Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2201/15.8T8CTB.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: DOAÇÃO ENTRE CÔNJUGES
REGIME APLICÁVEL
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
REGIME DE BENS
SUSPEIÇÃO
REVOGAÇÃO
SEPARAÇÃO JUDICIAL DE PESSOAS E BENS
CADUCIDADE
DIVÓRCIO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / DOAÇÕES ENTRE CASADOS / DIVÓRCIO / EFEITOS DO DIVÓRCIO.
Doutrina:
- Eduardo dos Santos, Direito da Família (1985), 378.
- J. Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 3.ª ed. (2.ª reimp.), 648.
- Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, 5.ª ed., 538 e 539.
- Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, Tomo 2, 2.ª ed. (1970), 164, nota (1).
- Pessoa Jorge, «Doações para casamento. Doação entre casados – Anteprojecto», B.M.J., 124-329.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, IV Vol., 2.ª ed., 486.
- Rita Lobo Xavier, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, 202 e ss., 487 e ss.; Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio (…), 36.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1765.º, N.º 1, 1766.º, N.º 1, AL. C), 1791.º.
*
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DO PROJECTO DE LEI 509/X, QUE ANTECEDEU A LEI 61/2008, DE 31-10, EM WWW.PARLAMENTO.PT .
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 03.03.2016, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. As doações entre casados não são admitidas sem reservas, sendo-lhes opostas, no fundo, razões idênticas às que justificam que não seja permitido alterar livremente o regime de bens.

2. Para combater as causas de suspeição destas doações constante matrimonio, está prevista a livre revogabilidade destas: a todo o tempo, sem que seja lícito renunciar a este direito – art. 1765º, nº 1, do CC.

3. Este regime não abrange, porém, as doações feitas por um cônjuge ao outro, depois de separados de pessoas e bens, uma vez que, com esta separação, cessam as referidas causas de suspeição destas doações.

4. O art. 1765º, nº 1, deve, pois, ser interpretado restritivamente, no sentido de que aí estão previstas apenas as doações entre casados não separados judicialmente de pessoas e bens.

5. Não beneficiando as doações entre cônjuges, separados de pessoas e bens, do regime especial das doações entre casados, não lhes é também aplicável o regime da caducidade, previsto no art. 1766º, nº 1, al. c), do CC.

6. De todo o modo, não faria sentido que, nesse caso, a doação caducasse com o divórcio, uma vez que a referida separação já constituía, em pé de igualdade com o divórcio, causa de caducidade da doação entre casados.

7. Por outro lado, tendo em conta que o "benefício" há-de ser recebido "em vista do casamento ou em consideração do estado de casado" – "apenas porque a razão dos benefícios era a constância do casamento" – não será a igualmente aplicável a tal doação o regime do art. 1791º do CC (onde poderiam também caber as doações entre casados).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB.

Pediu que:

a) seja declarado legítimo e exclusivo proprietário dos imóveis identificados em 3.º e dos bens móveis relacionados em 15.º;

b) seja a R. condenada a restituir os citados imóveis e móveis e a reconhecer e respeitar o direito de propriedade do A., abstendo-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito.

Como fundamento, alegou que A. e R. contraíram casamento civil no dia 00/00/2010; por sentença transitada em julgado no dia 00/00/2011 veio a ser declarada a separação de pessoas e bens do casal e, posteriormente, por sentença transitada em 00/00/2013, a separação veio a ser convertida em divórcio; na constância do matrimónio, o A. doou à R. a fracção autónoma e a garagem identificadas na acção; apesar de já se encontrarem divorciados e de já não fazerem a sua vida em comum, A. e R. acordaram em viver na mesma casa, fazendo vidas independentes, o que sucedeu durante um ano; no mês de Agosto de 2014, a R. mudou a fechadura de casa, impedindo o acesso do A.; o A. decidiu então revogar a doação anteriormente feita, o que concretizou mediante outorga de escritura pública em 25.09.2015, tendo sido concretizado o registo de aquisição a seu favor (novamente), pelo que a R. mantém a posse indevida da fracção onde habita e da respectiva garagem sem título que a legitime.

