Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2577/05.5TBPMS-P.C3.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
URGÊNCIA
ALEGAÇÕES DE RECURSO
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
FÉRIAS JUDICIAIS
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
BOA FÉ
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - INTERPRETAÇÃO DAS LEIS.
DIREITO FALIMENTAR - EFEITOS DA DACLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS PROCESSUAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS / INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE Anotado, 36.
- Baptista Machado, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, 182 e 189; Tutela da Confiança e "Venire contra Factum Proprium", em Obra Dispersa, Vol. I, 416 e segs.
– Carneiro da Frada, Tutela da Confiança e Responsabilidade Civil, 41.
- Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª ed., 113.
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, 190.
- Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª ed., 22.
- Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, 1249; Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 186 e 187.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º, N.º3.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 9.º, 85.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC), NA REDACÇÃO ANTERIOR AO DL 303/2007 DE 24-08: - ARTIGOS 144.º, N.º1, 145.º, N.ºS 5 A 7, 146.º, N.º1, 291.º, N.º2, 687.º, N.º4, 700.º, N.º1, AL. B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- AUJ DE 31.03.2009, PUBLICADO NO DR IS DE 19.05.2009.
Sumário :
1. As acções apensadas ao processo de insolvência, nos termos do art. 85º do CIRE, passam a ter, a partir da apensação, carácter urgente, nos termos do art. 9º do mesmo diploma: "tudo o que se relaciona com o processo é urgente, aí incluindo todos os incidentes, apensos e recursos".

2. Tendo uma acção apensada ao processo de insolvência nos termos do artº 85º do CIRE sido processada durante mais de seis anos após a apensação, sem que a questão da urgência fosse suscitada, é razoável e perfeitamente plausível que a parte admitisse que o entendimento do Tribunal fosse no sentido de que o processo não era urgente.

3. Aquele facto era, pelo menos, adequado a criar na parte a convicção de que o prazo de que dispunha para apresentar as alegações de recurso para o Tribunal da Relação não corria em férias, de acordo com o regime previsto no art. 144º nº 1 do CPC (então em vigor).

4. Esta convicção é fundada e legítima e merece, por isso, a tutela do direito, como se reconheceu, para situação similar, na fundamentação do AUJ deste Tribunal de 31.03.2009.

5. Estamos perante uma situação de confiança justificada, assente na boa fé e gerada pela aparência, que deve ser protegida, conduzindo à "preservação da posição nela alicerçada".
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

A autora AA – …, SA interpôs recurso de apelação da sentença, proferida em 21.03.2011, que foi admitido por despacho proferido a 16.11.2012 e notificado à A. em 21.11.2012.

A recorrente apresentou as respectivas alegações em 22.01.2013.

Remetido o processo à Relação, foi proferida decisão, a 10/12/2013, que julgou deserto o recurso por falta de alegação da recorrente, em consequência do que não foi conhecido o respectivo objecto.

Em requerimentos sucessivos, a autora arguiu a nulidade do referido despacho, por não ter sido precedido de audição das partes e, sem prescindir, reclamou para a conferência, requerendo que sobre a matéria da decisão recaísse acórdão.

Foi depois proferido acórdão que indeferiu a nulidade e manteve integralmente o despacho do relator.

