interpor recurso de REVISTA para o Supremo Tribunal de Justiça, a subir imediatamente e nos próprios autos ( artigo 671º,n.º 1 e n.º 2, alínea a) do CPC).

2 - Mais requer, que, não se julgando este admissível, em alternativa, seja admitido o Recurso de Revista Excecional, nos termos do artigo 672º, n,s 1, alíneas a), b) e c) e 674º, n.º 1, alíneas a), b) e c), todas do CPC, e em especial para uma melhor aplicação do direito e para apreciação de eventual violação do caso julgado, bem como da forma e ónus de ilidir a presunção prevista no n.º 4 do artigo 225º e n.º 1 do artigo 230º do CPC, por aplicação do artigo 350º do C. Civil, tendo presente os princípios de proporcionalidade, equidade e direito de defesa e processo justo que decorre do artigo 20º da CRP.

3 - Os Autores vieram intentar contra o Réu / Recorrente a presente acção, em que pediram a condenação deste no pagamento de indemnizações, por alegados danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos factos alegados na petição.

4 - Foi proferida douta sentença que julgou parcialmente procedente a acção e condenou o Réu a pagar:

a) - Ao Autor AA a quantia de 32.500,00€, acrescida de juros de mora calculados desde a data em que o Tribunal considera ter-se verificado a citação do Réu, até integral pagamento;

b) - À Autora BB a quantia de 5.000,00€,a crescida de juros calculados desde a data em que o Tribunal considera ter-se verificado a citação do Réu, até integral pagamento.

5 - Nessa sentença, como anteriormente em despacho que fixa a matéria de facto, face à inexistência de contestação o Tribunal considerou provados os factos alegados na petição inicial.

6 - Porém, anteriormente o Réu viera arguir a nulidade ou inexistência de citação, o que não foi atendido pelo Tribunal, questão prévia de que igualmente recorreu em recurso de Apelação que, na sua procedência, conduzirá não só à revogação da sentença e procedência do recurso, como ainda à anulação de todo o processado, com a realização do acto de citação, com observância das formalidades legais.

7 - O Tribunal da Relação assim não considerou, mantendo a douta decisão recorrida, na totalidade, pelo que ora se recorre de Revista.

8 - O Apelante veio arguir a falta ou inexistência de citação e de não cumprimento das formalidades essenciais, nulidade que igualmente arguiu oportunamente.

9 - Está provado documentalmente que a carta de citação remetida pelo ... não foi pelo Réu recepcionada, mas sim por terceira pessoa, que subscreveu o aviso de recepção.

10 - E, também não se demonstra provado que alguém lhe deu notícia ou fez chegar essa carta e muito menos a cópia da petição para contestar, de modo a ter perfeito conhecimento do teor integral do acto processual.

11 - Ora, a citação é um acto formal, a realizar com observância do disposto nos artigos 219 e ss. do CPC, com a finalidade prevista no n.º 1 do mesmo artigo 219, mas sempre acompanhada da entrega dos elementos e cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objecto.

12 - A citação de pessoas singulares é efectuada nos termos dos arts. 225 do CPC, podendo sê-lo por carta registada com A/R.

13 - Não foi junto nenhum documento subscrito pelo Réu, que comprove tal formalidade, muito menos uma simples cópia da carta, com recibo de recepção pelo Réu, única formalidade que poderia, de forma inequívoca e segura fazer prova do cumprimento das demais formalidades de citação e que ao Réu tinha sido entregue a totalidade da carta remetida para citação.

14 - A DECISÃO ORA EM RECURSO, DEFENDE, SALVO MELHOR OPINIÃO, UM ABSURDO JURÍDICO, OU SEJA ENTENDE QUE O RECORRENTE É QUE TEM QUE PROVAR UM FACTO NEGATIVO, POR JOGAR CONTRA ELE A PRESUNÇÃO DO N.º 4 DO ARTIGO 225º E DO N.º 1 DO ARTIGO 230º DO CPC (QUE A CARTA DE CITAÇÃO, COM PETIÇÃO E DOCUMENTOS NÃO LHE FORAM ENTREGUES, E QUE DELA NÃO TEVE OPORTUNO CONHECIMENTO).