Contestou a R, alegando que, como resulta da documentação junta, a doação foi efectuada na vigência, entre os cônjuges, da separação de pessoas e bens; e se é verdade que a separação não dissolve o vínculo conjugal, também é verdade que a separação coloca termo às circunstâncias especiais que justificam a suspeição lançada sobre a liberdade do acto do doador e que justificam o regime especial de livre revogabilidade; mais, no que respeita aos bens, o art.º 1795-A do CC estabelece, na sua parte final, que a separação produz os efeitos que produziria a dissolução do casamento; nesta conformidade, tendo a doação sido efectuada em momento em que os cônjuges já se encontravam separados de pessoas e bens, encontrando-se os efeitos patrimoniais do casamento cessados, não pode o Autor lançar mão da livre revogabilidade; pelo que a doação efectuada terá de recair sob a alçada do regime geral das doações e, consequentemente, é a mesma irrevogável.

Concluiu pela improcedência da acção.

Em reconvenção, pediu que:

a) seja reconhecido o direito de propriedade da ré;

b) seja declarada a nulidade da revogação da doação;

c) seja ordenado o cancelamento registral e matricial da inscrição das fracções em nome do autor.

O autor replicou, alegando que a doação entre casados é livremente revogável a qualquer momento e com efeito retroactivo; todavia, a não se entender assim, deverá considerar-se que a doação caducou com a decretação do divórcio em 00.0.2013, nos termos do art. 1766, al. c), do CC.

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença, em que se decidiu:

a) julgar totalmente improcedente a presente acção, e, em consequência, absolver a Ré dos pedidos;

b) julgar totalmente procedente a reconvenção e, por consequência, declarando a nulidade do contrato de revogação da doação celebrado em 25.09.2015, declaro, consequentemente, a A, BB, a legítima proprietária dos imóveis descritos na CRP de ... sob o n.º 657.

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso o autor, que a Relação julgou procedente, decidindo:

a) revogar a sentença; 

b) julgar a acção procedente, declarar o autor legítimo e exclusivo proprietário dos imóveis identificados e condenar a ré a restituí-los, tal como a reconhecer e respeitar o direito de propriedade do autor, abstendo-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito;

c) julgar a reconvenção improcedente e absolver o autor/reconvindo do pedido reconvencional.

Inconformada, a ré veio pedir revista, tendo apresentado as seguintes conclusões:

I. No douto acórdão de que ora se recorre os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação, na sequência da impugnação da douta decisão do Tribunal de Primeira Instância, foram chamados a tomar posição sobre duas questões distintas:

a) Validade da revogação da doação feita pelo Autor à Ré, ora Recorrente, na pendência do matrimónio, mas na vigência da separação judicial de pessoas e bens;

b) Possibilidade de a doação ter caducado por força do divórcio que, entretanto, veio a ser decretado entre o Autor e a ora Recorrente, nos termos do art. 1766 nº 1 al. c) do Cód. Civil, sendo quanto à decisão proferida sobre esta questão que a Recorrente se insurge, sendo apenas desta parte da decisão que se recorre.

II. Chamado a pronunciar-se sobre as duas referidas questões o Tribunal da Relação de … veio proferir decisão nos seguintes termos: "como assim justifica-se a interpretação restritiva do art. 1765 nº 1 do CC no sentido de que aí estão previstas apenas as doações entre casados não separados judicialmente de pessoas e bens.

Donde, a revogação da doação teria de ser declarada nula, nos termos conjugados dos arts. 280 e 294 do CC, por não se verificar qualquer causa de revogação prevista nos arts. 970 e 974 do mesmo diploma." (confirmando assim na integra a decisão da primeira instância).

III. Contudo, a concordância entre instâncias terminou aqui, pois no que respeita à segunda questão referida, considerou o Tribunal da Relação que as causas de caducidade referidas - separação judicial de pessoas e bens e divórcio (art. 1766 nº 1 al c) - "são alternativas: se uma não puder funcionar (como é o caso da separação, que é anterior à doação), é suposto que possa funcionar a outra. Não será, pois pela aventada razão, que a caducidade por efeito do divórcio será excluída."

IV. Entende a Recorrente que o Acórdão assim proferido se encontra ferido de nulidade, nos termos da al. c) do art. 615, aplicável, ex vi al. c) do nº 1 do art. 674, ambos do Cód. de Processo Civil,

V. Porquanto o Tribunal da Relação num esquema cuja lógica nos ultrapassa e que não nos é permitido compreender, após decidir que a doação deveria ser extraída ao regime especial das doações entre casados - no que respeita à sua livre revogabilidade – admite que o regime afastado seja aplicável no que respeita às causas de caducidade, mormente, o divórcio, sem que, em momento algum, fundamente a dualidade de critérios de decisão em que baseia o raciocínio.