Ainda inconformada, a autora pede revista, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em que foi julgada improcedente a reclamação para a conferência da decisão singular em que o Exmo. Juiz Desembargador Relator julgou deserto o recurso de apelação interposto pela Recorrente e, consequente, não admitiu conhecer do objeto do recurso;
2. Na decisão recorrida o Tribunal a quo incorreu em erro de interpretação e aplicação da lei substantiva e processual na apreciação e decisão de essencialmente três questões de direito: (i) a interpretação e aplicação do nº 1 do art. 9º do CIRE, bem como das normas sobre a contagem de prazos em processos urgentes constantes do Código de Processo Civil, às ações apensadas ao processo de insolvência nos termos do art. 85.° do CIRE, em concreto, à ação em apreço; (ii) a apreciação da decisão que julga deserto o recurso de apelação com fundamento exclusivo no carácter urgente dos autos ao abrigo do art. 9.°, n.º 1 do CIRE, tendo o processo sido tratado sempre como não urgente e tendo a Recorrente a legítima expetativa que assim fosse tratado, à luz dos princípios legais e constitucionais da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé, da proporcionalidade, do contraditório, do acesso ao direito, a uma tutela efetiva e a um processo equitativo ao julgar o recurso; e (iii) a verificação de justo impedimento atendível para a apresentação das alegações após o decurso do (pretenso) prazo legal, ao abrigo do disposto no art. 146.° do CPC;
3. No que respeita à primeira questão, o Tribunal a quo decidiu que a norma constante do art. 9º do CIRE (…) se aplica à presente ação declarativa porque esta ação está apensada ao processo de insolvência, sem mais;
4. A norma que confere caráter urgente a um determinado processo tem natureza excecional. Assim, para concluir que este processo tem tramitação urgente, seria necessário que da letra e do fim da norma constante do art. 9.° do CIRE resultasse inequivocamente que as ações apensadas se incluem no âmbito objetivo da norma, o que não acontece;
5. A menção do art. 9/1 do CIRE a «apensos» visou, não estender o caráter de urgência às ações declarativas apensadas ao abrigo do art. 85.°, mas sim estender esta natureza aos apensos do processo de insolvência stricto sensu, que não apenas a oposição por embargos e o recurso. Com efeito, a norma anterior equivalente, o art. 10/1 do CPEREF, dispunha o seguinte: «os processos de recuperação da empresa e de falência, incluindo os embargos e recursos a que houver lugar, têm carácter urgente e gozam de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal», e o CIRE veio esclarecer que este carácter urgente se aplica a todos os apensos e incidentes que se incluem dentro do próprio processo de insolvência stricto sensu;
6. Os apensos do processo de insolvência incluídos no nº 1 do art. 9.° do CIRE são os apensos de oposição de embargos e recursos, da verificação de créditos, da restituição e separação de bens da massa, da apreensão de bens, da liquidação, da verificação ulterior de créditos, e outros de cuja decisão dependa o decurso e o desfecho do processo de insolvência. Estes apensos são essenciais para a determinação e liquidação do património da Massa Insolvente, e a sua solução prejudica o desfecho deste processo, pelo que se compreende que lhes seja atribuído o caráter de urgência;
7. No entanto, a procedência desta ação declarativa, bem como do recurso de apelação, apenas poderá resultar um crédito da Massa Insolvente; não se impede nem atrasa a liquidação do património, nem o encerramento do processo de insolvência, e as eventuais receitas da Massa que advenham da ação declarativa poderão ser posteriormente distribuídas aos credores. Assim, não existe um direito, um resultado ou um efeito que seja eliminado, ou sequer relevantemente posto em causa, por o desfecho da ação declarativa ser posterior ao da ação de insolvência;
8. A natureza urgente do processo de insolvência restringe de forma relevante o direito de acesso à justiça e o direito ao contraditório e, quando o faz, implica a adaptação da tramitação do próprio processo e apensos, não se limitando a afastar a regra da suspensão dos prazos em férias judiciais: impõe também que no requerimento de insolvência apresentado por outrem que não o devedor tenha de se oferecer imediatamente todas as provas, que cada parte não possa apresentar mais de dez testemunhas (art. 25.º do CIRE), que os vícios da petição de insolvência tenham de ser corrigidos no prazo máximo de cinco dias (al. b) do n.º 1 do art. 27.° do CIRE), que a audiência de julgamento deva ser marcada nos cinco dias posteriores à dedução de oposição (nº 1 do art. 35º do CIRE), que a audiência do devedor possa ser dispensada quando acarrete demora excessiva (nº 1 do art. 12.° do CIRE), etc.; no apenso de verificação de créditos os prazos também são muito curtos (vide arts. 135º, 137º, 138º e nº 1 do art. 140º) e é por efeito do cariz urgente deste processo que se restringe a acessibilidade ao recurso (art. 14º do CIRE); o mesmo acontece no apenso de restituição e separação de bens (v. o nº 2 do art. 144) e nos restantes apensos;
9. Sempre que o constrangimento de prazos de defesa não tenha um efeito útil e não seja proporcional, nos termos do nº 2 do art. 18º da C.R.P., não é admissível, configurando uma violação do art. 20º da C.R.P.;