15 - ORA, A CITAÇÃO É ACTO FORMAL E PESSOAL SÓ COMPROVÁVEL POR DOCUMENTO E ESSE DOCUMENTO NÃO EXISTE.

16 - NÃO É POSSÍVEL PROVAR UMA INEXISTÊNCIA DOCUMENTAL.

17 - Deste modo, não está provado, com a absoluta segurança que as regras de citação exigem, que tenha em 30/10/2017 ou em qualquer outro dia sido entregue ao Réu, de forma completa e compreensível, documentação, de modo que permita concluir, sem dúvidas ou reservas, que este tenha chegado a conhecimento OPORTUNO e integral do acto, de modo a perceber o seu teor e alcance e do prazo para contestar e das consequências, ou seja que tenha sido citado.

18 - Pelo que se encontra ilidida a presunção prevista no art. 230, n.º 1 e 225º, n.º 4 do CPC, estando-se perante caso de falta de citação, prevista no artigo 188º do CPC, pois não é imputável ao Réu o incumprimento pelo Tribunal e pelo Estabelecimento Prisional das formalidades essenciais da citação.

19 - Deste modo, foram e estão violadas todas as garantias e direitos de defesa do aqui Réu (artigo 20º CRP ) e designadamente das formalidades de citação, que obviou ao exercício do contraditório.

20 - Assim, a certeza jurídica que deveria resultar da efectiva citação do Réu não se mostra provada, muito menos o cumprimento do disposto nos arts. 227 e 228 do CPC, o que é gerador de nulidade da mesma, o que até permitira concluir estarmos antes perante falta absoluta da citação.

21 - Pois não passará pela cabeça de ninguém, na abordagem do homem médio, que o Réu não queria ou não iria contestar esta acção.

22 - Deste modo, verdadeiramente estamos perante caso de falta de citação, que foi arguida em tempo e logo que verificada pelo Mandatário do Réu.

23 - Sem prescindir, dir-se-á que o Réu foi julgado e condenado no processo criminal a que acima se faz referência ( Proc. n.º 98/16.... ), em que eram queixosos precisamente os aqui Autores, que ali não deduziram qualquer pedido civil de indemnização.

24 - E na sentença ali proferida foram dados por provados factos que no seu conjunto se impõem, face ao caso julgado decorrente da sentença transitada em julgado, quer no que toca ao relato dos acontecimentos, quer relativamente às lesões e suas consequências de que foi vítima o Autor AA, bem como sobre os factos integradores do crime de ameaça, de que foi vítima a Autora BB, o que é de conhecimento oficioso e com as consequências previstas no artigo 625º do CPC.

25 - Ora, também o Tribunal não cuidou de fazer o contraditório entre os factos alegados na petição e os factos dados por provados naquela sentença criminal, em parte não coincidentes, sendo de relembrar que ali o Réu foi absolvido do crime de violência doméstica que lhe era imputado.

26 - Ao não efectuar essa apreciação, o Tribunal acabou por aceitar todos os factos articulados e condenar o Réu no pagamento de indemnizações que se revelam, por falta de contraditório, exageradamente quantificadas.

27 - Na verdade, quantificou danos não patrimoniais em 5.000,00 €, para uma ameaça verbal proferida pelo Réu e dirigida à sua então mulher, a Autora BB, em estado de embriagues, que então era quase permanente, mas numa data ( 22.01.2016 ) e não mais repetidas, sem qualquer outra consequência para a Autora BB, até porque o Réu foi logo detido nessa mesma data, valor que é manifestamente exagerado e desproporcionado, pelo que também nessa parte sempre o recurso deveria ser julgado procedente, pelo menos parcialmente.

