Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
40/10.1YFLSB
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
LEGITIMIDADE
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
DESOBEDIÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: PROSSEGUE O RECURSO
Área Temática: DIREITO DE PROCESSO PENAL - RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - 401º, Nº 1, D), 2ª PARTE, 437º, 438.º, N.º 2, 448.º
CÓDIGO PENAL (CP) : - ARTIGOS 204.º, N.º 2, ALÍNEA A), 348.º, N.º 2, E 355.º.
Sumário :


I - Nos termos do n.º 2 do art. 437.º do CPP, é admissível recurso de fixação de jurisprudência havendo oposição entre dois acórdãos das Relações, desde que verificados os requisitos do n.º 1 do mesmo artigo.
II - São requisitos formais do recurso: o trânsito em julgado das duas decisões, a interposição do recurso no prazo de 30 dias a partir do trânsito da última decisão, a legitimidade, limitada ao MP, ao arguido, ao assistente, e às partes civis; o interesse em agir, a identificação no requerimento de interposição do acórdão fundamento e a justificação da oposição.
III - Requisito central do recurso é a existência de decisões contraditórias quanto à mesma questão de direito, no domínio na mesma legislação. Essa contradição deve ser expressa e reportar-se à própria decisão, e não apenas aos seus fundamentos. Ela pressupõe também uma identidade fundamental entre os factos subjacentes às duas decisões, pois de outra forma dificilmente se poderá afirmar a existência de uma contradição de direito.
IV - Relativamente ao caso dos autos, e quanto aos requisitos de ordem formal, só a legitimidade do recorrente poderá suscitar dúvidas. Na verdade, ele não é assistente, já que essa qualidade lhe foi negada. Mas precisamente porque é essa a questão decidenda, porque o que está em causa é a apreciação da sua pretensão a constituir-se assistente, que lhe foi negada em recurso ordinário, cabe-lhe o direito de pugnar pelo seu direito também em sede de recurso extraordinário, ao abrigo do disposto nos arts. 401.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, e 448.º, do CPP.
V - Existe oposição de julgados se os acórdãos em causa decidiram divergentemente a questão de saber se, em processo por crime de desobediência, havendo interesse por parte de um particular no cumprimento da ordem violada, ele pode constituir-se assistente nos autos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. RELATÓRIO

R... e O..., S... de Gestão e Exploração Turística, S.A., vem, nos termos do disposto no art. 437°, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP), interpor recurso para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.11.2009, proferido no proc. nº 867/08, por se encontrar, em seu entender, em oposição com o acórdão proferido pela mesma Relação em 15.1.2008, no proc. n° 2345/07.
É o seguinte o teor da petição de recurso:

1. No Acórdão ora recorrido afirma-se que:
“(...) O crime de desobediência, pp. pelo art. 348.º do Cód. Penal, encontra-se no título V do Código Penal, dedicado aos crimes contra o Estado, neste, no seu capítulo II, dedicado aos crimes contra a autoridade pública, e na secção I "Da resistência e desobediência à autoridade pública". (...)
Por sua vez, o crime de descaminho pp. pelo art. 355° do Código Penal, está inserido no mesmo título (crimes contra o Estado), e no mesmo capítulo (crimes contra a autoridade pública), na secção III dedicada à violação de providências públicas. (...)
Nos crimes contra o Estado, como é o caso, ninguém se poderá constituir como assistente, uma vez que o interesse protegido pela incriminação é, a qualquer luz, exclusivamente público (...)”.
Aí se conclui, afirmando que:
“(...) Não nos merece reparo a conclusão extraída na decisão recorrida de que à requerente não assiste legitimidade para, no caso, se constituir e intervir na qualidade de assistente, e consequentemente, assim, para impulsionar o exercício da acção penal através da abertura da instrução, quanto ao procedimento pelos crimes que imputou no respectivo requerimento de abertura de instrução.
Obviamente que não tendo a denunciante (não assistente) legitimidade para requerer a instrução [art. 287.°, n.° 1, al. b) do CPP], faltando esse pressuposto processual ou essa condição de procedibilidade, a instrução não é admissível, nos termos do disposto no n.° 3 do citado art. 287° do referido diploma adjectivo, o que acarreta a rejeição liminar do requerimento por aquela apresentado para abertura da instrução e prejudica o conhecimento das nulidades arguidas nesse requerimento, pelo que não nos merece censura a doutra decisão, recorrida, que consequentemente mantemos na íntegra.”
2. No Acórdão-fundamento, por seu turno, pode ler-se que:
“A nosso ver, a situação descrita, tendo por pano de fundo um crime de desobediência qualificada p. e. p. pelo artigo 348.°, n.° 1 e 2°, em conjugação com o artigo 391.° do C.P.C., é, justamente, um dos casos em que, concomitantemente com a "autonomia intencional do Estado", o legislador visou proteger o direito que a um particular legitimamente assiste de ver cumpridas ordens que directamente visem acautelar os seus interesses, maxime, quando sejam proferidas no âmbito de um processo que teve origem na sua própria iniciativa e que visa a composição, ainda que provisória de um litígio de que é parte.
Ainda que se admita que o interesse directo e especialmente protegido no crime de desobediência é o interesse do Estado em manter o respeito pelas ordens emanadas pelas Autoridades, tal interesse nunca poderá catalogar-se como exclusivo, tendo em consideração o prejuízo sofrido pelo particular.
Não se descortina, portanto, qualquer razão válida para não admitir a intervenção do recorrente como assistente nos autos, estando em cima da mesa o não acatamento de uma providência cautelar judicialmente determinada e em que há um ofendido claramente concretizado, decorrendo para o mesmo prejuízo evidente (...)”.
3. Assim, em ambos os Acórdãos se decide a questão de saber se um particular também ofendido por um crime de crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.° do Código Penal, tem legitimidade para, relativamente a esse ilícito, se constituir assistente em processo-crime, ou seja, se se encontram preenchidos os requisitos necessários à requerida constituição como Assistente, de modo a que o particular deva ser considerado como Ofendido pela violação da norma penal imputada ao arguido.
4. Acresce que a resposta à questão nos termos supra referidos condiciona necessariamente o sentido da resposta a dar à questão que, em termos idênticos, se coloca relativamente ao crime de descaminho de objecto colocado sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355.° do Código Penal.
Pelo que, apesar de ter este ilícito apenas ter sido imputado no âmbito do processo em que foi proferido o douto acórdão recorrido, nenhum traço distintivo há entre esta e aquela questão que obvie à admissibilidade do presente recurso.
5. À questão supra descrita deram o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento soluções nitidamente opostas:
a. O Acórdão recorrido decidiu no sentido de que o particular não é o titular dos interesses protegidos com aquela[s] incriminação[ões], não podendo, por isso, considerar-se Ofendido nos termos e para os efeitos previstos no artigo 68.°, n.° 1, al. a) do CPP, não tendo, desse modo, legitimidade para se constituir como Assistente;
