Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99P672
Nº Convencional: JSTJ00039013
Relator: GUIMARÃES DIAS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Nº do Documento: SJ199912090006723
Data do Acordão: 12/09/1999
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N492 ANO1999 PAG188
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC PENAL. DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS.
Legislação Nacional: CP95 ARTIGO 172 N1 N2.
CPP98 ARTIGO 1 N1 F ARTIGO 359 ARTIGO 379 N1 B.
Sumário : Estando o arguido acusado pela autoria material de um crime de abuso sexual de criança previsto e punido pelo artigo 172, ns. 1 e 2, do CP., e não constando da acusação que a ofendida, antes, era virgem, verifica-se alteração substancial dos factos da acusação quando o tribunal dá como provado que ao manter a primeira cópula com o arguido, aquela teve "a sua primeira relação sexual de cópula completa".
Logo, na medida em que esses factos foram tomados em conta, fora do âmbito do artigo 359, do CPP, o acórdão sofre da nulidade do artigo 379, n. 1, alínea b), do mesmo código.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I - No Processo Comum Colectivo n. 21/98 do Tribunal Judicial da Comarca de Reguengos de Monsaraz (Círculo Judicial de Évora), foi submetido a julgamento o arguido:

A, solteiro, agricultor, natural de Monsaraz, concelho de Reguengos de Monsaraz, nascido a 24 de Junho de 1966, filho de ... e de ..., portador do B.I. n. 74313100, emitido por Lisboa em 18 de Março de 1993, residente na Rua ..., em Reguengos de Monsaraz.

Acusado pela prática de um crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 172, ns. 1 e 2 e 30, n. 2, do Código Penal.

I.1
Por acórdão prolatado em 18 de Dezembro de 1998 (folhas 118 a 123), foi decidido:
a) julgar a acusação totalmente procedente e, em consequência, condenar o arguido A, como autor material de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 172, ns. 1 e 2 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
b) suspender a execução da pena aplicada por um período de 3 (três) anos, na condição de o arguido entregar à Escola de Música de Évora, que a ... frequentava, a quantia de 1000000 escudos (um milhão de escudos), no prazo de 6 (seis meses);
devendo tal quantia ser imputada ao pagamento de quaisquer prestações que sejam exigíveis para que a ... continue a frequentar a mesma escola, caso seja esse o desejo da sua representante legal;
notificando-se a representante legal da menor para, no prazo de 3 (três) meses, dizer ao Tribunal se pretende que a ... continue a frequentar tal estabelecimento de ensino;
sendo que, caso tal não ocorra, a referida quantia reverterá para a dita escola;
c) condenar o arguido em 6 (seis) Ucs. de taxa de justiça e nas custas do processo com metade de procuradoria e em 1% de adicional a favor das vítimas de crimes.

I.2
Inconformado com o Acórdão, dele interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça o arguido, em cuja motivação apresentou as seguintes conclusões (folhas 127 a 143):
1 - O douto acórdão recorrido é nulo, por não se fazer a apreciação dos motivos e factos que fundamentam a decisão, assim violando o disposto no n. 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal.
2 - O douto acórdão recorrido é nulo porque não está fundamentado no que se refere à indicação das provas produzidas e que conduziram à convicção do Tribunal no que se refere à virgindade da ofendida, situação económica e apoios recebidos da União Europeia por parte do arguido, desta forma violando uma vez mais o disposto no n. 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal.
3 - O Colectivo tomou em consideração factos não constantes da acusação - a virgindade da ofendida - o que traduz, dada a natureza do facto em si, uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, pelo que o douto acórdão, violando o disposto no artigo 359 do Código de Processo Penal, é nulo, nos termos do disposto na alínea b) do artigo 379 do Código de Processo Penal.
4 - O acórdão omite factos relevantes para ajuizar completamente da verdade material.
5 - Dá como provados factos que não foram objecto de prova.
6 - Suspende a execução da pena de prisão do cumprimento de obrigação que o arguido não pode cumprir, por não dispor de condição económica para tal, e que não lhe é exigível, por irrazoável, assim violando o disposto no n. 2 do artigo 51 do Código Penal.
7 - Não foi assegurado ao arguido o direito ao contraditório no que se refere à prova da virgindade (ou falta dela) da ofendida e à sua própria situação económica, em vista do pagamento da quantia que lhe foi imposta como condição de suspensão da execução da pena.
8 - O Colectivo fez errada apreciação da prova, pois deu como provados factos que não foram sujeitos a ela.
9 - O acórdão recorrido faz depender a suspensão da execução da pena de condição inexequível, por falta de meios do arguido.
10 - O acórdão recorrido fixou a favor de terceiro (escola de música de Évora), o pagamento de quantia que vai em seu exclusivo benefício e não da ofendida, impedida que se encontra de cumprir qualquer das opções (falsas opções) concedidas pelo Colectivo em seu benefício, por estar impedida de regressar aquela escola: logo, a sentença, também nessa parte, é inexequível.
11 - Houve erro notório na apreciação da prova, não estando assim suficientemente fundamentada a decisão recorrida.
12 - Face a tudo o exposto, deve ser reconhecida a nulidade do acórdão e declarada insuficiente a matéria de facto provada, e, consequentemente, ser anulado o julgamento e decretado o reenvio do processo para a realização de novo julgamento a efectuar no Tribunal mais próximo (artigo 436 do Código de Processo Penal).
13 - A entender-se de modo diverso, deve declarar-se que a condição de suspensão da execução da pena é impossível e, consequentemente, ter-se por não escrita, subsistindo a decisão na parte em que suspendeu a pena, com redução especial da mesma.