28 - Também, no que se refere ao outro Autor AA, a douta sentença não Apreciou a contradição existente na matéria alegada na petição, designadamente no n.º 31º, sem cuidar de convidar o Autor a apresentar prova documental, como ainda a matéria alegada no n.º 32º em contradição com o alegado no artigo 45º da mesma petição, este o que corresponde ao facto 10º dado por provado na sentença criminal, processo em que, como resulta igualmente da perícia realizada, se dá por provado que o Autor AA padeceu somente de “30 dias para cura, com incapacidade para o trabalho por igual período.

29 - Essa contradição, aliás em oposição ao caso julgado que resulta da sentença criminal, é susceptível de, no limite, fundamentar e levar à revogação da sentença.

30 - Seja como for, não tendo o Autor AA, na data dos factos, nenhuma actividade profissional estável e conhecida, também a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais se apresenta como manifestamente exagerada.

31 - A douta sentença proferida em Primeira Instância e aquela outra decisão interlocutória, bem como o douto Acórdão recorrido, violam as disposições legais citadas, devendo ser julgado procedente o recurso e no sentido das conclusões, com a revogação das mesmas e também a anulação do processado, com a realização dos novos actos de citação do Réu, com cumprimento das formalidades legais.

NESTES TERMOS, E com o suprimento de Vs. Ex,sª deverá ser da d o provimento ao recurso e no sentido das conclusões .»


9. Não foram apresentadas contra-alegações pelos AA. .


10. Por despacho datado de 14/09/2020, o sr. relator do Tribunal da Relação, não admitiu o recurso de revista como normal (por entender ocorrer dupla conforme e não ocorrer nenhuma das situações elencadas no nº. 2 do artº. 629º do CPC), e quanto à revista excecional limitou-se a mandar subir os autos a este Supremo Tribunal.


11. Subidos os auto os autos a este tribunal, o exmo. sr. juiz conselheiro relator a quem os autos foram então distribuídos (e que entretanto cessou funções) proferiu, em 18/03/2021, despacho com o seguinte teor: “Estão verificados os pressupostos gerais da admissibilidade do Recurso. Apresente os autos à formação (artº. 672º, nº. 3, do CPC).


12. Remetidos os autos à Formação, a mesma proferiu acórdão que não admitiu a revista excecional (por inverificação dos respetivos pressupostos elencados nas invocadas als. a), b) e c) do nº. 1 do artº. 672º do CPC), quer no que concerne ao segmento decisório que julgou improcedente a impugnação da decisão interlocutória da 1ª. instância que indeferiu a arguição da falta ou nulidade da citação (invocada pelo R.); quer no que concerne ao segmento decisório incidente sobre o julgamento do mérito da causa.

Porém, constatando que o recorrente invocou também, no que concerne ao segmento decisório incidente sobre o julgamento do mérito da causa, ter ocorrido uma ofensa de caso julgado, o que a verificar-se configuraria um fundamento especial previsto no artº. 629º, nº. 2 al. a) - fine – do CPC (e como tal permitiria a revista normal com base nesse fundamento), determinou no final, à luz do disposto no nº. 5 do citado artº. 672º do CPC, a apresentação dos autos ao relator a quem os mesmos foram distribuídos no sentido de se pronunciar a tal propósito.

Na sequência do determinado pelo acordão da Formação, o ora relator (a quem os autos foram entretanto distribuídos) proferiu despacho a admitir liminarmente o recurso como revista normal, e com base no fundamento especial previsto no artº. 629º, nº. 2 al. a) - fine –, do CPC, face à invocada (no requerimento/alegações de recurso) ofensa de caso julgado.


13. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II - Fundamentação



1. Dos factos (mantendo-se os termos da sua descrição, a ortografia, a ordem e a numeração que constam do acórdão recorrido):

A. Autora e réu contraíram casamento a … de setembro de 1973, sem celebração de convenção antinupcial.

B. O casamento foi dissolvido por divórcio decretado a … .2.2017 no processo judicial que correu termos sob o nº 1853/16...., Juiz ..., no Tribunal de Família e Menores de ....

C. O autor é filho da autora e réu.

D. No dia … de janeiro de 2016, pelas 14h00, o autor chegou à residência dos pais atrasado para almoçar, o que deixou o réu, que então se encontrava embriagado, desagradado, originando uma discussão entre ambos, acabando o autor por se ausentar para o exterior da residência.

