Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2957/12.0TCLRS.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 03/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A discordância da parte relativamente ao sentido da decisão fáctica proferida pelo tribunal da Relação não tem cabimento no âmbito das nulidades de decisão, podendo integrar erro de julgamento da matéria de facto.
II - Assentando a decisão fáctica proferida pelo tribunal da Relação na valoração de meios de prova sujeitos à livre convicção do tribunal, mostra-se arredada a possibilidade do STJ sindicar o juízo probatório emitido pela referida instância.
III - O juízo de equidade constitui o elemento essencial de avaliação dos danos não patrimoniais (art. 496.º, n.º 4, do CC), consubstanciando-se numa ponderação casuística das circunstâncias do caso.
IV - Não estando em causa a aplicação de critérios normativos, não compete ao STJ sindicar o exacto valor indemnizatório fixado, mas proceder apenas ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente em função dos princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado.
Decisão Texto Integral:




Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I - RELATÓRIO

1. AA propôs, em 19-04-2012, acção declarativa de condenação contra Companhia de Seguros Fidelidade Mundial, SA (agora Fidelidade – Companhia de Seguros, SA) pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:

- 9.771,53€, acrescidos de juros a partir da citação, nos termos do articulado em 36.º, 38.º, 40.º, 42.º, 44.º, 46.º e 48.º da petição;

- 1.245,66€ mensais e por 14 meses, enquanto não se resolver o presente pleito, acrescidos de juros a partir da citação;

- 60.000,00€, por danos morais, acrescidos de juros a partir da citação;

- indemnização a título de danos futuros a quantia, em função da incapacidade atribuída e a quantificar em execução de sentença;

- despesas hospitalares e outras que eventualmente surjam devido ao acidente.

Fundamentou a acção na responsabilidade da Ré (enquanto seguradora) pelas consequências do acidente de viação, ocorrido em 15-05-2011, pelas 00:40 horas, na Ponte ..., em que foram intervenientes BB (que conduzia o veículo com a matrícula ...-...-OD), segurado na Ré, o qual embateu na traseira do veículo, com a matrícula ...-...-IV, conduzido pelo Autor.

2. Após citação, a Ré apresentou contestação aceitando o alegado no que respeita à dinâmica do acidente, impugnando, porém, os danos invocados pelo Autor como consequência do sinistro (por o quadro clínico que o mesmo apresenta ser preexistente em relação ao acidente, uma vez que o mesmo padecia de “luxação congénita da anca”, sendo portador de uma incapacidade IPP de 75%).

Referiu a Ré ter já entregado ao Autor, designadamente por decorrência da providência cautelar por ele intentada, a quantia de 18.760,00 €, montante que, a adicionar ao que for pago até ao trânsito em julgado da sentença, terá de ser contabilizado para efeitos de compensação.

3. Dispensada a realização de audiência prévia foi proferido saneador, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.

4. Após realização de prova pericial (que se prolongou até Setembro de 2019) foi realizado julgamento e proferida sentença, que julgou a acção improcedente, absolveu a Ré do pedido e condenou o Autor a restituir àquela os valores que dela recebeu por força da reparação provisória que lhe foi arbitrada no procedimento cautelar apenso.

5. Interposta apelação com impugnação da matéria de facto, o tribunal da Relação ... proferiu acórdão que julgou o recurso parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar ao Autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 10,000,00 €, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a decisão até efectivo e integral pagamento., mantendo no mais o juízo absolutório da sentença.

Foi ainda determinado que “a condenação do Autor a restituir à Ré os valores que desta recebeu, por força da reparação provisória arbitrada no procedimento cautelar apenso – cf., o nº. 2, do artº. 390º, do Cód. de Processo Civil -, tenha em conta a compensação com o valor indemnizatório ora fixado”.

6. Novamente inconformado o Autor recorreu de revista, recurso que foi admitido na sequência do deferimento da reclamação do despacho de não admissão proferido no tribunal a quo.