VI. Contendo o acórdão uma contradição entre a fundamentação e a decisão, porque o Tribunal não fundamenta o porquê de subtrair ao regime especial das doações celebradas entre os cônjuges a factualidade sub judice no que a certas consequências respeita e quanto a outras permite a aplicação do regime especial preterido ab initio.

VII. Pelo que, face à contradição verificada no texto do acórdão, entre os fundamentos da decisão - a separação judicial de pessoas e bens vigente no momento da doação - e a decisão, deve o mesmo ser declarado nulo, nulidade que, para os devidos e legais efeitos, se invoca.

VIII. Concomitantemente, ao fazer a subsunção da situação do modo como o fez - enunciada supra - o Tribunal da Relação violou o princípio da especialidade - a norma especial afasta a incidência da norma geral - lex specialis derogat legi generali, aflorado no nº 3 do art. 7 do Cód. Civil.

IX. O Autor doou à Recorrente os ditos imóveis quando já se encontravam separados judicialmente de pessoas e bens, por sentença transitada em julgado.

X. Como violou o Tribunal da Relação o estatuído nos art. 1795-A e 1794 do CC, por dos mesmos ter feito errada interpretação. O legislador ao nível das relações patrimoniais, estabeleceu que as mesmas cessam com a separação judicial de pessoas e bens, tudo se passando como se os cônjuges fossem divorciados, é óbvio que todos os actos patrimoniais praticados por aqueles, após a separação, têm de assumir uma natureza diferente, não podendo o Tribunal enquadrar as relações estabelecidas entre os dois sujeitos como casados.

XI. Como fez uma errada interpretação dos art. 969 e seguintes do Cód. Civil que estabelecem, taxativamente, os fundamentos da revogação das doações, dela não constando a caducidade, nomeadamente a caducidade por divórcio.

XII. E bem assim uma errada interpretação e aplicação do art. 1766 nº 1 al. c) e art. 9 do CC.

XIII. Porque, no entender da Relação as causas de caducidade referidas – separação judicial de pessoas e bens e divórcio - "são alternativa: se uma não poder funcionar (como é o caso da separação, que é anterior à doação), é suposto que possa funcionar a outra. Não será, pois pela aventada razão, que a caducidade por efeito do divórcio será excluída."

XIV. Sendo desta consideração conjuntamente com a interpretação actualista efectuada do conceito de "cônjuge culpado" que o Tribunal da Relação conclui pela procedência do recurso, decretando que a doação caducou pela ocorrência do divórcio.

XV. A alternatividade, derivada da utilização da conjunção "ou", é interpretada pelo Tribunal da Relação como se as causas de caducidade das doações - divórcio e separação judicial de pessoas e bens - pudessem ocorrer, numa mesma relação jurídica, em momentos distintos, uma ou outra.

XVI. Contudo a interpretação de alternatividade não tem cabimento no mundo legal sequer factual.

XVII. Pelo que a alternatividade do preceito só pode ser interpretada no sentido de que a ocorrência de uma causa exclui a outra, elas são alternativas enquanto causas de caducidade, mas a verificação de uma impede a verificação da outra, porque a esvazia de conteúdo.

Nestes termos, deve o recurso interposto ser julgado procedente e, consequentemente, ser alterada a decisão recorrida.

O autor contra-alegou, tendo concluído pela improcedência do recurso.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

No essencial, trata-se de saber se a doação feita pelo autor à ré – na pendência do matrimónio entre ambos, mas na vigência da separação judicial de pessoas e bens – caducou, por força do divórcio, depois decretado, nos termos do art. 1766º, nº 1, al. c), do CC.

III.

Estão provados os seguintes factos:

1. A. e R. contraíram casamento civil no dia 00/00/2010 (art.º 1.º da p.i.).

2. Por decisão transitada em julgado no dia 00/00/2011 veio a ser declarada a separação de pessoas e bens do casal e, posteriormente, por decisão transitada em 00/00/2013 a separação veio a ser convertida em divórcio (art.º 2.º da p.i.).

3. O A. doou à R., por contrato celebrado através de documento particular autenticado de 00 de … de 2013, os seguintes imóveis, de que era proprietário: - Fracção autónoma identificada pela letra “R” correspondente ao segundo andar esquerdo do prédio urbano sito na Quinta … ou Av. …, Lote 000, 0.º …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 657 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial 4311, com o valor patrimonial tributário de € 60.967,65; - Garagem n.º 9 identificada pela letra “I”, pertencente ao prédio sito na Quinta … ou Av. …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 657 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial 4311, com o valor patrimonial tributário de € 2.852,48 (art.º 3.º da p.i.).