E. Instantes depois, o réu dirigiu-se ao quarto e pegou numa espingarda-caçadeira, calibre 12, marca ...”, ..., n.º de série ... e municiou-a com um cartucho.

F. Em seguida, regressou à cozinha na possa da referida arma e perante a autora, referindo-se a esta e ao autor, disse: “Eu mato o teu filho e mato-te a ti…vou para a prisão e vós para o cemitério”.

G. Com receio daquilo que o réu pudesse fazer, a autora pediu ajuda ao filho, ora autor, chamando-o para o interior da residência, mais concretamente para a cozinha.

H. Assim que entrou na cozinha, o autor abeirou-se do réu e tentou tirar-lhe a arma, lutando ambos pela posse da mesma, o que originou um disparo.

I. O autor desconhecia que aquela arma se encontrava carregada.

J. Apesar do esforço do réu em permanecer com a referida arma, o autor conseguiu retirar-lha e saiu de imediato da residência na posse da mesma.

K. Já no exterior, o autor pousou a arma junto a um muro e diligenciou no sentido de contactar a GNR, via telemóvel, no intuito de participar as ameaças efetuadas pelo réu contra si e contra a sua mãe, ora autora.

L. Todavia, o réu foi no encalço do autor e, sem este se aperceber, pois estava a realizar o telefonema para a GNR, apoderou-se novamente da referida arma, introduzindo-lhe outro cartucho.

M. Ato contínuo, já com a arma carregada, o réu levantou, apontou e disparou na direção em que o autor se encontrava, a cerca de 8 metros, atingindo-o na cabeça, pescoço e ombro esquerdo.

N. A autora, apercebendo-se da ocorrência, foi em auxílio do seu filho, ora autor, agarrando-o e fugindo com ele para a via pública, cambaleando.

O. Onde, poucos minutos depois, o mesmo acabou por cair inanimado, fruto das fortes dores e da perda de sangue.

P. Entretanto, chegou ao local uma ambulância do INEM que providenciou pela transferência do autor para o Hospital de ... e deste para o Hospital de ..., onde recebeu a assistência médica necessária, uma vez que o seu estado e saúde se agravou pois tinha um fragmento de estilhaço do cartucho deflagrado na medula, correndo perigo de vida.

Q. O arguido foi detido pela GNR, que se deslocou ao local pelas 14h30 e, já na residência daquele, apreendeu-lhe a espingarda-caçadeira utilizada na prática dos factos.

R. A espingarda e os respetivos cartuchos, nomeadamente o utilizado no disparo realizado pelo réu contra o autor, foram sujeitos a exame pelo LPC, que identificou os cartuchos como tendo sido os que foram deflagrados por aquela arma.

S. A arma de fogo em causa encontrava-se manifestada em nome do réu, que era possuidor de licença para a sua detenção no domicílio, mas desacompanhada de munições.

T. O réu sabia que não lhe era lícito utilizar a referida arma, em virtude de apenas ser titular de licença para a sua detenção no domicílio, não sendo possuidor de autorização legal para deter os cartuchos apreendidos.

U. O réu sabia que o autor é seu filho e que, ao efetuar o disparo com a referida arma de fogo em direção àquele, mais concretamente à sua parte superior e com ele atingindo as zonas vitais do corpo, agiu sabendo que o meio utilizado, em conjugação com as zonas do corpo atingidas, era adequado a tirar a vida, representando a morte da vítima como consequência possível da sua conduta e conformando-se com esse resultado.

V. A morte do autor só não ocorreu por motivos alheios à vontade do réu, cujo intuito era o de “atirar para matar”, tendo intensão direta de provocar a morte daquele.

W. O réu, com o descrito em F, provocou na autora o receio de que efetivamente poderia concretizar o propósito que anunciou, fazendo-lhe crer que poderia atentar contra o seu corpo e vida.

X. Receio e temor esse que aumentou ainda mais quando efetivamente o réu concretizou a ameaça contra o seu filho, ora autor, tendo criado na autora a ideia que ela seria a vítima seguinte, levando-a ao desespero.