10. Resulta do exposto que o Tribunal a quo interpretou e aplicou erradamente a norma constante do nº 1 do art. 9º do CIRE e, nesta interpretação, violou a norma que prevê a suspensão de prazos em férias judiciais (alínea e) do art. 279.° do CC e nº 1, 1ª parte do art. 144º do Código de Processo Civil na sua versão anterior à conferida pela Lei nº 41/2013…) e violou as normas substantivas constantes do nº 2 do art. 18º da C.R.P. e do art. 20º da CRP. Devia o Tribunal a quo ter decidido que o nº 1 do art. 9º do CIRE não se aplica às ações apensadas ao processo de insolvência, por estarmos perante uma norma excecional e bem assim que, tanto por via de uma interpretação histórica, como teleológica, esta ação declarativa não se inclui no âmbito objetivo da norma do nº 1 do art. 9º do CIRE, não devendo ser tratada como um processo urgente;
11. Na apreciação da segunda questão de direito, o Tribunal a quo decidiu que a julgar-se aplicável o prazo de recurso para os processos urgentes em assintonia com uma série de actos já praticados no processo não se desferiu ofensa aos princípios da boa fé processual, da cooperação e da proporcionalidade por estes princípios não prevalecerem à imposição legal da celeridade dos actos, como actos urgentes porque um processo «não deixa de ser urgente por até um dado momento a sua tramitação não ter sido operada como tal»;
12. No entanto, a verdade é que ao longo dos cerca de seis anos que leva de apensação ao processo de insolvência, a presente ação nunca foi tramitada como um processo urgente, nem pelo M. Juiz do Tribunal de 1ª instância, nem pela secretaria desse Tribunal, nem pelo Tribunal da Relação de Coimbra (até ao despacho impugnado); e mesmo da atuação processual da Recorrente e Recorrida anteriormente à apresentação das alegações de recurso decorre que não consideravam o processo como urgente. Em concreto, salienta-se que a Recorrente praticou um ato no processo que, se os prazos se suspendessem durante as férias judiciais, teria sido praticado nos 3 dias após o termo do prazo legal, sem que a Recorrente tivesse pago espontaneamente a correspondente multa, nem a Recorrida (que requereu o desentranhamento desse requerimento por outras razões que não essa) o tivesse invocado, nem a secretaria ou o M. Juiz do Tribunal de 1ª instância tivessem determinado que havia lugar ao pagamento de uma multa sob pena de desentranhamento do requerimento;
13. A decisão do Tribunal a quo de julgar o recurso deserto com fundamento exclusivo no carácter urgente dos autos ao abrigo do art. 9.°, nº 1 do CIRE contraria, de forma manifesta e ilegítima, a segurança jurídica do caso concreto e as legítimas expectativas criadas pelas partes, maxime, pela autora, ao longo da sua longa tramitação, as quais foram determinantes de relevantes investimentos de confiança nas normas jurídicas que vinham sendo aplicáveis nos autos. Esta decisão interpreta e aplica erradamente normas substantivas e viola os princípios da confiança, da boa fé processual, da cooperação, da proporcionalidade, do contraditório, do acesso ao direito, bem como do direito a uma tutela efetiva e a um processo equitativo;
14. A tutela da confiança tem vindo a ser desenvolvida e aplicada em diversas áreas do direito. Esta figura radica nos princípios e cresce nas doutrinas da boa-fé, em especial como manifestação da proibição de venire contra factum proprium, e é utilizada a todo o momento pelos Tribunais como critério de decisão de casos concretos;
15. 0 STJ já se pronunciou em acórdão de uniformização de jurisprudência no sentido da proteção da confiança da parte que atua segundo a atuação do Tribunal, tomando um ato como não sujeito ao regime dos processos urgentes porque o Tribunal assim o determinou, e admitindo a prática de um ato que, se o processo fosse urgente e os respetivos prazos corressem em férias judiciais, seria extemporâneo. A tutela das partes pelo princípio da confiança em situações de apreciação da admissibilidade e da tempestividade de recursos não pressupõe que o Tribunal se tenha pronunciado expressamente sobre essa admissibilidade ou tempestividade, bastando que existam comportamentos concludentes dessa posição suficientes para gerar a confiança das partes;
16. 0 Tribunal Constitucional tem sido especialmente zelador da garantia do direito ao recurso, tendo vindo a decidir que sempre que a perda do direito ao recurso ocorra numa circunstância em que a parte não pudesse com ela contar, ainda que siga os deveres de uma conduta processual diligente, a sanção da perda do direito ao recurso é desproporcional (V. Acórdão citado);
17. 0 princípio da proporcionalidade também é posto em causa na decisão de que se reclama. Com efeito, não se justifica a aplicação da restrição das garantias de defesa do art. 9.° do CIRE a esta ação. O não conhecimento do recurso, em concreto, por apresentação das alegações escassos dias após o (suposto) termo do prazo com fundamento na pretensa urgência do processo é uma sanção manifestamente desproporcional face à utilidade que poderia ter a apresentação do recurso uns escassos dias antes.
18. Concretizando, o Tribunal a quo decidiu que, como as alegações foram entregues em 22 de janeiro de 2013 e não em 7 de janeiro de 2013, a alegação é extemporânea e por isso o recurso é considerado deserto e não será apreciado. E, decidiu, o prazo terminava a 7, e não a 22, porque o processo é considerado urgente por correr por apenso a uma ação de insolvência;