b. O Acórdão-fundamento decidiu no sentido de que o particular é também titular dos interesses protegidos com aquela incriminação [crime de desobediência], sendo, pois, de admitir a sua constituição como Assistente.
6. Estando em causa em ambos os Acórdãos a mesma questão de direito, existe uma flagrante oposição de julgados entre os dois acórdãos que justifica a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do presente recurso de uniformização de jurisprudência.
7. Acresce que a referida questão de direito se reporta a factos essencialmente idênticos, na medida em que, num e noutro caso, está sempre em causa o desrespeito por uma decisão judicial proferida no âmbito de providências cautelares, cujos requerentes são, também num e noutro caso, os particulares cujos interesses particulares são prejudicados por tal desrespeito. São esses particulares que, num e noutro processo, requereram a sua constituição como Assistente, invocando, no essencial, serem titulares do bem jurídico protegido com as referidas incriminações.
8. É, por outro lado, evidente que tanto o Acórdão recorrido como o Acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação.
9. Os Acórdãos em oposição transitaram já em julgado. Não foi interposto recurso ordinário das decisões em apreço. Também não foi interposto qualquer recurso para o Tribunal Constitucional. Assim, uma vez que o CPP não contém disposição que estabeleça o conceito de caso julgado, deve recorrer-se, conforme estabelece o artigo 4.°, do CPP, à norma do processo civil, que estabelece: “A decisão considera-se passada em julgado, logo que não seja susceptível de recurso ordinário, ou de reclamação nos termos dos artigos 668.° e 669.°” (artigo 677.°, do Código de Processo Civil).
10. O recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do Acórdão proferido em último lugar (cfr. artigo 438.°, n.°s 1 e 2, do CPP). Tem entendido uniformemente este Alto Tribunal que a citada norma legal, ao dispor sobre o prazo de interposição do recurso para fixação de jurisprudência, não se limita a prescrever a duração desse prazo (30 dias), mas define igualmente o facto que determina o início da contagem desse prazo, que é o trânsito em julgado do Acórdão recorrido (cfr. Ac. do STL de 22-01-2009, in www.dgsi.pt). No caso dos autos, o trânsito em julgado ocorreu no dia 7 de Janeiro de 2010 (considerando que a Recorrente foi dele notificado em 2 de Dezembro de 2009), pelo que o presente recurso é tempestivo. Perante quanto vai exposto,
11. No entendimento da ora Recorrente, e sem prejuízo do que se desenvolverá em ulteriores alegações, o Supremo Tribunal de Justiça deve, nos termos do art. 445°, n.° 1, resolver o conflito, fixando jurisprudência no sentido adoptado no Acórdão-fundamento.
12. Ou seja, a jurisprudência deve ser fixada no sentido de que: “O particular também ofendido por um crime de crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.° do Código Penal, tem legitimidade para, relativamente a esse ilícito (e bem assim ao ilícito p. e p. pelo artigo 355.° do CP), se constituir como Assistente em processo-crime.”
13. Devendo, em consequência, rever a decisão recorrida, substituindo-a por decisão que, conferindo legitimidade ao ora Recorrente para se constituir como Assistente, o admita a intervir no processo e, consequentemente, admita o requerimento de abertura de instrução tempestivamente apresentado.
Nestes termos, deve o presente recurso para fixação de jurisprudência ser admitido, com fundamento na verificação de oposição de julgados entre os supra referidos acórdão recorrido e acórdão-fundamento, ambos já transitados em julgado;
E, a final:
A) Deve ser fixada jurisprudência no sentido de que o particular também ofendido por um crime de crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.° do Código Penal, tem legitimidade para, relativamente a esse ilícito (e bem assim ao ilícito p. e p. pelo artigo 355° do CP), se constituir como Assistente em processo-crime;
B) E, em consequência, deve ser revista a decisão recorrida, substituindo-a por decisão que, conferindo legitimidade ao ora recorrente para se constituir como assistente, o admita a intervir no processo e, consequentemente, admita o requerimento de abertura de instrução tempestivamente apresentado.

