Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
511/14.0T8GRD.D1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
ATROPELAMENTO
MENOR
SEGURO AUTOMÓVEL
DIREITO COMUNITÁRIO
DIRECTIVA COMUNITÁRIA
DIRETIVA COMUNITÁRIA
REENVIO PREJUDICIAL
Data do Acordão: 12/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE PELO RISCO / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
-Antunes Varela, Das obrigações em geral, Volume I, 7.ª edição, Almedina, p. 664;
-Calvão da Silva, R.L.J., Ano n.º 134.º, p. 112 e ss. e Ano n.º 137.º, p. 49 e ss.;
-Dario Martins de Almeida, Manual de acidentes de Viação, 3.ª edição, Livraria Almedina, p. 352 e ss.;
-José Carlos Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Colecção teses, Almedina, p. 814 e ss.;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, C. Editora, p. 517 e ss.;
-Vaz Serra, A título meramente exemplificativo, R.L.J., Ano 99.º, p. 364, nota 1 e 373, nota 2.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 505.º E 570.º.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA 72/166/CEE, DE 24 DE ABRIL (PRIMEIRA DIRECTIVA).
DIRECTIVA 84/5/CEE, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1983 (SEGUNDA DIRECTIVA).
DIRECTIVA 90/232/CEE, DE 14 DE MAIO DE 1990 (TERCEIRA DIRECTIVA).
DIRECTIVA 2000/26/CE, DE 16 DE MAIO DE 2000 (QUARTA DIRECTIVA).
DIRECTIVA 2005/14/CE, DE 11 DE MAIO (QUINTA DIRECTIVA).
CONVENÇÃO DE ESTRASBURGO, DE 14 DE ABRIL DE 1973 (DO CONSELHO DA EUROPA): - ARTIGO 5.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 14-10-2007, PROCESSO N.º 07B1710, IN WWW.DGSI.PT, COL./STJ, TOMO III, P. 82 E SS., E R.L.J., ANO 137.º, P. 35 E SS.;
- DE 17-05-2012, PROCESSO N.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-06-2017, PROCESSO N.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1.
Jurisprudência Internacional:

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):

- DE 09-06-11, PROCESSO DE REENVIO PREJUDICIAL N.º C-409/09.
Sumário :
I. Num acidente de viação traduzido no embate contra a parte lateral direita da frente de um veículo automóvel em circulação, de um menor com 10 anos de idade, inopidamente surgido em corrida na faixa de rodagem, provindo do intervalo/”corredor” entre dois autocarros estacionados no lado direito da estrada – considerando o sentido de marcha de tal veículo -, e logo após acabar de percorrer a largura dessa via ocupada pelos mesmos, é necessariamente de reputar exclusivo responsável pela eclosão de tal sinistro, o dito menor.

 II – Assim, qualquer que seja a interpretação que se leve a efeito no que concerne ao regime normativo integrado pelos arts. 505.º e 570.º, ambos do Cód. Civil - seja tal interpretação ditada pela corrente “tradicional” ou pela corrente “actualista” – jamais o detentor do automóvel poderá ser responsabilizado, em qualquer grau ou percentagem, pelo risco genérico da circulação do veículo, risco este irrelevante em face de tal descrito circunstancialismo.

  III – Este entendimento, outrossim, em nada colide com o direito comunitário e suas directivas, porquanto é esse ordenamento a não se opor – conforme expresso pronunciamento do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo de reenvio prejudicial n.º C-409/09 – a que as disposições nacionais, no domínio da responsabilidade civil, possam excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil automóvel envolvido em tal acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]

I – RELATÓRIO

I. AA e BB, em representação do seu filho menor, CC, vieram intentar acção contra DD - Companhia de Seguros, S.A., alegando, em suma, que

- No dia 17/12/2009, ocorreu um acidente de viação por via do qual o veículo de matrícula QM-...-... – seguro na Ré – atropelou o A., Leandro (que, à data, tinha dez anos), quando este, após sair do portão da escola, fazia a travessia da via;

- o acidente é imputável a culpa do condutor do veículo, o qual circulava a velocidade superior à que era permitida no local, ao telemóvel e com desatenção;

- por força do acidente, o A. (menor) sofreu lesões que motivaram o seu internamento hospitalar e a realização de intervenção cirúrgica relacionada com a fractura de fémur direito;

- após a alta, manteve-se em casa com movimentos restritos durante vários meses, tendo realizado diversos exames;

- foi submetido a segunda cirurgia, além do mais, ostentando um encurtamento inferior do membro direito e cicatrizes que muito o desgostam e inibem, bem como diversas outras limitações, sendo ainda e que em consequência do acidente danificou irremediavelmente as roupas, calçado e óculos.

Com estes fundamentos, pedem que a Ré seja condenada a pagar ao A.:

A) A título de danos não patrimoniais, nos termos nos art.sº 84.º e 85.º, quantia nunca inferior a 60.000,00€, acrescido do montante calculado em função da IPP que venha a ser determinada e se relega para liquidação de sentença;

B) A título de danos não patrimoniais, nos termos descritos nos artigos 86.º e 87.º a quantia de 5.000,00€.

C) A título de danos emergentes como danos futuros 440,00€ como se discrimina no art.º 81.º;

D) A título emergente como danos futuros a quantia de 45,70€, como se discrimina no art.º 88.º;

E) Todas as despesas necessárias que o A. terá que efectuar, futuramente, e tendentes ao tratamento de lesões que lhe foram causadas por força do acidente de viação aqui em questão, designadamente eventuais intervenções cirúrgicas, estadia em estabelecimentos de saúde para o efeito, medicamentos, transporte, etc., despesas essas que não podem, nesta data, determinar-se, pelo que relegam para execução de sentença o respectivo cálculo e liquidação das mesmas.