I.3
O Ministério Público não apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido.
I.4
Subidos os autos a este Supremo Tribunal, o Digno Magistrado do Ministério Público, na vista que lhe coube nos termos do artigo 416, do Código de Processo Penal, nada opôs ao conhecimento do recurso.

Seguiram-se os vistos legais e procedeu-se à audiência com o formalismo imposto na lei do processo, cumprindo agora apreciar e decidir.

II.1
O Tribunal Colectivo considerou provada a seguinte matéria de facto:
1 - O arguido conhecia a ..., à data com 12 anos, desde Março de 1996, em virtude de frequentar o café onde a mãe daquela trabalha, num posto de abastecimento da Esso em Reguengos de Monsaraz e mantinha com a menor uma relação de amizade que, a partir de Março de 1997, se foi tornando mais próxima.
2 - No dia 30 de Maio de 1997 o arguido dirigiu-se a Évora e foi encontrar-se com a ... que nesta cidade ficara para assistir a um concerto, já que a ... frequentava a escola de música de Évora.
3 - Convidou-a a ir consigo passear, ao que aquela acedeu.
4 - Dirigiram-se, no veículo do arguido, para a Estrada Nacional em direcção a Reguengos de Monsaraz e, num local próximo do cruzamento da Torre de Coelheiros, o arguido parou o carro e manifestou a intenção de manter relações sexuais com a ....
5 - A ... acedeu e mantiveram relações sexuais naquele local, sendo que a ... ali teve a sua primeira relação sexual de cópula completa.
6 - No período compreendido entre Julho e Novembro de 1997 ambos se encontraram, por diversas vezes, mantendo, cerca de dez vezes, relações sexuais, habitualmente numa vinha que o arguido tem a cerca de dois quilómetros de Reguengos de Monsaraz.
7 - Uma outra vez, no período de tempo referido, o arguido, a ... e um amigo desta, de nome António Morais, foram até Mourão onde e uma vez mais, depois de se afastar com ela para junto do rio Guadiana, manteve com a ... relações sexuais de cópula completa.
8 - O arguido e a ... encontravam-se no café do posto de abastecimento de combustível ou no "Classic Pub".
9 - A ... gostava do arguido e enviava-lhe postais e cartas, aquelas juntas aos autos em audiência.
10 - Procurava o arguido nos cafés e discotecas de Reguengos de Monsaraz à noite, por vezes ficando com o mesmo toda a noite.
11 - Para tal deslocava-se a esses cafés e discotecas com amigos encontrando-se, depois, com o arguido.
12 - Indicou a um desses amigos o local onde teve o primeiro relacionamento sexual com o arguido.
13 - A um outro referia-se ao arguido como pessoa que idolatrava.
14 - O arguido sabia que a ... tinha, à data, 13 anos de idade.
15 - Sabia que não lhe era permitido manter com ela relacionamento de carácter sexual.
16 - O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente.
17 - Sabia que as suas condutas eram proibidas.
18 - O arguido é agricultor, trabalhando por conta própria, explorando gado, trigo e azeitona, numa área de 150 hectares e tem uma vinha em Reguengos de Monsaraz e, como tal, recebe apoios da União Europeia.
19 - É considerado pessoa de boa situação económica e social em Reguengos de Monsaraz.
20 - A ... deixou de frequentar a escola de música de Évora.

II.2
Quanto à fundamentação da decisão de facto, lê-se no douto acórdão recorrido:
O Tribunal assentou a sua convicção na ponderação das declarações do arguido e no depoimento da ..., esta a aceitar ter mantido relações sexuais com o arguido, cerca de "8 ou 9 vezes", dizendo que as aceitou por ter sido ameaçada com o revelar que era amante do ....
O próprio arguido confessou ter mantido com a ..., por "duas vezes" relações de cópula completa adiantando, no entanto, como razão "explicativa" o "assédio" que a mesma lhe fazia.
Ambas as "explicações" dadas para justificar o relacionamento sexual, quer pelo arguido, quer pela ..., não foram atendidas pelo Tribunal, por irrealistas e contrárias à prova produzida.
Tais declarações (e depoimentos) são complementadas pelo exame junto aos autos a folha 45.
Bem como no depoimento das testemunhas:
...., a assegurar que a ... lhe afirmou a prática de actos sexuais com o arguido e a observação que o próprio fez dos encontros dos dois no posto de abastecimento de combustíveis e nas discotecas; bem como viu, em Mourão, os dois nus na prática de cópula completa.
..., a garantir que a ... se encontrou com o arguido numa discoteca local e que permaneceram juntos até às 6 horas da manhã seguinte, altura em que com ela se encontrou, como ficara combinado; bem como assistia aos encontros entre ambos no seu local de trabalho, o posto de abastecimento de combustível.
Igualmente assentou na própria observação do Tribunal quanto à idade aparente da ..., a revelar, de forma indubitável a sua idade, um ano e meio após a prática dos factos pelo arguido.

