Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
158/15.4T8TMR.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA PATERNIDADE / PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Doutrina:
-Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 4ª edição revista, Vol. I, Coimbra, pág. 462;
-Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, págs. 204-205;
-Paulo Mota Pinto, O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, Studia Iuridica, nº 40, Portugal-Brasil, Ano 2000, Coimbra Editora, 2000;
-Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume II, Direito da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da Filiação Adopção, com a colaboração de Rui Moura Ramos, Coimbra Editora, 2006, pág. 52, 124 e 139;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Vol. V, Coimbra, 1995, pág. 210;
-Remédio Marques, in artigo doutrinário citado na nota 1 precedente, p. 167 (nota 12) e no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 401/2011, de 22/09/2011, publicado no Diário d República, 2.ª Série, de 03/11/2011.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1842.º, N.º 1, ALÍNEA C) E 1844.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 16.º, N.º 1, 18.º, N.º 2, 26.º, N.º 1 E 3 E 36.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



- DE 07.07.2009, PROCESSO N.º 1124/05.3TBLGS.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08.02.2018, PROCESSO N.º5434/12.5TBLRA.C1.S1;
- DE 12-01-1995, IN CJ. STJ, ANO III, TOMO 1, PÁG. 19;
- DE 16.09.2014, PROCESSO N.º 973/11.8TBBCL.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19.06.2012, PROCESSO N.º 297/08.8TBPVL.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20.06.2013, PROCESSO N.º 3460/ 11.0TBVFR.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21.02.2008, PROCESSO N.º 07B4668, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21-10-1993, IN CJ. STJ, ANO I, TOMO III, PÁG. 84;
- DE 25.03.2010, PROCESSO N.º 144/07.8TBFVN.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 31.01.2007, PROCESSO N.º 06A4303, IN WWW.DGSI.PT.




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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:



- ACÓRDÃO N.º 23/2006, DE 10.01.2006, PROCESSO N.º 885/2005;
- ACÓRDÃOS N.º 609/2007, DE 11.12.2007, PROCESSO N.º 563/07;
- ACÓRDÃO N.º 279/2008, DE 14.05.2008, PROCESSO Nº 756/07;
- ACÓRDÃO N.º 589/07, DE 28.11.2007, PROCESSO N.º 473/07;
- ACÓRDÃO Nº 593/2009, DE 18.11.2009, PROCESSO Nº 783/09;
- ACÓRDÃO N.º 179/10, DE 12.05.2010, PROCESSO N.º 432/08;
- ACÓRDÃO N.º 446/2010, DE 23.11.2010, PROCESSO N.º 195/10;
- ACÓRDÃO N.º 39/11, DE 25.01.2011, PROCESSO N.º 650/10;
- ACÓRDÃO N.º 449/2011, DE 11.10.2011, PROCESSO N.º 898/10;
- ACÓRDÃO N.º 634/2011, DE 20.12. 2012, PROCESSO N.º 305/2010;
- ACÓRDÃO N.º 441/13, DE 15.07. 2013, PROCESSO N.º 428/12.
Sumário :
I. Constitui entendimento pacífico do Tribunal Constitucional que o legislador ordinário goza de liberdade para submeter as ações de impugnação da paternidade a um prazo preclusivo, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, cabendo-lhe fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo.

II. Os interesses subjacentes à ação de impugnação da paternidade presumida, diferem consoante estamos perante uma ação negatória da paternidade proposta pela mãe ou pelo presumido pai – em que o direito tutelado é o direito de personalidade de cada um destes - ou uma ação proposta pelo filho - em que o direito protegido é o direito à sua identidade pessoal e ao desenvolvimento da sua personalidade – , sendo, por isso, a necessidade de ponderação e a harmonização de todos estes valores com o interesse público ligado à segurança jurídica e à estabilidade social e familiar que legitima o legislador a fixar prazos razoáveis de caducidade.

III. É que a relação paterno-familiar estabelecida, a confiança e a paz familiar seriam necessariamente postas em crise, se colocadas numa situação de permanente precariedade e incerteza, por sujeita a ser abolida por ação, exercitável a todo o tempo, sem qualquer preclusão, do filho.

IV. Do mesmo modo, tornando-se imprescritível a ação proposta por algum dos progenitores contra o filho, os cônjuges acabariam, de forma manifestamente injustificada, por afetar a confiança que o filho, porventura, tinha depositado, ao longo de muitos anos, na consistência da filiação resultante do registo civil e/ou por poder inviabilizar, na prática, a ulterior propositura pelo filho da ação de reconhecimento judicial da paternidade.

V. A fixação legal de prazos de caducidade para a propositura de ações de impugnação da paternidade presumida, diferenciados por categorias de interessados legitimados, como se prescreve nos artigos 1842.º a 1844.º do CC, desde que tais prazos se mostrem proporcionados ou razoáveis, não ofende o núcleo essencial dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade e de constituir família, por via da verdade biológica da geração paterna, quer do dito filho quer do suposto progenitor, garantidos nos termos dos artigos 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1 e 3, e 36.º, n.º 1, da Constituição da República.

