Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | DIREITO DE PREFERÊNCIA PRÉDIO CONFINANTE PRESSUPOSTOS EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA FACTO IMPEDITIVO ÓNUS DA PROVA ABUSO DO DIREITO | ||
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Data do Acordão: | 07/06/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | Pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência atribuído pelo artigo 1380º do CC aos proprietários de terrenos confinantes é de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura, não sendo necessário que eles sejam efectivamente agricultados. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. RELATÓRIO
Recorrentes: AA, BB e CC Recorrida: DD
1. DD e, após intervenção principal provocada, EE intentaram acção declarativa constitutiva com processo ordinário contra AA, BB e CC, pedindo que: a) Seja reconhecido às autoras o seu direito de preferência sobre o prédio rústico identificado nos autos, substituindo-se à ré na escritura de compra e venda; b) Sejam os réus condenados a entregarem o referido prédio, livre de ónus e encargos; c) Seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que a ré compradora e actual proprietária, haja feito a seu favor em consequência da compra do supra referido prédio, e outras que venha a fazer. As autoras, em articulados separados, fundamentam tal pretensão na circunstância de serem proprietárias de um prédio rústico confinante com o prédio rústico comprado pela 1.ª ré, que não é confinante desse prédio, sendo que os prédios são aptos e virão a ser utilizados para cultura (propósito manifestado nos articulados por ambas as autoras) e têm área inferior à unidade de cultura, para além de que os réus não lhes deram prévio conhecimento do projecto de venda nem das cláusulas do respectivo contrato.
2. A ré AA, pessoal e regularmente citada, deduziu contestação na qual invoca a caducidade do direito de acção bem como abuso de direito. Deduziu ainda, a título subsidiário, reconvenção com vista ao pagamento das benfeitorias feitas por si no prédio que adquiriu no valor de € 16.554,55, bem como requer que lhe seja reconhecido o direito de retenção sobre o imóvel.
3. Os réus BB e CC, pessoal e regularmente citados, deduziram contestação, alegando a caducidade do direito de preferência, bem como abuso de direito.
4. Na réplica, a autora DD, pugnou pela improcedência das excepções invocadas e reconvenção peticionada.
5. A autora EE respondeu às mesmas e à reconvenção, com a idêntica pretensão de improcedência, no seu articulado próprio, sequencial à sua intervenção principal provocada.
6. Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença em que se decidiu: “a) julgar improcedente, por não provada, a presente ação e, em consequência, absolver os Réus AA dos pedidos deduzidos pelas Autoras. DD e EE; b) Julgar extinto, por inutilidade superveniente da lide, o pedido reconvencional deduzido por AA contra DD e EE”.
7. Não se conformando com a sentença, veio a 1.ª autora, DD, recorrer.
8. Em Acórdão de 15.09.2022 decidiu o Tribunal da Relação de Évora: “Termos em que, acorda-se em revogar a sentença, julgando procedente a apelação interposta pela Autora DD e, em conformidade, reconhece-se às AA. o seu direito de preferência sobre o prédio rústico identificado nos autos, substituindo-se estas à Ré AA na escritura de compra e venda. Mais se condena esta Ré a entregar o referido prédio, livre de ónus e encargos. Ordena-se ainda o cancelamento de todos e quaisquer registos que a Ré, compradora e atual proprietária, haja feito a seu favor em consequência da compra do supra referido prédio. Mais se acorda em julgar procedente a ampliação do recurso feita a título subsidiária pela apelada AA e, em consequência, condenar as AA. ao pagamento a esta de uma indemnização de € 4.926,93 (quatro mil novecentos e vinte e seis euros e noventa e três cêntimos), a título de benfeitorias por si realizadas”.
9. Inconformados, BB e CC apresentaram recurso de revista, em que concluem: “A. Vem o presente recurso interposto do acórdão que julgou o recurso da Autora procedente e em consequência revogou a sentença proferida em primeira instância, substituindo-a por outra, que entre outros reconheceu o direito de preferência às Autoras, sobre o prédio rústico identificado nos autos, substituindo-se as Autoras à Ré AA na escritura de compra e venda. B. O segmento decisório que os Réus ora Recorrentes pretendem colocar em crise é o reconhecimento dos pressupostos que impedem o exercício do direito de preferência, que constam nos termos do artigo 1381.º al. a) do Código Civil, assim como, o reconhecimento do instituto do abuso de direito constante dos termos do artigo 334.º do Código Civil. C. Ora, como estabelece o artigo 1380.º do Código Civil, os requisitos para o exercício do direito de preferência, são: “a) Tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio;” “b) O preferente seja dono de um prédio confinante com o prédio alienado” “c) Um dos prédios confinantes tenha área inferior à unidade de cultura” “d) O adquirente do prédio não seja proprietário confinante”; e “e) Que os dois prédios sejam rústicos e destinados a cultura.” D. Resultou provado em sede do tribunal de 1ª instância, que as Autoras, ora Recorridas, compraram no ano de 2014, o terreno contíguo ao terreno que ora exercem o direito de preferência enquanto casadas, sem que nunca o tenham cultivado, ou dedicado a quaisquer actividades agrícolas pelas próprias ou por intermédio de terceiros. E. O terreno tem uma área inferior à unidade de cultura, contudo, as Recorridas, nunca após a aquisição do prédio rústico o utilizaram o mesmo para fins agrícolas. F. As Autoras, utilizaram o terreno, de sua propriedade única e exclusivamente para colocarem uma casa móvel, com ar condicionado, entre outros, conforme ficou provado nos factos 9 e 10 dos factos dados como provados da douta sentença do Tribunal de 1ª instância. G. As Autoras, nunca praticaram qualquer atividade agrícola no sobredito terreno, nem tinham um projecto de vir a exercer a dita actividade. H. Tendo ficado provado em sede do Tribunal de 1ª instância que o terreno das Autoras nunca foi utilizado para o desenvolvimento da agricultura, e que apesar da sua aptidão para esta actividade, nunca as Autoras tiveram o propósito, a intenção ou um projecto de vir a desenvolver agricultura no seu terreno, ou no terreno da 1ª Ré AA. I. No entanto, vem o douto Tribunal a quo, revogar a sentença de primeira instância decidindo em sede de acórdão que bastará a mera aptidão do prédio rústico para agricultura, e que tal bastará para o exercício do direito de preferência pelas Autoras. J. Com o devido respeito, insurgem-se ora os réus, contra tal segmento decisório tendo estes opinião diversa da apresentada pelo douto Tribunal a quo, a qual não basta a mera aptidão do prédio rústico para a agricultura, para que seja exercido o direito de preferência, por estas. K. Aliás, não basta que terreno seja apto para agricultura, mas também que seja realizada a cabal prova por parte das Autoras, ora Recorridas de actos demonstrativos de que estas efectivamente praticavam, ou pretendiam vir a exercer qualquer actividade agrícola no terreno que é da sua propriedade. L. Prova essa que as Autoras não lograram fazer em sede de 1ª instância. M. Aliás, é esta a tese já defendida por este Supremo Tribunal de Justiça, (sublinhado nosso) no seu acórdão no processo n.º 892/18.7T8BJA.E1.S1, de 14/01/2021, Relator: Rosa Tching, disponível no portal www.dgsi.pt, referindo-nos que: “Acresce ser sobre os autores que recaía, nos termos do disposto no art. 342º, nº 1 do C. Civil, o ónus de alegar e provar, que praticam nestes terrenos qualquer tipo de exploração florestal e/ou atividade agrícola, pelo que, não tendo os mesmos alegado, no caso dos autos, quaisquer factos demonstrativos do aproveitamento destes terrenos, são eles que têm de sofrer as consequências dessa falta de prova.” N. Na verdade, e no seguimento desse raciocínio, parece-nos existir uma posição clara quanto à falta de prova realizada pelas Autoras de factos demonstrativos e nucleares do aproveitamento do seu terreno para agricultura, tendo consequentemente de sofrer as consequências da falta dessa prova, in casu, o não reconhecimento do exercício do direito de preferência e a subsequente aplicação do preceituado nos termos do artigo 1381.º al. a) do Código Civil, in fine. O. Por conseguinte, e respeitando a posição diversa do douto tribunal a quo, somos da opinião que não basta a mera aptidão do terreno para agricultura, para que seja exercido o direito de preferência. P. É de relembrar que as Autoras, além do facto de não terem logrado provar que exerciam qualquer atividade agrícola no sobredito terreno, também se encontram divorciadas, divórcio esse que ocorreu no ano de 2015, encontrando-se actualmente a decorrer um processo de inventário para divisão dos seus bens. Q. Existindo aqui o real perigo de os terrenos serem divididos por ambas as Autoras em sede de processo de inventário. R. Apesar do Tribunal a quo, referir que ao abrigo do artigo 50.º n.º 1, da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, permitir a existência da anexação oficiosa dos prédios rústicos contíguos, com uma área global inferior à unidade de cultura, refere-nos o n.