Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | PINTO DE ALMEIDA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA APENSAÇÃO DE PROCESSOS URGÊNCIA ALEGAÇÕES DE RECURSO PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO FÉRIAS JUDICIAIS PRINCÍPIO DA CONFIANÇA BOA FÉ | ||
Data do Acordão: | 07/09/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - INTERPRETAÇÃO DAS LEIS. DIREITO FALIMENTAR - EFEITOS DA DACLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS PROCESSUAIS. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS / INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS. | ||
Doutrina: | - Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE Anotado, 36. - Baptista Machado, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, 182 e 189; Tutela da Confiança e "Venire contra Factum Proprium", em Obra Dispersa, Vol. I, 416 e segs. – Carneiro da Frada, Tutela da Confiança e Responsabilidade Civil, 41. - Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª ed., 113. - Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, 190. - Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª ed., 22. - Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, 1249; Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 186 e 187. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º, N.º3. CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 9.º, 85.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC), NA REDACÇÃO ANTERIOR AO DL 303/2007 DE 24-08: - ARTIGOS 144.º, N.º1, 145.º, N.ºS 5 A 7, 146.º, N.º1, 291.º, N.º2, 687.º, N.º4, 700.º, N.º1, AL. B). | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - AUJ DE 31.03.2009, PUBLICADO NO DR IS DE 19.05.2009. | ||
Sumário : | 1. As acções apensadas ao processo de insolvência, nos termos do art. 85º do CIRE, passam a ter, a partir da apensação, carácter urgente, nos termos do art. 9º do mesmo diploma: "tudo o que se relaciona com o processo é urgente, aí incluindo todos os incidentes, apensos e recursos". 2. Tendo uma acção apensada ao processo de insolvência nos termos do artº 85º do CIRE sido processada durante mais de seis anos após a apensação, sem que a questão da urgência fosse suscitada, é razoável e perfeitamente plausível que a parte admitisse que o entendimento do Tribunal fosse no sentido de que o processo não era urgente. 3. Aquele facto era, pelo menos, adequado a criar na parte a convicção de que o prazo de que dispunha para apresentar as alegações de recurso para o Tribunal da Relação não corria em férias, de acordo com o regime previsto no art. 144º nº 1 do CPC (então em vigor). 4. Esta convicção é fundada e legítima e merece, por isso, a tutela do direito, como se reconheceu, para situação similar, na fundamentação do AUJ deste Tribunal de 31.03.2009. 5. Estamos perante uma situação de confiança justificada, assente na boa fé e gerada pela aparência, que deve ser protegida, conduzindo à "preservação da posição nela alicerçada". | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:
I. A autora AA – …, SA interpôs recurso de apelação da sentença, proferida em 21.03.2011, que foi admitido por despacho proferido a 16.11.2012 e notificado à A. em 21.11.2012. A recorrente apresentou as respectivas alegações em 22.01.2013. Remetido o processo à Relação, foi proferida decisão, a 10/12/2013, que julgou deserto o recurso por falta de alegação da recorrente, em consequência do que não foi conhecido o respectivo objecto.
Em requerimentos sucessivos, a autora arguiu a nulidade do referido despacho, por não ter sido precedido de audição das partes e, sem prescindir, reclamou para a conferência, requerendo que sobre a matéria da decisão recaísse acórdão. Foi depois proferido acórdão que indeferiu a nulidade e manteve integralmente o despacho do relator.
Ainda inconformada, a autora pede revista, tendo apresentado as seguintes conclusões: Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido e substituído por acórdão que julgue que o recurso não ficou deserto e, por conseguinte, que não existe obstáculo ao conhecimento do objeto da apelação, prosseguindo o recurso de apelação os seus termos.
Não foram apresentadas contra-alegações. Após os vistos legais, cumpre decidir.
II.
Questões a resolver:
- Se as acções apensadas ao processo de insolvência, nos termos do art. 85º do CIRE, passam a ter, a partir da apensação, carácter urgente, nos termos do art. 9º do mesmo diploma; - Violação dos princípios legais e constitucionais da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé, da proporcionalidade, do contraditório, do acesso ao direito, a uma tutela efetiva e a um processo equitativo, por a decisão ter julgado o recurso deserto com fundamento exclusivo no carácter urgente dos autos, tendo o processo sido tratado sempre como não urgente e tendo a Recorrente a legítima expectativa de que assim fosse tratado; - Verificação de justo impedimento.
