Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
351/11.9TAMGR.C1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 10/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Área Temática:
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PERDA DE INSTRUMENTOS, PRODUTOS E VANTAGENS.
Doutrina:
- Miguel Teixeira de Sousa, in Cadernos de Direito Provado, n.º 21, Janeiro/Março 2008, p. 24.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 111.º, N.ºS 2 E 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-11-2014, PROCESSO N.º 3479/10.9TBGDM-B.P1.S1.
Sumário :
I - Ao recurso interposto de uma decisão civil proferida em processo penal, aplicam-se as regras do recurso civil.

II - Ocorre uma situação de dupla conforme quando o recorrente “é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância - isto é, o réu que é condenado em “menos” do que na decisão da 1ª instância ou o autor [recorrente] que obtém “mais” do que conseguiu na 1.ª instância - nunca pode interpor recurso de revista para o STJ, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a - para ele menos favorável - decisão da 1.ª instância” [Miguel Teixeira de Sousa, in Cadernos de Direito Provado, n.º 21, Janeiro/Março 2008, p. 24).

III - A necessária fundamentação essencialmente diferente para que não ocorra uma situação de dupla conformidade só ocorre quando “instâncias divergirem, de modo substancial, no enquadramento jurídico da questão que se mostre verdadeiramente decisiva para o atingir é revelador de uma cisão que deve permitir, nos termos gerais, a intervenção do STJ, sem necessidade de invocar alguma das situações típicas da revista excepcional. Intervenção, aliás, justificada pela missão que é especialmente atribuída ao STJ no campo da identificação, interpretação e aplicação do regime jurídico ajustado aos casos.) – (Abrantes Geraldes, ac. STJ, 20-11-2014, Proc. n.º 3479/10.9TBGDM-B.P1.S1).

IV - Tendo a recorrente visto a condenação ser depreciada na confirmação, com a mesma e essencial fundamentação de direito quanto à perda de vantagens decretada, o recurso interposto do acórdão proferido pela 2ª instância não é admissível.

Decisão Texto Integral:
I. – RELATÓRIO.


- O Ministério Público acusou, para serem julgados em processo comum com tribunal colectivo:

- AA, com os sinais identificativos constantes do processo;

- BB, igualmente com os sinais de identificação constantes do processo; e  

- CC Inc., sociedade anónima com o capital social de dez mil dólares, sociedade offshore, com sede no …, com filial na Avenida …, nº …, 1º Dtº, …, NIPC …, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, e em concurso efectivo: 

a) - ao arguido AA, de três crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelo art.º 218, nº 1 do Código Penal ex vi nº 1 do art.º 217º do mesmo Código em concurso real com seis crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelo art.º 218, nº 2, al. a) do Código Penal ex vi nº 1 do art.º 217º do mesmo Código e um crime de actividade ilícita de recepção de depósitos e outros fundos reembolsáveis, previsto e punido pelo art.º 200º do Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro; 

B) - à arguida CC Inc., de três crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelo art.º 218, nº 1 do Código Penal ex vi nº 1 do art.º 217º e 11, nº 2 do mesmo Código em concurso real com seis crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelo art.º 218, nº 2, al. a) do Código Penal ex vi nº 1 do art.º 217º e 11º, nº 2 do mesmo Código e um crime de actividade ilícita de recepção de depósitos e outros fundos reembolsáveis, previsto e punido pelo art.º 200º do Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro; e

c) - à arguida BB de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo art.º 218, nº 1 do Código Penal ex vi nº 1 do art.º 217º do mesmo Código em concurso real com três crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelo art.º 218, nº 2, al. a) do Código Penal ex vi nº 1 do art.º 217º do mesmo Código, um crime de actividade ilícita de recepção de depósitos e outros fundos reembolsáveis, previsto e punido pelo art.º 200º do Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro e um crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo art.º 256, nº 1, al. d) do Código Penal.” (Cfr. fls. 2377 a 2400)

- “Os arguidos foram notificados para se pronunciarem acerca da possibilidade de serem condenados, nos termos do disposto no artigo 111º, nºs 2 e 4, do Código Penal, no pagamento ao Estado da quantia correspondente às vantagens patrimoniais obtidas pela prática dos crimes praticados.”

- “Na primeira sessão da audiência de discussão e julgamento verificou-se que não tinha sido possível a notificação dos arguidos AA e CC Inc., sendo que se mostrava desconhecido o respectivo paradeiro e bem assim não tinham prestado Termo de Identidade e Residência, pelo que, nos termos do disposto no art.º 30º, n.º 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, foi decidida a cessação da conexão processual com a respectiva separação relativamente aos arguidos AA e CC Inc., prosseguindo o presente processo relativamente à arguida BB.”