7. Concluiu o Recorrente (transcrição):

1ª – Conforme consta dos autos o recorrente foi vítima de um acidente de viação.

2ª – O recorrente apresentou recurso de revista para o douto Tribunal da Relação, conforme alegações acima transcrita, para as quais se remete V. Exas.

3ª – Este douto tribunal após análise profunda proferiu o seguinte a fls. 47.º, 3.º parágrafo: “Todavia, cremos que apesar de não se documentarem “lesões do aparelho locomotor produzidas no acidente em apreço”, ou seja, que o acidente tenha sido a causa das lesões percepcionadas no aparelho locomotor do Autor, também não podemos concluir que o sinistro em nada tenha afectado o Autor, nomeadamente ao nível de alguns efeitos na sua situação clínica, certamente agravando-a e introduzindo-lhe um factor agravante da sintomatologia dolorosa. Efectivamente, existiu um embate, o Autor terá sofrido ferimentos ligeiros, deslocou-se por sua conta ao Hospital, onde foi assistido em dois episódios de urgência após o evento, efectuou exames auxiliares de diagnóstico (TAC CE) e foi medicado, pelo que, apesar da inexistência de registo de lesões traumáticas, nomeadamente nas ancas onde foram descortinadas as lesões, existiu notoriamente dor, certamente com reflexo, em termos de queixas dolorosas, nas patologias de que já sofria. É o que resulta, ainda que não se podendo corroborar na integralidade, pela motivação já supra aduzida, do teor dos relatórios subscritos pelo médico Ortopedista datados de 17/03/2014 e 02/05/2016, onde se alude a agravamento da situação clínica e da sintomatologia dolorosa de ambas as ancas, obrigando à toma diária de analgésicos – cf., o teor do relatório pericial final a fls. 417 vº -, bem como do relatório final de avaliação do dano corporal, efectuado no GADAC (Gabinete de Avaliação do Dano Corporal), em 13/12/2011 – cf., fls. 113 a 115 -, do qual resulta admitir-se que após o acidente o ora Autor tenha “agravado as queixas dolorosas das patologias prévias ao acidente – quer nas ancas quer no pescoço”. Aliás, deste último relatório, junto aos autos pela Ré seguradora, resulta um apuramento do quantum doloris no grau 4 de 7, bem como um cálculo de incapacidade permanente geral de 4 pontos em 100, fruto do agravamento de artrose prévia ao acidente (2 pontos) e de anca dolorosa (dois pontos), sendo que, nesta parte, não mereceu posterior corroboração por parte do exame pericial referenciado. Ora, será com base neste quadro de efectivo reconhecimento de prevalência do juízo pericial, mas concatenando-o com o necessário reconhecimento de alguns efeitos no quadro clínico do Autor, nomeadamente ao nível do agravamento das queixas e rebate doloroso das patologias prévias ao acidente, que se procurará responder, não só aos pontos ora impugnados, como igualmente aos infra apreciandos, nos quais se questiona acerca dos reais e efectivos efeitos do embate na vivência do ora Autor. Assim, no que concerne aos ora em apreciação – factos não provados 13) e 14) -, a resposta não pode deixar de manter-se como negativa, pois, se é indubitável, e já figura como provado (facto 5)), o quadro de baixa médica do Autor, a prova produzida não logrou apurar que tal tenha resultado em razão do embate ocorrido, nem que o período em que esteve impedido de exercer a sua actividade profissional tenha tido por causa ou origem lesões sofridas na sequência do mesmo sinistro.”.

4ª – Ora, reconhecido que houve um acidente de viação que afetou o recorrente, que o douto acórdão considera que agravou dolorosamente o corpo do recorrente, devia haver consequências e dar como provado os factos não provados referidos, 13 a 21, não o tendo feito o douto acórdão violou o artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, pelo que se requer que estes pontos passem a provado.