VI. O prazo geral estabelecido no art. 1842º, nº1, al. c), 1ª parte, do C. Civil – ou seja, nos 10 anos subsequentes à maioridade ou emancipação – é um prazo razoável e proporcional que não coarta o direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade do filho impugnante, no confronto com o princípio da confiança na relação de filiação estabelecida e da tutela da estabilidade e paz familiar, tanto mais que, o mesmo pode ainda beneficiar do prazo especial de 3 anos fixado na 2ª parte desta mesma alínea c).

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


I – Relatório


1. AA instaurou ação declarativa de impugnação de paternidade presumida, com processo ordinário, contra BB e CC, pedindo que se declare que o seu pai não é DD mas, antes, o réu CC e que este facto seja registado na Conservatória do Registo Civil.

Alegou, em síntese, que DD consta no Registo Civil como sendo seu pai, apenas por ser o marido da sua mãe, à data do nascimento da autora, mas o seu pai biológico é o réu CC.

Mais alegou que teve conhecimento deste facto porque, em junho de 2014, após o falecimento de DD, ocorrido em 07.03.2014, a sua mãe confessou-o a si, à sua irmã e a outros familiares mais próximos.


2. Regularmente citado, o réu CC contestou, impugnando parte dos factos alegados e sustentando, em síntese, que a presente ação e a imputação da paternidade da autora ao réu é uma invenção desta, apenas para se tornar herdeira dele.

Além disso, a autora já afirmava que era filha do réu, há mais de seis e de nove anos, pelo que a sua pretensão não poderá ser atendida por efeito da caducidade.


3. Dispensada a realização da audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, procedendo-se, de seguida, à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas de prova.


4. Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que, não obstante considerar que a autora completou os dezoito anos de idade em 31.01.1992 e que, por isso, à data da propositura da ação (27.01.2015), já se mostrava ultrapassado o prazo de 10 anos previsto no art. 1842º, nº 1, al. c) do C. Civil, afirmou a inconstitucionalidade desta norma bem como a “imprescritibilidade” da ação de impugnação de paternidade presumida, pelo que, recusando a aplicação da dita norma, julgou a ação procedente e, em consequência, declarou qua a autora AA não é filha de DD, sendo, antes, filha de CC.


5. Inconformado, recorreu o réu, CC, para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão proferido em 14.09.2017, decidiu não enfermar a norma do art. 1842º, nº1, al. c) do C. Civil de inconstitucionalidade material e, revogando a decisão recorrida, julgou verificada a exceção de caducidade e absolveu os réus do pedido.


6. Inconformada com este acórdão, a autora dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« A) - O prazo para propor a presente ação é imprescritível, sendo que o artigo 1842° do Código Civil é inconstitucional.

B) - Após a confirmação de que o recorrido é pai biológico da
recorrente, não pode por uma questão de caducidade ser negado esse bem
tão valioso que é o conhecer a paternidade biológica.

C) - O Direito legislado não pode afastar o direito natural ou seja o direito ao conhecimento da proveniência biológica.

D) - Assim foi entendido e a nosso ver bem pelo Tribunal de primeira Instância, em que declarou que a recorrente AA, não é filha de DD, (marido de sua mãe) mas sim filha de CC, ora recorrido.

E) - Pelo que a decisão do Tribunal "a quo" deve ser revogada, mantendo-se a decisão proferida em primeira instância».


Termos em que requer seja dado provimento ao presente recurso, e em consequência, seja revogada a decisão ora recorrida, mantendo-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.


7. O réu contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

        

8. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objecto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, a única questão a decidir consiste em saber se a norma do artigo 1842º, nº 1, al. c) do Código Civil, na redação dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de abril, na medida em que limita a possibilidade de impugnação da paternidade presumida, a todo o tempo, pelo filho, é inconstitucional.


*



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


As instâncias consideraram provados os seguintes factos:


1º- A autora nasceu em 31 de Janeiro de 1974 (alínea A) dos factos assentes);

2º- Tendo sido registada, na Conservatória do Registo Civil de … como filha de BB e de DD (alínea B) dos factos assentes);

3º- BB e DD, casaram, um com o outro, em 15 de Agosto de 1964 (alínea C) dos factos assentes);

4º- No dia 7 de Março de 2014, DD faleceu, no estado de casado com BB (alínea D) dos factos assentes);

5º- O réu CC é viúvo (alínea E) dos factos assentes);

6º- A ré BB manteve relações sexuais de cópula completa com CC (resposta ao n° 2 dos temas da prova); 

7º- Tendo sido das relações sexuais que manteve com este CC que nasceu a autora (resposta ao n.º 3 dos temas da prova);

8º- A ré BB padece da doença de Alzheimer há vários anos (resposta ao n° 4 dos temas da prova).



***



3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se com a questão da inconstitucionalidade da estatuição legal dos prazos de caducidade do direito do filho de maioridade ou emancipado de impugnar a sua paternidade presumida.