O sr. Procurador-Geral Adjunto na Relação respondeu como segue:

1. R... e O..., Sociedade de Gestão e Exploração Turística, Lda. dirigiu requerimento ao Supremo Tribunal de Justiça (Pleno das Secções Criminais) pretendendo, ao abrigo do disposto no artigo 437° do C.P.Penal, interpor Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/11/09, proferido nos autos de Recurso Penal n° 867/08 da 2.ª Secção Criminal, por, na sua perspectiva, o identificado Acórdão se encontrar em oposição com o proferido pelo mesmo Tribunal da Relação de Évora no seu Acórdão de 15/01/08, Recurso Penal n° 2345/07 da 1ª Secção Criminal, consultável em www.dgsi.pt.
2. De harmonia com o disposto no artigo 437° do C.P.P. é admissível Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência quando, no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão de direito, "um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça" (n.° 2).
3. Só pode invocar-se, como fundamento do Recurso, acórdão anterior transitado em julgado (id., n.° 4), justificando o Recorrente "a oposição que origina o conflito de jurisprudência" (artigo 438°, n.° 2).
4. Ou seja, o Recorrente deve:
a) interpor o recurso "no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar";
b) "identificar o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação";
c) justificar "a oposição que origina o conflito de jurisprudência";
d) enunciar "especificamente os fundamentos do recurso e termina(r) pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que (...) resume as razões do pedido";
e) indicar "o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada".
5. Ora, analisada a Motivação, se é certo parecer cumprir ela os requisitos exigíveis na perspectiva de permitir a análise da sua substancialidade (embora se nos suscitem dúvidas sobre o tratar-se ou não de oposição de julgados na mesma questão de direito, vistos os diferentes tipos legais de crime em causa num e noutro dos Acórdãos), do ponto de vista formal o mesmo não sucede, pois que a Recorrente não dá cumprimento às prescrições do n° 1 do artigo 412° do C.P.Penal, já que tal peça não só não apresenta quaisquer conclusões, como nela se não indica o sentido em que, no entendimento da Recorrente, o Tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada.
6. Assim, e para que seja possível ao Tribunal conhecer de fundo - a chamada fase do julgamento do objecto do recurso e fixação de jurisprudência -, impõe-se, vista a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional em tal domínio, como questão prévia, a notificação da Recorrente para, em prazo que lhe venha a ser fixado, «aperfeiçoar» a motivação apresentada, formulando conclusões e indicando o sentido em que o Tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada, como legalmente exigido, e sob pena de, se assim não proceder, o Recurso vir a ser rejeitado.
7. Não vindo o Recurso a ser rejeitado e afastada que seja a dúvida que supra assinalamos, então nada obsta(rá) à respectiva admissibilidade e prosseguimento, por se mostrarem, a nosso ver, reunidos quer os pressupostos processuais comuns aos Recursos Ordinários quer os pressupostos específicos do Recurso para Fixação de Jurisprudência.