º 2 do mesmo artigo da supra-referida Lei que: “No caso de iniciativa do serviço de finanças, o proprietário deve ser notificado para se opor, querendo, no prazo de 30 dias.”. S. Ou seja, caso exista a aquisição por via do exercício do direito de preferência do prédio rústico objecto dos autos, por parte das Autoras, não é condição sine qua non, que este seja anexado oficiosamente, podendo o proprietário opor-se à eventual anexação oficiosa. T. Sendo que, até por essa via seria defraudado o objectivo do emparcelamento e ampliação da área de cultura e por conseguinte o exercício da actividade agrícola em ambos os prédios, pelo que nas partilhas existirá uma grande possibilidade de cada uma das Autoras ficar com cada um dos terrenos. U. Pelo que também por esta via, não deverá ser reconhecido o exercício do direito de preferência ao contrário do que vem referenciado no douto acórdão. V. Aliás, as Autoras ao instalarem uma casa amovível, com ar condicionado, fossa céptica, entre outros, constamos que a pretensão das autoras, não é, salvo o devido respeito a utilização do prédio rústico para finalidades agrícolas, mas para outras. W. Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.09.2008[5] (Revista n.º 2356/08 -6.ª Secção Silva Salazar (Relator) Nuno Cameira Sousa Leite), consultável através do portal: www.dgsi.pt, que tem em consideração o fim subjectivo da al. a) do artigo 1381º do CC. “V - O fim, porém, a que a dita al. a) se refere, não se apura só objectivamente, mas também através da intervenção do elemento subjectivo que é a vontade do adquirente, a sua intenção ao adquirir. E a intenção constitui matéria de facto, susceptível de ser provada por qualquer meio, tanto mais que a finalidade da aquisição não tem que constar da respectiva escritura pública, uma vez que a mencionada al. a) não o exige, se bem que se tenha por bem impor ao adquirente a prova de que a finalidade visada com a aquisição é lícita, viável e séria. VI - Tendo, pois, o destino do imóvel adquirido pelos segundos réus sido a construção e não a exploração agrícola, tem de se considerar verificada a situação excepcional prevista na mencionada al. a) do art. 1381.°, o que afasta o direito de preferência que porventura assistisse aos autores, independentemente do prédio dever ser classificado como rústico ou como urbano.” X. Quanto à figura do abuso de direito, previsto nos termos do artigo 334.º do Código Civil, onde nos refere que: "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito". Y. Constatamos que o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico. Z. Os sujeitos de determinada relação jurídica devem actuar como pessoas de bem, com correção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica. AA. Os limites impostos pela boa-fé são excedidos, nomeadamente, quando alguém pretenda fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior, quando tal conduta objectivamente interpretada, de harmonia com a lei, justificava a convicção de que se não faria valer o mesmo direito. BB.O mesmo se diga dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta na sociedade onde se inserem. CC. Constata-se no caso concreto que as Autoras excedem manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e, ainda, pelo fim social e económico desse direito, nomeadamente, nos pontos 9 a 10 dos factos dados como provados, onde se logrou provar que as Autoras nunca cultivaram o seu terreno, nunca plantaram e nunca lá fizeram qualquer tipo de agricultura, até colocando nesse prédio uma casa móvel com um ar condicionado, onde passavam férias, existindo aqui uma clara ofensa ao direito exercido. DD. Aproveitando-se, assim, aquelas do instituto do exercício do direito preferência, para tentar alcançar um objectivo (neste caso a aquisição do prédio confinante), sem terem o propósito de praticar, ou vir a praticar num futuro a agricultura, extrapolando assim o fim que a norma tenta acautelar. EE. Por conseguinte, e respeitando opinião diversa do douto Tribunal a quo, parece-nos evidente o manifesto abuso de direito, no exercício do direito de preferência pelas Autoras, ora Recorridas, devendo assim, ser mantida a decisão de 1ª instância. FF. Ao julgar assim, o tribunal a quo fez um incorreta interpretação das normas, violando assim, os artigos 1381.º al. a), e 334.º do Código Civil, o qual levaria a decidir, tal qual como foi decidido pelo tribunal de primeira instância”.
10. AA também interpôs recurso de revista, com as seguintes conclusões: “I. A Autora DD intentou a ação contra a aqui recorrente AA, BB e CC, pedindo que: fosse reconhecido o seu direito de preferência sobre o prédio rustico identificado nos autos, substituindo-se à Ré AA na escritura de compra e venda; fossem as Rés condenadas a entregarem o referido prédio, livre de ónus e encargos; e ainda, fosse ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que a Ré, compradora e atual proprietária, haja feito a seu favor em consequência da compra do supra referido. II. A causa de pedir assentou no facto de ser proprietária de um prédio rustico confinante com a da Ré, ambos inferiores à unidade de cultura estabelecida para a região e que não lhe foi comunicado os termos do negócio da compra e venda entre os Réus; III. O prédio foi transacionado sem que ela tivesse a oportunidade de preferir na sua aquisição, assim ao abrigo do artigo 1380.º do Código Civil, peticionou que o Tribunal lhe conceda este direito. IV. Produzida a prova na primeira instância e realizado o julgamento, foi doutamente decidido que a acção não tinha provimento em razão do abuso de direito. V. Não conformada com esta decisão, veio a aludida Autora apresentar recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora que lhe deu razão e, decidiu, conceder-lhe o direito de preferência porquanto o abuso de direito não se verifica, pois que, objectivamente, e sem outras e demais considerações está-se perante dois prédios rústicos, com áreas inferiores a unidade de cultura e aptos para agricultura, se nos mesmos ou num deles não se realizam ao presente actividades agrícolas e isso não interessa para a lei, caberia a Ré demonstrar que o seu prédio da Autora não seria apto para tal fim: (..) - O pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência pelos proprietários de terrenos confinantes e de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura, não sendo necessário que estejam efetivamente cultivados. - Não podendo o prédio do preferente, no caso, das A.A estar afeto a um destino diferente, como aconteceria se, ainda que apto para cultura, tivesse sido objeto de um pedido de licenciamento de uma casa de habitação, com projeto de arquitetura aprovado, o que indiciaria que a sua aptidão para cultura sairia a curto ou medio prazo defraudada. - Competindo aos Réus, a prova dessa diferente afetação. - O facto de, no terreno das preferentes ter sido colocada uma casa movel com ar condicionado, não e, só por si, demonstrativo de que as AA. não possam conjugar essa infraestrutura com uma exploração de cultura, se não mesmo de retirar aquela. (..) (síntese final do acórdão ). VI. Ora é contra esta tese que a Ré AA se manifesta com a interposição do presente recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, confiando que se faça a devida justiça como é costume e em casos semelhantes, que o acórdão ora em crise seja revogado mantendo-se o decidido em primeira instância que vai ao encontro da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça. VII. Ora, em primeiro lugar: a Autora nunca alegou que o seu prédio tem aptidão agrícola, não descreveu as características do mesmo como nem tão o fez em relação ao prédio da Ré como também nunca se referiu à utilização do seu prédio e do prédio a preferir para fins agrícolas como se pode verificar da leitura da sua a PI, aliás douta. VIII. Mormente, este desiderato também não resultou provado quanto às alegações da co- Autora ( que se conformou com a douta sentença lavrada pelo tribunal da primeira instância ). IX. O direito de preferência a que a Autora se arroga vem consignado no artigo 1380 do Código Civil ( CC ). X. O n.º 1 estipula (..) Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante (..). XI. Este artigo e seguintes insere-se na Secção VII do CC com a epigrafe Fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos. XII. Este dispositivo e os seguintes que regulam a matéria na Secção VII do Código tem o seu antecedente histórico na Lei n.º 2116, de 14 de Agosto de 1962, que regulou igualmente a matéria do fraccionamento e emparcelamento de prédios rústicos. XIII. Como é consabido, estas normas têm como finalidade económica e social o reordenamento da propriedade fundiária, com o objectivo de os terrenos aptos para cultura terem uma dimensão mínima (unidade de cultura) adequada a uma exploração economicamente viável, XIV. E, além disso, o fomento de explorações agrícolas viáveis e rentáveis. XV. Objectivamente os dois prédios ( o do preferente ) e o prédio a preferir têm de ser terrenos onde se possa exercer a actividade agrícola e, em ultima instância os sujeitos destinem os prédios a esse fim, aqui também em concreto. Dai que: XVI. A estes princípios abre o Código excepções com o mesmo sentido: enquanto o artigo 1377.º, alínea a) exceptua da proibição de fraccionamento os terrenos que se destinem a algum fim que não seja a cultura, o artigo 1381.