3.2.1. Enquadramento preliminar


Estamos no âmbito específico de uma ação de impugnação da paternidade presumida respeitante a filho nascido ou concebido na constância do matrimónio e estabelecida em relação ao marido da mãe no artigo 1826.º, n.º 1, do C. Civil.

Trata-se, no dizer de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[2], de uma ação com vista a possibilitar a correção de uma atribuição legal e automática de paternidade que se julgue não corresponder ao vínculo real de parentesco que decorre dos direitos fundamentais à integridade e à identidade pessoal consagrados, respetivamente, nos arts. 25º, nº 1 e 26º, nº1, ambos da CRP, na medida em que o conhecimento da ascendência verdadeira é um aspeto da personalidade individual e uma condição de gozo pleno daqueles direitos fundamentais.  

De resto, foi para evitar o reconhecimento de vínculos manifestamente fictícios, isto é, sem apoio na realidade biológica que a Reforma de 1977 ao Código Civil de 1966, introduziu alterações profundas na ação de impugnação, reconhecendo, expressamente, a legitimidade ativa do filho e da mãe casada para impugnar a presunção “pater is est… ” (cfr. art. 1839, nº1 do C. C.), e alargando o prazo de caducidade e a forma de o contar (cfr. art. 1842.º do C. C).

Mas, a verdade é que, como referem aqueles mesmos autores[3], «a valorização dos direitos fundamentais da pessoa, a força redutora da verdade biológica e a igualdade do estatuto jurídico de todos os filhos, ainda não tiveram o mérito de afastar o regime tradicional e de fazer consagrar a admissibilidade da impugnação a todo o tempo».

Por isso é que, como nos dá conta o recente Acórdão do STJ, de 08.02.2018 (revista nº 5434/12.5TBLRA.C1.S1), « a problemática da “(im)prescritibilidade” das ações para reconhecimento de paternidade e para impugnar a paternidade presumida tem vindo a ser objeto de acesa discussão doutrinária e jurisprudencial, que desembocou, entre nós, em duas linhas essenciais de orientação.

De um lado, emergiu uma corrente inovadora, já significativa em 1977, a sustentar que o direito à identidade biológica como dimensão dos direitos fundamentais à identidade e à integridade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, robustecidos pela garantia da dignidade pessoal e da identidade genética do ser humano, assentes nos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como o direito de constituir família (art.º 36.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental) é incompatível com o cerceamento, através de prazos de caducidade, do único meio de efetivar esse direito e que é a ação judicial. Nessa linha, considera-se, em síntese, que as razões de segurança jurídica, de ordem social e patrimonial, em torno da instituição familiar e em prol da estabilidade das relações de parentesco, e sobretudo de salvaguarda da reserva de intimidade da vida privada do investigado em que radicam tais prazos de caducidade não assumem, na atualidade, importância que deva ser equiparada ou sobreposta ao interesse inalienável do cidadão na sua filiação biológica.

De outro lado, perfilha-se uma orientação, de certo modo tributária da doutrina subjacente às soluções consagradas no Código Civil de 1966, no sentido de que o exercício dos referidos direitos fundamentais não deve ser irrestrito a ponto de sacrificar interesses de ordem pública e de natureza pessoal que se vão consolidando ao longo do tempo, para mais ante a inércia injustificada dos interessados no reconhecimento da verdade biológica da filiação, devendo, por isso, ser compatibilizados os interesses conflituantes através do estabelecimento de prazos de caducidade razoáveis».


*



3.2.2. A norma cuja constitucionalidade é questionada no âmbito do presente recurso de revista é a do artigo 1842º, nº 1, al. c) do Código Civil, na redação dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de abril, no segmento em que estabelece o prazo de caducidade de 10 anos da ação de impugnação da paternidade presumida, impondo que tal ação deva ser proposta pelo filho nos 10 anos subsequentes à sua maioridade ou emancipação.


Persiste a recorrente na defesa da tese seguida na sentença do Tribunal de 1ª Instância e que recusou a aplicação desta norma, com o fundamento de que o respeito pela verdade biológica impõe a “imprescritibilidade” não só do direito do filho de investigar a paternidade como o de impugnar a sua paternidade presumida, concluindo pela inconstitucionalidade material do segmento normativo prescritor do prazo de caducidade de 10 anos para o filho intentar ação de impugnação da paternidade presumida, por constituir violação do direito à sua identidade pessoal, consagrado no art. 26º, nº1 da CRP, bem como do direito de constituir família, plasmado no art. 36º, nº1 do mesmo diploma legal.  


Diferentemente, o acórdão recorrido, refutando esta tese, sufragou o entendimento de que o prazo-regra de dez anos para impugnação da paternidade, é um prazo razoável e proporcional que não coarta o exercício do direito do impugnante, no confronto com o princípio da confiança e da tutela dos interesses merecedores de proteção do presumido progentor, e concluiu no sentido do segmento normativo prescritor de tal prazo não enfermar de inconstitucionalidade material. 

Que dizer?