5ª – Mas, mesmo não tendo sido olvidado pelo douto Tribunal “a quo” esta alteração, este mesmo douto Tribunal proferiu o seguinte aresto a fls. 72:

“Ora, conforme alterações introduzidas na matéria factual provada, logrou dar-se como assente que: o Autor sentiu dores na altura do acidente e no transporte para o hospital, o que lhe perturbou o sono – facto 12-A) ; tais dores, que se prolongaram por tempo não concretamente determinado, agravaram as queixas/sintomatologia dolorosa de que o Autor já padecia, nomeadamente sequelas de displasia congénita das ancas e artroplastia total das ancas, causando-lhe perturbação, nervosismo, irritabilidade e mal-estar – facto 12-B. Ou seja, logrou provar-se que parte dos reclamados danos, nomeadamente de natureza não patrimonial, tiveram concreta e efectiva verificação, decorrendo e tendo por causa o acidente de viação documentado, sendo que estes não possuem a natureza de preexistentes, sem qualquer conexão com o sinistro cuja responsabilidade civil foi transferida para a Ré seguradora.”.

6ª – Sendo, pois, também certo que o recorrente devido ao acidente não recebeu da segurança social, as baixas médicas, devido precisamente a ter havido acidente de viação, consequência que deve ser da responsabilidade da recorrida e esta ser condenada a pagar o período de tempo de incapacidade, em termos salariais e referido na sentença da providência cautelar junto aos autos, para a qual se remete os Exmos. Senhores Doutores Juízes Conselheiros.

7ª – De facto os danos patrimoniais sofridos pelo recorrente, não foram pagos pela segurança social, ocorreram devido ao acidente mas que deveriam ter os doutos Tribunais “a quo”, tido uma atitude diferente, porque foram reconhecidos danos não patrimoniais devido a este acidente.

Com efeito,

8ª – O douto Tribunal da Relação proferiu o seguinte aresto a título de danos não patrimoniais a fls. 80:

“Ora, ponderando tal factualidade e, fundamentalmente, os efeitos decorrentes de tal situação dolorosa suportado pelo Autor, o que se potenciou fruto da situação patológica preexistente, bem como o facto do mesmo em nada ter contribuído para tal resultado lesivo e danoso, afigura-se-nos dever fixar como valor compensatório a quantia de 10,000,00 € (dez mil euros), que entendemos como tradutora de um valor de reparação pertinente e totalmente observador das exigências de equidade, tendo-se em atenção os parâmetros que vêm sendo jurisprudencialmente adoptados.”

9ª – Tendo concluído que a fls 81:

“Condenar a Ré a pagar ao Autor, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de 10,000,00 € (dez mil euros), acrescida de juros moratórios, à taxa legal, devidos desde a data da presente decisão e até efectivo e integral pagamento;”

10ª – Reconhecido que existe nexo de causalidade e porque houve outros danos, que foram olvidados pelo douto acórdão do Tribunal da Relação, cometeu este a nulidade referida no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.

11ª – Devendo, pois, os quesitos 13 a 45 passar a provados e a recorrida condenada no pedido formulado na PI.

12ª – O douto Tribunal da Relação tendo chegado à conclusão que existem danos não patrimoniais devia ter considerado que existiu nexo de causalidade e condenado a recorrida no pedido, ou pelo menos em danos não patrimoniais que seguindo a jurisprudência invocada no douto acórdão os mesmos não podem ser miserabilistas, no montante de 55.000,00€ e no pedido formulado na PI.

13ª – Não o tendo feito foi violado por errada aplicação e interpretação o disposto nos artigos 483.º, 562.º e seguintes do CC e ainda o artigo 615.º, n.º 1, al. D do CPC

Devendo, pois, o presente acórdão ser revogado e substituído por outro que condene a recorrida no montante pedido na PI, ou pelo menos em 55.000,00€ em termos de danos não patrimoniais.

Assim exercendo será feita a habitual e acostumada JUSTIÇA.”.