º alínea a) não confere o aludido direito de preferência aos proprietários de prédios confinantes quando algum dos terrenos (...) se destine a algum fim que não seja a cultura (..) XVII. E tanto é para o prédio a preferir ( o alienado ) como para o prédio propriedade do preferente, in casu da Autora - artigo 1381.º alínea a) não confere o aludido direito de preferência aos proprietários de prédios confinantes 'quando algum dos terrenos (...) se destine a algum fim que não seja a cultura (..) XVIII. E chegados aqui, podemos afirmar com toda a evidência que - a Ré provou factos em sua defesa de que a Autora nunca utilizou o seu prédio para fins agrícolas e nem tencionava utilizar o prédio a preferir, alienado, o prédio da Ré para esse fim, se não veja-se na sentença e em sede de factos provados nos pontos 9 e 10 consta: (..) 9. No prédio das Autoras nada foi cultivado ou plantado pelas mesmas. 10. No prédio referido em 1), pela Autora DD e sem oposição a Autora EE, uma casa móvel, com ar condicionado. (..) XIX. Mormente, a Ré provou que utiliza o prédio que adquiriu para fins agrícolas, onde desenvolveu e executou todos os trabalhos necessários para a exploração agrícola da terra: - Vd. Os pontos 13 a 31 da matéria provada, tendo arado a terra, plantado arvores de fruto, cultivado, limpo matos, instalado sistema de rega, erigido um armazém para guardar as alfafais e ferramentas agrícolas, etc. XX. A própria Autora ora recorrente afirmou que a ex-mulher não tinha interesse em qualquer actividade agrícola ( Cfr. sentença, fundamentação da matéria de facto, alínea e) ponto 3 ). XXI. Pelo que, esta mesma sentença fazendo a análise e o juízo de prognose com o devido sensu comum, fez consignar no campo da fundamentação dos factos provados: (..) Facto 9- Resulta provado com base nas próprias declarações das Autoras e dos depoimentos das testemunhas FF e GG, sendo evidente que nenhuma das Autoras tem qualquer projeto agrícola em andamento, nem sequer minimamente concretizado, pelo que não se dedicam a qualquer atividade agrícola. Assim, quanto ao facto a), remete-se para a fundamentação do facto 9) dado como provado, para além de que das circunstancias de terem instalado uma fossa séptica, água da rede e luz no terreno, para além do contentor com ar condicionado, levar à conclusão que o uso a dar ao terreno não é agrícola, mas sim para passar pelo menos ferias, estando perto de uma zona de praia, não fazendo sentido um terreno agrícola e com tais fins ter tais equipamentos, tanto mais que não foi feito qualquer cultivo no mesmo desde 2014. ( sublinhado nosso ). (..) XXII. Nesta conformidade não se encontram preenchidos todos os pressupostos para a Autora gozar do direito de preferência sobre a alienação sub judice, à luz da alínea a) do artigo 1381 do CC. XXIII. A lei não confere o direito de preferência aos proprietários de prédios confinantes quando algum dos terrenos (...) se destine a algum fim que não seja a cultura (..). XXIV. E a Autora nunca destinou o seu prédio a agricultura, logo, pelos factos assentes e toda a factualidade apurada, duvidas não restam que estamos perante a excepção da alínea a) in fine do artigo 1381.º e, mormente pelo abuso de direito como se irá demonstrar a seguir. XXV. O acórdão ora recorrido ao conceder a preferência a Autora no caso dos autos, não está a cumprir a finalidade e razão de ser das normas do emparcelamento e do fim último deste instituto que é a criação de exploração agrícola viável. XXVI. Ao conceder-se esse direito às Autoras é manifesta a violação do espírito da lei e, com isso, a inviabilizar em concreto uma exploração agrícola que é a da Ré, com a destruição de tudo o que já foi feito até agora. XXVII. Isto porque, é evidente dos factos assentes que as Autoras não iriam manter nem continuar com a exploração agrícola da Ré: porque estão longe não residem no local e, por outro lado, não têm conhecimentos agrícolas e logo sem manutenção e cuidado diário da propriedade tudo se perderá num ápice. XXVIII. Concomitantemente, atenda-se ao mui doutamente decidido por este Supremo Tribunal de Justiça no aresto lavrado a 14-01-2021, processo n.º 892/18.78BJA.E1.S1, relatado pela Senhora Juíza Conselheira Rosa Tching, , e que pode ser consultado na integra em: XXIX. http://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/821 303d77ede6cf8802586780055ec65?OpenDocument. XXX.
XXX. Numa parte do sumário do acórdão encontra-se escrito: (..) V. Segundo orientação consolidada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a distinção entre prédio rústico e urbano deve assentar, numa avaliação casuística, tendo subjacente o critério base de destinação ou afetação económica. VI. A razão de ser do direito de preferência atribuído aos proprietários de prédios rústicos confinantes, nos termos do artigo 1380.º, nº 1, do Código Civil, radica no propósito do legislador de propiciar o emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, com vista a alcançar-se uma exploração agrícola tecnicamente rentável e evitar-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente. VII. O artigo 1380.º, nº 1, do Código Civil vincula o exercício do direito de preferência à efetiva exploração dos terrenos rústicos para fins de cultura florestal e/ou agrícola, não se bastando com o facto de serem aptos para cultura. VIII. Resultando dos factos provados que os autores utilizam o prédio de que são proprietários essencialmente para a sua habitação e nele não desenvolvem qualquer atividade agrícola, impõe-se concluir que a destinação e afetação deste prédio são próprias de um prédio urbano, não sendo, por isso, os autores titulares do direito de preferência consagrado no artigo 1380.º, n.º 1 do C. Civil. (..) XXXI. A doutrina seguida perfilhada neste acórdão é, por isso, que não basta a apetência agrícola dos prédios confinantes, mas, efetivamente, que nos mesmo seja exercida a agricultura e não qualquer intensão de vir a ser exercida; XXXII. Contrariamente ao que defende o acórdão ora recorrido. XXXIII. Continuando ainda: (..) Acresce ser sobre os autores que recaía, nos termos do disposto no art. 342.º, n.º 1 do C. Civil, o ónus de alegar e provar, que praticam nestes terrenos qualquer tipo de exploração florestal e/ou atividade agrícola, pelo que, não tendo os mesmos alegado, no caso dos autos, quaisquer factos demonstrativos do aproveitamento destes terrenos, são eles que têm de sofrer as consequências dessa falta de prova. De referir ainda que, contrariamente ao afirmado no acórdão recorrido, não se vê que se possa defender resultar do espírito da lei que o citado art. 1380.º, n.º 1 não vincula o exercício do direito de preferência à efetiva exploração dos prédios para fins agrícolas, bastando-se com o facto de serem prédios aptos para cultura, quando é certo que, como se escreveu no Acórdão do STJ, de 28.02.2008 (processo nº 08A075)[20], «a razão de ser do regime legal consagrado no art. 1380º, nº1, do Código Civil, ancora num propósito propiciador do emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente». Daí que, aceitando-se o critério de destinação ou afetação económica como critério base para qualificar determinado prédio como rústico ou urbano e tendo ficado provado que os autores residem no prédio de que são proprietários (nº 10 dos factos provados) e nele não desenvolvem qualquer atividade agrícola (nº 11 dos factos provados), evidente se torna que os autores utilizam o prédio em causa essencialmente para a sua habitação, o que tudo quer dizer, nas palavras do citado Acórdão do STJ, de 28.02.2008, que o núcleo essencial do “prédio misto”, dos autores, a sua destinação e afetação, são próprias de um prédio urbano, não se alcançando, deste modo, os fins para que o legislador consagrou, no art. 1380.º, nº 1 do C. Civil, o direito de preferência. (sublinhado nosso ) XXXIV. Ora coincidentemente, no caso dos autos, resultou provado que: (..) No prédio das Autoras nada foi cultivado ou plantado pelas mesmas. No prédio referido em 1), pela Autora DD e sem oposição a Autora EE, uma casa móvel, com ar condicionado...Resulta provado com base nas próprias declarações das Autoras e dos depoimentos das testemunhas FF e GG, sendo evidente que nenhuma das Autoras tem qualquer projeto agrícola em andamento, nem sequer minimamente concretizado, pelo que não se dedicam a qualquer atividade agrícola. Assim, quanto ao facto a), remete-se para a fundamentação do facto 9) dado como provado, para além de que das circunstancias de terem instalado uma fossa séptica, água da rede e luz no terreno, para além do contentor com ar condicionado, levar à conclusão que o uso a dar ao terreno não é agrícola, mas sim para passar pelo menos ferias, estando perto de uma zona de praia, não fazendo sentido um terreno agrícola e com tais fins ter tais equipamentos, tanto mais que não foi feito qualquer cultivo no mesmo desde 2014 (..) ( Cfr. a sentença recorrida ). XXXV. Na mesma linha jurisprudencial e que nos parece ser maioritária, neste mesmo lauto tribunal, por aresto lavrado a 24-10-2006, ficou consignado em parte no seu sumário: (..) V - Daí que tenha de se entender que, quer considerando o prédio do autor, quer considerando o prédio dos réus, se verifica a excepção ao direito de preferência de proprietários de terrenos confinantes consagrada no art. 1381.