Desde logo que a questão da constitucionalidade da norma do citado art. 1842º que estabelece o prazo de caducidade de 10 anos do direito do filho impugnar a paternidade presumida tem sido suscitada particularmente a propósito da ação de investigação de paternidade intentada pelo filho nos termos do art. 1817º, nº 1, aplicável por força do disposto no art. 1873º, ambos do C. Civil.

Isto porque o Tribunal Constitucional, no acórdão nº  23/2006, de 10.01.2006 (processo n.º 885/2005)[4] declarou «a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa».

Perante a doutrina deste aresto passou, então, a discutir-se se a mesma era também aplicável às ações de impugnação de paternidade sujeitas a diversos prazos de caducidade, consoante propostas pelo marido, pela mãe ou pelo filho (art. 1842º, nº 1, als. a), b) e c) do C. Civil).  

Mas, já quanto a esta questão, não houve consenso de entendimentos no Tribunal Constitucional, tendo surgido, então, duas correntes jurisprudenciais.

Uma delas, sufragada, entre outros, nos Acórdãos nº 609/2007, de 11.12.2007 (processo nº 563/07) e nº 279/2008, de 14.05.2008 (processo nº 756/07)[5], defendeu que as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817º do Código Civil, valiam também para a disposição  contida no artigo 1842º, nº1, alínea c), do Código Civil. E, sustentando que não se podem colocar desproporcionadas restrições aos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, decidiu pela «inconstitucionalidade da norma prevista no art. 1842º, nº 1, alínea c), do Código Civil, na medida em que prevê, para a caducidade do direito do filho maior ou emancipado de impugnar a paternidade presumida do marido da mãe, o prazo de um ano a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, por violação dos artigos 26º, nº1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa».

Já a outra corrente, sufragada, entre outros, no Acórdão nº 589/07, de 28.11.2007 (processo nº 473/07) [6], pronunciou-se no sentido de que «não parece que a fixação de um prazo de caducidade para a impugnação de paternidade pelo pai presumido, nos termos em que se encontra previsto na referida norma do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, represente uma intolerável restrição ao direito de desenvolvimento da personalidade entendido com o alcance de um direito de conformar livremente a sua vida, quando é certo que a preclusão do exercício do direito de impugnar pode justamente ter correspondido a uma opção que o interessado considerou ser em dado momento mais consentâneo com o seu interesse concreto e o seu condicionalismo de vida». E, afirmando, não poder entender-se que exista uma paridade de situação entre os prazos de caducidade dos artigos 1817º, n.º 1, e 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil em termos de se poder aplicar neste último caso as razões que conduziram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade daquele outro preceito, decidiu não julgar inconstitucional, por violação do direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, a norma do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil.

Com a entrada em vigor da Lei nº 14/2009, de 01.04, que veio alargar os prazos de caducidade para a propositura da acção de investigação, estabelecidos no art. 1817º, nºs 1 e 2 (que passaram de 2 para 10 anos e 1 ano para 3 anos, respetivamente) do C. Civil e para a propositura da ação de impugnação de paternidade constantes do artigo 1842.º, n.º 1 [ que de 2 anos passaram para 3 anos – als. a) e b) – e de  até 1 ano e dentro de 1 ano passaram para até 10 anos e dentro de 3 anos- al. c)]  do C. Civil, foi esta última tese que acabou por se afirmar  no Tribunal Constitucional.

Assim, o Acórdão nº 593/2009, de 18.11.2009 (processo nº 783/09)[7], decidiu «não julgar inconstitucional a norma do artigo 1842º, nº1, alínea a) do Código Civil, na medida em que limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade».

O Acórdão nº 179/10, de 12.05.2010 (processo nº 432/08)[8], aderindo à jurisprudência fixada no Acórdão n.º 589/07, considerou que « o prazo definido no artigo 1842º n.º 1 alínea a) do Código Civil para a impugnação da paternidade por parte do pai presumido, é um prazo razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do exercício do direito de acção» e decidiu «não julgar inconstitucional, por violação do artigo 26.º da Constituição, a norma do artigo 1842.º nº 1 alínea a) do Código Civil, quando, ao fixar um prazo de 2 anos, limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade».

O Acórdão nº 446/2010, de 23.11.2010 (processo n.º 195/10) [9] , na esteira dos Acórdãos nº 589/2007 e n.º 179/2010, decidiu «Julgar não inconstitucional a norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que estabelece que a acção da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo marido da mãe, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade».

O Acórdão nº 39/11, de 25.01.2011 (processo n.º 650/10) [10] , na esteira do Acórdão nº 446/2010, decidiu «não julgar inconstitucional a norma do artigo 1842.º n.º 1 alínea a) do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que estabelece que a acção da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo marido da mãe, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade».

O Acórdão nº 449/2011, de 11.10.2011 (processo n.º 898/10) [11], mantendo o juízo de constitucionalidade afirmado nos Acórdãos nº 589/2007 e n.º 179/2010, decidiu «que a norma retirada do artigo 1842º, nº 1, alínea a), do Código Civil, na redacção da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, aqui em apreço, não é materialmente inconstitucional».