III.
Relevam para a decisão os elementos que constam do relatório precedente, devendo considerar-se ainda que: A presente acção foi instaurada em 13.03.1996 e foi apensada ao processo de insolvência (do 1º réu BB, declarado insolvente por sentença de 12.01.2006) por decisão de 04.07.2006.
Na 1ª instância, o Sr. Juiz pronunciou-se expressamente sobre a questão da tempestividade das alegações apresentadas pela autora, nestes termos: "Questiona-se, porém, nos requerimentos em referência, se o caráter urgente atribuído pelo art. 9.°, nº 1 do CIRE se estende igualmente à presente ação, considerando que a mesma foi apensada ao processo de insolvência ao abrigo do art. 85.º do CIRE. De facto, a tramitação coerente e unitária quanto às regras jurídicas aplicáveis que, em regra, se estabelece para o processo principal e seus apensos, visa a prossecução de razões de certeza e segurança jurídica, bem como de «tutela de legítimas expetativas determinantes de relevantes investimentos de confiança». Ora, nos presentes autos, como descreve extensamente a recorrente, até à presente data, a tramitação prosseguida nos presentes autos desde o seu início e após a apensação ao processo de insolvência não revestiu ou respeitou o carácter de urgência que vem agora invocado pela ré, diga-se, pela primeira vez, nos autos. Consequentemente, face às especificidades da presente ação, julgar extemporâneas as alegações de recurso apresentadas pela recorrente com fundamento exclusivo no carácter urgente dos autos ao abrigo do art. 9.º, n.º 1 do CIRE, seria contrariar, de forma manifesta e ilegítima, a segurança jurídica do caso concreto e as legítimas expectativas criadas pelas partes, maxime, pela autora, ao longo da sua longa tramitação, as quais foram determinantes de relevantes investimentos de confiança nas normas jurídicas que vinham sendo aplicáveis nos autos (no caso concreto quanto à inaplicabilidade do art. 9.º n.º 1 do CIRE). Pelo exposto, decido considerar tempestivas as alegações apresentadas pela recorrente a 22.01.2013 e, em consequência, admitir a sua junção aos autos e indeferir o recorrido pela ré Massa Insolvente de BB".
Por sua vez, no despacho inicial proferido na Relação escreveu-se o seguinte: "A notificação deste despacho ocorreu em 21/11/2012, pelo que o prazo para alegar se iniciou em 27/11/2012, dia imediato ao que se considera a parte notificada (art.ºs 253, 1, 254, 2 e 150, 1, do CPC). Uma vez que foi impugnada a decisão de facto, o prazo para alegar de que a recorrente dispunha era de 40 dias, contados desde aquela data de 27/11/2012. (…) Entendemos que aquele prazo de 40 dias é contínuo, não se suspendendo em férias, face ao disposto naquele art. 9°, nº 1 do CIRE. Na verdade, não há que distinguir onde a lei não distingue e, referindo-se ela aos «apensos» e ao processo de insolvência, não se vê motivo para excluir desse âmbito as acções declarativas que a ele tenham sido apensadas, como é o caso vertente. Assim, contado aquele prazo como contínuo e correndo em férias – art. 144, 1 do CPC – o seu termo ocorreu efectivamente em 7.01.2013. Tendo as alegações da recorrente AA, S.A. dado entrada apenas em 22.01.2013, é incontroverso que foi claramente excedido o aludido prazo, mesmo com a multa aludida nos nºs 5 a 7 do art. 145 do CPC. Assim, ao abrigo do disposto nos arts. 291, nº 2 e 700, 1, al. b) ambos do CPC decido: a) Julgar deserto por falta de alegação o recurso interposto pela recorrente AA S.A. a fls. 4238-4306; b) Não conhecer, consequentemente, do respectivo objecto".