º, al. a), do CC. VI - A ter o autor direito de preferência, o seu exercício representaria inegável abuso de direito, tanto mais que, visando esse direito concedido pelo legislador possibilitar o emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura a fim de obtenção de uma área minimamente rentável do ponto de vista agrícola, se mostra que o autor, proprietário do seu prédio confinante com o dos réus pelo menos desde 01-03-1994, manteve toda a parte rústica desse seu prédio sem cultivo, com silvas, mato e canavial, até princípios de 2004, ou seja, até à data para a qual foi marcada a audiência e discussão e julgamento nestes autos. (..) https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/06a2493-2006-89129275. XXXVI. Acresce que, a conduta das Autoras, subjectivamente, consubstanciada no exercício do direito de preferência, nos presentes autos, excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé e é contrário ao fim social e económico desse direito como a Ré e aqui recorrente vem desde o início defendendo e que, também, a sentença revogada decidiu doutamente anuindo aos seus argumentos, contrariados agora pelo acórdão de que se recorre; XXXVII. E excede manifestamente os limites impostos pela boa fé ao abrigo do artigo 334.º do C.C. que: « É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.» XXXVIII. Verifica-se, o exercício abusivo do direito de preferência por parte das Autoras ( como resultou provado ) atendendo a que as mesmas não pretendem utilizar o prédio em causa para fins agrícolas, mas sim para outros fins como o de ai passar férias tendo colocado uma casa móvel, colocado um aparelho de ar condicionado, feito uma fosse sética, ligado água da rede, etc. XXXIX. Está provado que as Autoras não eram agricultoras e que nunca trabalharam a terra, nunca limparam o seu prédio nem praticaram qualquer actividade agrícola nele. XL. Pese embora o acórdão recorrido não perfilhar desta doutrina e não reconhecer que por estes factos e todos os demais provados e fixados na douta decisão da primeira instância, tendo decidido que não existe qualquer tipo de abuso de direito, o certo é que na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tal não se afigura assim: XLI. Ora, como consequência do não exercício e prossecução da agricultura no prédio e o abandono do mesmo a qualquer prática agrícola, de limpeza e ou manutenção, para além do uso para fins apenas estivais com a colocação de um contentor casa, de uma fossa séptica e aparelho de ar condicionado etc., torna o exercício do direito de preferência ilegítimos, conforme tem sido defendido na nossa Jurisprudência supra referida, e ainda, a título de exemplo, na jurisprudência das Relações, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21-11-2013, em que foi Relator a Sra. Juiz-Desembargador Ana de Azevedo Coelho, proferido no Proc. 1243/08.4 TBCSC.L1- 6, nos termos do qual: (..) I ) O direito de preferência do proprietário de prédio rústico confinante com outro de idêntica natureza, constitui uma excepção à liberdade contratual que o legislador consagra em ordem a promover o emparcelamento rural e a produtividade da agricultura. II) Se os Autores não destinam à agricultura o prédio em cuja venda pretendem preferir, verifica-se abuso de direito impeditivo da procedência da sua pretensão. III) O instituto do abuso de direito previne as situações de «exercício inadmissível de posições jurídicas» apreciado numa perspectiva de sistema e independe do desvalor subjectivo da conduta.” Em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/b8e0846e f23e7f9380257c4e00541fe3?OpenDocument. XLII. Como já referimos, as Autoras querem exercer o direito de preferência com fundamento no artigo 1380.º do CC, que tem como propósito criar condições para explorações económicas viáveis. XLIII. Resulta óbvio, da leitura integrada do diploma legal que instituiu a Reserva Agrícola, e do Código Civil, que o direito de preferência nele estabelecido visa a protecção da actividade agrícola e a sua promoção, como sobredito. XLIV. Resultou evidente nos autos e da prova produzida que aquilo que as Autoras pretendem não é afectar o prédio da Ré AA, ou melhor no prédio delas Autoras e da Ré, a qualquer actividade agrícola, mas sim usa-los, repita-se: para fins estivais. XLV. Por isso, e muito bem, a douta sentença revogada pelo acórdão da Relação de Évora, decidiu que a (s) Autora (s) estarão a exercer o direito de preferência que lhes é conferido, em abstracto, pelo artigo 1380.º com violação do fim social e económico desse mesmo direito, i.e. o desenvolvimento e a protecção da actividade agrícola. XLVI. Porquanto, aquilo que fizerem desde 2014 no seu prédio nada teve haver com agricultura ou preparação e limpeza da terra para esse fim, o mesmo não iriam faze no prédio da Ré, porque, o que se pretende, como alegado na contestação é ampliar áreas para a construção de uma casa. XLVII. A (s) Autora (s) não são agricultoras, nunca foram nem o serão – uma é arquitecta com residência permanente ... outra é Magistrada ... em ... também. XLVIII. Por seu turno a recorrente AA vive permanentemente em ..., é agricultora e trata e cultiva o seu prédio como provado. XLIX. Assim, o previsto no artigo 334.º do Código Civil opõem-se à pretensão da (s ) Autora ( s ). L. É que ao conceito abstracto vertido no artigo 1380.º do Código Civil e no artigo 26.º do DL que institui a Reserva Agrícola Nacional, não pode ser alheios factos concretos e subjectivos, nomeadamente o facto da (s) Autora ( s ) não exercer a actividade agrícola, e pretender usar o seu prédio para outros fins que não a agricultura. LI. O exercício do direito de preferência, agora deferido no acórdão em recurso permite e confere às Autoras uma prerrogativa diversa daquela que a lei visa ao instituir nos citados diplomas o direito de preferência, dado que em nada irá contribuir para o desenvolvimento da actividade agrícola, mas sim para outra coisa qualquer como a construção e o lazer. LII. Na realidade «Um sistema jurídico postula um conjunto de normas e princípios de Direito, ordenado em função de um ou mais pontos de vista. Esse conjunto projecta um sistema de acções jurídicas – portanto de comportamentos que, por se colocarem como actuações juridicamente permitidas ou impostas, relevam para o sistema... » cont. « o não acatamento das imposições e o ultrapassar do âmbito posto às permissões contraria o sistema: há disfunção» O abuso de direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jussubjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas, não confluírem no sistema em que estas se integrem» (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, V, Parte Geral, 2.ª reimpressão da edição de Maio de 2005. Coimbra: Livraria Almedina, 2011, pág., 368.) LIII. Não existe, no caso concreto, através do exercício do direito de preferência pela (s) Autora (s), um confluir com o sistema, o que há é uma disfuncionalidade: a lei institui a preferência, para que a actividade agrícola se desenvolva mais e melhor; a (s) Autora (s) exerce (m) o direito sem fazer um aproveitamento agrícola do solo. LIV. Assim, tem de se configurar o caso sub iudice à luz do resultado obtido com o exercício do direito, mediante a obtemperação imposta pelo artigo 334.º do C.C.. LV. Pelo que, o acórdão em causa cria uma solução injusta contra o direito. LVI. Na verdade - o exercício do direito de preferência, decidido no acórdão a favor das Autoras cria uma solução diversa daquela que a lei visa ao instituir nos citados diplomas sobre este direito, dado que, em nada irá contribuir para o desenvolvimento da actividade agrícola, mas sim para outra coisa qualquer como a construção e o lazer e, ao mesmo tempo à destruição de uma propriedade em plena produção que carece de ser tratada e mantida todos os dias - e se, até agora as Autoras em nada de produtivo e de manutenção fizeram na sua propriedade, é expectável que muito menos farão nesta da Ré quando vivem longe e ainda, por cima, vivem um contencioso permanente desde pelo menos 2015 quanto à divisão e partilha dos seus bens. LVII. E, ainda por cima, quando é experiência comum, pelo menos de quem julga e de quem advoga que os litígios e contenciosos sobre a partilha de bens e património levam, na maior parte das vezes, à falta de manutenção e deterioração dos bens. LVIII. Assim, tem de se configurar o caso sub iudice à luz do resultado obtido com o exercício do direito, mediante a obtemperação imposta pelo artigo 334.º do C.C.. LIX. A pretensão das Autoras merece assim ser julgada inadmissível, por ilegítima face à obtemperação imposta pelo artigo 334.º do C.C.; LX. Sendo que, é manifesta a falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto ao afastamento in casu do abuso de direito e à não verificação dos pressupostos deste instituto perante os factos assentes na sentença da primeira instância. LXI. Nesta conformidade, e por todo o supra exposto, afigura-se-nos claro que o acórdão da Relação, faz errada aplicação do artigo 1380.º do Código Civil e viola o artigo 334.º do Código Civil e, principalmente, também do elemento teleológico e primordial da lei que é o fomento da actividade agrícola e das explorações agrícolas viáveis e rentáveis, ao não reconhecer estarem preenchidos os pressupostos do instituto do abuso de direito; LXII. caindo, ainda, evidentemente num manifesto erro de julgamento quanto às consequências de toda a factualidade assente na sentença da primeira instância e às suas conclusões cognitivas para a subsunção na solução legal protagonizada”.
