Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A316
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Nº do Documento: SJ200703130316
Data do Acordão: 03/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. Tendo nas conclusões das alegações de apelação sido levantada a questão da alteração da decisão da matéria de facto, não pode a Relação limitar-se a usar a remissão prevista no nº 5 do art. 713º do CPC.
II. O uso deste dispositivo pressupõe que as questões colocadas nas conclusões dos apelantes tenham já sido colocadas na sentença recorrida, de modo a que se evite a repetição da fundamentação, o que não é o caso do nº I.
III. Neste, há um uso ilegal do instituto do art. 713º, nº 5 mencionado, instituto este que constitui excepção à regra do dever de decisão de todas as questões levantadas pelas partes com a devida fundamentação na sentença prevista nos arts. 659º e 660º, nº 2 do mesmo diploma legal.
IV. Tal uso indevido constitui uma nulidade por omissão de pronúncia prevista na primeira parte da al. d) do nº 1 do art. 668º do mesmo código, pela Relação a suprir pela mesma, nos termos do art. 731º, nº 2 do mesmo diploma .
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA e esposa, BB, deduzem oposição, na Vara de Competência Mista de Coimbra, à execução que lhes move a Caixa Geral de Depósitos, S.A., pedindo a extinção da execução, invocando, para tanto, em súmula, os seguintes fundamentos:
- Os oponentes contraíram junto da CGD dois empréstimos para a habitação, cujo saldo global era de cerca de 100.000 euros;
- Por via da situação duradoura de desemprego, entraram em atraso no pagamento das prestações e deixaram por liquidar o saldo do cartão de crédito e da conta de depósitos à ordem para prover às despesas correntes da família;
- Fez o oponente marido propostas de solução à CGD, às quais ela não respondeu e, quando no verão de 2002, recebeu uma proposta de aquisição do imóvel, propôs à CGD afectar a totalidade do preço ao pagamento dos valores em dívida, deduzido da comissão a pagar à imobiliária. Apesar das suas insistências, a CGD nunca respondeu;
- Teve de marcar a escritura do imóvel e, comunicado o facto à CGD, chegou o dia da escritura e só nesse dia, pelas 10 horas, é que o oponente marido foi contactado para assinar um contrato de mútuo de 20.000 euros, fazendo-se acompanhar pela esposa e por dois fiadores;
- É nesse período que é celebrado esse contrato, sem que eles tivessem tomado conhecimento prévio do seu conteúdo e com recusa de qualquer negociação da CGD;
- Foi lido o contrato, mas não foram dadas quaisquer explicações nem a cópia do seu texto, exigindo-lhe a CGD mais cerca de 5.000 euros para além da quantia em dívida;
- O contrato é anulável por estado de necessidade e coacção.

A exequente contestou, aduzindo, em síntese:
- As negociações tendentes à celebração deste contrato decorreram, pelo menos, durante dois meses;
- Aos executados assistia inteira liberdade na aceitação ou não do contrato que lhes foi presente, o que é de simples compreensão;
- Não foi exercida sobre eles qualquer coacção, tanto mais que não invocam sequer mal, ameaça ou receio contra eles perpetrado para os determinar à outorga do contrato.

Dispensada a audiência preliminar, foi saneado e condensado o processo, com reclamação parcialmente atendida.
Realizada a audiência de julgamento e decidida a matéria de facto controvertida, foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição à execução.
Desta decisão recorrem os ditos oponentes, tendo a respectiva apelação sido julgada improcedente.
Mais uma vez inconformados, vieram os oponentes interpor a presente revista, tendo nas suas alegações formulado conclusões que por falta de concisão não serão aqui reproduzidas.
A recorrida contra-alegou defendendo a manutenção do decidido a confirmação do decidido.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Das conclusões dos aqui recorrentes se vê que os mesmos, para conhecer neste recurso, levantam as seguintes questões:
a) O acórdão recorrido é nulo por não ter conhecido da questão que lhe fora colocada nas alegações da apelação no sentido de que a resposta dada ao quesito 6º extrapolara da pergunta formulada e, ainda , no sentido de que a mesma resposta está em contradição com o teor do depoimento em que fundamentalmente se apoia e com o que consta de documento escrito junto aos autos ?
b) Ao contrato ajuizado deve ser aplicado o disposto no art. 6º, nº 1 do D.L nº 359/91 de 21/09, e não tendo a recorrida provado o cumprimento daquele, deve o contrato ser declarado nulo ?
c) Não tendo o recorrido provado que procedeu à comunicação das cláusulas do contrato, nos termos do art. 5º do D.L. Nº 446/85 de25/10, deve o contrato ser julgado inexistente ?