F) Juros de mora legais e vincendos sobre a quantia peticionada a título de danos patrimoniais futuros, contados a partir da data da citação até efectivo e integral pagamento, nos termos do art. 805.º, n.º3, do Cód. Civil.

G) Juros de mora vincendos sobre a quantia indemnizatória que vier a ser arbitrada a título de danos não patrimoniais, contados desde a data da sentença em 1.ª instância até efectivo e integral pagamento, nos termos conjugados dos art.s 566.º n.º 2, 805.º n.º 3 e 806.º n.º 1, todos do Cód. Civil.

A Ré contestou, impugnando, por desconhecimento, os factos alegados na petição inicial.

Foi citado o Ministério Público.

Teve lugar a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, sendo fixado o objecto do litígio e, bem assim, delimitados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença finda com o dispositivo que segue:

“Pelo exposto, o tribunal julga a ação parcialmente procedente e, em consequência, absolvendo a ré do demais peticionado, condena a ré a pagar ao autor:

a) a quantia de 4 165,35€ (quatro mil cento e sessenta e cinco euros e tinta e cinco cêntimos - sendo 165,35€ relativamente às despesas com óculos e medicação e 4000,00€ relativamente ao dano biológico), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data de citação até efetivo e integral pagamento;

b) a quantia de 25 000,00€ (vinte e cinco mil euros - a título de danos não patrimoniais), acrescida dos juros de mora vincendos, à taxa legal em vigor, até efetivo e integral pagamento;

c) a quantia que se liquidar em execução de sentença, na proporção de 50% do seu valor, relativamente a todas as despesas necessárias que o autor venha a efetuar e tendentes ao tratamento de lesões que lhe foram causadas por força do acidente de viação em questão, designadamente eventuais intervenções cirúrgicas, estadia em estabelecimentos de saúde para o efeito, consultas de ortopedia, tratamentos de fisioterapia, medicamentos e transportes”.

Inconformada com esta decisão, a Ré veio interpor recurso de apelação, cuja alegação findou a propugnar no sentido de ser dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, a substituir por outra que absolvesse do pedido a Recorrente; ou, quando assim se não entendesse, deveria reduzir-se o montante fixado, a título de danos não patrimoniais, para um valor não superior a 2.500,00€ (50% de 5.000,00€).


O A. Apresentou, por sua vez, contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.


Conhecendo do recurso, a Relação, por douto acórdão de fls. 240 e ss., concedeu-lhe provimento, em consequência revogando a decisão recorrida e absolvendo a Ré/Apelante do pedido.


2. Irresignado, por seu turno, com o assim decidido, o A./Apelado interpôs o vertente recurso de revista, encerrando a sua alegação com as conclusões que seguem:

a) O Tribunal à quo olvidou uma interpretação progressista e ou atualista dos art.ºs 505.º 570.º do Código Civil, as diretivas comunitárias e a mais recente doutrina (Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, Processo n.º 07B1710 – n.º convencional JST000, Relator, Senhor Juiz-Conselheiro, Santos Bernardino, n.º documento SJ200710040017102, in www.dgsi.pt e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/06/2012, Processo n.º 100/10.9YFLSB, Relator, Senhor Juiz-Conselheiro Orlando Afonso, in www.dgsi.pt ).

b) Das sobreditas diretivas ressalta, entre o mais, para o caso sub judice, o art.º 1.º da 3.º Directiva, cujo efeito impõe sempre a indemnização das vítimas causadas por veículos automóveis, exepto se se tratar de passageiros transportados, com seu conhecimento, em veículo roubado.

c) O modo tradicional de ver as coisas no que respeita a acidentes de viação com veículos sofreu profunda alteração de origem comunitária (Neste sentido, Excelentíssimo Senho Juiz-Conselheiro, João Bernardo; declaração de voto no Acórdão supradito).

d) Diz ainda o Excelentíssimo Senhor Juiz-Conselheiro, João Bernardo que “Se encararmos a problemática na perspectiva da vítima, vêm ao de cima muitas realidades que a visão do nosso Código Civil deixara obnubiladas. Referimo-nos, por exemplo, aos casos em que o acidente é originado pela vítima mas sem que se lhe possa assacar culpa (porque é inimputável em razão de anomalia psíquica ou da idade).

e) Resulta incompatível com o direito comunitário a interpretação do art.º 505.º do Código Civil, segundo a qual, verificando-se culpa do lesado e sendo a respetiva conduta causa do acidente é excluída a responsabilidade pelo risco consagrada no art.º 503.º, n.º 1, bem como no art.º 570.º do mesmo Código que permite em tal caso a exclusão da indemnização. (Neste sentido e a propósito desta temática já se pronunciou, em importante estudo o Excelentíssimo Senhor Juiz-Conselheiro, José Carlos Moitinho de Almeida, in “Seguro Obrigatório Automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”, acessível em www.stj.pt (link Estudos Jurídicos).

f) O Tribunal a quo contrariamente ao da 1.ª instância não foi sensível “…ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário – e tendo por escopo a garantia de uma maior proteção dos lesados – do âmbito da responsabilidade pelo risco, que tem tido tradução em vários diplomas…” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já acima citados).

g) É de salientar que a doutrina hoje dominante admite a concorrência entra a culpa do lesado (art.º 570.º do C.C.) e o risco da utilização do veículo (art.º 503.º do C.C.), resultando tal asserção do disposto no art.º 505.º do Código Civil.

h) À infeliz criança, menor de 10, não lhe pode ser atribuída <<culpa indesculpável>> como a define o Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro, José Carlos Moitinho de Almeida.

i) O local do embate é bem conhecido do condutor do veículo QM-...-..., pelo que teria ele de ter em conta a notória normal imprevisibilidade de comportamento de crianças que andam sempre no local onde ocorreu o acidente.