11. DD veio contra-alegar, concluindo: “A. Interposto recurso de apelação da sentença de 1a instância proferida nos presentes autos, veio o douto Tribunal da Relação de Évora, em 15/09/2022 proferir acórdão através do qual se reconheceu o direito de preferência das Autoras/Recorridas sobre prédio rústico melhor identificado nos autos, se condenou a Ré AA a entregar o referido prédio, livre de ónus e encargos, se ordenou o cancelamento de todos os registos havidos por conta da aquisição do referido prédio e se condenou as Autoras/Recorridas ao pagamento de uma indemnização à referida Ré. B. Não se conformando com o teor do acórdão vieram os Réus/Apelados, BB e CC (doravante, Réus/Recorrentes), interpor recurso de revista. C. Pugnando, para o efeito, pelo reexame dos pressupostos impeditivos do exercício do direito de preferência constantes no artigo 1381.°, alínea a), do Código Civil (CC), bem como pelo "(...) reconhecimento do instituto do abuso de direito patenteado nos termos do artigo 334° do Código Civil'. D. Entendendo, porém, a Autora/Recorrida ser de manter o acórdão recorrido nos exatos termos em que foi proferido pelo douto Tribunal a quo. E. Alegando, num primeiro momento, estar em causa uma exceção à verificação do direito de preferência pelo facto do prédio, de que a Autora/Recorrida é proprietária, não se destinar a fim agrícola e, num primeiro momento,' o reconhecimento da existência de abuso de direito, por parte da Autora/Recorrida, resultante do direito de preferência de que a mesma se arroga. F. Ora, com o devido respeito, a Autora/Recorrida discorda de tal entendimento. G. Dispõe, o artigo 1380.°, n.° 1, do CC dispõe que "Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente de direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante". H. Vindo o DL n.° 384/88, de 25 de Outubro, no seu artigo 18.°, relativamente à unidade de cultura, estabelecer que "Os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no artigo 1380.° do Código Civil, ainda que a área daqueles seja superior à unidade de cultura". I. Ficando afastado o reconhecimento do direito de preferência dos proprietários de terrenos confinantes quando, dispõe o artigo 1381.°, do CC, "(...) a) (...) algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura; b) (...) a alienação abranja um conjunto de prédios que, embora dispersos, formem uma exploração agrícola de tipo familiar". J. Assim sendo, cumpre ponderar os pressupostos para o reconhecimento do direito de preferência, resultantes dos dispositivos legais ora citados, à luz das circunstâncias dos presentes autos K. Da referida análise, verificou-se ser opinião unânime opinião unânime que está em causa a venda de um prédio rústico, apto para cultura, cujo preferente (as Autoras) é proprietário de um prédio confinante e cujo adquirente (a 1a Ré) não é proprietário confinante. E, ainda, que um dos prédios confinantes tem área inferior à unidade de cultura, conforme explanado supra. L. Assim resulta da douta decisão de 1a instância, do douto acórdão da Relação, bem como do entendimento dos próprios Réus/Recorrentes e, diga-se, da Autora/Recorrida. M. Sucede, porém, que as posições divergem em relação ao pressuposto do fim a que se destina o prédio (da Autora/Recorrida). N. Defendem os Réus/Recorrentes que a Autora/Recorrente nunca exerceu qualquer atividade agrícola no prédio de que é proprietária, nem teve qualquer projeto para vir a desenvolver agricultura no referido prédio. O. E, contrariamente ao proferido pela Relação, entendem que "(...) não bastará a mera aptidão do prédio rústico para a agricultura, para que seja exercido o direito de preferência", "(...) mas também que seja realizada a cabal prova por parte das Autoras de actos demonstrativos de que estas efetivamente praticavam e exerciam actividades agrícolas no terreno que era sua propriedade". P. Entendem os Réus/Recorrentes que, pese embora se trate de um terreno apto para cultura (o prédio da Autora/Recorrida), tal não se verifica suficiente para se lograr reconhecido o direito de preferência, não bastando, portanto, a aptidão do terreno para cultura, sendo necessário demonstrar o exercício efetivo de atividades agrícolas promovidas no terreno. Q. Invocando a existência do facto impeditivo referido da 2a parte, da alínea a), do artigo 1382.°, do CC, e, em consequência, entendem estar afastado o reconhecimento do direito de preferência da Autora/Recorrida. R. Alegaram, ainda, os Réus/Recorrentes que o ónus da prova daquelas atividades incumbia à Autora/Recorrida, e não tendo a Autora/Recorrida feito prova de que o terreno estivesse efetivamente cultivado, estava afastado o exercício do direito de preferência. S. Ora, num primeiro momento, cumpre deixar claro que, tanto em sede de 1a instância, quanto em sede da Relação, entende-se que o pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência pelos proprietários de terrenos confinantes é de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura, não se impondo que estejam efetivamente cultivados. T. Traduzindo-se, uma vez mais, unânime o entendimento das duas instâncias, ora a propósito da determinação do fim a que se destina o prédio, que é a cultura. U. Posição também perfilhada pela Autora/Recorrida, conforme aduzido em sede de petição inicial, apelação e supra, no presente instrumento. V. Pelo que, estando o prédio apto para a cultura, ainda que não esteja efetivamente cultivado, inexiste qualquer impedimento ao reconhecimento do direito de preferência à Autora/Recorrida. W. Num segundo momento, e quanto ao ónus da prova, o artigo 342.°, n.° 1, do CC estabelece, efetivamente, que "Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado". X. Cabia, portanto, à Autora/Recorrida provar que o fim a que se destina o seu prédio é a cultura, bastando que, para tal, lograsse provar a aptidão do prédio à cultura. Y. Facto que resulta provado, tanto em sede de 1a instância, quanto, posteriormente, no acórdão da Relação. Z. Reitera-se que ambas as instâncias entenderam por provada a aptidão do terreno para a cultura, e que tal configura prova bastante para determinar o fim a que se destina o prédio para efeitos de reconhecimento de direito de preferência, havendo, portanto, um duplo entendimento quanto a esta questão. AA. Surgindo, contudo, divergência de entendimento entre as decisões da 1a instância e do Tribunal da Relação na abordagem ao instituto de abuso de direito, a que aludiremos infra, mas não quanto ao preenchimento dos pressupostos atinentes ao reconhecimento do direito de preferência. BB. Que não se olvidem, porém, os Réus/Recorrentes, que o n.° 2, do artigo 342.°, do CC estabelece que "A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita". CC. Quer isto dizer que, estando em causa a prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito de preferência, é aos Réus que compete a prova dos mesmos. DD. Sendo, por isso, de concluir que, a este respeito, tendo sido os Réus/Recorrentes a invocar que o prédio da Autora/Recorrida (das Autoras) se destinava a fim diferente do da cultura, facto impeditivo do direito de preferência, era a eles que competia apresentar prova disso mesmo. EE. Uma vez mais, resulta ser este o entendimento perfilhado tanto pela jurisprudência citada, quanto pelas decisões anteriores havidas nos presentes autos e, naturalmente, também o é pela Autora/Recorrida, conforme resulta dos presentes autos. FF. Num terceiro momento, considera-se fundamental referir que no que diz respeito à exceção à verificação do direito de preferência estabelecida no artigo 1381.