19. No entanto, este processo nada tem de urgente, e o período de 15 dias de suposto atraso na apresentação das alegações de recurso não prejudicou certamente a célere tramitação de um processo em que os atos de secretaria e as decisões de mero expediente levam meses a ser praticados. Há ofensa do princípio da proporcionalidade pois a norma de preclusão é interpretada e aplicada rigidamente, sem ter em conta que a finalidade da preclusão é o andamento célere do processo e que este não é atingido quando o tribunal excede largamente os seus prazos;
20. A interpretação extraída pelo Tribunal a quo e na qual assenta o acórdão recorrido dos normativos contidos no art. 85º e no art. 9° do CIRE no sentido de atribuir natureza urgente às ações declarativas apensadas aos processos de insolvência ao abrigo do art. 85º do CIRE, e consequentemente, de aplicar a estas ações o regime excecional da contagem de prazos em férias judiciais (previsto, à data da apresentação das alegações de apelação, no nº 1 in fine do art. 144.° do Código de Processo Civil na sua versão anterior à conferida pela Lei nº 41/2013…), ainda que a liquidação da massa, a venda dos bens e o pagamento dos credores possam realizar-se no processo de insolvência e independentemente da sentença que vier a ser proferida no âmbito das ações apensadas, é inconstitucional por violação dos princípios do processo equitativo, da proporcionalidade e do estado de direito, previstos respetivamente, no nº 4 do art. 20.°, do nº 2 do art. 18.° e do art. 2.°, todos da Constituição;
21. A interpretação extraída pelo Tribunal a quo e na qual assenta o acórdão recorrido dos normativos contidos nos arts. 85º e 9º do CIRE, bem como da alínea b) do nº 1 do art. 700º do CPC e do nº 2 do art. 291.° do CPC (na versão anterior à conferida pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, na redação alterada pelo DL nº 303/2007, de 24 de agosto) segundo a qual o recurso de apelação interposto no âmbito de ação declarativa que corra por apenso ao processo de insolvência deve ser julgado deserto nos casos em que as alegações tenham sido apresentadas sem que na contagem do prazo se tenha observado o regime excecional da contagem de prazos em férias judiciais (previsto, à data da apresentação das alegações de apelação, no nº 1 in fine do art. 144º do Código de Processo Civil na sua versão anterior à entrada em vigor da Lei nº 41/2013 …) ainda que, no decurso do processo, isto é, desde apensação da ação declarativa ao processo de insolvência até à apresentação das alegações de recurso de apelação, o processo nunca tenha sido tratado como tendo natureza urgente pelo Tribunal nem pelas partes, pelo que a parte não podia razoavelmente contar com que o Tribunal da Relação viesse a interpretar e a aplicar em sentido oposto o disposto no art. 9º do C.I.R.E., é inconstitucional por violação dos princípios da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé, da proporcionalidade, do contraditório, do acesso ao direito, a uma tutela efetiva e a um processo equitativo consagrados no art. 2.°, no nº 1 e no nº 4 do art. 20.° da Constituição;
22. No mesmo sentido, não pode deixar de ser considerada inconstitucional, por violação dos princípios da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé, da proporcionalidade, do contraditório, do acesso ao direito, a uma tutela efetiva e a um processo equitativo consagrados no art. 2.°, no nº 1 e no nº 4 do art. 20º da Lei Fundamental, a norma extraída pelo Tribunal a quo e na qual assenta o Acórdão recorrido dos normativos contidos nos arts. 85.° e 9.° do CIRE, bem como da alínea b) do nº 1 do art. 700º do CPC e do nº 2 do art. 291.° do CPC (na versão anterior à conferida pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, na redação alterada pelo DL nº 303/2007, de 24 de agosto) segundo a qual tem natureza urgente, estando, consequentemente, sujeito à regra excecional de contagem de prazos processuais em férias judiciais prevista, à data da apresentação das alegações de apelação, no nº 1 in fine do art. 144.° do Código de Processo Civil na sua versão anterior à entrada em vigor da Lei nº 41/2013, o recurso de apelação interposto em ação declarativa apensada a processo de insolvência que não tenha natureza urgente e cuja tramitação, mesmo após a apensação e até à prolação da sentença, tenha seguido sempre as regras aplicáveis aos processos não urgentes, pelo que a parte não podia razoavelmente contar com que o Tribunal da Relação viesse a interpretar e a aplicar em sentido oposto o disposto no art. 9° do C.I.R.E.;
23. Subsidiariamente: para a apresentação das alegações após o decurso do (pretenso) prazo legal havia justo impedimento atendível, ao abrigo do disposto no art. 146º do CPC. Ao não reconhecer esse impedimento como causa de apresentação das alegações depois do respetivo prazo, o Tribunal a quo fez errada aplicação da lei de processo, nomeadamente dos nºs 1 e 2 do art. 146.° do CPC (normas que correspondem atualmente ao nºs 1 e 2 do art. 140.° do NCPC).
24. Face ao que antecede, caso a apresentação das alegações seja considerada intempestiva, o que só hipoteticamente se concebe, devem julgar-se admitidas as alegações de recurso de apelação em causa ao abrigo dos nºs 1 e 2 do art. 146.° do CPC e conhecer-se do objeto do recurso.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido e substituído por acórdão que julgue que o recurso não ficou deserto e, por conseguinte, que não existe obstáculo ao conhecimento do objeto da apelação, prosseguindo o recurso de apelação os seus termos.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Se as acções apensadas ao processo de insolvência, nos termos do art. 85º do CIRE, passam a ter, a partir da apensação, carácter urgente, nos termos do art. 9º do mesmo diploma;