Y. O réu agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram contrárias ao direito e puníveis por lei.

Z. Nos meses seguintes aos factos supra descritos, correu termos processo-crime contra o réu, no Tribunal Judicial da ..., ..., Secção ..., sob processo n.º 98/16.....

AA. No dia … de outubro de 2016 foi prolatado Acórdão pelo ..., condenando-se o réu como autor de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p.p. pelos arts. 22º, 23º, 131º, 132º, n.º 1 e 2 al. a) do Código Penal, agravado nos termos do art. 86º, n.º 3 da Lei 5/06 de 23 de fevereiro, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo art. 86º, n.º 1 al. c) da Lei 5/06 de 23 de Fevereiro, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão e um crime de ameaça agravada, p.p. pelos arts. 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a) do CP, na pena de 2 (dois) meses de prisão, sendo que, em cúmulo jurídico, o Réu foi condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.

BB. Fruto do disparo efetuado pelo réu contra o autor, este foi obrigado a despender a quantia de €1.000,00 em medicamentos, consultas, deslocações, exames, tratamentos médicos, que serviram para tratar e curar os ferimentos.

CC. Mais, perdeu o autor a capacidade para o trabalho durante, pelo menos 60 dias, deixando de auferir a quantia de €1.500,00.

DD. O autor, apesar de ter regressado ao trabalho cerca de dois meses depois do acontecimento dos factos, o certo é que não consegue desenvolver a sua atividade da mesma forma que a vinha exercendo.

EE.  Poderá ficar incapacitado permanentemente para o trabalho num futuro próximo.

FF. Ainda não foi possível extrair todos os bagos de chumbo que se encontram depositados no corpo do autor, que aguarda decisão médica para o efeito, porque a extração de boa parte daqueles situa-se na espinal medula.

GG. Podendo o autor, com a referida extração, ficar totalmente paralisado, ou, até vir a falecer.

HH. Em consequência da conduta do réu, o autor sofreu dores profundas e um imenso mal-estar físico.

II. Foi atingido por diversos bagos de chumbo, designadamente na cabeça, pescoço e ombro esquerdo, o que lhe determinou hematoma faríngeo, enfisema subcutâneo e edema faríngeo, cicatrizes dispersas na nuca, cicatrizes dispersas na omoplata esquerda e face posterior do braço e ombro esquerdos, com um número de cerca de 100 feridas perfurantes, tendo padecido 30 dias para a cura com incapacidade para o trabalho por igual período.

JJ. O autor ficou com o seu corpo deformado, com inúmeras cicatrizes.

KK. Com as lesões sofridas o autor perdeu também capacidade auditiva, deixando de ouvir e escutar os sons como o fazia antes do disparo efetuado pelo réu.

LL. O Autor ainda tem dores nas costas e ombro esquerdo resultantes dos ferimentos causados pelo disparo.

MM. Dores essas que o atrapalham e incomodam no trabalho, tendo mesmo que o interromper várias vezes ao dia.

NN. E que, também não lhe permitem descansar de forma sossegada e tranquila à noite, causando-lhe insónias e mal-estar.

OO. Além das dores físicas causadas e da parte estética afetada pelo disparo, o autor sofreu e sofre ainda de mal-estar psicológico.

PP. O autor sentiu um imenso temor naquele dia, pensando que o réu, seu pai, iria efetivamente matá-lo.

QQ. Temor esse que o acompanhou nos dias seguintes em esteve internado, chegando a pensar, quando consciente, que poderia mesmo perder a vida.

RR. O som do disparo, bem como a lembrança daqueles momentos ainda hoje atormentam o autor, causando-lhe tristeza, desalento, ansiedade, depressão, medo, angústia, insónias, dores de cabeça e mal-estar psicológico.

SS. O Autor era um homem saudável, com vivacidade, alegria e vontade de viver.

TT. Depois dos factos praticados pelo réu, o autor, perdeu grande parte da sua jovialidade e alegria.