°, alínea a), 2a parte, do CC, entende a Autora/Recorrida que esta previsão legal é inaplicável ao caso dos presentes autos, porquanto, conforme referido na sentença de 1a instância "(...) é para afastar a preferência relativamente ao adquirente do prédio quando este o adquiriu para fim diverso, lícito, da cultura e não o contrário" e que "(...) para que o facto impeditivo do direito de preferência (...)" ali previsto "(...) opere os seus efeitos, é necessário que o adquirente alegue e prove, não só a sua intenção de dar ao prédio adquirido uma outra afetação ou um outro destino que não a cultura, (...)". (sublinhado nosso) GG. Esse mesmo entendimento é relatado no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02/02/2017, processo n.° 1522/13.9TBGMR.G1 (Pedro Alexandre Damião e Cunha), em cujos autos o adquirente do prédio objeto de preferência logrou provar a afetação desse mesmo prédio a fim diverso da cultura. HH. Sendo evidente que, atendendo à questão a decidir, não há lugar, nos presentes autos, à aplicação do regime do artigo 1831.°, alínea a), 2a parte, do CC), dado que em momento algum se discute a alteração do destino do prédio objeto do direito de preferência. II. Discute-se sim, a análise do fim a que se destina o prédio confinante àquele que é objeto do direito de preferência. JJ. Conforme largamente aduzido, vêm os Réus/Recorrentes constantemente alegando que o fim a que a Autora/Recorrida destinava o seu prédio não era cultura, não tendo logrado, porém, provar a que outro fim se destina o referido prédio. KK. Todavia, mesmo nume tentativa de fazer tal prova, para que se vislumbrasse possível uma alteração do fim a que se destina o prédio, tinha essa alteração de ser legalmente admissível (que não é!) e aferida à altura em que ocorreu a aquisição, o que não sucedeu. LL. Portanto, só provando que esse novo destino do prédio era passível de ocorrer é que, eventualmente, se poderia equacionar uma afetação diferente da cultura. MM. É essa a interpretação que resulta da sentença, quando a propósito da exceção do artigo 1382.°, do CC a 1a instância dispõe:"(...) adquirente do prédio quando este o adquiriu para fim diverso, lícito, da cultura e não o contrário", bem como, quando refere "(...) mas também que essa projetada mudança de destino é permitida por lei", (sublinhado nosso) NN. Sendo, também, esse o entendimento demonstrado no referido acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, deixando bem claro que a existir ou a prever-se uma alteração do fim a que se destina um prédio, a nova finalidade invocada terá de ser juridicamente admissível à data da aquisição do prédio a preferir. 00. Sendo que, sempre tal alteração teria de ser coadunável com o determinado pelo Plano Diretor Municipal (PDM) e resultante de licença da entidade administrativa local (Câmara Municipal), o que não se verificava à data da aquisição, tampouco se verifica atualmente. PP. Porquanto, atendendo a que o prédio em causa se insere em zona ambiental protegida abrangida pela Reserva Agrícola Nacional (RAN) e pela Reserva Ecológica Nacional (REN), está vedada qualquer alteração ao fim do prédio a preferir. QQ. Pelo que, legalmente era (e é) inadmissível qualquer alteração do destino do prédio, que a ocorrer sempre ocorreria em violação da legislação de ordenamento do território e, a final, sempre seria declarada nula. RR. Não havendo qualquer viabilidade legal para destinar o prédio a outro fim que não a cultura. SS. Inexistindo, consequentemente, qualquer facto impeditivo do reconhecimento do direito de preferência. TT. Relativamente à apreciação do abuso de direito dispõe o artigo 334.°, do CC que "É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito". UU. Nesse sentido, bem nota o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, processo n.° 07B2739 (Santos Bernardino), que "Existe abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido em tese geral, surge, num determinado caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida segundo o critério social dominante". W. Ora, inserindo-se direito de preferência numa secção do Código Civil cuja epígrafe é "Fraccionamento e emparcelamento de prédios rústicos", cuja finalidade económica e social visada é o emparcelamento agrícola e, bem assim, o reordenamento da propriedade fundiária com vista a evitar o minifúndio e promover a viabilidade e sustentabilidade económica das explorações agrícolas. WW. Só havendo lugar a abuso de direito, caso se verifique, desvirtuado o fim económico e social do direito de preferência. XX. Não resultando, dos factos elencados como provados, que a Autora/Recorrida tenha agido de forma a defraudar a finalidade económica e social do direito de preferência e, bem assim, violando as regras estipuladas para o reordenamento da propriedade fundiária. YY. Pelo contrário, pretende a Autora/Recorrida exercer preferência sobre o prédio vendido e promover a anexação ao seu próprio prédio, daí não resultando qualquer violação das políticas de reordeamento da propriedade fundiária, tampouco se pode entender que resulte promoção do minifúndio. ZZ. Razão pela qual a Autora/Recorrida acompanha a explanação do douto Tribunal, entendendo que nada se conclui do facto da Autora/Recorrida não ter demonstrado o efetivo cultivo no seu prédio, tal como nenhuma conclusão se pode retirar do facto de, no seu prédio, existir uma casa móvel. AAA. Alegaram, ainda, os Réus/Recorrentes estar em causa uma futura alteração do destino a dar ao prédio. BBB. Para além de legalmente inadmissível, que não era possível verificar-se aquando da aquisição do prédio, e não se vislumbra possível suceder no futuro. CCC. E, portanto, uma vez mais, se limitam os Réus/Recorrentes a tecer afirmações interpretativas com base em circunstâncias hipotéticas, meramente especulativas, que nunca ocorreram, nem há qualquer evidência de que venham a ocorrer, e que não se vislumbram sequer possíveis quando enquadradas no panorama legal em vigor. DDD. Não se podendo concluir que, através das suas ações, a Autora/Recorrida haja excedido os limites da boa fé ou do fim económico ou social do direito de preferência. EEE. Carecendo, por isso, de fundamento a imputação à Autora/Recorrida do exercício abusivo do seu direito de preferência. FFF. Entendendo-se por não demonstrado o abuso de direito alegado pelos Réus/Recorrentes. GGG. No mais, não existe perigo absolutamente nenhum "(...) de os terrenos serem e se manterem divididos pelas Autoras" pois, conforme também já aduzido pela Autora/Recorrida, dispõe o artigo 50.°, n.° 1, da Lei n.° 111/2015, de 27 de Agosto, relativamente à anexação oficiosa de prédios rústicos contíguos com uma área global inferior à unidade de cultura que "Todos os prédios rústicos contíguos com uma área inferior à unidade de cultura e pertencentes ao mesmo proprietário, independentemente da sua origem, devem ser anexados oficiosamente pelo serviço de finanças, ou a requerimento do proprietário, (...)". HHH. Portanto, atendendo ao facto de que os prédios rústicos identificados na ação são contíguos e ambos com área global inferior à unidade de cultura, não restam dúvidas de que lhe é aplicável o procedimento de anexação ora descrito. III. E, mesmo havendo possibilidade de se opor ao procedimento de anexação, tal oposição não é feita sem mais, terá de ser fundamentada e justificada legal e casuisticamente e, sobretudo, não poderá violar o objetivo maior do emparcelamento agrícola. JJJ. Por conseguinte, contrariamente ao que mencionam os Réus/Recorrentes, sendo reconhecido o direito de preferência da Autora/Recorrida, atendendo ao procedimento de anexação por que passarão os referidos prédios rústicos, ver-se-á cumprido o objetivo do emparcelamento e, em consequência, cai por terra qualquer "possibilidade" de litígio relativamente aos ditos prédios em sede de partilhas. KKK. Pelo que, também esta alegação deve improceder. LLL. Face a todo o exposto, considera a Autora/Recorrida estarem validamente verificados os pressupostos de que depende o reconhecimento do seu direito de preferência. MMM. Não se verificando qualquer facto impeditivo do reconhecimento do direito de preferência à Autora/Recorrida. NNN. Devendo, em consequência, manter-se a decisão do douto Tribunal da Relação, nos exatos termos em que foi proferida”.