O Acórdão nº 634/2011, de 20.12. 2012 (processo n.º 305/2010) [12], aplicando a jurisprudência dos Acórdãos  nºs 446/2010, 39/2011 e 449/2011, decidiu « não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 1, alínea a), do artigo 1482.º do Código Civil, na parte em que admite a caducidade do direito do marido a impugnar a paternidade do seu presumido filho».

Na mesma linha de orientação, o Acórdão nº 441/13, de 15.07. 2013 (processo n.º 428/12 ) [13], considerou, em síntese, haver que «concluir que não há qualquer imposição constitucional no sentido da imprescritibilidade da ação de impugnação da paternidade presumida do marido, não obstante ser de reconhecer o direito fundamental à identidade pessoal da mãe (artigo 26.º, n.º 1, da CRP). E que o estabelecimento do prazo de três anos, contados a partir do nascimento do filho, traduz-se numa afetação negativa deste direito, necessária à salvaguarda do direito à identidade pessoal do filho e ao interesse da proteção da família constituída (artigos 26.º, n.º 1, 67.º e 18.º, n.º 2, da CRP). A norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea b), do CC, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, segundo a qual a mãe pode intentar a ação de impugnação de paternidade dentro dos três anos posteriores ao nascimento, não viola, por isso, o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa».

Neste mesmo sentido, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a admitir a sujeição da ações de estabelecimento da filiação a prazos fixados nos ordenamentos internos dos Estados Contratantes, desde que não se tornem impeditivos do uso do meio de investigação em causa nem representem um ónus exagerado ou que dificulte excessivamente o estabelecimento da verdade biológica[14].   

Como não podia deixar de ser, a doutrina de todos estes arestos, teve importantes repercussões na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

Com efeito, após a prolação pelo Tribunal Constitucional do supracitado Acórdão nº 23/2006, fortaleceu-se e sedimentou-se, no STJ, o entendimento de que o ordenamento jurídico português deixou de prever prazos de caducidade para estabelecer a filiação jurídica com base na prova directa da filiação biológica[15], por se considerar que os direitos fundamentais à identidade pessoal, à integridade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade não se compadeciam com desproporcionadas restrições.

E, quanto à questão de saber se a doutrina daquele aresto do Tribunal Constitucional era aplicável, com base no princípio ou argumento do paralelismo ou da identidade de razão, por interpretação extensiva, às ações de impugnação de paternidade, que o artigo 1842º, nº 1, als. a), b) e c) do C. Civil, sujeita a prazos distintos de caducidade, consoante propostas pelo marido, pela mãe, ou pelo filho, respetivamente, o STJ, passou a defender, sem dissentimento particularmente relevante, que as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado art. 1817º nº 1 do C.C. eram também válidas para a disposição contida no art. 1842º nº 1 do mesmo Código, na medida em que o respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar como do de impugnar.

Assim, seguindo esta linha de entendimento, os Acórdão do STJ, de 31.01.2007 (revista nº 06A4303)[16] , de 21.02.2008 ( revista nº 07B4668) [17] decidiram que o prazo do artº 1842º, nº 1, alínea a), do C. Civil, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional.

A divergência de entendimentos sobre esta matéria começou a delinear-se, tal como aconteceu com o Tribunal Constitucional, com a entrada em vigor da Lei nº 14/2009, de 01.04, que veio alargar os prazos de caducidade para a propositura da acção de investigação, estabelecidos no art. 1817º, nºs 1 e 2 (que passaram de 2 para 10 anos e de 1 ano para 3 anos, respetivamente) do C. Civil e para a propositura da ação de impugnação de paternidade constantes do artigo 1842.º, n.º 1 [que de 2 anos passaram para 3 anos – als. a) e b) – e de até 1 ano e dentro de 1 ano passaram para até 10 anos e dentro de 3 anos- al. c)] do C. Civil.

Deste modo, a par dos vários arestos do STJ que continuaram a pronunciar-se no sentido da inconstitucionalidade dos prazos de caducidade estabelecidos para a propositura da ação de impugnação da paternidade previstos no art. 1842º, nº1, als. a), b) e c), mesmo na actual redação dada pela referida Lei nº 14/2009, por serem limitadores da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, começou-se a registar, a partir de 2009-2010, a adesão significativa, no STJ, da tese segundo a qual não ofende a Constituição o estabelecimento de prazos razoáveis de caducidade, por não se tratar de uma restrição do núcleo essencial de direitos fundamentais, maxime dos direitos à identidade e à integridade pessoal, mas, antes, de e condicionamentos ao respetivo exercício[18].

Assim, alinhando pela tese da “imprescritibilidade” das ações de impugnação da paternidade presumida, consideraram os Acórdãos do STJ, de 07.07.2009 (processo nº 1124/05.3TBLGS.S1)[19], de 25.03.2010 (processo nº 144/07.8TBFVN.C1.S1) [20] e de 19.06.2012 (processo nº 297/08.8TBPVL.G1.S1) [21], que a norma constante do art. 1842.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade do progenitor e marido da mãe propor, a todo o tempo, ação de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que não era pai biológico, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva e bem assim como do preceituado pelos arts. 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.