- Violação dos princípios legais e constitucionais da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé, da proporcionalidade, do contraditório, do acesso ao direito, a uma tutela efetiva e a um processo equitativo, por a decisão ter julgado o recurso deserto com fundamento exclusivo no carácter urgente dos autos, tendo o processo sido tratado sempre como não urgente e tendo a Recorrente a legítima expectativa de que assim fosse tratado;

- Verificação de justo impedimento.

III.

Relevam para a decisão os elementos que constam do relatório precedente, devendo considerar-se ainda que:

A presente acção foi instaurada em 13.03.1996 e foi apensada ao processo de insolvência (do 1º réu BB, declarado insolvente por sentença de 12.01.2006) por decisão de 04.07.2006.

Na 1ª instância, o Sr. Juiz pronunciou-se expressamente sobre a questão da tempestividade das alegações apresentadas pela autora, nestes termos:

"Questiona-se, porém, nos requerimentos em referência, se o caráter urgente atribuído pelo art. 9.°, nº 1 do CIRE se estende igualmente à presente ação, considerando que a mesma foi apensada ao processo de insolvência ao abrigo do art. 85.º do CIRE.

De facto, a tramitação coerente e unitária quanto às regras jurídicas aplicáveis que, em regra, se estabelece para o processo principal e seus apensos, visa a prossecução de razões de certeza e segurança jurídica, bem como de «tutela de legítimas expetativas determinantes de relevantes investimentos de confiança». Ora, nos presentes autos, como descreve extensamente a recorrente, até à presente data, a tramitação prosseguida nos presentes autos desde o seu início e após a apensação ao processo de insolvência não revestiu ou respeitou o carácter de urgência que vem agora invocado pela ré, diga-se, pela primeira vez, nos autos.

Consequentemente, face às especificidades da presente ação, julgar extemporâneas as alegações de recurso apresentadas pela recorrente com fundamento exclusivo no carácter urgente dos autos ao abrigo do art. 9.º, n.º 1 do CIRE, seria contrariar, de forma manifesta e ilegítima, a segurança jurídica do caso concreto e as legítimas expectativas criadas pelas partes, maxime, pela autora, ao longo da sua longa tramitação, as quais foram determinantes de relevantes investimentos de confiança nas normas jurídicas que vinham sendo aplicáveis nos autos (no caso concreto quanto à inaplicabilidade do art. 9.º n.º 1 do CIRE).

Pelo exposto, decido considerar tempestivas as alegações apresentadas pela recorrente a 22.01.2013 e, em consequência, admitir a sua junção aos autos e indeferir o recorrido pela ré Massa Insolvente de BB".

Por sua vez, no despacho inicial proferido na Relação escreveu-se o seguinte:

"A notificação deste despacho ocorreu em 21/11/2012, pelo que o prazo para alegar se iniciou em 27/11/2012, dia imediato ao que se considera a parte notificada (art.ºs 253, 1, 254, 2 e 150, 1, do CPC).

Uma vez que foi impugnada a decisão de facto, o prazo para alegar de que a recorrente dispunha era de 40 dias, contados desde aquela data de 27/11/2012. (…)

Entendemos que aquele prazo de 40 dias é contínuo, não se suspendendo em férias, face ao disposto naquele art. 9°, nº 1 do CIRE.

Na verdade, não há que distinguir onde a lei não distingue e, referindo-se ela aos «apensos» e ao processo de insolvência, não se vê motivo para excluir desse âmbito as acções declarativas que a ele tenham sido apensadas, como é o caso vertente.

Assim, contado aquele prazo como contínuo e correndo em férias – art. 144, 1 do CPC – o seu termo ocorreu efectivamente em 7.01.2013.

Tendo as alegações da recorrente AA, S.A. dado entrada apenas em 22.01.2013, é incontroverso que foi claramente excedido o aludido prazo, mesmo com a multa aludida nos nºs 5 a 7 do art. 145 do CPC.

Assim, ao abrigo do disposto nos arts. 291, nº 2 e 700, 1, al. b) ambos do CPC decido:

a) Julgar deserto por falta de alegação o recurso interposto pela recorrente AA S.A. a fls. 4238-4306;

b) Não conhecer, consequentemente, do respectivo objecto".

Por fim, a fundamentação do acórdão recorrido é a seguinte:

"Insiste a A. AA na tese de que o art.º 9º, nº 1 do CIRE não se aplica às acções apensadas ao processo de insolvência propriamente dito.

Sufraga-se, porém, a este propósito o entendimento do preceito que ficou plasmado no despacho acima transcrito.