12. Em 30.11.2022 foi proferido no Tribunal da Relação de Évora o seguinte despacho: “BB e CC, Recorridos nos presentes autos de apelação, tendo sido notificados do acórdão datado de 16/09/2022, que revogou a sentença reconhecendo o direito de preferência às Autoras na venda que estes fizeram de um terreno confinante, e não se conformando com o teor do mesmo, vieram nos termos dos artigos 627.º e seguintes e 671.º e seguintes do Código de Processo Civil, interpor Recurso de Revista. O Acórdão revogou a sentença, julgando procedente a apelação interposta pela Autora DD e, entre o mais, reconheceu às AA. (aqui se incluindo a interveniente principal) o seu direito de preferência sobre o prédio rústico identificado nos autos, substituindo-se estas à Ré AA (Ré compradora) na escritura de compra e venda. Mais se condenou esta Ré a entregar o referido prédio, livre de ónus e encargos às AA. Ou seja, o acórdão desta Relação não confirmou a decisão de 1ª instância. Está assegurada a legitimidade, a tempestividade e a recorribilidade. O recurso de Revista é, assim, admissível nos termos do art. 671º, 1 e nº 3 a contrario, do Código de Processo Civil, pelo que se admite o mesmo, a subir nos próprios autos (art. 675º) e com efeito devolutivo (art. 676º a contrario)”.
13. E foi ainda proferido, na mesma data, um segundo despacho em que pode ler-se: “Por lapso, não atentamos no anterior despacho que também AA, Ré e Apelada nos presentes autos, tendo sido notificada do acórdão datado de 16/09/2022, que revogou a sentença, e não se conformando com o teor do mesmo, veio nos termos dos artigos 627.º e seguintes e 671.º e seguintes do Código de Processo Civil, interpor Recurso de Revista. O Acórdão revogou a sentença, julgando procedente a apelação interposta pela Autora DD e, entre o mais, reconheceu às AA. (aqui se incluindo a interveniente principal) o seu direito de preferência sobre o prédio rústico identificado nos autos, substituindo-se estas à Ré AA (Ré compradora) na escritura de compra e venda. Mais se condenou esta Ré a entregar o referido prédio, livre de ónus e encargos às AA. Ou seja, o acórdão desta Relação não confirmou a decisão de 1ª instância. Está assegurada a legitimidade, a tempestividade e a recorribilidade. O recurso de Revista é, assim, admissível nos termos do art. 671º, 1 e nº 3 a contrario, do Código de Processo Civil, pelo que se admite o mesmo, a subir nos próprios autos (art. 675º) e com efeito devolutivo (art. 676º a contrario)”.
* Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se existe o alegado direito de preferência e se o exercício não está impedido pelo abuso do direito.
* II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido: 1) As Autoras DD e EE têm escrita a seu favor, pela Ap. 1031 de .../.../2014, a aquisição, na constância do casamento no regime da comunhão de adquiridos, por compra, do prédio rústico sito em ..., freguesia ..., concelho ..., distrito ..., com a área de 2844,378 m2, constituído de terra de cultura com árvores, inscrito na matriz sob o artigo 38° e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 528/19930526, tal como resulta de fls. L0-Vº e 70, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 2) Em 29 de março de 2018, por escritura pública de compra e venda celebrada no Cartório Notarial ..., em ..., os Réus BB e CC venderam à Ré AA, pelo preço de €39.000,00, já pago, o prédio rústico sito em ..., freguesia ..., concelho ..., distrito ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo 37° e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 1027/20071225 w e inscrito a favor da referida Ré pela Ap. 3300 de 06-04-2018, com a área de 14.600 m2, composto de terra de cultura e diverso arvoredo, tal como resulta de fls. 45 e 205 a 208, cujo teor se dá por integralmente. 3) Na outorga da escritura pública, foram juntos os comprovativos de pagamento de IMT com o montante de € 1.950,00 (mil novecentos e cinquenta euros) e Imposto de Selo no montante de € 312,00. 4) Os prédios identificados em 1) e 2) são contíguos entre si. 5) A Ré AA não possuía, à data da compra e venda, prédio contíguo ao referido em 2). 6) As Autoras não foram notificadas pelos Réus para preferirem na venda referida em 2), por os Réus desconhecerem quem eram os proprietários do terreno, não estando identificados no próprio terreno referido em 1) e ... não ter sistema cadastral, o que dificulta a identificação dos confinantes. 7) Em 3 de Dezembro de 2018, HH, solicitadora, em representação dos Réus, remeteu carta à Autora DD alegando que, não foi realizada a comunicação do direito de preferência à Autora " (. . .) uma vez que não consta como confinante, nos documentos matriciais e registais (. . .) " e que " (. . .) ... é um concelho ainda não sujeito ao Cadastro Geométrico da Propriedade Rústica (CGPR), pelo que a delimitação da propriedade rústica é feita através de colocação de marcos e as suas iniciais não constam igualmente dos referidos marco (. . .) ", tal como resulta de fls. 13 a 19, cujo teor se dá por integralmente. 8) A Autora DD teve conhecimento da venda e das suas condições, designadamente o preço e a compradora antes do fim de novembro de 2018. 9) No prédio das Autoras nada foi cultivado ou plantado pelas mesmas. 10) No prédio referido em 1), pela Autora DD e sem oposição (d)a Autora EE, (foi colocada) uma casa móvel, com ar condicionado. 11) As Autoras estão divorciadas, encontrando-se a decorrer um processo de inventário com vista à partilha dos bens comuns. 12) A presente ação foi intentada em 3 de junho de 2019. 13) A Ré AA começou por limpar o terreno, durante oito dias no fim de junho de 2018 e princípios do mês de julho, das ervas, matos, pedras, árvores mortas e ramos partidos. 14) A seguir, promoveu uma limpeza mais profunda do terreno usando, no dia 9-07- 2018, uma máquina retroescavadora para a qual pagou € 215,32 por 4 horas e meia e trabalho. 15) Tendo continuado esse trabalho no dia 26-07-2018 onde utilizou um trator com grade de discos para arar e limpar a terra, tendo pago € 134,00. 16) No dia 16-07-2018, procedeu à recolha de resíduos e limpeza na sua propriedade tendo contratado a empresa T... Lda, tendo pago a quantia de € 140,98. 17) No dia 11-07-2018, a Ré AA procedeu à ligação do seu prédio ao hidrante do plano de rega ao que pagou a quantia de € 214,02. 18) Nessa mesma altura a Ré AA criou no seu prédio um ponto de ligação para a rega da barragem aceder, tendo custado este trabalho executado por um funcionário da Associação de Regantes € 500,00. 19) Iniciou em novembro de 2018 a construção de uma vedação à volta do seu prédio e a construção de um portão, tendo gasto na compra de madeira € 86,84. 20) Pagou ainda em 21-12-2018 à Associação dos Beneficiários do Plano de Rega do ... a quantia de € 55,16 do aluguer e utilização do hidrante. 21) Procedeu a Ré à poda de quarenta árvores existentes no seu prédio, nomeadamente, de oliveiras, figueiras, amendoeiras, alfarrobeiras, entre os meses de junho a setembro de 2018. 22) No dia 2 de janeiro de 2019, procedeu a outra limpeza do terreno, com máquina, e à abertura de valas para conduzir a água da rega às árvores, tendo pago € 304,75. 23) No seu prédio instalou a 14-05-2019 um abrigo de jardim, ou seja, um pequeno armazém para guarda das alfaias agrícolas, ferramentas, plantas, adubos, etc. e pelo qual pagou a quantia de € 424,65. 24) Ainda colocou no seu prédio para plantio e crescimento de árvores vários tubos de cobre para o que pagou € 31,60. 25) Procedeu à instalação e execução no seu prédio de um sistema de rega para o qual pagou em material e mão de obra a quantia de € 811,80. 26) No dia 21-08-2019 procedeu a trabalhos de limpeza no seu prédio, limpeza à volta de todas as árvores arando a terra para permitir que a água melhor penetre à raiz, fecho de valas que estavam abertas para a rega e realização da abertura de vala grande para depósito natural de água para rega e nivelamento de terra, tendo gasto a quantia de € 908,95. 27) A Ré comprou e plantou no seu prédio: - Dez Oleandros e vaso pagou € 61,90; - 1 mangueira, 1 marmeleiro, 1 romaneira, e 1 alfarrobeira que custou € 50,00; - 1 jacarandá que custou € 32,80. 28) No dia 17-01-2019, continuando a construir a vedação comprou 35 paus em madeira para essa vedação tendo pago a quantia de € 397,50. 29) A Ré comprou adubo e estrumes vários que deitou na sua terra tendo pago a quantia total de € 51,40. 30) A Ré gastou ainda (?)s litros de combustível nas máquinas que usou (moto serra , máquina de brocas grande e roçadora) para a poda das árvores, para os furos que abriu para plantar as árvores, para abrir buracos para a vedação, com a roçadora que limpou as ervas e matos, etc. tendo gasto a quantia total de € 505,26. 31) A Ré AA trabalhou ainda ela pessoalmente no seu prédio, na limpeza, nas podas das árvores, na construção da vedação e porta, no plantio das árvores no amanhar da terra, na construção do armazém, tempo não concretamente apurado.