Neste Supremo Tribunal, a sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

2.1. - Questão Prévia (Da legitimidade do recorrente para interpor recurso para fixação de jurisprudência) -
Sendo certo que, de acordo com o disposto no nº 5 do art. 437º do C.P.P., o recurso para fixação de jurisprudência apenas pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis e pelo Ministério Público (para quem, aliás, é obrigatório), não menos verdade resulta que, não tendo a recorrente “R... e O..., Sociedade de Gestão e Exploração Turística, SA” sido admitida a intervir nos autos como assistente, não dispõe a mesma de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário, e isto não obstante tivesse sido admitida a interpor recurso ordinário (art. 401º do C.P.P.) da decisão que não lhe reconheceu a possibilidade de obter a condição de assistente.
É que, como decidiu este Supremo Tribunal nos seus acórdãos de 22.04.2004, Proc. nº 3552/03 e de 20.05.2004, Proc. nº 1578/04, ambos da 5ª Secção “(...) com o seu pedido (apesar de indeferido...) de intervenção como assistente no processo criminal e com o recurso ordinário (ainda que julgado improcedente) que a lei processual lhe facultou para defesa do direito que aquela decisão possa ter afectado, ficaram assegurados e esgotados os seus direitos constitucionais de «acesso ao direito» e de «tutela jurisdicional efectiva», mediante «processo equitativo», dos seus «direitos e interesses legalmente protegidos» (art. 20º da Constituição).”
E a entender-se deste jeito, impõe-se então concluir que há que rejeitar o recurso por ilegitimidade da recorrente “R...e O..., Sociedade de Gestão e Exploração Turística, SA” (arts. 441º, nº 1 do C.P.P.).
2.2. - Porém e para a hipótese de diferentemente se considerar, cumpre referir que por inverificação da alegada oposição de julgados, sempre deverá o recurso em causa ser rejeitado (art. 441º nº 1 do C.P.P.).
Efectivamente, conquanto venha invocada a oposição entre dois arestos da Relação de Évora: um, o recorrido, prolatado em 26.11.2009 (cfr. fls. 24 a 38) e outro, o fundamento, proferido em 15.01.2008 (cfr. documento anexo) no Processo nº 2345/07-1ª Secção, já transitados e alegadamente àcerca da mesma questão de direito e bem assim o recurso tenha sido tempestivamente interposto (em 18.01.2008 - cfr. certidão de fls. 41) do acórdão proferido em último lugar, o recorrido (nºs 1 e 2 do art. 437º do C.P.P.) que, tendo transitado em julgado (tal como o fundamento), afigura-se-nos que no caso em apreciação não existe a invocada contradição relevante de julgados.
II.
II.1) É que
1.1.- Exigindo a lei (art. 437º nº 1 do C.P.Penal), como bem se sabe, para que o recurso possa prosseguir para o tribunal pleno, a existência de dois acórdãos, já transitados, em que tenham sido adoptadas soluções opostas, relativamente à mesma questão fundamental de direito e proferidos no domínio da mesma legislação,
Veio a jurisprudência deste Supremo Tribunal aditar dois outros pressupostos, a saber: identidade das situações de facto contempladas nas decisões em confronto e julgados explícitos ou expressos proferidos sobre idênticas situações de facto.
1.2. - Ora, considerando justamente estes aspectos, crê-se que a necessária identidade de situações de facto, e em consequência a exigida existência de julgados explícitos ou expressos, não se verifica no caso vertente, de que resulta que a indispensável oposição de decisões não existe.
II.2) – E isto porque:
2.1. - enquanto que no acórdão fundamento (o de 15.01.2008) - prendendo-se a situação factual em apreciação com a circunstância de, na sequência do procedimento cautelar não especificado instaurado pela recorrente [que (pedindo, a final, que determinadas pessoas se abstivessem de vender a terceiros certo prédio, de celebrar quaisquer contratos (de promessa ou definitivos) de compra e venda ou quaisquer outros que pudessem onerar o bem em causa ou de praticar quaisquer actos dos quais e de alguma forma resultassem a disposição de tal bem e bem assim que se abstivessem de utilizá-lo, praticando actos passíveis de diminuir o seu valor)], que viu o mesmo ser julgado procedente na totalidade, ter sido registado e autuado inquérito, relativo a desobediência qualificada (art. 391º do C.P.Civil), com base num requerimento apresentado pela recorrente que dava conta que os arguidos continuavam a agir ao contrário do expressamente decretado na dita providência cautelar - o tribunal considerou que, no caso em que a recorrente, que viu o seu interesse atacado pela violação de ordem judicial emanada na pessoa lesada pelo não acatamento da dita ordem e, na decorrência disso, concluiu que a situação factual descrita, tendo por pano de fundo um crime de desobediência qualificada p.p. pelo art. 348º, nºs 1 e 2 do C.Penal, em conjugação com o artigo 391º do C.P.C., constitui justamente um dos casos em que, concomitantemente com a autonomia intencional do Estado, o legislador visou proteger o direito que a um particular legitimamente assiste de ver cumpridas ordens que directamente visem acautelar os seus interesses, maxime quando sejam proferidas no âmbito de um processo que teve origem na sua própria iniciativa e que visa a composição, ainda que provisória, de um litígio de que é parte, não existia razão válida para não admitir a mesma recorrente a intervir como assistente nos autos, onde há um ofendido claramente concretizado, por via de prejuízos advindos para o mesmo do não acatamento de uma providência que, a seu requerimento, foi decretada,
2.2. - no acórdão recorrido (o de 26.11.2009) - não se caracterizando minimamente a situação factual que deu causa à instauração do inquérito a partir da denúncia, é certo, formulada pela recorrente [que, imputando ao denunciado a prática do crime de descaminho de objecto colocado sob o poder público p.p. pelo art. 355º do C.Penal ou eventualmente de um crime de furto qualificado p.p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º nº 2 al. a) do mesmo diploma legal, notificada do arquivamento do processo determinado pelo Ministério Público veio requerer a sua constituição como assistente, imputando ora ao denunciado e a um outro a prática do mencionado crime de descaminho e ainda de um crime de desobediência p.p. pelo art. 348º, nº 2 do C.Penal] - concluiu-se no sentido que a recorrente, apesar de eventualmente se encontrar lesada e por isso com legitimidade para reclamar em sede própria a correspondente indemnização, não tem legitimidade, em termos processuais, para ser admitida como assistente, por o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato dos crimes em referência ser o próprio Estado.
Quer-se com isto afinal dizer que, ignorando-se se as situações factuais contempladas nas decisões em confronto eram ou não idênticas, não poderá concluir-se que as soluções jurídicas a que uma e outra chegaram se contradizem.
II.3. - Acresce que a questão de direito abordada num e noutro dos acórdãos não é também rigorosamente idêntica.
É que, como aponta o Senhor Procurador-Geral Adjunto na Relação de Évora, enquanto no acórdão fundamento a questão de direito prende-se com a legitimidade da recorrente para se constituir assistente quando em causa se encontra o aludido crime de desobediência qualificada, no acórdão recorrido ela tem a ver com a legitimidade da recorrente para se constituir assistente tratando-se do crime de desobediência qualificada, mas ainda e também do crime de descaminho de objecto colocado sob o poder público, certo resultando que quanto a este último o acórdão fundamento não se equacionou tal problemática.
III. - Termos em que, sem necessidade de expender mais considerações, se entende que, não existindo a alegada oposição relevante de julgados, deve o recurso ser rejeitado (nº 1 do art. 441º do C.P.P.), o que se requer.