UU. Deixando-se cair num profundo estado de tristeza.

VV. Vivendo com medo, insegurança e temor.

WW. Com a expressão descrita em F o réu provocou na autora o receio sério de que esta poderia perder a sua vida às mãos daquele.

XX. Pois a autora sabia que o réu era portador de uma arma de fogo.

YY. O que, aquando da ameaça, a levou a temer de forma mais acentuada pela sua vida.

ZZ. Facto que julgou, naquele instante, poderia ocorrer após o disparo do réu sobre o seu filho.

AAA. Tendo a autora assumido que seria ela a vítima seguinte.

BBB. O que só não aconteceu porque a autora fugiu com o seu filho, ora autor, para a via pública. CCC. Com os factos praticados pelo réu, a autora foi obrigada a recorrer a medicamentos para ultrapassar o estado de depressão e ansiedade em que os acontecimentos relatados a deixaram.

DDD. A autora caiu numa profunda tristeza e perdeu o ânimo e a força que a caracterizavam.

EEE. Não consegue dormir ou descansar aquilo que o seu corpo necessita, uma vez que é atormentada por pensamentos constantes dos momentos em que viu o disparo sobre o seu filho.

FFF. Ver o sofrimento do seu filho naquele dia, bem como o sofrimento que este passou nos meses seguintes e que ainda passa, deixaram a autora num profundo mal-estar psicológico.

GGG. Que se desdobra num mal-estar físico que a atormenta no seu dia-a-dia.

HHH. Ver o homem com quem casou disparar sobre o filho de ambos, causou até à data grande sofrimento psicológico na autora.

III. Ouvir da boca do réu a ameaça de que também a mataria, deixou naquela uma marca inultrapassável e que tem provocado na autora angústia e sofrimento.

JJJ. A autora sentiu que ia perder a sua vida e que ameaça do réu se iria consumar.

KKK. Sendo invadida por um medo súbito e incontrolável que até àquele momento da sua vida nunca tinha sentido.

LLL. Não tendo mais desde aquele dia até hoje, e para o futuro, a paz e tranquilidade que tinha até então.

MMM. Vivendo o seu dia-a-dia num medo e temor imensos.


***


2. Do direito.

2.1 Do objeto do recurso e do seu conhecimento (de mérito).

Como ressalta de tudo aquilo que supra se deixou exarado, o presente recurso interposto pelo R., depois de não ter sido recebido/admitido como revista normal (por existência de dupla conforme, no que concerne aos dois segmentos decisórios atrás referenciados de que foi interposto o recurso – cfr. artº. 671º, nºs. 1 e 3, do CPC) e também como revista excecional (por inverificação dos pressupostos legais – artº. 672º, nº. 1 a), b), e c), do CPC), veio, porém, na sequência da intervenção da Formação, a ser admitido (liminarmente) com o fundamento especial previsto no artº. 629º, nº. 2 al. a) – fine –, daquele mesmo diploma legal, face à invocada ofensa de caso julgado (no que concerne ao segmento decisório incidente sobre o julgamento do mérito da causa).

Constitui jurisprudência consolidada neste mais alto tribunal, que a admissão de um recurso (de revista) com base apenas num fundamento especial (vg. daqueles elencados no nº. 2 do artº. 629º do CPC), tem como consequência que o objeto do mesmo fique tão somente circunscrito à apreciação da questão que está na base da sua admissão, sem que possa alargar-se a outras questões. E faz todo, o sentido, porque se assim não fosse – isto é, se pudesse alargar-se o conhecimento também a outras questões, que nada têm a ver com aquela que excecionalmente permitiu o acesso ao Supremo para dela conhecer – “iria entrar pela janela” aquilo que o legislador (ao introduzir fatores de restrição da revista) não quis que “entrasse pela porta.” (Neste sentido, vide, por todos, Acs. do STJ 06/07/2021, proc. nº. 6537/18.8T8ALM.L1.S1, de 04/07/2019, proc. nº. 1332/07.2TBMTJ.L2.S1, de 04/12/2018, proc. nº. 190/16.0T8BCL.G1.S1, de 22/11/2018, proc. nº. 408/16.0T8CTB.C1.S1, de 18/10/2018, proc. nº. 3468/16.0T9CBR.C1.S1, e de 28/06/2018, proc. nº. 4175/12.8TBVFR.P1.S1, disponíveis em ww.dgsi.pt).