- Na observância “do disposto no artigo 358º, nº 1 e 3, do Código de Processo Penal, foi comunicada à arguida BB a possibilidade de: - se verificar uma alteração de qualificação jurídica, no sentido de o imputado crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea d), do Código Penal, também ser abrangido pela previsão do nº 3 do mesmo artigo, no segmento respeitante a “cheque” e à correspondente moldura penal, sem prejuízo do estabelecido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 9/2013, de 24.04;

- se considerar a alteração da actuação desta arguida imputada como “coautoria” para autoria singular quanto ao mesmo crime de falsificação de documento.”

- Após realização de audiência de discussão e julgamento, o tribunal decidiu:

A) - absolver a arguida BB da prática do imputado crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 218, nº 1 do Código Penal (factos 15 a 24 da acusação);

B) - condenar a arguida BB pela prática, em concurso efectivo:

B.1-) em co-autoria material, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, nº 1 e 218º, nº 2, alínea a), do Código Penal (dinheiro da herança de DD), na pena de três anos e seis meses de prisão;

B.2-) em co-autoria material, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, nº 1 e 218º, nº 2, alínea a), do Código Penal (dinheiro da massa insolvente de “EE”), na pena de cinco anos de prisão;

B.3-) em co-autoria material, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, nº 1 e 218º, nº 2, alínea a), do Código Penal (dinheiro da massa insolvente de “FF”), na pena de três anos de prisão;

B.4) - em co-autoria material, de um crime de actividade ilícita de recepção de depósitos e outros fundos reembolsáveis, previsto e punido pelo artigo 200º do Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, na pena de dois anos de prisão;

B.5) - em autoria singular, de um crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo artigo 256, nº 1, al. d) do Código Penal, na pena de seis meses de prisão;

B.6) - condenar a arguida BB, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de seis anos e seis meses de prisão efectiva;

C) - condenar a arguida BB, nos termos do disposto no artigo 111º, nºs 2 e 4, do Código Penal, no pagamento ao Estado da quantia de 480.696,49 euros (quatrocentos e oitenta mil, seiscentos e noventa e seis euros e quarenta e nove cêntimos) correspondentes à vantagem patrimonial obtida em resultado da prática dos crimes pelos quais vai condenada.”

Recorrida a decisão, o tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão datado de 10 de Julho de 2018 (fls. 3109 a 3141) decidiu (sic):

1. Julgar improcedente o recurso da recorrente BB quanto à questão da impugnação da matéria de facto dada por provada, mantendo-se nesta parte a decisão recorrida.

1. Julgar parcialmente procedente o recurso quanto à questão referente à determinação da medida das penas, parcelares e única, e consequentemente:

1.1. Alterar a medida concreta das penas parcelares, dos crimes de burla, para menos, do seguinte modo:

- crime de burla qualificada – dinheiro da herança de DD, montante do prejuízo, de 173.196,49€ (moldura de dois a oito anos de prisão): três anos de prisão;

- crime de burla qualificada – dinheiro da massa insolvente de “EE”, montante do prejuízo de cerca de 225.000 euros (moldura penal de dois a oito anos de prisão): três anos e seis meses de prisão;

- crime de burla qualificada – dinheiro da massa insolvente de “FF”, montante do prejuízo, de 80 000€ (moldura penal de dois a oito anos de prisão): dois anos e seis meses de prisão.

1.2. Fixar a pena única em 5 anos e 6 meses de prisão (cinco anos e seis meses de prisão).

2. Julgar parcialmente procedente o recurso da recorrente BB quanto à questão da condenação a pagar ao Estado Português a quantia de 480.696,49 euros (quatrocentos e oitenta mil, seiscentos e noventa e seis euros e quarenta e nove cêntimos) correspondentes à vantagem patrimonial obtida em resultado da prática dos crimes pelos quais foi condenada, alterando-se a decisão recorrida nos seguintes termos:

2.1. Mantém-se a condenação da arguida BB quanto à perda da vantagem patrimonial obtida referentes à “Herança de DD” no valor de 173.196,49 € e Massa insolvente de “FF” no valor de 80.000,00 €.

2.2. Reduz-se a condenação da arguida BB quanto à perda da vantagem obtida referente à Massa Insolvente “EE, Lda.” para o montante que a ré Seguradora “GG (Europe), Lda.” vier a pagar por efeito da transferência de responsabilidade da arguida BB, de forma definitiva, isto é, sem posterior obtenção de reembolso da arguida, no âmbito do contrato de seguro, nos termos supra analisados.”

- A recorrente expressou a sua não conformidade com o julgado, mediante interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 3146 a 3157) que viria a ser desfeiteada por despacho do relator lavrado a fls. 3163.