Notificado nos termos do art. 417º, nº 2 do CPP, a recorrente nada disse.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Nos termos do nº 2 do art. 437º do CPP, é admissível recurso de fixação de jurisprudência havendo oposição entre dois acórdãos das Relações, desde que verificados os requisitos do nº 1 do mesmo artigo.
São requisitos formais do recurso: o trânsito em julgado das duas decisões, a interposição do recurso no prazo de 30 dias a partir do trânsito da última decisão, a legitimidade, limitada ao MP, ao arguido, ao assistente, e às partes civis; o interesse em agir; a identificação no requerimento de interposição do acórdão-fundamento, e a justificação da oposição.
Requisito central do recurso é a existência de decisões contraditórias quanto à mesma questão de direito, no domínio na mesma legislação. Essa contradição deve ser expressa e reportar-se à própria decisão, e não apenas aos seus fundamentos. Ela pressupõe também uma identidade fundamental entre os factos subjacentes às duas decisões, pois de outra forma dificilmente se poderá afirmar a existência de uma contradição de direito.
Relativamente ao caso dos autos, e quanto aos requisitos de ordem formal, só a legitimidade do recorrente poderá suscitar dúvidas. Na verdade, ele não é assistente, já que essa qualidade lhe foi negada. Mas precisamente porque é essa a questão decidenda, porque o que está em causa é a apreciação da sua pretensão a constituir-se assistente, que lhe foi negada em recurso ordinário, cabe-lhe o direito de pugnar pelo seu direito também em sede de recurso extraordinário, ao abrigo do disposto nos arts. 401º, nº 1, d), 2ª parte, e 448º do CPP.
Por outro lado, não procede a alegada falta de cumprimento das prescrições do art. 412º, nº 1 do CPP, pois as formalidades a que deve obedecer o requerimento do recurso são as que vêm expostas no nº 2 do art. 438º do CPP, as quais a recorrente cumpriu.
Resta, pois, apurar se existe oposição de direito entre os dois acórdãos em confronto.
O acórdão recorrido versou a seguinte situação:
A ora recorrente apresentou queixa-crime contra José Luis Hernández Quintero, acusando-o da prática dos crimes de descaminho de objecto colocado sob o poder público, p. e p. pelo art. 355º do Código Penal (CP), ou eventualmente de crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204º, nº 2, a) do mesmo diploma. Arquivado o inquérito pelo Ministério Público, a recorrente veio requerer a sua constituição como assistente e simultaneamente a abertura da instrução, imputando ao denunciado a prática do mencionado crime de descaminho e ainda de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº 2 do CP. Tendo sido recusada a sua constituição como assistente, a ora recorrente interpôs recurso para a Relação de Évora.
Pelo acórdão recorrido, a Relação, começando por enunciar que adopta um conceito restrito de ofendido, abrangendo apenas os titulares dos interesses que a lei quer especialmente proteger com a norma incriminadora, conclui que nos crimes contra o Estado, incluindo o de desobediência, ninguém se poderá constituir assistente, uma vez que o interesse protegido pela incriminação é sempre exclusivamente público, mesmo quando algum particular se encontre lesado, hipótese em que este tem apenas o direito de reclamar, em sede própria, a correspondente indemnização.
Negou, por isso, à recorrente o direito de se constituir assistente no processo.
Por sua vez, o acórdão invocado como fundamento, admitindo desde logo que a circunstância de se proteger num tipo legal de crime um interesse de ordem pública não afasta, à partida, a possibilidade de simultaneamente ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num determinado particular, considera que em tal circunstância este adquire legitimidade para se constituir assistente.
Analisando um caso em que fora determinado judicialmente, em providência cautelar, que certa pessoa se abstivesse de utilizar um prédio, onerando-o, praticando actos passíveis de diminuir o seu valor ou simplesmente ocupando-o e, não obstante essa decisão, essa pessoa continuar a ocupar o prédio, diminuindo o seu valor, configurando-se assim um crime de desobediência, a Relação entendeu que, numa hipótese como esta, paralelamente com o interesse público, existe um interesse particular em ver cumprida a ordem que directamente visa acautelar os seus interesses, e assim admitiu a constituição do lesado como assistente.
Como resulta da matéria descrita, a oposição só poderá configurar-se no que se refere à admissibilidade de constituição como assistente em processo pelo crime de desobediência.
Mas, quanto a este, a oposição é inequívoca. Na verdade, no acórdão recorrido, embora não se conheçam os contornos da matéria de facto, afirma-se, sem quaisquer ambiguidades, que nos crimes contra o Estado, e nomeadamente no de desobediência, nunca é admissível a constituição do lesado ou prejudicado como assistente; ao passo que no acórdão-fundamento se considera que, no crime de desobediência, pode haver, a par do interesse público, um interesse particular relevante, sendo então legítimo ao titular desse interesse constituir-se assistente.
A oposição pode, pois, formular-se nos seguintes termos: em processo por crime de desobediência, havendo interesse, por parte de um particular, no cumprimento da ordem violada, poderá ele constituir-se assistente nos autos?
Havendo, pois, oposição de julgados, nos termos agora demarcados, o recurso deverá prosseguir.


III. DECISÃO

Com base no exposto, decide-se reconhecer a existência de oposição entre os acórdãos referenciados, nos termos atrás indicados, pelo que o presente recurso prosseguirá.
Sem custas.


Supremo Tribunal de Justiça

Lisboa, 15 de Abril de 2010

Maia Costa (Relator)
Pires Graça (vencido de acordo com a declaração que junta: “rejeitaria o recurso nos termos conjugados dos arts. 437.º, n.º1, 441.º, n.º1, 414.º, n.º 2 (ex vi art. 448.º) do CPP, uma vez que, não tendo sido declarada – nem sequer foi suscitada – a inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 437.º do CPP, na parte em que identifica os sujeitos processuais que podem recorrer, a recorrente nos presentes, por não ser assistente, nem parte civil, como impõe a referida norma, não tem legitimidade para recorrer. O presente recurso, de natureza excepcional, por ser recurso extraordinário, vincula-se nos seus pressupostos e tramitação, às precisas disposições legais que o regem. O ofendido, que tenha interesse em agir, mas não seja assistente, nem parte civil, não tem a condição necessária para interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência por não ter a legitimidade conferida pelo n.º1 do art. 437.º do CPP”).
Pereira Madeira (com voto de desempate).