Depois invoca aquela A. o caso julgado formal da decisão de admissão da apelação em 1ª instância. Salvo o respeito devido, este posicionamento é incompatível com a norma do art.º 687, nº 4, do CPC, na redacção aplicável (anterior ao DL 303/2007 de 24/08), à qual correspondeu posteriormente o nº 5 do art.º 685-C (na redacção proveniente do aludido DL 303/2007 de 24/08) e presentemente corresponde ao actual nº 5 do art.º 641 do Código, após as alterações introduzidas pela Lei nº 41/2013 de 26/06.

É que aquela norma afirma expressa e inequivocamente a regra de que a decisão de admissão do recurso pelo tribunal a quo não vincula o tribunal ad quem, da qual emerge que este a pode rever, desde logo através de decisão do relator de com esse fundamento não conhecer do objecto do recurso.

Também aduz a apelante que a julgar-se aplicável o prazo de recurso para os processos urgentes em assintonia com uma série de actos já praticados no processo desferiu-se ofensa aos princípios da boa fé processual, da cooperação e da proporcionalidade.

Também neste conspecto discordamos em absoluto da recorrente.

É que não há boa fé, cooperação ou proporcionalidade que possam impedir o funcionamento de uma imposição legal – a da celeridade dos actos, como actos urgentes – sob o pretexto de o comando legal não ter sido anteriormente observado. Um processo não deixa de ser urgente por até um dado momento a sua tramitação não ter sido operada como tal.

Por fim, contrapõe a apelante que, a haver-se por excedido o prazo legal para a alegação do recurso, subsistiria ainda por dirimir a questão do «justo impedimento» que oportuna e subsidiariamente levantara.

Trata-se de saber se efectivamente se verifica a hipótese de algum evento imprevisível e obstaculizante da prática do acto que tenha atingido a recorrente e se enquadre no disposto no nº 1 do art.º 146 do CPC.

Atente-se, porém, no «evento» que é invocado pela recorrente: o de que com a decisão em apreço esta Relação passou a considerar os autos urgentes, quando até esse momento a tramitação desenvolvida permitia concluir que o tribunal («lato sensu») «nunca sequer indiciou que poderia considerar que este processo tem caráter urgente».

Não se vislumbra nesta alegação o esboço de qualquer facto que se possa dizer obstaculizante para a parte do cumprimento de um prazo decorrente lei processual e, muito menos, a materialização mínima do conceito do justo impedimento que integra o nº 1 do art. º 146 do CPC.

Salvo o respeito devido, não é defensável que a hipotética inobservância da regra da urgência durante um lapso temporal mais ou menos longo possa derrogar ou afastar essa mesma regra.

Donde que seja de manter a decisão do relator de não conhecer do objecto do recurso pelos fundamentos nele expressos".

IV.

1. A primeira questão posta no recurso tem a ver com a interpretação do art. 9º nº 1 do CIRE, nos termos do qual o processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal.

Ao invés do sentido adoptado no acórdão recorrido, a Recorrente defende que nos apensos a que alude esta norma não se incluem as acções apensadas ao processo de insolvência, nos termos do art. 85º nº 1 do referido diploma. Estas acções, mesmo apensadas, não teriam carácter urgente.

Afigura-se-nos, porém, que a interpretação seguida no acórdão recorrido é a mais correcta.

A preocupação com a celeridade dos processos relativos à insolvência e a consagração do carácter urgente destes não surgiu apenas com o CIRE. De modo limitado no CPC de 1961 (art. 1179º nº 2 – … o pedido de falência é sempre considerado urgente e tem preferência sobre qualquer outro serviço), o âmbito da urgência foi alargado no CPEREF (art 10º nº 1 – os processos de recuperação da empresa e de falência, incluindo os embargos e recursos a que houver lugar, têm carácter urgente e gozam de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal). E se este diploma não explicitava se a urgência era aplicável a todos os apensos do processo, o regime do CIRE é claramente mais abrangente, estendendo ainda mais, sem qualquer dúvida, o âmbito da urgência: têm carácter urgente o processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos.

Isto é, "tudo o que se relaciona com o processo é urgente, aí incluindo todos os incidentes, apensos e recursos"[2]; ou seja, "o processo de insolvência e os processos que gravitam em torno deste"[3].

Procurou-se, assim, potenciar a celeridade da tramitação do processo, estendendo o carácter urgente também aos apensos do processo de insolvência[4].

Por outro lado, essa intenção do legislador, de alargar o âmbito da urgência, está claramente reflectida no texto da norma: esta refere-se, com efeito, a todos os apensos, não fazendo qualquer distinção entre estes.

Apesar de a interpretação não dever cingir-se à letra da lei, tem de reconhecer-se que a fórmula utilizada aponta claramente no sentido de aí caberem todos os apensos do processo de insolvência, sem excepção, sendo esse sentido o que "melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento"[5] (cfr. art. 9º nº 3 do CC).