8. Em resposta a Ré pronuncia-se pela improcedência da revista.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do CPC) mostram-se submetidas à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
ü Nulidade do acórdão
ü Alteração à matéria de facto
ü Adequação do montante indemnizatório 

1. Os factos

1.1 Provados

1) Por contrato de seguro titulado pela apólice nº...43, BB declarou transferir e os legais representantes da Ré declararam aceitar a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-...-OD.

2) No dia 15-5-2011, pelas 0H 40M, ao Km 13,1 da Ponte ..., o veículo de matrícula ...-...-OD, pertença e conduzido por BB, embateu na traseira do veículo de matrícula ...-...-IV, pertença e conduzido pelo Autor.

3) A Ré procedeu à reparação da viatura do Autor.

4) Pelo menos até Outubro de 2011 a Ré pagou mensalmente ao Autor a quantia de € 1 200.

5) O Autor esteve de baixa entre 16-05-2011 e 06-03-2012 e ulteriormente.

6) À data do sinistro o Autor trabalhava como ... na Associação ... auferindo o vencimento base de € 602, acrescido de subsídio de alimentação e abono de falhas, que no mês de Março de 2011, ascenderam respectivamente a € 110 e € 28.

7) À data do sinistro, o Autor trabalhava como ... por conta da R..., SA., mediante a remuneração horária de € 2,80 e mensal de 303,13 €[1];

8) No mês de Abril de 2011 a empresa referida em 7) pagou ao Autor € 313,13 a título de vencimento, € 25,25 a título de subsídio de férias, € 25,25 a título de subsídio de Natal, € 20,99 a título de horas nocturnas, € 141,03 a título de subsídio de refeição e € 109,38 a título de prémio de desempenho.

9) Por decisão de 22-03-2012, transitada em julgado, proferida no procedimento cautelar apenso, a Ré foi condenada a pagar mensalmente ao Autor a quantia de € 850 mensais, a título de reparação provisória do dano.

10) A Ré satisfez ao Autor a reparação aludida em 9) até Março de 2015.

11) Antes do sinistro o Autor andava habitualmente sem muletas.

12) Á data do sinistro o Autor apresentava dificuldades ao nível motor e era autónomo, alegre, dinâmico e com vontade de viver, mantendo bom relacionamento com as pessoas das suas relações.

12-A) O Autor sentiu dores na altura do acidente e no transporte para o hospital, o que lhe perturbou o sono.

12-B) Tais dores, que se prolongaram por tempo não concretamente determinado, agravaram as queixas/sintomatologia dolorosa de que o Autor já padecia, nomeadamente sequelas de displasia congénita das ancas e artroplastia total das ancas, causando-lhe perturbação, nervosismo, irritabilidade e mal-estar.

1.2 Não provados

13) Que em razão do embate referido em 2) o Autor tenha sofrido lesões que determinaram que tivesse estado de baixa médica desde 15-5-2011 a 06-05-2012 e ulteriormente.

20) Que a cirurgia à anca de que o 14) Que as lesões sofridas pelo Autor em razão do sinistro o impeçam de exercer a sua profissão.

15) Que em razão do sinistro o Autor tenha ficado afectado de uma qualquer incapacidade.

16) Que em razão do sinistro o Autor tenha constantes dores na anca e não consiga caminhar normalmente.

17) Que à data do sinistro o Autor auferisse mensalmente € 1 245,56 líquidos.

18) Que os problemas de saúde de que o Autor era portador à data do sinistro se tenham agravado em razão do mesmo.

19) Que em virtude do sinistro o Autor tenha tido problemas na anca e que por isso necessitasse de uma cirurgia.

20) Que a cirurgia à anca de que o Autor necessitava em razão do sinistro tivesse sido agendada para Abril/Maio de 2012.

21) Que em razão das consequências para si advindas do sinistro o Autot tenha ficado incapacitado para o seu trabalho habitual.

22) Que o Autor tenha de pagar ao CC mensalmente a quantia de € 244,46 a título de reembolso do empréstimo bancário à habitação.