E, de acordo com o Tribunal recorrido, “não se provaram quaisquer outros factos que se não compaginam com a factualidade apurada”: a) As Autoras mantêm o propósito com que adquiriram o imóvel, ou seja, utilizá-lo para fins agrícolas. b) A Autora EE teve conhecimento das condições da venda referida em 2) antes da notificação para intervir para a presente acção.
O DIREITO Verifica-se que os dois principais fundamentos em que vem sustentada a pretensão (que é a mesma em ambos os recursos) são a inverificação dos pressupostos do direito de preferência e o abuso do direito. Não é demais esclarecer que estes fundamentos não são cumulativos e sim alternativos. Assim, para aquela pretensão seja acolhida terá de se concluir ou que as autoras não têm direito de preferência ou que as autoras têm direito de preferência e não podem exercê-lo pelo facto de o seu exercício importar manifesto desrespeito pelos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (cfr. artigo 334.º do CC). Por outras palavras, mais curtas: o pressuposto do abuso do direito é a existência do direito; não pode haver abuso se não houver direito. Comece-se, pois, por apreciar este último ponto. O artigo 1380.º, n.º 1 do CC tem o seguinte teor: “Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante”. Na disposição seguinte – o artigo 1381.º do CC – complementa-se a disciplina, dispondo-se: “Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes: a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura; b) Quando a alienação abranja um conjunto de prédios que, embora dispersos, formem uma exploração agrícola de tipo familiar”. A propósito desta disciplina explica-se no sumário do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2021 (Proc. 892/18.7T8BJA.E1.S1)[1]: “I. O direito real de preferência atribuído pelo artigo 1380º, nº 1, do Código Civil, aos proprietários de prédios rústicos confinantes depende da verificação dos seguintes requisitos: i) ter sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; ii) ser o preferente o dono de prédio confinante com o prédio alienado; iii) ter o prédio do proprietário que se apresenta a preferir área inferior à unidade de cultura; iv) não ser o adquirente do prédio proprietário confinante. II. É sobre aqueles que se arrogam titulares do direito de preferência e que pretendem que lhes seja judicialmente reconhecido esse direito que recai o ónus de alegação e prova de todos estes requisitos, nos termos do disposto no artigo 342º, nº1 do Código Civil, impendendo sobre aqueles contra quem é invocado este direito, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do citado artigo 342º, e 1381º, alíneas a) e b), do mesmo código, o ónus de provar factos dos quais se possa concluir pela verificação de alguma das exceções contidas nestas duas alíneas”. Que os requisitos do artigo 1380.º do CC se verificam no caso em apreço não parece haver dúvidas perante a factualidade provada [cfr., designadamente, os factos provados 1), 2), 4) e 5)][2]. A discussão centra-se, pois, na eventual existência de factos impeditivos, mais precisamente na possibilidade de o terreno das autoras se destinar a fim que não seja a cultura [cfr. artigo 1381.º, al. a), in fine]. Mas o que significa “destinar-se a algum fim que não seja a cultura”? Quanto a isto não divergiram, em rigor, as instâncias. Tal como o Tribunal de 1.ª instância, o Tribunal da Relação considerou: “Sendo pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência pelos proprietários de terrenos confinantes, que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura, não é, contudo, necessário que estejam efetivamente cultivados. Posição da 1ª instância, expressa na sentença[3] e defendida já nesta Relação: “Para que o direito de preferência tenha êxito não se torna necessário que deparemos com um efetivo cultivo dos terrenos confinantes, bastando a mera aptidão para a cultura”- Ac. TRE Évora, 20-09-2007, P. 575/07-2, in www.dgsi.pt. Os prédios confinantes devem ser aptos para cultura, sem o que o direito de preferência não deverá ser reconhecido. Não podendo o prédio do preferente, no caso, das A.A estar afeto a um destino diferente, como aconteceria se, ainda que apto para cultura, tivesse sido objeto de um pedido de licenciamento de uma casa de habitação, com projeto de arquitetura aprovado, o que indiciaria que a sua aptidão para cultura sairia a curto ou médio prazo defraudada. Competindo aos Réus, a prova dessa diferente afetação. (…) Tendo as AA. demonstrado todos os pressupostos legais do direito de preferência e não tendo os Réus demonstrado os pressupostos das exceções invocadas, nomeadamente, o abuso de direito, deve tal direito ser-lhe reconhecido, revogando-se em conformidade a decisão recorrida”. Fazendo uma interpretação do artigo 1381.º do CC à luz da teleologia do instituto do direito de preferência (propiciar o emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, com vista a alcançar-se uma exploração agrícola tecnicamente rentável e evitar-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente) e na senda daquilo que vem sendo decidido neste Supremo Tribunal de Justiça, deve entender-se que basta a aptidão do terreno para cultura para não poder ser afastado o direito de preferência. Veja-se, por exemplo, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 3.11.2011 (Proc. 7712/05.0TBBRG.G2.S1) “Pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência atribuído pelo art.1380º do Código Civil aos proprietários de terrenos confinantes, é de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura”. Quer isto dizer que, ao contrário do que pretendem os recorrentes, a existência ou não de efectiva exploração agrícola do terreno não é necessária para este efeito[4]. Por aplicação conjugada dos artigos 1381.º e 342.º, n.º 2, do CC, o ónus da prova dos factos impeditivos do direito de preferência recai sobre aqueles contra quem o direito é invocado, ou seja, aqui os réus / recorrentes. Ora, os únicos factos que os réus / recorrentes lograram provar é que no prédio das Autoras nada foi cultivado ou plantado e que foi colocada uma casa móvel, com ar condicionado [cfr. factos provados 9) e 10) )]. Mas estes factos não contrariam a aptidão do prédio para a cultura – não demonstram que está precludida a possibilidade de, no futuro, vir a ser efectivamente desenvolvida a cultura. Lograram os réus / recorrentes provar ainda que as autores estavam divorciadas e a decorrer um processo de inventário [cfr. facto provado 11)]. Mas, como disse o Tribunal recorrido, isso nada traz de relevante para o efeito de aplicação do artigo 1381.º, n.º 1, al. a), in fine e de exclusão do direito de preferência. Não tendo os réus / recorrentes logrado provar qualquer facto relevante neste plano, a questão da existência do direito de preferência deve ser decidida contra eles. Veja-se agora se os réus / recorrentes têm razão quando alegam abuso do direito por parte das autoras. Como se disse, a ser admissível, isso paralisaria exercício do direito. Foi aqui que as instâncias divergiram: entendendo haver indícios de que as autoras pretendiam dar ao prédio um fim diferente daquele a que ele estava destinado, o Tribunal de 1.ª instância concluiu que existia abuso do direito; o Tribunal da Relação entendeu o contrário. A verdade é que não há prova de que o exercício do direito de preferência importe manifesto desrespeito pelos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (cfr. artigo 334.º do CC). A factualidade com relevância para este ponto é, fundamentalmente, a mesma que já foi referida. Aderindo às considerações feitas pelo Tribunal a quo, dir-se-á que: “O facto de, no terreno das preferentes ter sido colocada uma casa móvel com ar condicionado, não é, só por si, demonstrativo de que as AA. não possam conjugar essa infraestrutura com uma exploração de cultura, se não mesmo de retirar aquela. O facto de as AA. estarem em situação de divórcio é de todo irrelevante. Tal como é a possibilidade de, em partilhas cada uma ficar com o seu prédio “defraudando” o emparcelamento. Estamos perante uma mera possibilidade, fruto de contingências da vida que sobrevêm a uma realidade anterior, sem que se possa razoavelmente imputar de abusivo o exercício do direito à preferência face a esse hipotético cenário”. Não é possível, em suma, ter certezas quanto ao destino que, no futuro, será dado ao prédio. O que é certo é que a aplicação da figura do abuso do direito não pode assentar em meras especulações ou conjecturas. Vendo bem, se fossem admissíveis especulações ou conjecturas, teria de se admitir que é bem possível que factos como a maior área do terreno de que as autoras passam a ser proprietárias e a separação de bens na sequência do divórcio, envolvendo a possibilidade de alguma delas se tornar proprietária exclusiva, propiciem as condições ideais para que no prédio passe a ser efectivamente desenvolvida cultura.
* III. DECISÃO
Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.
* Custas pelos recorrentes.
* Lisboa, 6 de Julho de 2023
Catarina Serra (relatora)
Rijo Ferreira
Cura Mariano _____ [1] Subscrito pela ora Relatora como 1.ª Adjunta. |