Na mesma linha pronunciou-se o acórdão do STJ de 16/09/2014 (processo n.º 973/11.8TBBCL.G1.S1)[22], ao considerar que:

«A norma constante do art.º 1842.º, n.º 1, alínea c), do CC, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade do filho do marido da mãe propor, a todo o tempo, a ação de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que este último não era o seu pai biológico, é inconstitucional, por violação do direito à tutela efectiva e, bem assim, como do preceituado pelos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n,º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.».

Divergindo deste entendimento e aderindo à jurisprudência fixada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 589/07, considerou o acórdão do STJ de 20/06/2013 (processo n.º 3460/ 11.0TBVFR.P1.S1)[23], em síntese, que:

«1. A específica constelação de interesses subjacente à acção de impugnação da paternidade presumida – obrigando a articular o interesse dos cônjuges (ou ex-cônjuges) em eliminarem uma paternidade registral biologicamente inverídica com o interesse do filho, necessariamente demandado nessa acção, e cujo direito à identidade pessoal se não alcança integralmente com a sentença de impugnação, envolvendo ainda a necessidade de propor, ele próprio, uma ulterior acção de reconhecimento judicial da paternidade, que deixe fixado juridicamente o vínculo de filiação – legítima e justifica que a acção proposta pela mãe possa ser legalmente submetida a um prazo de caducidade, não se afigurando, deste modo, como necessariamente imprescritível.

2. O prazo de 3 anos, contados do nascimento do filho, não se configura como desproporcionado ou irrazoável, pelo que não é materialmente inconstitucional a norma constante da alínea b) do n.º 1 do art.º 1842.º do C C.».


*



3.2.3. Feita esta incursão pela Jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça e, procurando tomar posição sobre qual das teses a adotar, no caso dos autos, importa, desde logo, realçar que se é certo que a lei civil portuguesa não adotou a regra da “imprescritibilidade” do direito de impugnação da paternidade presumida, tendo, desde sempre, constituído opção do legislador o estabelecimento de limites temporais ao exercício desse direito, não menos certo é que, após as alterações introduzidas aos prazos de caducidade do direito de investigar a paternidade e do direito de impugnação da paternidade presumida pela Lei nº 14/2009, de 1 de abril, o Tribunal Constitucional atestou a conformidade constitucional do regime atualmente em vigor.

Assim, a propósito das ações de impugnação da paternidade presuntiva, afirmou o Acórdão nº 593/2009, de 18.11.2009 (processo nº 783/09), fazendo apelo aos ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela[24], que a opção do legislador pela regra da caducidade põe em destaque o relevo que o mesmo «confere ao interesse geral da estabilidade das relações sociais e familiares e ao sentimento de confiança em que deve basear-se a relação paternal, quando se trate de filhos nascidos na vigência do casamento» e que «nas situações de paternidade presumida, a necessidade de salvaguardar a harmonia e paz familiar explicam que a ordem jurídica aceite a relação de filiação como definitivamente adquirida, a partir de determinado momento, embora sabendo que ela pode não corresponder à realidade biológica normalmente subjacente ao vínculo de paternidade».

Mais afirmou, apelando às lições de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[25], que, «embora se possa afirmar, no domínio do direito da filiação, a existência de um princípio de verdade biológica, que decorre desde logo da abertura que o legislador deu, na reforma do Código Civil de 1977, à utilização como meios de prova, nas acções relativas à filiação, de «exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados» (artigo 1801º do Código Civil)», o certo é que esse princípio, ainda que possa entender-se como um critério estruturante do regime legal, não assume dignidade constitucional (…) e não pode fundamentar, por si só, um juízo de inconstitucionalidade relativamente à norma que fixa um prazo de propositura da acção de impugnação da paternidade», concluindo que, independentemente de ser ou não constitucionalmente criticável a possibilidade de consagração de limites, nomeadamente temporais, ao exercício do direito de instaurar a ação de impugnação de paternidade presumida, o que não é admissível é a criação de um limite que, na prática, vede, em absoluto, a possibilidade de o sujeito averiguar o vínculo de filiação natural e que, por isso, constitua violação dos direitos fundamentais à identidade pessoal[26] e ao desenvolvimento da personalidade[27], consagrados no artigo 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Vale tudo isto por dizer, ser, nos dias de hoje, entendimento pacífico do Tribunal Constitucional que o legislador ordinário goza de liberdade para submeter as ações de impugnação da paternidade a um prazo preclusivo, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, cabendo-lhe fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo[28].

Ou seja, ainda que se aceite o direito à verdade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, como direitos fundamentais, isso não impede que o legislador possa harmonizar ou até mesmo restringir o exercício de tais direitos em função de outros interesses ou valores constitucionalmente tutelados, na medida em que não estamos perante direitos absolutos.