4. A referida doação veio a ser registada na Conservatória do Registo Predial de ..., sob a AP. 423 de 00 de … de 2013 (art.º 4.º da p.i).

5. A fracção autónoma identificada pela letra “R” constituiu casa de morada de família até Agosto de 2013 (art.º 5.º da p.i.).

6. Após a doação, a R. veio a assumir a dívida contraída junto do BANCO CC como mutuária (art.º 8.º da p.i.).

7. O A. decidiu revogar a doação anteriormente feita mediante outorga de escritura pública de revogação de doação no Cartório da Dra. DD, sito em ..., no dia 25 de Setembro de 2015 (arts. 15.º e 16.º da p.i.).

8. Tendo sido concretizado o registo de aquisição a seu favor (novamente) pela AP. 1502 de 1 de Outubro de 2015 (art.º 18.º do pi.).

9. Por acordo homologado por sentença, na audiência final de 13.06.2016, a Ré obrigou-se a entregar ao A as chaves dos imóveis.”

IV.

Nesta acção pôs-se inicialmente a questão da validade da revogação da doação feita pelo autor à ré, na vigência do casamento entre ambos, mas no período em que já estavam separados judicialmente de pessoas e bens.

As doações entre casados não são admitidas sem reservas, sendo-lhes opostas, no fundo, razões idênticas às que justificam que não seja permitido alterar livremente o regime de bens.

Como afirma Pereira Coelho:

"Por um lado, haverá o receio de que a doação resulte do ascendente ou influência dum dos cônjuges sobre o outro; a comunhão de vida, de um modo geral, e o sentimento de que os bens doados «ficam na família» podem levar um deles a beneficiar o outro irreflectidamente, tudo com prejuízo da liberdade e espontaneidade do acto. Por outro lado, também os interesses de terceiros, nomeadamente dos credores dos cônjuges, estarão contra a possibilidade de eles fazerem doações um ao outro, transformando bens comuns em bens próprios ou bens próprios em bens comuns"[2].

O "antídoto" encontrado pelo legislador para combater as causas de suspeição destas doações constante matrimonio é a livre revogabilidade destas: a todo o tempo, sem que seja lícito renunciar a este direito – art. 1765º do CC[3].

Observam Pires de Lima e Antunes Varela que o art. 1761º omitiu, por desnecessária, a definição de doação entre casados, ao invés do que sucedia no Anteprojecto de Pessoa Jorge. Na verdade, a noção proposta pouco concretizava para além da própria designação ("art. 1º, nº 1. Doação entre casados é a feita, na constância do matrimónio, por um dos cônjuges ao outro").

Acrescentam, porém, os referidos Autores:

"A única dúvida séria que pode levantar-se a tal respeito consiste em saber se o regime excepcional das doações entre casados abrange ou não as doações feitas por um dos cônjuges ao outro, depois de separados de pessoas e bens.

A dúvida compreende-se, pois que a separação não dissolve o vínculo conjugal e a doação feita entre separados se pode dizer efectuada constante matrimonio enquanto, por outro lado, a separação põe termo às circunstâncias especiais que justificam a suspeição lançada sobre a liberdade e espontaneidade do acto do doador (…).

O problema encontrava, no entanto, uma resposta indirecta, mas inequívoca, no nº 3 do artigo 1774º (primitiva redacção): «Relativamente aos bens, diz esse preceito, a separação produz os efeitos que produziria a dissolução do casamento…»"[4].

Com base nestas razões e corroborando o entendimento adoptado na sentença da 1ª instância, concluiu-se no acórdão recorrido que se justifica a "interpretação restritiva do art. 1765º, nº 1, do CC, no sentido de que aí estão previstas apenas as doações entre casados não separados judicialmente de pessoas e bens" (sublinhado nosso).

Daí que se tenha entendido que a revogação da doação operada pelo autor teria de ser declarada nula, nos termos conjugados dos arts. 280º e 294º do CC, por não se verificar qualquer causa de revogação prevista nos arts. 970º e 974º do mesmo diploma.

Apesar disso, teve-se em atenção que, na réplica e na apelação, o autor invocou a caducidade da doação, por ter sido decretado o divórcio em 00.00.2013.