j) Na concreta situação ajuizada, sem prejuízo do supradito na 4ª conclusão, mas a admitir-se a culpa da infeliz criança na eclosão do sinistro, crê-se indubitável que para tal eclosão contribui de forma decisiva o risco próprio do veículo QM-...-....

k) Dizer que atuação da infeliz criança foi, só por si, idónea para a ocorrência do acidente e que o veículo automóvel foi tal indiferente, é o mesmo que dizer que este não tem uma típica aptidão, para a criação de riscos e, em consequência, não contribuiu para o mesmo acidente.

l) A estrutura física (as dimensões, a largura) do veículo QM-...-... está inelutavelmente ligada à ocorrência do acidente, tanto mais que no mesmo a sua intervenção não foi amorfa (Neste último sentido, Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador, Américo Marcelino, in “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 6ª edição, pág. 339).

m) Ao condutor do QM-...-... era-lhe exigível um especial dever de cuidado e uma conduta meticulosamente prudente, pois que conhecia o local do embate e sabia que havia crianças nas imediações.

n) Por isso, não podia ele ignorar a imprevisibilidade do comportamento das crianças que frequentam o local, que se situa dentro de uma localidade, porta de uma escola, num meio rural, onde à falta de outros meios, as crianças passam a correr para apanhar os autocarros que os levaram a casa, nomeadamente à hora de saída da escola que aliás é a hora do acidente.

o) Pelo que, tal comportamento omissivo do condutor do veículo QM-...-..., também não deixa de se repercutir, em sede de causalidade, no processo dinâmico que levou à eclosão do evento lesivo.

p) Assim e a admitir que o comportamento do menor de 10 anos é culposo, que o acidente a ele poderá se imputado e que a sua conduta contribuiu para os consequentes danos que para ele resultaram, deve, ainda assim, concluir-se que, para tal, também contribuiu o risco próprio do veículo, QM-...-....

q) O que de acordo com a interpretação do preceituado no art.º 505.º do Código Civil, reclama a subsunção desta situação concursal de causas do dano à norma de repartição do dano que é o art.º 570.º do Código Civil.

r) Deste modo, tendo em conta tudo quanto dito se deixou e a admitir que os montantes indemnizatórios poderão, eventualmente, ser reduzidos, então, crê-se, que tais montantes deverão ser fixados de acordo com juízos de equidade, atendendo às circunstâncias concretas do caso em apreço, aliás como o Tribunal da 1ª Instância bem decidiu.

s) Assim, o Tribunal a quo por erro de interpretação e ou aplicação, violou e ou não considerou, entre o mais que Vossas Excelências bem melhor suprirão, o disposto nos art.º 503.º, 505.º e 570.º do Código Civil e art.º 13.º, n.º 1 do Código da Estrada então vigente-

E assim remata no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão da Relação, e mantendo-se a sentença proferida em primeira instância.


Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


II – FACTOS

A factualidade considerada definitivamente provada é a seguinte:

a) O Autor CC nasceu no dia 29 de Abril de 1999 e é filho de BB e de AA;

b) Na data dos factos infra descritos, a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação relativa ao veículo automóvel de matrícula QM-...-..., encontrava-se transferida para a EE - Companhia de Seguros, S.A., através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 75…7, tendo tal seguradora no ano de 2013 sido integrada na DD - Companhia de Seguros, S.A., assumindo esta todos os direitos e obrigações daquela;

c) No dia 17 de Dezembro de 2009, cerca das 17h30m, o Autor CC, então com 10 anos de idade, após o términus das aulas, saiu pelo portão da Escola EB23 de …, sita em …, onde estudava, para a Rua Dr. …;

d) Para atravessar a respectiva via e apanhar o autocarro que se encontrava estacionado do outro lado da via, posicionado na metade esquerda da via (atento o sentido de trânsito do veículo segurado) e encostado à berma, e que o transportaria para casa;

e) Nessas circunstâncias, encontrando-se estacionados dois autocarros na metade direita da via (atento o sentido de trânsito do veículo segurado) e encostados à berma, um em frente ao outro, o Autor CC atravessou a via a correr por entre os dois autocarros;

f) Nesse momento, tendo acabado de percorrer a largura da via ocupada pelos autocarros, surgiu à sua frente o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula QM-...-..., conduzido pelo segurado da demandada, FF;

g) Tendo embatido na zona da roda dianteira direita do veículo, após o que foi projectado para o pára-brisas do veículo, onde embateu com a cabeça, acabando por cair no chão, entre os dois referidos autocarros;

h) O Autor sofreu ferimentos na cabeça e no membro inferior direito;

i) O local do acidente descrevia uma recta, com inclinação ascendente (atendo o sentido de trânsito do veículo segurado), e de boa visibilidade;

j) A via possuía a largura de 9,55 m, comportando duas hemifaixas de rodagem, uma para cada sentido de trânsito;

k) O piso encontrava-se seco e em bom estado de conservação;

l) O condutor do veículo sabia que havia crianças nas imediações;

m) Como consequência directa e necessária do acidente descrito, o Autor sofreu lesões múltiplas;

n) Foi de imediato transportado para o Centro de Saúde de …, tendo daí sido transferido para a Unidade Local da Saúde da …, onde ficou internado desde 17/12/2009 até 22/12/2009;

o) Após observação e realização dos meio complementares de diagnóstico necessários à sintomatologia apresentada, foi-lhe diagnosticada uma fractura do fémur direito com lesão do fise distal;

p) De imediato foi submetido a uma intervenção cirúrgica no membro afectado para “redução fechada e fixação com dois fios de Kirscher”;

q) Após a alta hospitalar, manteve-se em casa com movimentos restritos durante cerca de 2 meses, pois o membro afectado encontrava-se engessado;

r) Só saindo da sua residência para se deslocar ao Centro de Saúde de … para fazer pensos (duas vezes por semana) ou ao serviço de ortopedia da ULSG para as respectivas consultas de controlo;