Sendo assim, este tribunal apenas irá conhecer, no âmbito deste recurso, da invocada questão da ofensa do caso julgado pelo acordão recorrido, pois que foi ela que (excecionalmente), in casu, o permitiu, com base nesse fundamento (especial), o acesso ao Supremo pelo R./recorrente.

Apreciemos, pois, tal questão.

Enfatizando o que já resulta do que atrás deixámos expresso, a invocação pelo recorrente da ofensa do caso julgado reporta-se ao segmento decisório incidente sobre o julgamento do mérito da causa.

Como ressalta da leitura das conclusões do recurso - que acima se deixámos transcritas, as quais estão, aliás, em sintonia com as alegações que as precedem -, o recorrente, na sua essência, sustenta/fundamenta a invocada ofensa/violação de caso julgado com base na consideração de que a factualidade dada como assente/provada neste processo não coincide (totalmente) e até contradiz (nos termos que ali indica – vg. conclusões 24/25 e 28/29), nalguns casos, os factos dados como provados na sentença (acórdão) criminal, em parte condenatória e noutra parte absolutória, proferida contra ele, na qualidade de arguido, no âmbito do processo crime que correu termos sob n°. 98/16...., e no qual também foram queixosos os aqui A.A. (cfr., nomeadamente, as als. Z) e AA) dos factos dados como provados nesta ação).

Está, assim, em causa no presente recurso (como questão decidenda) o saber o acórdão recorrido ofendeu o caso julgado decorrente da decisão proferida no sobredito processo crime.

Como é sabido, o instituto do caso julgado – sobre o qual muito se tem escrito na doutrina e na jurisprudência, dada a controvérsia que com que se apresenta na sua conceptualização – apresenta-se no nosso ordenamento jurídico-processual, como uma exceção dilatória, revelando-se numa dimensão negativa (na vertente/função da exceção) e numa dimensão positiva (na vertente/função de autoridade de caso julgado), que, em regra, conduzirá à absolvição da instância do réu – cfr. artºs. 576º, nºs. 1 e 2, 577º al. i), 578º, 580º, 581º, 619º, nº. 1, 621º, e 278º do CPC.

Porém, dado que o caso em apreço, e salvo o devido, respeito, não o exige (para a sua solução) - como adiante veremos e pelas razões aí então expressas -, não nos iremos alongar/”perder” nessa controversa doutrinária que a conceptualização dessa figura processual tem vindo a suscitar quanto a alguns aspetos das suas vertentes.

Limitar-nos-emos, por isso (por agora), de forma sumária e em jeito de síntese, a tecer umas breves considerações introdutórias (para solução da questão colocada), que reúnem, podemos dizê-lo, consenso alargado (na nossa doutrina e jurisprudência) quanto ao referido.

Pode dizer-se que a expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja, caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega, tanto constitui caso julgado a sentença que condena como aquela que absolve.

O instituto do caso julgado exerce - como já atrás já deixámos referido - duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A primeira manifesta-se através de autoridade do caso julgado, visando impor os efeitos de uma primeira decisão, já transitada (fazendo valer a sua força e autoridade), enquanto que a segunda se manifesta através de exceção de caso julgado, visando impedir que uma causa já julgada, e transitada, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou a repetição de decisões, assumindo-se, assim, ambos como efeitos diversos da mesma realidade jurídica.

Enquanto na exceção de caso julgado se exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as ações em confronto, já na autoridade do caso julgado a coexistência dessa tríade de identidades não constitui pressuposto absolutamente necessário da sua atuação.

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

Para que haja identidade de sujeitos as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que elas assumam em ambos os processos, podendo ser autores numa ação e réus na outra.