Mas antes de mais, há que indicar a matéria de facto que as instâncias deram como provada e que é a seguinte:
1. Por contrato de 29.10.02, a Caixa Geral de Depósitos declara mutuar a AA e esposa, BB, o montante de 20.858 euros, pelo prazo de 72 meses, à taxa de juro de 10,45%, ajustável em função das condições de mercado (dos. fls. 20 a 23 da execução) (a).
2. CC e esposa, DD, no contrato aludido em a), declaram-se solidariamente responsáveis perante a CGD, como fiadores e principais pagadores (doc. fls. 20 a 23 da execução) (b).
3. No contrato aludido em a) está clausulado que a CGD poderá rescindir o contrato em caso de incumprimento de qualquer obrigação assumida pelos mutuários (doc. fls. 20 a 23 da execução) (c).
4. Desde 29.06.03 que os mutuários não pagam as prestações acordadas (d).
5. Antes do contrato referido em a), os executados AA e esposa tinham contraído junto da CGD dois empréstimos para a habitação, cujo débito rondava os 100.000 euros (e).
6. No contrato está clausulado que, em caso de mora, os juros serão calculados à taxa mais elevada de juros remuneratórios que, em cada um dos dias se verificar a mora, estiver em vigor na caixa credora nas operações activas da mesma natureza (no momento da outorga do contrato era de 13,95%), acrescida de uma sobretaxa de 4% ao ano, a título de cláusula penal. Em caso de incumprimento, a Caixa reserva-se a faculdade de, a todo o tempo, capitalizar juros remuneratórios correspondente a um período não inferior a três meses e juros moratórios correspondentes a um período não inferior a um ano, adicionando tais juros ao capital em dívida, passando aqueles a seguir todo o regime deste (f).
7. Por força de uma situação de desemprego do executado AA, os executados entraram numa situação de atraso no pagamento das prestações dos empréstimos mencionados em e) (1º).
8. Passaram a ter saldo negativo na conta de depósitos à ordem e deixaram por liquidar o saldo do cartão de crédito (2º).
9. Os executados, no Verão de 2002, comunicaram à CGD a sua intenção de vender o imóvel e que os compradores iriam obter empréstimo junto do BCP (2º-B).
10. Os executados, para obter o acordo da CGD à venda, comprometeram-se a afectar a totalidade do preço a receber, deduzido da comissão imobiliária, à liquidação dos valores em débito (2º-C).
11. Obtiveram comprador para o imóvel e comunicaram à CGD (3º).
12. O comprador do imóvel marcou a escritura para 29 de Outubro de 2002 e, uma semana antes, os executados comunicaram à CGD (4º).
13. Os executados sabiam, desde o Verão de 2002, que a CGD dava o seu assentimento à venda do imóvel e à extinção da hipoteca mediante a integral liquidação das responsabilidades do executado derivadas dos empréstimos referidos em e) (5º).
14. O contrato referido em a) teve em vista a liquidação dos empréstimos referidos em e) e foi assinado da parte da manhã do dia 29 de Outubro de 2002, sendo a escritura outorgada nesse mesmo dia da parte da tarde (6º).
15. A CGD aceitou como fiadores do contrato aludido em a) os pais do executado AA, pessoas sem meios de fortuna (7º e 8º).
16. Esse contrato corresponde ao modelo de contrato usado pela CGD para operações daquele tipo (9º).
15. O cheque para pagamento do imóvel foi directamente para a CGD (13º).
16. O acordo da CGD à venda do imóvel implicava que os executados liquidassem toda a responsabilidade derivada dos contratos referidos em e) (14º).
17. O saldo negativo da conta de depósitos à ordem e do cartão de crédito ocorreu para os oponentes proverem às despesas correntes do agregado familiar (16º).