s) Teve de ser submetido a diversos exames, nomeadamente RX dos membros inferiores e TAC crânio-encefálica (12/1/2010), hemogramas, bem como aos tratamentos prescritos (antibioterapia e soroterapia);

t) No dia 08/02/2010 foi observado na Consulta de Ortopedia da Unidade Local de Saúde da … para controlo, tendo-lhe sido prescrita fisioterapia para melhor recuperação;

u) Em 01/09/2011 é novamente observado naquela unidade hospitalar;

v) Em face do diagnóstico “dismetria dos membros inferiores com encurtamento do membro inferior direito sequelar e epifisiólise traumática o distal do fémur direito”, cumprimento desigual das pernas, o doente foi referenciado ao Hospital Pediátrico de Coimbra, onde após várias consultas, foi submetido a intervenção cirúrgica em 07/11/2012;

w) Na cirurgia procedeu-se a epifisiólise definitiva distal do fémur e proximal da tíbia esquerda (paragem de crescimento do membro contra lateral para equilibrar o encurtamento do membro inferior direito);

x) Em 06/06/2013 foi feito controlo clínico, sendo que a medida de dismetria era 2,5cm, o que correspondeu a uma recuperação de 0,5 cm em relação à dismetria inicial;

y) O Autor ostenta um encurtamento do membro inferior direito e cicatrizes que muito o desgostam;

z) Padece de dores à flexão daquele joelho e limitação de flexão e de extensão;

aa) Para além de apresentar algum engrossamento do perímetro do joelho;

bb) O encurtamento da perna direita e as cicatrizes são inestéticas, provocando aquela sequela o claudicar da perna direita;

cc) Provocando no demandante desgosto e vergonha perante outras crianças e mesmo adultos;

dd) Inibindo-se, por tais factos, de ter as brincadeiras próprias da sua idade, designadamente jogar à bola;

ee) O Autor sofreu muitas dores no ante e nos pós operatórios;

ff) E continua a sentir dores no membro inferior direito, com as alterações climáticas;

gg) Durante dois meses não frequentou a escola;

hh) E necessitou de ajuda de terceira pessoa para realizar as mais elementares necessidades de higiene pessoal diária e vestir-se;

ii) As cicatrizes que hoje ostenta no seu corpo marcam-no do ponto de vista estético e psicológico, desgostando-o e amargurando-o;

jj) À data do acidente o Autor tinha 10 anos de idade;

kk) Era uma criança saudável e com grande alegria de viver;

ll) Desde o acidente passou a ser uma criança triste e taciturna;

mm) Após o acidente sofreu a angústia de não poder fazer as actividades próprias das crianças da sua idade;

nn) Sofreu dores com os ferimentos e os tratamentos posteriores;

oo) Viu-se forçado a fazer vários exames médicos e consultas, que se prolongaram no tempo;

pp) A mãe do Autor, à data do acidente, trabalhava, tendo deixado de trabalhar para socorrer o seu filho;

qq) Em consequência do acidente, face à projecção e queda ao chão, partiu os óculos que envergava, tendo despendido 285,00€ com a aquisição de outros idênticos;

rr) E despendeu em medicamentos a quantia de 45,70€;

ss) O Autor CC, em consequência das lesões sofridas no acidente, apresenta actualmente a seguintes queixas: a) dores fortes e breves no joelho direito, que aparecem com as alterações climáticas (frio), que reclamam a administração de Brufen® em SOS e aplicação de Picalm®; b) esporadicamente, inchaço no joelho direito, que resolve com a administração de anti-inflamatório (Prostan®);

tt) Ao exame objectivo, apresenta marcha discretamente claudicante (não apoiando convenientemente o pé direito no chão), sem auxílio, nem apoio;

uu) Em consequência das lesões sofridas no acidente, apresenta actualmente a seguintes sequelas:

a. No membro inferior direito:

i. Encurtamento clinico de 2 cm; ligeiro défice na flexão do joelho (faz – 10º comparativamente com o membro contra lateral); ligeiro défice de extensão do joelho (faz – 5º comparativamente ao membro contra lateral); dor à palpação da face posterior do joelho, o qual não apresenta instabilidade ligamentar;

ii. Cicatrizes: cicatriz rosada, pouco aparente, na face lateral do joelho, medindo 1cm diâmetro; cicatriz rosada, pouco aparente, na face medial do joelho, medindo 1cm de diâmetro;

b. No membro inferior esquerdo:

i. Amiotrofia de 1 cm da coxa (relativamente à contra lateral);

ii. Cicatrizes: cicatriz rosada, pouco aparente, linear, longitudinal, na face do joelho, medindo 2cm de comprimento; vestígio cicatricial, rosado, na face lateral do joelho, medindo 7 mm de diâmetro; duas cicatrizes rosadas, pouco aparentes, longitudinais, na face medial do joelho, a maior medindo 22 mm de comprimento, por 3 mm de largura, e a menor medindo 20 mm de comprimento, por 5 mm de largura;

vv) As lesões que sofreu em consequência do acidente de viação consolidaram-se médico-legalmente no dia 15 de Dezembro de 2012 (após cirurgia para encurtamento do membro inferior esquerdo);

ww) Em consequência das lesões sofridas, o Autor CC esteve internado e em repouso absoluto na sua residência durante 60 dias – período este correspondente médico-legalmente ao défice funcional temporário total;

xx) A partir desta data e durante os 1006 dias seguintes, até à data da consolidação médico-legal das lesões, o Autor efectuou tratamentos e foi seguido em consultas, passando a dispor de algum grau de autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social – período este correspondente médico-legalmente ao défice funcional temporário parcial;

yy) As lesões sofridas tiveram repercussão na actividade escolar, tendo visto a sua autonomia totalmente limitada nos 45 dias seguintes à ocorrência do acidente - período este correspondente médico-legalmente à repercussão temporária na actividade escolar total, em que esteve internado no hospital e em repouso absoluto na sua residência;