E porque, nas palavras do Acórdão do STJ, de 20/06/2013, os interesses subjacentes à ação de impugnação da paternidade presumida, diferem consoante estamos perante uma ação negatória da paternidade proposta pela mãe ou pelo presumido pai – em que o direito tutelado é o direito de personalidade de cada um destes - ou uma ação proposta pelo filho - em que o direito protegido é o direito à sua identidade pessoal –, é, no fundo, a ponderação e a harmonização de todos estes valores com o interesse público ligado  à segurança jurídica e à estabilidade social e familiar que legitima o legislador a fixar prazos razoáveis de caducidade.

É que, a não ser assim, ou seja, tornando-se imprescritível a ação proposta pelo filho, a relação paterno-familiar estabelecida, a confiança e a paz familiar seriam necessariamente postas em crise, se colocadas numa situação de permanente precariedade e incerteza, por sujeita a ser abolida por ação, exercitável a todo o tempo, sem qualquer preclusão, do filho.

Do mesmo modo, tornando-se imprescritível a ação proposta por algum dos progenitores contra o filho, os cônjuges acabariam, de forma manifestamente injustificada, por afetar a confiança que o filho, porventura, tinha depositado, ao longo de muitos anos, na consistência da filiação resultante do registo civil e/ou por poder inviabilizar, na prática, a ulterior propositura pelo filho da ação de reconhecimento judicial da paternidade.

Daí que, acolhendo a orientação assumida no acórdão do STJ de 20/06/2013, por ser a mais consentânea com a jurisprudência constitucional, seja de concluir que a fixação legal de prazos de caducidade para a propositura de ações de impugnação da paternidade presumida, diferenciados por categorias de interessados legitimados, como se prescreve nos artigos 1842.º a 1844.º do CC, desde que tais prazos se mostrem proporcionados ou razoáveis, não ofende o núcleo essencial dos direitos fundamentais à integridade e identidade pessoal[29] e ao desenvolvimento da personalidade e de constituir família[30], por via da verdade biológica da geração paterna, quer do dito filho quer do suposto progenitor, garantidos nos termos dos artigos 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, 25º, nº1, 26.º, n.º 1 e 3, e 36.º, n.º 1, da Constituição da República.


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3.2.4. Aceite a “prescritibilidade” das ações de impugnação da paternidade, diremos, então, que a questão crucial que a presente revista suscita tem a ver com a pretensa inconstitucionalidade do prazo de caducidade previsto no art. 1842º, nº1, al. c) para a ação de impugnação da paternidade presumida proposta pelo filho maior ou emancipado, apenas na consideração de que o mesmo possa estabelecer um limite desproporcional ao significado que o exercício do direito de ação em causa pretende salvaguardar, na aceção de poder não garantir, adequadamente, esse valor constitucional.

Dito de outro modo, o enfoque em que se deve colocar a questão da constitucionalidade da citada norma é o da possível violação, na fixação normativa do prazo de “até 10 anos depois” do filho “haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado”, dos falados direitos fundamentais à integridade pessoal (art. 25º. nº1 da CRP), à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (art. 26º, nº1 da CRP) e ao direito a constituir família (art. 36º, nº1 da CRP) e, portanto, o de saber se tal prazo se mostra proporcionado ou razoável.         

E a este respeito diremos que, pese embora estar em causa o direito da recorrente à sua identidade pessoal e ao desenvolvimento da sua personalidade, no confronto com o princípio da confiança na relação de filiação estabelecida e da tutela da estabilidade e paz familiar, não se descortina que o prazo geral estabelecido no at. 1842º, nº1, al. c), 1ª parte, do C. Civil – ou seja, nos 10 anos subsequentes à maioridade ou emancipação – coarte, de alguma forma, o exercício do direito da autora, nem se vislumbra qualquer razão que possa conduzir a um juízo de inadequação deste mesmo prazo, tanto mais que, no caso dos autos, a autora/recorrente poderia ainda beneficiar do prazo especial de 3 anos fixado na 2ª parte desta mesma alínea c) – isto é, para além do limite dos 10 anos, nos 3 anos subsequentes ao conhecimento subjectivo de factos que indiciem a não paternidade biológica do pai presumido - e só não beneficiou dele por não ter logrado provar os factos por ela alegados (respostas negativas aos factos a provar nºs 1, 5, 6 e 7). 

Termos em que se conclui não ser materialmente inconstitucional a norma constante da alínea c) do n.º 1 do art.º 1842.º do C. Civil, improcedendo todas as conclusões de recurso da recorrente.             

Daí nenhuma censura merecer a decisão recorrida ao julgar procedente a invocada exceção de caducidade e, consequentemente, extinto o direito da autora intentar ação de impugnação de paternidade.



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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente.


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Supremo Tribunal de Justiça, 3 de maio de 2018

Maria Rosa Oliveira Tching (Relator)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

João Luís Marques Bernardo

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respectivamente.

[2] In, “ Curso de Direito da Família”, Volume II, Direito da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da Filiação Adopção, com a colaboração de Rui Moura Ramos, Coimbra Editora, 2006, pág. 124.

[3] In, “ Curso de Direito da Família”, Volume II, Direito da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da Filiação Adopção, com a colaboração de Rui Moura Ramos, Coimbra Editora, 2006, pág. 139.