Por fim, a fundamentação do acórdão recorrido é a seguinte: "Insiste a A. AA na tese de que o art.º 9º, nº 1 do CIRE não se aplica às acções apensadas ao processo de insolvência propriamente dito. Sufraga-se, porém, a este propósito o entendimento do preceito que ficou plasmado no despacho acima transcrito. Depois invoca aquela A. o caso julgado formal da decisão de admissão da apelação em 1ª instância. Salvo o respeito devido, este posicionamento é incompatível com a norma do art.º 687, nº 4, do CPC, na redacção aplicável (anterior ao DL 303/2007 de 24/08), à qual correspondeu posteriormente o nº 5 do art.º 685-C (na redacção proveniente do aludido DL 303/2007 de 24/08) e presentemente corresponde ao actual nº 5 do art.º 641 do Código, após as alterações introduzidas pela Lei nº 41/2013 de 26/06. É que aquela norma afirma expressa e inequivocamente a regra de que a decisão de admissão do recurso pelo tribunal a quo não vincula o tribunal ad quem, da qual emerge que este a pode rever, desde logo através de decisão do relator de com esse fundamento não conhecer do objecto do recurso. Também aduz a apelante que a julgar-se aplicável o prazo de recurso para os processos urgentes em assintonia com uma série de actos já praticados no processo desferiu-se ofensa aos princípios da boa fé processual, da cooperação e da proporcionalidade. Também neste conspecto discordamos em absoluto da recorrente. É que não há boa fé, cooperação ou proporcionalidade que possam impedir o funcionamento de uma imposição legal – a da celeridade dos actos, como actos urgentes – sob o pretexto de o comando legal não ter sido anteriormente observado. Um processo não deixa de ser urgente por até um dado momento a sua tramitação não ter sido operada como tal. Por fim, contrapõe a apelante que, a haver-se por excedido o prazo legal para a alegação do recurso, subsistiria ainda por dirimir a questão do «justo impedimento» que oportuna e subsidiariamente levantara. Trata-se de saber se efectivamente se verifica a hipótese de algum evento imprevisível e obstaculizante da prática do acto que tenha atingido a recorrente e se enquadre no disposto no nº 1 do art.º 146 do CPC. Atente-se, porém, no «evento» que é invocado pela recorrente: o de que com a decisão em apreço esta Relação passou a considerar os autos urgentes, quando até esse momento a tramitação desenvolvida permitia concluir que o tribunal («lato sensu») «nunca sequer indiciou que poderia considerar que este processo tem caráter urgente». Não se vislumbra nesta alegação o esboço de qualquer facto que se possa dizer obstaculizante para a parte do cumprimento de um prazo decorrente lei processual e, muito menos, a materialização mínima do conceito do justo impedimento que integra o nº 1 do art. º 146 do CPC. Salvo o respeito devido, não é defensável que a hipotética inobservância da regra da urgência durante um lapso temporal mais ou menos longo possa derrogar ou afastar essa mesma regra. Donde que seja de manter a decisão do relator de não conhecer do objecto do recurso pelos fundamentos nele expressos". IV.
1. A primeira questão posta no recurso tem a ver com a interpretação do art. 9º nº 1 do CIRE, nos termos do qual o processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal. Ao invés do sentido adoptado no acórdão recorrido, a Recorrente defende que nos apensos a que alude esta norma não se incluem as acções apensadas ao processo de insolvência, nos termos do art. 85º nº 1 do referido diploma. Estas acções, mesmo apensadas, não teriam carácter urgente. Afigura-se-nos, porém, que a interpretação seguida no acórdão recorrido é a mais correcta.