zz) A partir desta data e durante os 616 dias seguintes o Autor passou a dispor de algum grau de autonomia para realização das mesmas actividades (escolares), ainda que com limitações - período este correspondente médico-legalmente à repercussão temporária na actividade escolar parcial;

aaa) O Autor CC, em consequência das lesões sofridas, desde a data do acidente e até à data da consolidação médico-legal das lesões, tendo em conta as lesões resultantes, o tipo de traumatismo e os tratamentos efectuados, sofreu dores que foram quantificadas médico-legalmente no grau 4 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente;

bbb) Em consequência das sequelas de que ficou portador, nomeadamente do encurtamento do membro inferior direito (enquadrável no Cap. III-C, ponto 7, em código Mc0703 da Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil) e de gonalgia à direita (enquadrável no Cap. III-F, ponto 13, em código Mf 1310 da Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil), o Autor ficou portador de um défice funcional permanente na sua integridade físico-psíquica, correspondente ao anteriormente designado por incapacidade permanente geral, avaliado relativamente à capacidade integral do indivíduo (100 pontos) e considerando a globalidade das sequelas e a experiência médico-legal relativamente a estes casos, tendo como elemento indicativo a referência à Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil, de 3 pontos;

ccc) As sequelas de que ficou portador são compatíveis com o exercício da sua actividade escolar habitual, mas implicam esforços suplementares na disciplina de desporto escolar ou em qualquer outra que envolva esforços do membro inferior direito;

ddd) As sequelas de que ficou portador, em particular no que concerne aos vestígios cicatriciais, à amiotrofia, ao encurtamento do membro inferior e à ligeira claudicação, afectam a sua imagem, quer em relação a si próprio, quer em relação a terceiros, acarretando um dano estético avaliado médico-legalmente no grau 3 de uma escala de 7 graus de gravidade crescente;

eee) Para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas de que ficou portador, tem necessidade de recorrer regularmente a consultas de ortopedia e a tratamentos de fisioterapia;

fff) Do evento resultou fractura da epífise distal do fémur direito, que acometeu a placa/cartilagem de crescimento desse osso, causando um quadro de epifisíolise pós-traumática;

ggg) Tal pode condicionar a paragem prematura do crescimento ósseo, completa ou parcial, originando alterações do comprimento do membro afectado (dismetrias), bem como deformidades angulares;

hhh) Até ao dia 22/9/2015 verificava-se um encurtamento do membro inferior direito, havendo necessidade de reavaliação pelos 20 anos de idade, altura em que terminará o processo de desenvolvimento e crescimento ósseo (havendo cessação fisiológica da actividade da placa/cartilagem de crescimento);

iii) Podendo, nessa altura, haver lugar à realização de intervenções cirúrgicas e tratamentos, por forma a tentar que seja recuperada a perda de qualidade de vida da situação decorrente do acidente, em particular a resultante do encurtamento do membro inferior direito;

jjj) Tais intervenções e tratamentos poderão determinar o pagamento de honorários a cirurgiões, enfermeiros, estadias em estabelecimentos de saúde para o efeito, medicamentos e transportes.


E como não provada a seguinte:

a) O acidente de viação tivesse ocorrido cerca das 10h e 49m;

b) E seguir o caminho de casa;

c) Ao ter verificado que não circulava qualquer veículo nas imediações iniciou a travessia da rua;

d) Nesse momento, de forma totalmente inesperada e a uma velocidade superior a 50 km/h, surgiu o automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula QM-...-...;

e) O condutor do veículo “QM” no momento do atropelamento encontrava-se ao telemóvel;

f) Circulava com desatenção e velocidade excessivamente superior a 50 km/h;

g) Factos aqueles que impediram o condutor do “QM” de ver o demandante que atravessava a faixa de rodagem;

h) Que assim o atingiu com a parte frontal direita do veículo;

i) O embate deu-se com tremenda violência;

j) Existisse sinalização vertical de aproximação de um estabelecimento de ensino;

k) No que às condições climatéricas diz respeito cumpre referir que, naquele momento e local, havia boa visibilidade solar;

l) O condutor do veículo habitasse na …;

m) Ainda hoje, passado tanto tempo sobre a data do acidente, o demandante continua a sofrer dores e limitações do membro inferior esquerdo que o impedem de fazer a sua vida normal; E que lhe exigem diariamente um maior esforço para o desempenho da sua actividade escolar;

n) O demandante não consegue realizar determinadas brincadeiras normais e correntes do dia-a-dia, designadamente: jogar futebol; subir e descer escadas com alguma rapidez; gestos simples tais como correr; não consegue estar muito tempo em pé, provocando-lhe mal-estar;

o) Em consequência do acidente, face à projecção e arrastamento no solo danificou irremediavelmente as roupas e calçado, as quais, face aos valores de mercado correntes, se quantificam em: jeans 30,00€, camisola 25,00€, casaco 60,00€, ténis 40,00€, num total de 440,00€.


III - DIREITO

1. Como é sabido, e flui do disposto nos arts. 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do C. P. Civil, o âmbito do recurso é fixado em função das conclusões da alegação do recorrente, circunscrevendo-se, exceptuadas as de conhecimento oficioso, às questões aí equacionadas, sendo certo que o conhecimento e solução diferidos a uma(s) poderá tornar prejudicada a apreciação de outra(s).

De tal sorte, e tendo em mente o quadro de proposições com que o aqui Recorrente finda a sua douta minuta alegatória, alcança-se que, ao fim e ao resto, são as que seguem as questões em tal contexto suscitadas:

1 – Saber se o Tribunal “ a quo”, na negativa decisão por que se determinou, olvidou uma interpretação progressista e actualista dos arts. 505.º e 570.º, do Código Civil, as directivas comunitárias e a mais recente doutrina; e

2 – saber se, na eventualidade de procedência do recurso, os montantes indemnizatórios fixados ao A., a admitir-se a sua eventual redução relativamente àqueles que foram arbitrados pela 1.ª instância, ainda assim deverão ser fixados, conforme esta, ou seja, de acordo com a equidade e atendendo às circunstâncias concretas do caso em apreço.