O arguido no seu recurso, balizado pelas respectivas conclusões, invoca, além do mais, a nulidade do acórdão por violação do n. 2 do Código de Processo Penal e a alteração substancial dos factos descritos na acusação, violando, também, o disposto no artigo 359 do Código de Processo Penal referindo a alínea b) do n. 1 do citado artigo 374.
Finalmente, reage contra a suspensão da pena dependente da condição do pagamento de 1000000 escudos a uma escola de música, o que considera inexequível.

O ponto fulcral do recurso reside na alegação "facto novo", uma vez que da sua resolução depende o conhecimento, ou não, dos restantes aspectos focados pelo recorrente, nesta fase.

Ora, de acordo com o preceituado no artigo 359 do Código de Processo Penal uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia se a houver, não pode ser tomada em consideração pelo Tribunal para o efeito de condenação, no processo em curso.

Porém, no mesmo dispositivo legal ressalvam-se os casos em que o Ministério Público, o arguido e a assistente estiveram de acordo com a cominação do julgamento pelos mesmos factos, se estes não determinarem a incompetência do Tribunal.
"In casu, no acórdão recorrido refere-se que;
"A ... acedeu e mantiveram relações sexuais naquele local, sendo que a ... ali teve a sua primeira relação sexual de cópula completa".
Todavia, da acusação não constava tal facto, referente à virgindade da ofendida.
Ora tal facto, só por si, traduz uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, porquanto se enquadra no conceito dado pelo artigo 1, n. 1 alínea f) do Código Penal segundo o qual se verifica uma alteração substancial dos factos, sempre que tal alteração tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Este facto novo é relevante e por isso há que ser tido como uma alteração substancial dos factos constantes da acusação, não se tratando, portanto de uma alteração não substancial.

Se a virgindade da ofendida, ou a sua falta, não é relevante, não se entende que, não constando da acusação fosse incluída no elenco dos factos provados.
O Tribunal não poderia tomar conhecimento desse facto novo, fora do âmbito do artigo 359 do Código Penal.

Acresce que deste modo não se assegurou ao arguido o direito ao contraditório, quanto ao aludido facto novo - a virgindade da ofendida, ou a sua falta - isto é, em audiência não se facultou a intervenção da contraparte - o arguido/recorrente - nos actos, preparação e produção dos diversos meios de prova, negando-se-lhe, assim, a possibilidade de impugnar tanto a admissão como a força probatória dos meios de prova oferecidos, afim de favorecimento como tratamento de igualdade entre as partes, se proporcionar ao Tribunal uma reafirmação quanto possível completa e exacta (unilateral ou tendenciosa) sobre os factos em causa - como ensina M. Andrade, in "Noções Elementares de Processo Civil", página 202.

A referência à virgindade da ofendida constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação, pelo que não podia ser levada em conta pelo colectivo para efeitos de condenação, uma vez que não houve acordo manifestado da acusação e da defesa para prosseguimento do processo.

Deste modo verifica-se a nulidade da sentença, por força do preceituado no artigo 379, n. 1, alínea b) do Código de Processo Penal tendo o tribunal "a quo" condenado o arguido por factos diversos dos descritos no acórdão e fora das condições previstas nos artigos 358 e 359 do Código de Processo Penal.

Ocorrendo, como ocorre, a procedência do primeiro fundamento do recurso, fica prejudicado, desde já, o conhecimento dos restantes fundamentos alinhados nas conclusões da respectiva motivação.

Nesta conformidade, e face ao que expendido fica acorda-se, nesta Secção Criminal, em:
- conceder provimento ao recurso reconhecendo a nulidade do acórdão, anulando o julgamento e decretando o reenvio do processo para realização de novo julgamento, nos termos do preceituado no artigo 436 do Código de Processo Penal.
Sem tributação. Fixa-se em 20000 escudos os honorários devidos ao defensor oficioso.
Lisboa, 9 de Dezembro de 1999.
Guimarães Dias,
Costa Pereira,
Oliveira Guimarães,
Dinis Alves.

Tribunal Judicial de Reguengos de Monsaraz - Processo 21/98
Acórdão 18 de Fevereiro de 1998.