Vejamos agora cada uma das concretas questões acima referidas como objecto deste recurso.
a) Nesta primeira questão defendem os recorrentes que o douto acórdão recorrido é nulo por não ter tomado conhecimento da questão levantada nas alegações da apelação no sentido de que a resposta dada ao quesito 6º extrapolava do que ali se perguntara, e que, além disso, a mesma resposta estava em contradição com o teor do depoimento em que fundamentalmente se apoiara e com o que consta de documento escrito junto aos autos.
Para a decisão desta questão há que ponderar a dinâmica do processo seguinte:
O quesito 6º da base instrutória tem a redacção seguinte:
“ Cerca das 10 horas o executado marido é contactado por um funcionário da CGD para assinar o contrato referido em a), acompanhado da esposa e de dois fiadores ?”
A resposta dada pela 1ª instância foi a seguinte:
“ Provado que o contrato referido em a) teve em vista a liquidação dos empréstimos referidos em e) e foi assinado da parte da manhã do dia 29 de Outubro de 2002, sendo a escritura outorgada nesse mesmo dia da parte da tarde“.
Por outro lado, nas conclusões das alegações dos apelantes e aqui recorrentes consta, além de outras duas conclusões, a seguinte:
“ Deve a resposta ao quesito 6º ser dada como não escrita ou, em alternativa, deve ser alterada em conformidade com o alegado supra, ou, ainda, em alternativa, ser reapreciada a matéria, nos termos dos arts. 668º-1 d), 712º-1 a) e 712º-4 do CPC.“
No douto acórdão recorrido consta no início da parte decisória o seguinte:
“ Nos termos do disposto no art. 713º, nº 5 do CPC, confirmamos inteiramente e sem qualquer declaração de voto o julgado em 1ª instância, quer quanto à decisão, quer quanto aos seus fundamentos, para os quais se remete, dado que a sentença ( incluindo o julgado de facto e de direito ) não nos merece alguma censura “.
Segue-se no douto acórdão considerações sobre a decisão da matéria de direito também posta em causa nas referidas conclusões das alegações dos apelantes.
Por outro lado, vemos que o art. 668º, nº 1 al. d) prevê a causa de nulidade da sentença consistente em ter aquela omitido o conhecimento de uma questão de que cumpra conhecer.
Trata-se da sanção para a violação do dever processual previsto no nº 2 do art. 660º que manda o julgador na sentença conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua decisão, com excepção daquelas cujo conhecimento tenha ficado prejudicado pela decisão dada a outras.
Além disso, o nº 5 do art. 713º, estipula que quando a Relação confirmar inteiramente e sem qualquer declaração de voto, o julgado em 1ª instância, quer quanto à decisão, quer quanto aos respectivos fundamentos, pode o acórdão limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada.
Esta disposição constitui uma excepção à regra dos arts. 659º e 660º que manda conhecer de todas as questões levantadas pelas partes com a especificação dos respectivos fundamentos e foi introduzida como inovação pela reforma de 1995-1996.
Esta inovação foi determinada pelo propósito do legislador, expresso no relatório preambular do Dec.-Lei nº 329º-A/95 de 12 de Dezembro, de simplificar a estrutura formal dos próprios acórdãos, caminhando decididamente no sentido do aligeiramento do relatório, permitindo a fundamentação por simples remissão para os termos da decisão recorrida, desde que confirmada inteiramente e por unanimidade. Esta simplificação visa, em última análise, contribuir para a celeridade da fase dos recursos – cfr. Armindo Ribeiro Mendes, “Os Recurso no Código de Processo Civil Revisto “, LEX, 1998, p.88.
Além disso, tal como entendeu o acórdão deste tribunal de 172/2000, proferido no recurso nº 1164/99 – 2ª secção –, o art. 713º, nº 5 não prescinde de fundamentação nas decisões; evita a “repetição” da fundamentação na sua expressão literal mais repetitiva.
E tal como decidiu o acórdão deste Supremo de 14-09-2006, proferido na Revista nº 1773/06 – 2 ª secção -, a faculdade concedida pelo art. 713º, nº 5 apenas pode ser utilizada quanto às questões colocadas no recurso que tenham sido já analisadas na sentença recorrida.
Por outras palavras, diremos com Carlos Lopes do Rego, in Comentários ao Cód. de Proc. Civil, Vol. I, 2ª ed. pág. 612, que a aplicação deste instituto pressupõe que todas as questões suscitadas pelo recorrente encontrem resposta cabal na decisão recorrida.
Daqui decorre que não é legalmente possível a utilização do instituto do nº 5 do art. 713º em casos como o dos autos, em que a questão da alterabilidade da decisão da matéria de facto não tenha sido decidida na sentença de 1ª instância, pois se não pode remeter a fundamentação para uma sentença, onde não tenha sido decidida a questão em causa – alterabilidade e exorbitância da decisão da matéria de facto - que apenas foi colocada no recurso e não na 1ª instância.
O uso deste instituto indevidamente, quando a decisão apelada não apreciou a questão levantada na apelação, equivale a não conhecer a mesma questão, pois se não pode remeter para a sentença a decisão de questão ali não conhecida.
Foi assim praticada a nulidade prevista na primeira parte da al. d) do nº 1 do art. 668º, tal como vem sendo decidido na jurisprudência deste Supremo – cfr. acs. de 14-09-2006, proferido no recurso nº 1773/06 – 2ª secção.
Também Dr. Carlos Lopes do Rego acima citado entende de igual modo – cfr. obra e local citados.
Havendo sido praticada a nulidade referida, nos termos do disposto no art. 731º, nº 2, há que anular o acórdão recorrido, a fim de a Relação reformar aquela decisão, pelos mesmos juízes, se possível.
Desta forma fica prejudicado o conhecimento das restantes questões objecto da revista.

Pelo exposto, concede-se a revista pedida e, por isso, se anula o douto acórdão recorrido, nos termos e para os efeitos acima referidos.
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 13 de Março de 2007

João Camilo (relator)
Azevedo Ramos
Silva Salazar