Vejamos, pois.

2. No tocante à primeira equacionada questão – relembre-se: saber se o acórdão ora recorrido olvidou uma interpretação progressista e actualista dos arts. 505.º e 570.º, do Código Civil, as directivas comunitárias e a mais recente doutrina – resulta de tal aresto que, preliminarmente, nele se passou a considerar e descrever – com plenos acerto e detalhe, desde já se diga -- as doutrinas interpretativas que a respeito do regime normativo decorrente de tais preceitos se vêm manifestando, quais sejam:

- a chamada “tese clássica ou tradicional” [2], tendo por principais defensores Pires de Lima e Antunes Varela[3], e perfilhada, “una voce”, pela nossa jurisprudência, notadamente deste Supremo Tribunal, até à prolação do seu Acórdão de 14.10.2007[4]; e

- a também denominada “tese actualista ou progressista” [5], a qual, antes sustentada, entre outros, por Vaz Serra[6], ganhou renovado vigor com Calvão da Silva[7], e bem assim, José Carlos Brandão Proença[8], vindo a obter consagração no apontado aresto deste Alto Tribunal, e sucessivamente replicado em vários outros arestos, não só do mesmo Tribunal, mas até dos diversos Tribunais da Relação. Hodiernamente, podemos dizer até, que, por princípio, em abstracto, são cada vez mais recorrentes as decisões deste Supremo que a admitem[9], ainda que – como correctamente se observa e largamente se ilustra no acórdão ora ventilado - , “[…] as decisões proferidas não a aplicam em termos concretos, acabando por concluir que, no caso que analisam, não resultou demostrado que o risco de circulação do veículo tivesse contribuído para o acidente.”

2.1 Pois bem, nestas mesmas águas navegou também o douto acórdão a que nos atemos, sendo que, a dado passo, se oferece ler[10] :

- “Poderemos até admitir, em tese, e tendo em conta as preocupações e argumentos a que faz apelo o citado Acórdão de 04/10/2007, a possibilidade de concorrência entre a responsabilidade pelo risco e o facto de lesado em termos de fazer valer a responsabilidade assente no risco não obstante a existência de facto de lesado que, em termos de causalidade, contribuiu para o acidente. E mais adiante[11]: “ […] perante a infinidade de casos e situações com os quais nos poderemos deparar, não poderemos deixar de admitir a possibilidade de surgir um caso ou situação cujos contornos e circunstâncias concretas permitam afirmar que no processo causal que dá origem a determinado acidente teve intervenção, não só um facto do lesado, mas também o risco próprio da circulação do veículo, em termos de poder concluir que ambos esses factores contribuíram e deram causa ao acidente.”

Todavia, isto posto, este teórico enquadramento vertido, passando o acórdão a incidir sobre o caso em apreciação, logo se exarou: “Mas, salvo o devido respeito, não é isso que acontece no caso sub judice.”

E entrando, sem mais, na justificação desta negativa asserção nele se escreveu[12]:

- “Na verdade, o acidente aqui em causa ficou a dever-se exclusivamente ao lesado (o Autor) sem que se consiga detectar na matéria de facto provada qualquer facto que nos permita configurar a possibilidade de o risco próprio da circulação do veículo também ter contribuído para a verificação do acidente.

Importa notar que o embate nem sequer foi determinado por qualquer movimento do veículo que o tivesse impulsionado ao encontro do menor lesado; foi o próprio lesado que se impulsionoucom a velocidade própria de quem vai a corrercontra a parte lateral do veículo que, nesse momento, passava no local. Na realidade, o menor foi de encontro ao veículo como teria ido de encontro a qualquer pessoa que ali passasse naquele momento, sem que se vislumbre qualquer interferência do risco próprio da circulação do veículo no processo causal que veio a culminar no acidente.

A admitir-se que, nestas circunstâncias, o detentor do veículo continuaria a responder, com base no risco, pelo evento danoso, tal significaria que, na prática, a responsabilidade pelo risco nunca seria excluída, uma vez que, a partir do momento em que um veículo estivesse envolvido no acidente, sempre se deveria considerar que, não obstante a culpa evidente do lesado, o risco próprio do veículo nunca seria alheio à verificação do facto danoso; tal risco estaria sempre presente pela mera circunstância de o veículo se ver envolvido no acidente. Ora, parece-nos claro que um tal entendimento não tem qualquer apoio legal e não foi querido e pretendido pelo legislador. E, se é evidente que tal entendimento não pode ser acolhido em termos gerais, também nos parece que a mera circunstância de o lesado ser menor não será bastante para determinar, só por si, a responsabilidade pelo risco do detentor do veículo nos casos em que o acidente ocorreu tão só e apenas por facto imputável ao lesado.”

Um passo adiante se plasmando, em natural corolário deste entendimento, “Assim, não tendo ficado provada a culpa do condutor do veículo e estando excluída a responsabilidade pelo risco – em virtude de o acidente ter ocorrido por causa imputável ao lesado (o Autor) – nenhuma responsabilidade poderá ser atribuída à Ré (Seguradora do veículo) que, como tal, terá que ser absolvida do pedido.”