23) Que o Autor tenha de pagar mensalmente à ... a quantia de € 68,68.

24) Que o Autor tenha de pagar mensalmente aos SMAS ... a quantia de € 51,92.

25) Que o Autor tenha de pagar mensalmente a quantia de € 126,03 no âmbito de um empréstimo à ....

26) Que o Autor tenha de pagar mensalmente a quantia de € 175,02 à ....

27) Que o Autor tenha de pagar mensalmente € 80 de um empréstimo à DD.

28) Que o Autor tenha de pagar mensalmente ao ... € 72,18 de um empréstimo bancário.

29) Que o Autor tenha de pagar mensalmente à ... € 244,46 de um seguro.

30) Que o Autor despenda € 400 mensais com alimentação.

31) Que o Autor, caso tivesse trabalhado, tivesse auferido € 1 234,76 mensais entre Maio de Outubro de 2011, num total de € 6 851,08.

32) Que em Novembro e Dezembro de 2011 e Janeiro e Fevereiro de 2012 o Autor não tenha auferido € 4 882,64 a título de salário.

33) Que, por referência ao ano de 2011, o Autor não tenha recebido os proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal relativos ao tempo que esteve com incapacidade, num total de € 622,78.

34) Que o Autor não tenha gozado férias no ano de 2011.

35) Que, por referência aos quatro primeiros meses do ano de 2012, o Autor tivesse recebido € 1 245,55 a título de subsídio de férias e de Natal, caso não tivesse estado impossibilitado de trabalhar por força das lesões que lhe advieram do sinistro.

36) Que após o acidente e em razão dele o Autor tenha sido obrigado a andar com o apoio de muletas.

37) Eliminado[2];

38) Que, em razão do sinistro, o Autor sinta actualmente dores constantes na parte das ancas.

39) Que as dores referenciadas em 12-A ainda se mantenham, impedindo o Autor de dormir[3];

40) Que, em razão das lesões que lhe advieram do sinistro, o Autor não possa estar muito tempo sentado ou de pé, nem consiga caminhar normalmente.

41) Que, em razão das lesões que lhe advieram do sinistro, o Autor se sinta quase diariamente mal.

42) Que as dores referenciadas em 12-B tenham sido violentas, sentindo no Autor variações de humor[4];

43) Que à data do sinistro o A. fosse pessoa saudável.

44) Que o A. tenha de ser submetido a intervenção cirúrgica por força das consequências para si resultantes do sinistro.

45) Que antes da prolação da decisão referida em 9) o A. estivesse a passar fome, por não ter meios de sobrevivência, tendo dependido da ajuda de amigos.

2. O direito

2.1 Da nulidade

Considera o Recorrente que o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no artigo 615.º, alínea d), do CPC, por não ter alterado a resposta aos pontos 13 a 21 da matéria de facto dada como não provada em consonância com o que, em seu entender, decorreria por ter sido considerado que houve um acidente de viação que afetou o recorrente, que o douto acórdão considera que agravou dolorosamente o corpo do recorrente, ou seja, .

A nulidade por omissão de pronúncia (nos termos do artigo 615.º, n.º1, alínea d), 1ª parte, do CPC, é nulo o acórdão quando “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”) resulta da exigência prescrita no n.º2 do artigo 608.º, do CPC, nos termos do qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Conforme se evidencia do posicionamento do Recorrente, a questão que coloca enquanto vício (de nulidade) que imputa ao acórdão traduz-se na sua discordância relativamente à decisão fáctica proferida pelo tribunal a quo relativamente aos referidos pontos da matéria de facto (pois que a Relação emitiu pronúncia sobre os mesmos, conforme decorre do teor do acórdão[5], conhecendo da matéria impugnada na apelação), situação que não tem cabimento no âmbito das nulidades de decisão.

Não incorre, pois, o acórdão em nulidade por omissão de pronúncia.