[4] Relatado pelo Juiz Conselheiro Paulo Mota Pinto e publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 28 de 08.02.2006.

[5] Ambos relatados pelo Juiz Conselheiro José Borges Soeiro e com voto de vencido do Juiz Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira e acessíveis na Internet – http://www. tribunal constitucional.pt/tc/acordaos

[6] Relatado pelo Juiz Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha e acessível na Internet – http://www. tribunal constitucional.pt/tc/acordaos

[7] Relatado pelo Juiz Conselheiro Benjamim Rodrigues e acessível na Internet – http://www. tribunal constitucional.pt/tc/acordaos

[8] Relatado pelo Juiz Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira e acessível na Internet – http://www. tribunal constitucional.pt/tc/acordaos

[9] Relatado pelo Juiz Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro e acessível na Internet – http://www. tribunal constitucional.pt/tc/acordaos

[10] Relatado pelo Juiz Conselheiro João Cura Mariano e acessível na Internet – http://www. tribunal constitucional.pt/tc/acordaos

[11] Relatado pelo Juiz Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira e acessível na Internet – http://www. tribunal constitucional.pt/tc/acordaos

[12] Relatado pela Juíza Conselheira Maria Lúcia Amaral e acessível na Internet – http://www. tribunal constitucional.pt/tc/acordaos

[13] Relatado pela Juíza Conselheira Maria João Antunes e acessível na Internet – http://www. tribunal constitucional.pt/tc/acordaos.

[14] Cfr. arestos do TEDH  citados  por Remédio Marques, in artigo doutrinário citado na nota 1 precedente, p. 167 (nota 12)  e no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 401/2011, de 22/09/2011, publicado no Diário d República, 2.ª Série, de 03/11/2011.

[15] Cfr. Remédio Marques, in, artigo doutrinário intitulado O Prazo de Caducidade do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil e a Cindibilidade do Estado Civil: o acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 24/2012 – A (in)constitucionalidade do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 e a sua aplicação às acções pendentes na data do seu início de vigência, instaurada antes e depois da publicação do acórdão n.º 3/2006, in Textos de Direito da Família para Francisco Pereira Coelho, sob a coordenação de Guilherme de Oliveira, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, págs. 167 a 169.

[16] Relatado pelo Juiz Conselheiro Borges Soeiro e  acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.

[17] Relatado pelo Juiz Conselheiro Bettencourt de Faria e acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.

[18]Neste sentido, Remédio Marques, in, artigo doutrinário intitulado O Prazo de Caducidade do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil e a Cindibilidade do Estado Civil: o acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 24/2012 – A (in)constitucionalidade do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 e a sua aplicação às acções pendentes na data do seu início de vigência, instaurada antes e depois da publicação do acórdão n.º 3/2006, in Textos de Direito da Família para Francisco Pereira Coelho, sob a coordenação de Guilherme de Oliveira, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, págs. 168 e169.

[19] Relatado pelo Juiz Conselheiro Oliveira Rocha e acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.

[20] Relatado pelo Juiz Conselheiro Helder Roque e acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.

[21] Relatado pelo Juiz Cons. Gregório Jesus, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.

[22] Relatado pelo Juiz Cons. Helder Roque, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj

[23] Relatado pelo Juiz Conselheiro Lopes do Rego, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj

[24] In, “ Código Civil, Anotado”, Vol. V, Coimbra, 1995, pág. 210.

[25] In, “Curso de Direito de Família”, vol. II. Tomo I, Coimbra, pág. 52.

[26] Que, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira (in, “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, 4ª edição revista, Vol. I, Coimbra, pág. 462), abrange não apenas o direito ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores, sendo, nas palavras Jorge Miranda e Rui Medeiros (in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra, 2005, págs. 204-205), o que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal, inclui também o direito à identidade genética própria e, por isso, ao conhecimento dos vínculos de filiação, no ponto em que a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo factor genético.

[27] Enquanto direito de conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de ação. Cfr. Paulo Mota Pinto, in, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, Studia Iuridica, nº 40, Portugal-Brasil, Ano 2000, Coimbra Editora, 2000.

[28] Foi este, aliás, o princípio foi reafirmado pela jurisprudência constitucional, de forma mais abrangente, em relação às ações de investigação de paternidade  no Acórdão nº 247/2012, que acolheu a solução a que chegou  o Acórdão  nº 401/2011, do Plenário do Tribunal Constitucional. Ambos acessíveis na Internet – http://www. tribunal constitucional.pt/tc/acordaos.

[29] No sentido de saber quem sou e de onde venho, quais são os meus antecedentes genéticos, onde estão as minhas raízes familiares, geográficas e culturais. Cfr. artigo de Guilherme de Oliveira “ Caducidade das acções de investigação” , in “ Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, Vol. I, Direito de Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, pág. 51.

[30] No sentido de impor à lei ordinária que organize os meios para estabelecer juridicamente os vínculos de filiação. Cfr. citada  artigo de Guilherme de Oliveira, pág. 51.