A este respeito, lê-se no acórdão recorrido:

"Observa-se na sentença que, tendo ocorrido, à data da doação, a separação judicial de pessoas e bens, não tem sentido a hipótese de «ocorrer a caducidade da doação com o divórcio, pois tanto este estado como aquele de separação constituem, em pé de igualdade, causas de caducidade da doação entre casados».

Trata-se, no entanto, de uma interpretação que, salvo o devido respeito, não tem apoio na letra da lei. As causas são alternativas: se uma não puder funcionar (como é o caso da separação, que é anterior à doação), é suposto que possa funcionar a outra. Não será, pois, pela aventada razão, que a caducidade por efeito do divórcio ficará excluída.

A dificuldade é outra: é que se, por um lado, a norma do art. 1766, nº 1, al. c) do CC faz depender o funcionamento da caducidade da circunstância de o divórcio ter sido decretado por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado, por outro, verifica-se que a declaração do cônjuge culpado foi suprimida, por revogação expressa do art. 1787 do CC pela Lei nº 61/2008 de 31.10, que eliminou a ideia do divórcio litigioso, fundado na culpa de um dos cônjuges, para centrar o divórcio não consentido apenas na ruptura da sociedade conjugal (cfr. Ac. STJ de 3.3.2016, Pires da Rosa, em www.dgsi.pt). O que coloca a questão de saber se, atendendo a que o divórcio já não pode ocorrer por culpa do donatário e este já não pode ser considerado único ou principal culpado, a caducidade deve ou não operar em caso de divórcio.

Cremos que a resposta radica no art. 1791, nº 1 do CC, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 61/2008: «Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiros, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento». E perde todos os benefícios apenas com a mera ocorrência do divórcio (não carecendo agora o cônjuge de ser declarado, como antes, único e principal culpado). E um dos benefícios que pode perder é, precisamente, o da doação que se verifique entre casados, perda que opera ipso jure (v. o citado CC anotado, vol. IV, pág. 563; v, ainda, o Ac STJ de 12.11.2009, Santos Bernardino, em www.dgsi.pt e os aí citados Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, em Curso de Direito da Família, volume I, 3ª edição, pág. 735 e 736).

E, por isso, devia ter sido alterada a redacção do art. 1766, n.º 1, al. c) do CC, adequando-a à nova redacção do art. 1791 do CC (que eliminou a referência ao cônjuge «declarado único ou principal culpado»).

Não o tendo sido (decerto por lapso), deve, assim, o art. 1766, nº 1, al, c), na parte em que faz depender a caducidade da exigência de que o divórcio ocorra por culpa do donatário se este for considerado único ou principal culpado, ser revogado (tacitamente) nessa parte (neste sentido, Rita Lobo Xavier, em Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Almedina, pág. 36, citado pelo Ac. STJ de 3.3.2016) e, fazendo-se uso de uma interpretação revogatória ou ab-rogante, interpretar-se a norma do art. 1776 nº 1, al. c) do CC no sentido de que a doação entre casados caduca sempre em caso de divórcio.

Verifica-se, assim, no caso vertente, que, com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, em 00.0.2013, os bens doados à ré reverteram automaticamente ao património do autor doador, sem necessidade de qualquer acto de revogação da doação, não existindo, por conseguinte, qualquer circunstância que possa impedir a restituição dos imóveis ao autor".

Esta fundamentação não parece coerente: se anteriormente, ao tratar da validade da revogação da doação, se concluiu no sentido de que a doação efectuada pelo autor não poderia ser incluída nas doações entre casados, afigura-se-nos que idêntico entendimento deveria ter sido adoptado também para efeito de caducidade.

O que se disse é que se justificava uma interpretação restritiva do art. 1765º, nº 1, no sentido de aí não caberem as doações efectuadas por casados, mas separados de pessoas e bens. Por isso, parece até contraditório entender-se o contrário para efeito de caducidade, ou seja, que, para este efeito, seja uma doação entre casados.

A respeito da definição de doação entre casados e da dúvida que acima se referiu – se a fórmula tradicional constante matrimonio poderia compreender também a situação resultante da separação judicial de pessoas e bens, dado que, nesta, o vínculo matrimonial se mantinha – afirmava Pessoa Jorge[5]:

"É óbvio, porém, que uma doação entre cônjuges separados judicialmente de pessoas e bens não está sujeita ao regime especial das doações entre casados, uma vez que não ocorrem as razões que determinam aquele regime: deixa de existir o receio de que um dos cônjuges exerça influência sobre o outro e já não se verificam as repercussões que tais doações têm sobre o regime matrimonial de bens, dada a separação de patrimónios dos cônjuges.