Aliás, referindo-se a lei a todos os apensos, não se vê razão para excluir destes as acções apensadas nos termos do art. 85º nº 1 do CIRE (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus).

A apensação das acções, determinada nos termos do citado art. 85º nº 1, tem por fundamento a conveniência que daí advém para os fins do processo (parte final do preceito); sendo a mesma ordenada, isso significa e pressupõe, portanto, que há conveniência e interesse na apensação (que não é automática), o que dita, logicamente, que haja um correspondente interesse na sua celeridade e que a acção apensada seja processada com a urgência exigida e inerente aos processos relativos à insolvência.

A urgência nessa tramitação não está, assim, dependente de um juízo de oportunidade ou de discricionariedade, em função da natureza e objecto da acção apensada, ou de razão que determine ou justifique a excepcionalidade da urgência (como parece entender a Recorrente)[6]. Esta depende apenas dessa apensação.

Importa acrescentar que o entendimento acima preconizado, quanto à interpretação do art. 9º nº 1 do CIRE, não restringe de forma relevante o direito de acesso à justiça, contrariamente ao que defende a Recorrente.

Note-se que, no caso, esse entendimento apenas implica que, na contagem do prazo em questão (para apresentação de alegações), se observe a regra da continuidade dos prazos, mesmo durante os períodos de férias judiciais (sem suspensão nestes períodos) – art. 144º nº 1 do CPC então em vigor. Não tem por efeito a redução da duração do próprio prazo para a prática do referido acto, como sucede actualmente – arts. 637º nº 2 e 638º nº 1 do NCPC[7].

Como tem sido entendido, o legislador dispõe de ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, devendo, contudo, observar que "os regimes adjectivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade", não podendo "criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva"[8].

No que respeita a prazos, estes não podem ser tão curtos que envolvam uma diminuição arbitrária, excessiva e intolerável do direito de defesa.

No caso, como se referiu, não estamos sequer perante uma redução, em absoluto, do prazo para apresentação de alegações; a urgência apenas implicaria que o prazo corresse continuamente, sem suspensão no período de férias judiciais do Natal.

Não se trata, portanto, de uma diminuição arbitrária e excessiva do exercício do direito de defesa. E o efeito referido na contagem do prazo é perfeitamente justificado, atendendo às razões que levaram o legislador a atribuir carácter urgente ao processo: "o fomento da celeridade" que "deve caracterizar um processo concursal, tanto no impulso processual, como no da respectiva tramitação"[9], com vista a uma resolução célere e eficaz dos processos judiciais resultantes de situações de insolvência.

2. A conclusão a que se chegou não resolve inteiramente a questão da tempestividade da apresentação das alegações de recurso pela Recorrente. É que, como vem alegado, nem o Tribunal, nem as partes alguma vez trataram o processo como urgente, tendo a questão sido suscitada apenas nas contra-alegações do Recorrido.

Sustenta, por isso, a Recorrente que o Acórdão recorrido, ao julgar deserto o recurso, incorreu na violação dos princípios processuais da confiança, da boa fé, da cooperação e da proporcionalidade e em grave violação dos direitos de defesa constitucionalmente garantidos.

De facto, reconhece-se no próprio despacho do Sr. Juiz, que "a tramitação prosseguida nos presentes autos desde o seu início e após a apensação ao processo de insolvência não revestiu ou respeitou o carácter de urgência que vem agora invocado pela ré (…)".

E daí retira, como consequência, que, julgar extemporâneas as alegações por esse motivo (carácter urgente) "seria contrariar, de forma manifesta e ilegítima, a segurança jurídica do caso concreto e as legítimas expectativas criadas pelas partes, maxime, pela autora, ao longo da sua longa tramitação, as quais foram determinantes de relevantes investimentos de confiança nas normas jurídicas que vinham sendo aplicáveis nos autos (no caso concreto quanto à inaplicabilidade do art. 9.º n.º 1 do CIRE)".

Acompanhamos esta fundamentação, que se tem por adequada ante a concreta e muito longa tramitação da acção após a apensação ao processo de insolvência (ocorrida em 2006), com base no princípio da boa fé e considerando as expectativas legítimas e a confiança que essa situação foi capaz de gerar à Recorrente.

Com efeito, percorrendo a tramitação da acção, iniciada em 1996, é manifesto que a mesma não sofreu qualquer alteração, no que respeita à celeridade, após a aludida apensação. Tudo se continuou a fazer como até aí, como se de uma acção normal e autónoma se tratasse, apesar de, pela própria antiguidade, já ser exigível um outro cuidado a esse respeito. Mas não: quer em termos de tramitação dos actos, quer na marcação de diligências, quer na contagem dos prazos, a acção foi tratada sempre como um processo normal, não urgente.