Frente a toda esta explanação, e como os sublinhados de nossa iniciativa apostos ao respectivo teor já indicia, concordamos inteiramente com a mesma, designadamente que, qualquer que seja a interpretação que se faça a respeito do constante do art. 505.º, do Cód. Civil, “in casu” sempre o risco ínsito à existência e circulação do veículo automóvel envolvido se terá de haver por necessária e inevitavelmente excluído, na medida em que, foi a conduta temerária do A. que, única e exclusivamente, esteve na génese do acidente que o vitimou. Aquele e o seu condutor – binómio a ter em consideração, conforme ensino de Antunes Varela[13], na aferição dos riscos próprios de veículo-, nenhuma intervenção tiveram no processo causal do sinistro, apenas nele se perfilando como elementos acidentais, sem qualquer efectiva, real, contribuição para a respectiva ocorrência.

Na verdade, e como na transcrita explanação também se salienta, nem sequer foi o veículo que, na sua marcha, embateu, “apanhou” – permita-se-nos a expressão – o menor, mas foi este que, na sua imprudente movimentação, como se a estrada só tivesse, e exclusivamente para si, a linha por ele, correndo, em vista prosseguir para alcançar o “seu” autocarro de transporte, do outro lado dessa via estacionado.

Na sua alegação, o A. obtempera, a este respeito, que no processo dinâmico que levou à eclosão do sinistro não deixou de se repercutir o comportamento omissivo do automobilista e segurado da Ré. E isto, por que – e citamos – “[…] não podia ele ignorar a imprevisibilidade do comportamento das crianças que frequentam o local, que se situa dentro de uma localidade, porta de uma escola, num meio rural, onde à falta de outros meios, as crianças passam a correr para apanhar os autocarros que os levam a casa, nomeadamente à hora de saída da escola que aliás é a hora do acidente.”

Salvo o muito respeito, dizer isto é – como sói comentar-se - dizer tudo e não dizer nada; pois, a exigir-se de um condutor essa dita previdente conduta, para obviar a qualquer situação como a dos autos, das duas uma: ou imobilizava ele, pura e simplesmente, o veículo até que nenhum autocarro de transporte ali se encontrasse, ou, então, teria de, inflectindo nos seus propósitos, utilizar outra via para aceder ao seu destino – tal, já se vê, a ser essa alternativa possível.

Como logo se alcança, nenhum destes comportamentos se quadra razoável e muito menos exigível, pelo que, como se referiu – e ora se insiste - , nenhuma relevante e operativa intervenção, nenhuma eficiência causal, referenciável aos riscos próprios do veículo, se pode, em recta visão, considerar na produção do evento, no qual, apenas mercê da sua infeliz e exclusiva actuação, o A. sofreu os sérios danos que o vitimaram.

De tudo o exposto, pois, e salvo sempre melhor opinativo, não vemos como não concluir que, no acórdão em exame, todos os possíveis sentidos hermenêuticos conformáveis a partir do conjunto normativo formado pelos preditos arts. 505.º e 570.º, do Cod. Civil – sem excepção, pois, para o filiado na corrente “progressista e actualista” - , foram devida e cabalmente considerados, posto que, como visto, sem nenhum diferente resultado na decisão da lide, dada a inverificação do pressuposto, por eles sem excepção demandado – não ser o acidente totalmente devido, atribuível, à actuação – com culpa ou não - , do peão acidentado.

Ora, e como se consignou, no caso em exame, apenas sobre o A. a causação do acidente se pode fazer recair, surgindo a intervenção do veículo – que em boa verdade, nem sequer se pode reputar “atropelante” daquele - , nesse plano, de todo indiferente para tal evento.

No aspecto ora em atinência, a douta objecção recursória, portanto, queda-se insubsistente.

2.2. E o mesmo se diga, mutatis mutandis””, no que tange ao outro termo da mesma objecção dirigida pelo Recorrente ao ora enfocado acórdão – ter olvidado as directivas comunitárias.

E para assim concluir, nada melhor se nos perspectiva que verter aqui a explanação, no conspecto em apreço, efectuada no Ac. da Rel. de Guimarães, sobre o qual versou o já retro mencionado Ac. deste Supremo de 1.06.2017, douto aresto este onde se reproduz tal explanação.

Ora, nesta, após se referir, citando, o também já aludido Ac. do S:T.J. de 4.10.2007 - na parte em que se sustenta, com reporte ao texto do art. 505.º do Cód. Civil, e seu aferível sentido ou significado – que “Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas.", após esta citação – dizíamos - , de imediato se acrescenta nessa mesma explanação o que segue[14]:

- “ Efectivamente, esta “nova tese interpretativa” teve a sua origem em directivas comunitárias no domínio do seguro automóvel, designadamente a s directivas 72/166/CEE, de 24 de Abril (primeira directiva), 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda directiva), 90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990 (terceira directiva), 2000/26/CE, de 16 de Maio de 2000 (quarta directiva) e 2005/14/CE, de 11 de Maio (quinta directiva) .

    Efectivamente, resulta do teor das mesmas que “(…) os montantes até cujo limite o seguro é obrigatório devem permitir, em toda e qualquer circunstância, que seja garantida às vítimas uma indemnização suficiente, seja qual for o Estado-membro onde o sinistro ocorra (…) (5º Considerando da Segunda Directiva) e que e deve ter por base ”um nível elevado de protecção do consumidor” (16º Considerando da Terceira Directiva).

      No entanto, tal como defende Moitinho de Almeida, “(…) a jurisprudência comunitária deve ser precisada. Por um lado, não é claro que ela se aplica aos condutores de veículos motorizados. Quanto a estes pode entender-se que por terem criado o risco da circulação automóvel e dele serem beneficiários devem usufruir de um regime menos favorável do que gozam os restantes utentes não motorizados das vias públicas. (…) Por outro lado, não é de excluir que, excepcionalmente, o Tribunal de Justiça mostre uma abertura a razões de prevenção e admita, em casos limite, em que o comportamento imprevisível do lesado torne o dano inevitável, a indemnização possa ser excluída.”