A preocupação com a celeridade dos processos relativos à insolvência e a consagração do carácter urgente destes não surgiu apenas com o CIRE. De modo limitado no CPC de 1961 (art. 1179º nº 2 – … o pedido de falência é sempre considerado urgente e tem preferência sobre qualquer outro serviço), o âmbito da urgência foi alargado no CPEREF (art 10º nº 1 – os processos de recuperação da empresa e de falência, incluindo os embargos e recursos a que houver lugar, têm carácter urgente e gozam de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal). E se este diploma não explicitava se a urgência era aplicável a todos os apensos do processo, o regime do CIRE é claramente mais abrangente, estendendo ainda mais, sem qualquer dúvida, o âmbito da urgência: têm carácter urgente o processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos. Isto é, "tudo o que se relaciona com o processo é urgente, aí incluindo todos os incidentes, apensos e recursos"[2]; ou seja, "o processo de insolvência e os processos que gravitam em torno deste"[3]. Procurou-se, assim, potenciar a celeridade da tramitação do processo, estendendo o carácter urgente também aos apensos do processo de insolvência[4]. Por outro lado, essa intenção do legislador, de alargar o âmbito da urgência, está claramente reflectida no texto da norma: esta refere-se, com efeito, a todos os apensos, não fazendo qualquer distinção entre estes. Apesar de a interpretação não dever cingir-se à letra da lei, tem de reconhecer-se que a fórmula utilizada aponta claramente no sentido de aí caberem todos os apensos do processo de insolvência, sem excepção, sendo esse sentido o que "melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento"[5] (cfr. art. 9º nº 3 do CC). Aliás, referindo-se a lei a todos os apensos, não se vê razão para excluir destes as acções apensadas nos termos do art. 85º nº 1 do CIRE (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus). A apensação das acções, determinada nos termos do citado art. 85º nº 1, tem por fundamento a conveniência que daí advém para os fins do processo (parte final do preceito); sendo a mesma ordenada, isso significa e pressupõe, portanto, que há conveniência e interesse na apensação (que não é automática), o que dita, logicamente, que haja um correspondente interesse na sua celeridade e que a acção apensada seja processada com a urgência exigida e inerente aos processos relativos à insolvência. A urgência nessa tramitação não está, assim, dependente de um juízo de oportunidade ou de discricionariedade, em função da natureza e objecto da acção apensada, ou de razão que determine ou justifique a excepcionalidade da urgência (como parece entender a Recorrente)[6]. Esta depende apenas dessa apensação. Importa acrescentar que o entendimento acima preconizado, quanto à interpretação do art. 9º nº 1 do CIRE, não restringe de forma relevante o direito de acesso à justiça, contrariamente ao que defende a Recorrente. Note-se que, no caso, esse entendimento apenas implica que, na contagem do prazo em questão (para apresentação de alegações), se observe a regra da continuidade dos prazos, mesmo durante os períodos de férias judiciais (sem suspensão nestes períodos) – art. 144º nº 1 do CPC então em vigor. Não tem por efeito a redução da duração do próprio prazo para a prática do referido acto, como sucede actualmente – arts. 637º nº 2 e 638º nº 1 do NCPC[7]. Como tem sido entendido, o legislador dispõe de ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, devendo, contudo, observar que "os regimes adjectivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade", não podendo "criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva"[8]. No que respeita a prazos, estes não podem ser tão curtos que envolvam uma diminuição arbitrária, excessiva e intolerável do direito de defesa. No caso, como se referiu, não estamos sequer perante uma redução, em absoluto, do prazo para apresentação de alegações; a urgência apenas implicaria que o prazo corresse continuamente, sem suspensão no período de férias judiciais do Natal. Não se trata, portanto, de uma diminuição arbitrária e excessiva do exercício do direito de defesa. E o efeito referido na contagem do prazo é perfeitamente justificado, atendendo às razões que levaram o legislador a atribuir carácter urgente ao processo: "o fomento da celeridade" que "deve caracterizar um processo concursal, tanto no impulso processual, como no da respectiva tramitação"[9], com vista a uma resolução célere e eficaz dos processos judiciais resultantes de situações de insolvência. 2. A conclusão a que se chegou não resolve inteiramente a questão da tempestividade da apresentação das alegações de recurso pela Recorrente. É que, como vem alegado, nem o Tribunal, nem as partes alguma vez trataram o processo como urgente, tendo a questão sido suscitada apenas nas contra-alegações do Recorrido. Sustenta, por isso, a Recorrente que o Acórdão recorrido, ao julgar deserto o recurso, incorreu na violação dos princípios processuais da confiança, da boa fé, da cooperação e da proporcionalidade e em grave violação dos direitos de defesa constitucionalmente garantidos.
De facto, reconhece-se no próprio despacho do Sr. Juiz, que "a tramitação prosseguida nos presentes autos desde o seu início e após a apensação ao processo de insolvência não revestiu ou respeitou o carácter de urgência que vem agora invocado pela ré (…)". E daí retira, como consequência, que, julgar extemporâneas as alegações por esse motivo (carácter urgente) "seria contrariar, de forma manifesta e ilegítima, a segurança jurídica do caso concreto e as legítimas expectativas criadas pelas partes, maxime, pela autora, ao longo da sua longa tramitação, as quais foram determinantes de relevantes investimentos de confiança nas normas jurídicas que vinham sendo aplicáveis nos autos (no caso concreto quanto à inaplicabilidade do art. 9.º n.º 1 do CIRE)".