A forma como a acção foi tratada tem, pois, (pelo menos) implícito o entendimento de que o processo não era urgente (entendimento que não é, aliás, contrariado no aludido despacho), o que torna compreensível o modo como o acto foi praticado pela Recorrente, em termos de contagem do prazo de recurso.

Acresce que o referido entendimento não é, apesar do que acima se expôs, inteiramente descabido – no sentido de excluir manifestamente a sua aplicação –, considerando a natureza da acção, diferente da dos típicos apensos do processo de insolvência, especialmente previstos na lei, instaurados e processados na pendência desse processo.

Neste condicionalismo, sendo a acção processada nos termos referidos durante mais de seis anos após a apensação, sem que a questão da urgência fosse suscitada, é razoável e perfeitamente plausível que a recorrente admitisse que o entendimento do Tribunal fosse realmente aquele e que tivesse actuado em conformidade.

Aquele facto era, pelo menos, adequado a criar na Recorrente a convicção de que o prazo de que dispunha não corria em férias, de acordo com o regime previsto no art. 144º nº 1 do CPC (então em vigor)[10].

Esta convicção é fundada e legítima e merece, por isso, a tutela do direito, como se reconheceu, para situação similar, na fundamentação do AUJ deste Tribunal de 31.03.2009[11].

Como aí se refere, está em causa a admissibilidade de um acto particularmente importante, na perspectiva dos direitos da Recorrente, sendo certo que, para a contraparte, "não há, nem lesão das regras do contraditório, nem violação de quaisquer expectativas que se sobreponha à confiança gerada (na Recorrente) por acto do juiz" ou pela forma como, sob a direcção deste, a acção foi processada durante um muito substancial lapso de tempo.

Princípios como o da prevalência do fundo sobre a forma e a concepção do processo como mero instrumento para ser alcançada a verdade material e a justa composição do litígio não devem ser afastados "em nome da tutela de eventuais vantagens que (o Recorrido) pudesse alcançar" com a não consideração das alegações apresentadas.

Pode dizer-se[12] que estamos perante uma situação de confiança, assente na boa fé e gerada pela aparência – o modo como a acção foi processada até aí.

Existe justificação para essa confiança, uma vez que, como se disse, era razoável e plausível que a Recorrente aderisse a essa aparência, que tinha por legítima, por a referida tramitação ocorrer durante longo período e sob a direcção do Juiz.

E foi na sequência e em função dessa legítima convicção que a Recorrente definiu a sua actuação processual: sempre interveio nos autos e veio a apresentar as alegações, nos termos que seriam os devidos, de acordo com a tramitação até aí seguida (investimento de confiança).

A protecção dessa confiança conduz à "preservação da posição nela alicerçada", ou seja, "à manutenção das vantagens que assistiriam ao confiante"[13].

Assim, a apresentação das alegações pela Recorrente, em prazo apenas compatível com a não urgência do processo, têm de ser consideradas tempestivas, apesar do que acima se expôs sobre a interpretação do art. 9º nº 1 do CIRE (cfr. citado AUJ).

Chegados a esta conclusão, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso (art. 608º nº 2 do NCPC).

V.

 

Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos, com apreciação de recurso de apelação interposto pela autora.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 9 de Julho de 2014

Pinto de Almeida (Relator)

Azevedo Ramos

Nuno Cameira

___________________
[1] Proc. nº 2577/05.5TBPMS-P.C3.S1
F. Pinto de Almeida (R. 35)
Cons. Azevedo Ramos; Cons. Nuno Cameira
[2] Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª ed., 113.
[3] Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE Anotado, 36.
[4] Preâmbulo do DL 53/2004, de 18/3, ponto 15.
[5] Baptista Machado, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, 182 e 189.
[6] Dependência que não teria qualquer correspondência verbal no texto da lei – art. 9º nº 2 do CC.
[7] Prazo reduzido que a Recorrente já observou na presente revista (art. 677º do NCPC).
[8] Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, 190; cfr. também Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª ed., 22.
[9] Preâmbulo do DL 53/2004, pontos 12 e segs.
[10] A não suspensão do prazo durante as férias judiciais era então, como se referiu, o único efeito que decorreria da natureza urgente do processo. Só com as alterações introduzidas pelo DL 303/2007, de 24/8, o prazo passou a ser também mais curto.
[11] DR IS de 19.05.2009.
[12] Transpondo conceitos do direito civil – Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 186 e 187; Baptista Machado, Tutela da Confiança e "Venire contra Factum Proprium", em Obra Dispersa, Vol. I, 416 e segs.
[13] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, 1249. "A ordem jurídica preserva ou realiza a posição do confiante, atribuindo à situação de confiança ocorrida os efeitos jurídicos equivalentes ao objecto da representação", no que pode designar-se como protecção "positiva" da confiança – Carneiro da Frada, Tutela da Confiança e Responsabilidade Civil, 41.