2.2 Da alteração da matéria de facto (factos não provados n.ºs 13 a 45)

Considera o Recorrente que perante o entendimento do tribunal a quo ao concluir que na sequência do acidente ocorrido o Autor sentiu necessariamente dores, tendo, por isso, aditado a matéria de facto que fez consignar sob os pontos 12A e 12B, cabia dar como provado o factualismo 13 a 45 constante dos factos não provados.

Carece de total razão.

O Autor, sem o justificar, limita-se a afirmar nesta sede que os danos por si invocados na acção se mostram provados, descurando o que o tribunal a quo referiu e decidiu a tal respeito no âmbito da apreciação do recurso sobre tal matéria de facto[6].

Por outro lado, o facto da decisão proferida pelo tribunal da Relação assentar na valoração de meios de prova sujeitos à livre convicção do tribunal sempre impossibilitaria a sindicância por parte deste tribunal quanto à existência de eventual erro na valoração dos referidos meios de prova, pois que a intervenção do STJ no domínio factual é muito limitada, porque apenas reconduzida aos termos contemplados no artigo 674.º, n.º3, do CPC, ou seja, quando ocorra ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, ou ainda quando a apreciação feita se mostre alicerçada num juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade.

Improcedem, por isso, também, nesta parte, as conclusões da revista.

2.3 Da adequação do montante indemnizatório

Em matéria de ressarcimento dos danos decorrentes do acidente de viação reivindica o Autor ser indemnizado por todos os danos peticionados na acção. Todavia, face à falta de demonstração de quaisquer outros danos (para além dos que resultaram provados em 12A e 12B), não pode deixar de improceder a pretensão do Recorrente em ver alterada a decisão recorrida no que se reporta à improcedência do pedido de indemnização dos demais danos por si invocados.

Insurge-se ainda o Recorrente relativamente ao montante de indemnização fixado pelo tribunal a quo – em 10.000,00€ - para ressarcimento dos danos não patrimoniais[7] apurados nos autos.

O acórdão recorrido, face à alteração à matéria de facto provada através do aditamento dos pontos n.ºs 12A e 12B, considerou terem sido demonstrados danos não patrimoniais sofridos pelo Autor em consequência do acidente de viação, tendo procedido à sua fixação nos termos do n.º 3 do artigo 496.º do Código Civil. Justificou-o nos seguintes termos:

O presente dano consiste nos prejuízos (dor física, desgosto moral, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem-estar, liberdade, beleza, perfeição física, honra, etc.) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação.

No que aos presentes danos respeita, dispõe o art. 496.º, n.º 3 que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º do mesmo diploma (o grau de culpabilidade do agente; a situação económica deste e do lesado; e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem). Dispõe este normativo que “quando a indemnização se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.

Esta categoria geral de danos tem sido progressivamente subdividida em danos que respeitam a diversas facetas da vida humana.

Desde logo, a dor física sofrida pelos lesados como consequência dos ferimentos e respectivos tratamentos e operações; a afectação da integridade anatómica, fisiológica ou estética 54; o dano biológico 55; o prejuízo de distracção ou de afirmação pessoal e a perda de expectativas de duração de vida.

Relativamente aos presentes danos, Sousa Dinis refere que o julgador deverá ter em consideração, entre outros, os seguintes factores ou pressupostos: “a incapacidade, ou, se for o caso, a incapacidade temporária total geral, que diz respeito às tarefas da vida corrente, e a incapacidade temporária total especial para a actividade desenvolvida, ou seja, a projecção dessa incapacidade no exercício da actividade específica do lesado”;

- “a graduação do quantum doloris” (…);

- “o prejuízo estético, também graduado como a dor”;

- “o prejuízo de afirmação pessoal (alegria de viver) que deve ser graduado também de acordo com a escala valorativa da quantificação da dor (…)” ;

- “o desgosto de o lesado se ver na situação em que se encontra” ;

- “a clausura hospitalar”.”