Aliás, do artigo 7º[6] se infere que a separação judicial de pessoas e bens é causa de caducidade das doações feitas entre casados; não faria sentido que a doação posterior à separação pudesse ter esta natureza".

Eduardo dos Santos também se pronuncia sobre esta questão, subscrevendo as razões acabadas de referir, invocando o disposto nos arts. 1795º-A e 1766º, nº 1, al. c), do CC e concluindo que as doações entre cônjuges separados judicialmente de pessoas e bens não beneficiam do regime especial das doações entre casados[7].

Era esta também a posição de Pereira Coelho:

"Como doações entre cônjuges deverão considerar-se apenas as doações entre casados não separados de pessoas e bens, pois as razões do particular regime a que as submete a lei só valem obviamente para esse caso"[8].

Assim, não podendo considerar-se que a doação aqui discutida constitui uma doação entre casados, não é também aplicável o regime da caducidade, previsto no art. 1766º, nº 1, al. c)[9].

De todo o modo, parece inteiramente pertinente o que se disse na fundamentação da sentença da 1ª instância, a este respeito:

"(…) se uma das causas da caducidade é precisamente a separação judicial de pessoas e bens, tendo a doação sido feita já neste estado de casados, mas separados de pessoas e bens, não tem qualquer sentido a hipótese aventada pelo A. de ocorrer a caducidade da doação com o divórcio, pois tanto este estado como aquele de separação constituem, em pé de igualdade, causas de caducidade da doação entre casados.

Em suma, é de aplicar ao caso em crise o regime geral de irrevogabilidade das doações previsto no art. 974º do Código Civil, não se verificando, de igual modo, a apontada causa de caducidade".

Parece-nos ser esta a consequência lógica do facto de, relativamente aos bens, a separação de pessoas e bens produzir os efeitos que produziria a dissolução do casamento (art. 1795º-A): como acima se disse, a doação feita nessa situação já não tem repercussão sobre o regime de bens, dada a separação de patrimónios dos cônjuges.

Por idêntica razão, e tendo em conta que o "benefício" há-de ser recebido "em vista do casamento ou em consideração do estado de casado" – "apenas porque a razão dos benefícios era a constância do casamento"[10] – não será igualmente aplicável o regime do art. 1791º do CC, onde poderiam também caber as doações entre casados.

Procedem, por conseguinte, as conclusões do recurso.

V.

Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, para ficar a subsistir, repristinando-se, o decidido na sentença da 1ª instância.

Custas da apelação e da revista a cargo do aqui recorrido.

Lisboa, 19 de setembro de 2017

Pinto de Almeida – Relator

Júlio Gomes

José Rainho

_______________________________________________________
[1] Proc. nº 2201/15.8T8CTB.C1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 190)
Cons. Júlio Gomes; Cons. José Rainho
[2] Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, 5ª ed., 538 e 539.
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, IV Vol., 2ª ed., 486. Também Rita Lobo Xavier, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, 202 e segs.
[4] Ob. Cit. 487.
[5] Doações para casamento. Doação entre casados – Anteprojecto, BMJ 124-329.
[6] Norma do Anteprojecto correspondente ao actual art. 1766º, nº 1, al. c).
[7] Direito da Família (1985), 378.
[8] Curso de Direito da Família, Tomo 2º, 2ª ed. (1970), 164, nota (1).
[9] Esta questão, como refere a recorrente, coloca-se a montante do problema gerado pela manutenção da redacção desta alínea, ao continuar a aludir à culpa do donatário, elemento que deixou de ter relevância no contexto do divórcio (cfr. actual art. 1781º e a revogação do anterior art. 1787º do CC). A não alteração da redacção, no que se refere à declaração de culpa, é atribuída a mero lapso, devendo o preceito, nessa parte, ter-se por revogado, como se refere no acórdão recorrido. Neste sentido, Rita Lobo Xavier, Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio (…), 36; J. Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 3ª ed. (2ª reimp.), 648 e Acórdão do STJ de 03.03.2016, em www.dgsi.pt.
[10] Exposição de motivos do Projecto de Lei 509/X, que antecedeu a Lei 61/2008, de 31/10, em www.parlamento.pt.