Acompanhamos esta fundamentação, que se tem por adequada ante a concreta e muito longa tramitação da acção após a apensação ao processo de insolvência (ocorrida em 2006), com base no princípio da boa fé e considerando as expectativas legítimas e a confiança que essa situação foi capaz de gerar à Recorrente.
Com efeito, percorrendo a tramitação da acção, iniciada em 1996, é manifesto que a mesma não sofreu qualquer alteração, no que respeita à celeridade, após a aludida apensação. Tudo se continuou a fazer como até aí, como se de uma acção normal e autónoma se tratasse, apesar de, pela própria antiguidade, já ser exigível um outro cuidado a esse respeito. Mas não: quer em termos de tramitação dos actos, quer na marcação de diligências, quer na contagem dos prazos, a acção foi tratada sempre como um processo normal, não urgente.
A forma como a acção foi tratada tem, pois, (pelo menos) implícito o entendimento de que o processo não era urgente (entendimento que não é, aliás, contrariado no aludido despacho), o que torna compreensível o modo como o acto foi praticado pela Recorrente, em termos de contagem do prazo de recurso. Acresce que o referido entendimento não é, apesar do que acima se expôs, inteiramente descabido – no sentido de excluir manifestamente a sua aplicação –, considerando a natureza da acção, diferente da dos típicos apensos do processo de insolvência, especialmente previstos na lei, instaurados e processados na pendência desse processo.
Neste condicionalismo, sendo a acção processada nos termos referidos durante mais de seis anos após a apensação, sem que a questão da urgência fosse suscitada, é razoável e perfeitamente plausível que a recorrente admitisse que o entendimento do Tribunal fosse realmente aquele e que tivesse actuado em conformidade. Aquele facto era, pelo menos, adequado a criar na Recorrente a convicção de que o prazo de que dispunha não corria em férias, de acordo com o regime previsto no art. 144º nº 1 do CPC (então em vigor)[10]. Esta convicção é fundada e legítima e merece, por isso, a tutela do direito, como se reconheceu, para situação similar, na fundamentação do AUJ deste Tribunal de 31.03.2009[11].
Como aí se refere, está em causa a admissibilidade de um acto particularmente importante, na perspectiva dos direitos da Recorrente, sendo certo que, para a contraparte, "não há, nem lesão das regras do contraditório, nem violação de quaisquer expectativas que se sobreponha à confiança gerada (na Recorrente) por acto do juiz" ou pela forma como, sob a direcção deste, a acção foi processada durante um muito substancial lapso de tempo. Princípios como o da prevalência do fundo sobre a forma e a concepção do processo como mero instrumento para ser alcançada a verdade material e a justa composição do litígio não devem ser afastados "em nome da tutela de eventuais vantagens que (o Recorrido) pudesse alcançar" com a não consideração das alegações apresentadas.
Pode dizer-se[12] que estamos perante uma situação de confiança, assente na boa fé e gerada pela aparência – o modo como a acção foi processada até aí. Existe justificação para essa confiança, uma vez que, como se disse, era razoável e plausível que a Recorrente aderisse a essa aparência, que tinha por legítima, por a referida tramitação ocorrer durante longo período e sob a direcção do Juiz. E foi na sequência e em função dessa legítima convicção que a Recorrente definiu a sua actuação processual: sempre interveio nos autos e veio a apresentar as alegações, nos termos que seriam os devidos, de acordo com a tramitação até aí seguida (investimento de confiança).
A protecção dessa confiança conduz à "preservação da posição nela alicerçada", ou seja, "à manutenção das vantagens que assistiriam ao confiante"[13]. Assim, a apresentação das alegações pela Recorrente, em prazo apenas compatível com a não urgência do processo, têm de ser consideradas tempestivas, apesar do que acima se expôs sobre a interpretação do art. 9º nº 1 do CIRE (cfr. citado AUJ).
Chegados a esta conclusão, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso (art. 608º nº 2 do NCPC). V.
Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos, com apreciação de recurso de apelação interposto pela autora. Custas pelos recorridos.
Lisboa, 9 de Julho de 2014
Pinto de Almeida (Relator) Azevedo Ramos Nuno Cameira
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