Citando várias decisões deste Supremo Tribunal por forma a exemplificar os valores indemnizatórios que têm vindo a ser arbitrados para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pelo lesado em consequência de acidente, considerou o acórdão recorrido:

Obtidos tais parâmetros actualizados, in casu, com relevância para a determinação do quantum a arbitrar, temos que a matéria provada no caso sub júdice é parca e dotada de mitigada gravidade relativamente aos casos exemplificativamente enunciados, atenta a limitação causal dos danos percepcionados relativamente ao sinistro lesivo, pois a maior parte daqueles eram fruto da patologia preexistente de que o Autor padece.

Ou seja, e recordando, apenas se logrou provar que “o Autor sentiu dores na altura do acidente e no transporte para o hospital, o que lhe perturbou o sono”, e que “tais dores, que se prolongaram por tempo não concretamente determinado, agravaram as queixas/sintomatologia dolorosa de que o Autor já padecia, nomeadamente sequelas de displasia congénita das ancas e artroplastia total das ancas, causando-lhe perturbação, nervosismo, irritabilidade e mal-estar”.

Ora, ponderando tal factualidade e, fundamentalmente, os efeitos decorrentes de tal situação dolorosa suportado pelo Autor, o que se potenciou fruto da situação patológica preexistente, bem como o facto do mesmo em nada ter contribuído para tal resultado lesivo e danoso, afigura-se-nos dever fixar como valor compensatório a quantia de 10,000,00 € (dez mil euros), que entendemos como tradutora de um valor de reparação pertinente e totalmente observador das exigências de equidade, tendo-se em atenção os parâmetros que vêm sendo jurisprudencialmente adoptados”.

Alega o Autor que tal montante não se mostra adequado, defendendo que a indemnização pelos referidos danos deverá cifrar-se em, pelo menos, 55.000,00€.  

O seu entendimento, porém, não pode ser acolhido, cabendo realçar que o Recorrente ao pugnar pelo aumento do montante indemnizatório limita-se a asseverar a insuficiência da fixação levada a cabo no acórdão sem colocar em causa a fundamentação tecida na decisão recorrida a tal respeito.
O montante indemnizatório fixado pelo tribunal a quo, conforme se mostra expressamente reconhecido no acórdão recorrido, teve subjacente não só a exígua realidade fáctica apurada a tal respeito, como a pouca gravidade dos danos a ressarcir (em perspectiva comparativa perante os exemplos jurisprudenciais invocados no aresto), desde logo por efeito da “limitação causal dos danos percepcionados relativamente ao sinistro lesivo”, uma vez que a situação dolorosa do Autor tinha causa na patologia preexistente de que padece.
Está-se, pois, perante dor física (sendo que não foi apurada a graduação do quantum doloris) sentida pelo Autor quando do acidente, que lhe perturbou o sono, causando-lhe perturbação, nervosismo, irritabilidade e mal-estar e que perdurou durante tempo que não foi possível apurar, sendo que tais dores se traduziram num agravamento das queixas em termos da sintomatologia de que já padecia decorrente de sequelas de “displasia congénita das ancas e artroplastia total das ancas”.

A fixação da indemnização levada a cabo pelo tribunal da Relação foi alcançada com base num juízo de equidade, que constitui elemento essencial (não complementar, como é o caso da situação prevista no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil) de avaliação deste tipo de danos (como impõe o artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil,).

E porque se está no domínio da equidade, não pode ser descurado o que tem vindo a ser entendido pela jurisprudência deste tribunal quanto a considerar que tratando-se de uma ponderação casuística, das circunstâncias do caso, e não a aplicação de critérios normativos,  a apreciação a levar em conta em sede de revista apenas permite que a intervenção do STJ se reporte à verificação dos limites e pressupostos do juízo equitativo formulado pelo tribunal a quo em face da individualidade do caso concreto[8].
Nesta medida, não compete ao STJ sindicar o exacto valor indemnizatório fixado, mas tão só proceder ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente em função dos princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado[9].
Assim sendo, tendo em conta os parâmetros de cognição que neste âmbito se impõem, perante os elementos fácticos apurados e levando em linha de conta os critérios jurisprudenciais que vêm sendo adoptados para a determinação deste tipo de danos,[10] verificando-se que a fixação da indemnização por parte do tribunal a quo se mostra arredada de qualquer juízo arbitrário, não pode deixar de se manter o montante decidido no acórdão recorrido.
Improcedem, por isso, na sua totalidade, aas conclusões do recurso.

IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a revista.
Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 15 de Março de 2022

Graça Amaral (Relatora)

Maria Olinda Garcia

Ricardo Costa

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Redacção alterada pelo tribunal a quo. Originariamente, o facto tinha a seguinte redacção: “7) À data do sinistro o A. trabalhava como assistente telefónico por conta da R…, S. A., mediante a remuneração horária de € 2,80”.
[2] Alterado pelo tribunal a quo, tendo inicialmente a seguinte redacção: “37) Que o Autor tenha sentido dores na altura do acidente e no transporte para o hospital.”.
[3] Alterado pelo tribunal a quo, tendo inicialmente a seguinte redacção: “39) Que as dores que afectam o Autor em razão do acidente o impeça de dormir e lhe perturbem o sono”.
[4] Alterado pelo tribunal a quo, tendo inicialmente a seguinte redacção: “42) Que, com a mesma origem, o A. sinta dores violentas na zona das ancas, nervosismo, irritabilidade e variações de humor”.
[5] A tal propósito, conhecendo da impugnação à referida matéria, pode ler-se no acórdão recorrido: “Assim, no que concerne aos ora em apreciação factos não provados 13) e 14) -, a resposta não pode deixar de manter-se como negativa, pois, se é indubitável, e já figura como provado (facto 5)), o quadro de baixa médica do Autor, a prova produzida não logrou apurar que tal tenha resultado em razão do embate ocorrido, nem que o período em que esteve impedido de exercer a sua actividade profissional tenha tido por causa ou origem lesões sofridas na sequência do mesmo sinistro. O que determina a manutenção de tal factualidade na elencagem não provada. (…) no que concerne aos factos 15) e 18) não provados (…)

decide-se pela manutenção da presente factualidade no elenco não provado. - no que concerne ao facto (…) julga-se improcedente a pretendida alteração do ponto 17) da factualidade não provada, no sentido de passar a figurar como provado com a redacção proposta (…) no que concerne aos factos 19) e 20) não provados (…) O que, num juízo de prevalência deste meio probatório, nos termos já justificados, determina a improcedência da impugnação apresentada relativamente aos presentes pontos factuais. no que concerne ao facto 21) não provado (…) O que determina consequente improcedência do presente segmento impugnatório.

[6] Na verdade, após ter conhecido os vários pontos da matéria de facto impugnados pelo Autor em sede de apelação, embora tenha considerado que o Autor sentiu necessariamente dores na sequência do acidente ocorrido, não deixou de sublinhar que “independentemente da ausência de nexo causal entre o quadro de lesões traumáticas, e consequentes sequelas, invocado pelo Autor e aquele evento lesivo. O que já bastamente justificámos e fundámos”.
[7] Os danos não patrimoniais, correspondendo à ofensa de bens de carácter imaterial, sem conteúdo económico (pois que afectam a personalidade moral nos seus valores específicos como a integridade física e psíquica) não são avaliáveis em termos de uma medida certa e, por isso, a indemnização a arbitrar consubstancia uma mera compensação.
[8] Acórdão de 17-12-2019, proferido no âmbito do Processo n º 4014/08.4TBLRA.C2.S1, a que se pode aceder através das Bases Documentais  do ITIJ.
[9] Acórdão do STJ de 23-02-2021, Processo n.º 91/13.4TBSCD.C1.S1, a que se pode aceder através das Bases Documentais  do ITIJ.
[10] Não pondo, por isso, em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.