     Além disso, ainda em sede de direito comunitário, deve atender-se a que resulta também expressamente da Quinta Directiva que é da competência dos Estados-Membros a definição dos pressupostos da responsabilidade civil. Igualmente que, em complemento com as citadas Directivas, a Convenção de Estrasburgo, de 14 de Abril de 1973 (do Conselho da Europa), relativa à responsabilidade civil em caso de danos causados por veículos automóveis, estabelece, no art. 5.º, n.º 1, que, tidas em conta as circunstâncias, a indemnização possa ser reduzida ou mesmo excluída quando o lesado tenha culposamente contribuído para a produção do dano.

    Aliás, nesse sentido, e tal como se dá conta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2012[15]acima citado, o Tribunal de Justiça decidiu, no Acórdão de 09/06/11, no âmbito do processo de reenvio prejudicial nº C-409/09, que tais Directivas "devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano." Acrescenta-se inclusivamente no mesmo Acórdão, por referência a uma situação paralela a esta aqui em apreciação nos presentes autos, que "A legislação nacional (portuguesa) aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente, num contexto como o do presente processo (morte de um menor de tenra idade que tripulava uma bicicleta e que circulava em contramão, tendo embatido num veículo automóvel sem qualquer culpa do respectivo condutor), quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vitima."

Esta explanação vazada, sem dúvida a pronta ilação de que no acórdão ora sob censura, ainda que não se tendo abordado, expressamente, o supradito direito comunitário, corporizado nas também mencionadas directivas, verdade é que, não excluindo tal direito a possibilidade de o nosso ordenamento nacional regular a responsabilidade civil, nos casos de sinistros com a intervenção de veículo automóvel – como o dos autos - , nos moldes em que, segundo os termos das disposições conjugadas dos arts. 505.º e 570.º, do Cód. Civil, essa regulação (à luz da interpretação que, como visto, tal acórdão equacionou), se acha efectuada – a pronta ilação, pois, que o dito acórdão não se houve ao arrepio de tais directivas.

Tanto assim, anote-se ainda, que – como ressalvado no supra indicado Ac. deste Supremo de Alto Tribunal de 17.05.2012, - “[…] posto que de lege ferenda se possa justificar uma solução que amplie a protecção conferida aos lesados em situação de maior vulnerabilidade (à semelhança do que já se operou noutros ordenamentos jurídicos), o certo é que, no plano do direito constituído, não se mostra viável uma solução que admita a concorrência entre a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo (e respectiva seguradora) e a contribuição exclusiva do lesado para a ocorrência do dano[16].”

A este ponto chegado, eis que – como avançámos –, também no aspecto ora analisado o acórdão recorrido não incorreu no desacerto que lhe vem apontado, pelo que, em suma, a objecção recursória que vimos considerando, “in totum” naufraga.

3. E de tal sorte, impondo-se confirmar o douto aresto recorrido, ao julgar improcedente a acção, absolvendo da lide a Ré, a apreciação da segunda questão acima ordenada surge prejudicada, pelo que, sem mais, se finda com a seguinte

IV – DECISÃO 

                                           

Termos em que, negando provimento à revista, confirma-se o decidido no acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 14 de dezembro de 2018

Helder Almeida (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Salazar Casanova

___________


[1] Rel.: Helder Almeida
   Adjs.: Exm.ª Conselheira Maria dos Prazeres Beleza e
              Exm.º Conselheiro Salazar Casanova.
[2] Nos termos da qual, o art. 505.º do Cód. Civil não admite o concurso entre o risco do veículo e qualquer das três circunstâncias mencionadas na sua parte final, designadamente, a responsabilidade causal do lesado, sendo o estatuído no art. 570.º, por sua vez, apenas aplicável ao concurso de culpas.
 [3] Cujo pensamento se acha nomeadamente explanado no seu Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., C. Editora, pp. 517 e ss.; no mesmo sentido, avulta ainda, a nível doutrinário, Dario Martins de Almeida, Manual de acidentes de Viação, 3.ª ed., Livraria Almedina, pp- 352 e ss..
  [4] Proferido no Proc. n.º 07B1710, e acessível in dgsi/Net, também Col./STJ, Tomo III, pp. 82 e ss., e, ainda, R.L.J., Ano 137.º, pp. 35 e ss..
  [5] Segundo cujo ideário o art. 505.º do Cód. Civil consagra a regra do concurso da culpa do lesado ou terceiro com o risco próprio da circulação do veículo, ou seja, a responsabilidade objectiva do detentor pode permanecer não obstante o evento danoso ter sido devido a facto do lesado ou de terceiro, havendo a esse concurso que aplicar, supletivamente, o disposto no art. 570.º, do Cód. Civil; logo, essa responsabilidade só resulta excluída quando tal evento for de atribuir unicamente ao próprio lesado ou a esse terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do dito veículo.
 [6] A título meramente exemplificativo, R.L.J., Ano 99.º, pp. 364, nota 1, e 373, nota 2.
 [7] Cfr. R.L.J., Ano n.º 134.º, pp. 112 e ss., e Ano n.º 137.º, pp. 49 e ss., em anotação ao pré aludido Ac. de 14.10.2007.
 [8] Cfr. A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Colecção teses, Almedina, pp. 814 e ss..
 [9] Como das mais recentes e paradigmáticas, surge-nos de referenciar o Ac. desta 7.ª Secção, de 1.06.2017, proferido no Proc. n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1,e acessível in dgsi./Net., em cuja súmula é dado ler que “O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura.”
[10] Cfr. fls. 250 dos autos, 21 do acórdão.
[11] Cfr. fls. 250 v.º, 22 v.º do acórdão.
[12] Sublinhados nossos.
 [13] Cfr. Das obrigações em geral, Vol. I, 7.ª ed., Almedina, pág. 664.
[14] Sublinhados nossos.
 [15] Proferido no Proc. n.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1, e acessível in dgsi./Net.               [16] Sublinhado nosso.