Por sua vez, a identidade de pedidos pressupõe que em ambas as ações se pretende obter o reconhecimento do mesmo direito subjetivo, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, não sendo de exigir, porém, uma rigorosa identidade formal entre os pedidos.

 Sendo a causa de pedir um facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, haverá procurá-la na questão fundamental levantada nas ações em confronto.

No nosso ordenamento jurídico-processual, o caso julgado implícito só pode ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga.

A autoridade de caso julgado de uma sentença só existe na exata correspondência com o seu conteúdo e daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu.

Posto isto, e respondendo, agora, de forma mais incisiva, à questão acima colocada (objeto do presente recurso), diremos:

O que está em causa no caso sub júdice, dada a forma como a questão foi colocada pelo recorrente, é o caso julgado na sua função positiva, ou seja, de autoridade de caso julgado (e mais concretamente ainda na sua vertente de extensão de caso julgado).

Na verdade, e na sua essência, o recorrente sustenta sua pretensão recursiva (da invocada ofensa do caso julgado) aduzindo para efeito que o acórdão ora recorrido não respeitou na sua integralidade a decisão de facto proferida no sobredito acórdão do processo-crime (já então transitado em julgado), pois que deu como assentes factos que não só não coincidem como até contradizem, nalguns casos, os factos dados como provados no acordão criminal.

No fundo, está o recorrente a dizer/defender que a decisão de facto proferida pelo acórdão no aludido processo-crime se impõe, pela autoridade do caso julgado, sobre a decisão de facto proferida pelo acórdão ora recorrido.

Porém, e salvo sempre o devido respeito, fá-lo sem qualquer razão, isto é, sem qualquer consistência jurídica, e isto independentemente sequer de cuidar de entrar na indagação se o alegado pelo recorrente quanto à invocada não correspondência ou contradição de facto corresponde, ou não, à realidade.

Com efeito, como constitui entendimento claramente prevalecente, o caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os seus fundamentos de facto.

Neste sentido, elucida o prof. Antunes Varela (inManual de Processo Civil, 1984, pág. 697”) “Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final.”

Mo mesmo sentido, aponta igualmente o prof. Teixeira de Sousa (in “Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 577”), quando afirma que “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressupostos, valor de caso julgado.”

No âmbito jurisprudencial, pode referir-se, por ex., o Ac. do STJ de 02/03/2010, (proc. nº. 690/09), disponível em www.dgsi.pt/, onde se afirma, a dado passo, que “(…) a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente.”

No mesmo sentido, referira-se, por último, o Ac. do STJ de 05/05/2005 (proc. nº. 05B691), disponível, em www.dgsi.pt, ao decidir que “Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.”

E em reforço de tal entendimento, e mais ainda quando está em causa a autoridade de uma sentença de natureza criminal (como sucede no caso presente), veja-se o disposto nos artºs. 623º, e 624º, nº. 1, do CPC, de onde se extrai que as decisões de facto proferidas em decisões penais, quer condenatórias quer absolutórias, podem se elididas (ou seja, contrariadas) em processos de natureza cível.

Neste contexto, os factos constantes do acórdão proferida no sobredito processo crime (nº. 98/16.....) não se impõem neste processo por força do caso julgado, contrariamente ao que defende o R./recorrente.

Termos, pois, em que, perante o que se deixou exposto, se decide negar provimento ao recurso do R. .


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III - Decisão



Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista do réu, confirmando-se o acordão recorrido.

Custas pelo R./recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).


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Sumário:

I - A admissão de um recurso (vg. de revista) com base apenas num fundamento especial (vg. daqueles elencados no nº. 2 do artº. 629º do CPC), tem como consequência que o objeto do mesmo fique tão somente circunscrito à apreciação da questão que está na base da sua admissão, sem que possa alargar-se a outras questões.

II - A autoridade de caso julgado de uma decisão não abrange os seus fundamentos de facto, pelo que os mesmos não gozam dessa eficácia extraprocessualmente.


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Lisboa, 2021/11/30


Isaías Pádua (relator)

Nuno Ataíde das Neves

Maria Clara Sottomayor