- Após, reclamação do despacho de não admissibilidade do recurso, por decisão do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Novembro de 2018 (fls. 3271 a 3276, ou 91 a 96, do volume da reclamação), viria o recurso a ser admitido, na parte respeitante à matéria cível, com o fundamento de que aplicando-se à matéria cível as regras impostas para os recursos, em matéria cível – cfr. artigo 400º, nº 2 do Código de Processo Penal e nº 3 do artigo 671º, do Código de Processo Civil – no caso não se verificaria uma situação de dupla conformidade em relação do decidido no segmento civil, dado que a fundamentação do tribunal de segunda (2ª) instância se revelava “essencialmente diferente” daquela que tinha cevada a decisão de primeira instância;

- A decisão quanto à não admissibilidade do recurso relativamente à parte penal e admissibilidade relativamente à parte civil, viria a ser coonestada, por decisão do Tribunal Constitucional (fls. 3297 a 3307), o que determinaria a fixação da admissibilidade do recurso, quanto a esta parte, por despacho do Relator lavrado a fls. 3335.        

Do recurso interposto ressuma o sequente:


I. a). – QUADRO CONCLUSIVO.

a) Em relação à aplicação do direito, entende a recorrente que não está preenchido o tipo do crime de burla qualificada, nem mesmo o do crime de actividade ilícita de recepção de depósitos e outros fundos reembolsáveis, pelo que deverá a Arguida ser absolvida;

b) Considera-se ainda as penas aplicadas manifestamente excessivas;

c) Entende a recorrente que o tribunal a quo não tomou em devida conta que todos os factores já mencionados apontariam para juízos de prevenção e culpa aquém das que terão motivado o tribunal recorrido. Cremos, por isso, que o tribunal a quo aplicou uma pena excessiva e desproprocional atenta a concreta intervenção da recorrente nos factos e todo o circunstancialismo alegadamente provado em Tribunal.

d) Discorda-se, pois da medida concreta das penas aplicadas, porquanto estas extravasam a medida da culpa da ora recorrente, bem como as particulares exigências de prevencial especial e geral, violando, por isso, o douto acórdão o disposto no artigo 40º, nº 1 e 2, 71º, nº 1 e 2, ambos do Cód. Penal.

e) Foram violados os princípios da proporcionalidade e o princípio da culpa.

f) E entendimento da recorrente que o tribunal, a condenar a arguida, deverá rever a condenação proferida no que à consequência jurídica diz respeito, aplicando-se uma pena principal mais harmoniosa, proporcional e justa face às circunstâncias acima expostas, de acordo com o disposto no artigo 71º do Cód. Penal.

g) Ou seja, a pena aplicada, em cúmulo, deverá ser inferior a 5 anos de prisão e suspensa na sua execução.

h) Entendemos ainda que o Tribunal não condenar a Arguida a pagar ao estado qualquer valor.

i) Isto porque já resulta dos autos a sentença condenatória civil a que a Arguida foi condenada a pagar.

j) Assim, a Arguida terá de pagar em termos civis, e terá de pagar ao estado?

k) Ou seja, no limite, terá de pagar duas vezes o mesmo valor, o que não se concebe.

1) Terá assim de ser revogado o douto acórdão nesta matéria.

(…) deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo revogado o douto acórdão.”

Por se tratar de recurso atinente ao veredicto cível – ainda que tendo o Estado como titular do da questão de direito em querela – o Ministério Público, neste Supremo Tribunal de Justiça, desestimou e descartou a sua intervenção.


I. b). – QUESTÃO A MERECER APRECIAÇÃO.

A redução (no despacho de admissibilidade) do âmbito recursivo à condenação cível, a solipsa questão a conhecer atina com o tema da condenação a favor do Estado do valor correspondente às vantagens (pecuniárias), provenientes dos factos ilícitos, apropriados pela recorrente (e demais arguidos).


II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II. A. – DE FACTO.

Após decisão (negativa) da impugnação da decisão de facto, que havia sido impelida no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, pela recorrente, a factualidade consolidada é a que a seguir queda transcrita.

 “1 - CC Inc. é uma pessoa colectiva não residente em Portugal, com sede no …, aí registada em 12.06.2007, com o capital social de dez mil dólares americanos. 

2 - CC Inc. tem sede social em território português e domicílio fiscal na Avenida …, nº …, 1º dt, … sendo seu representante AA.

3 - A sociedade CC Inc. nunca teve autorização para, em Portugal, realizar operações financeiras, nomeadamente receber, por conta própria ou alheia, depósitos ou outros fundos reembolsáveis. 

4 - CC Inc. é titular da conta nº … do BANCO HH, S.A.(actual II), balcão do Juncal, cujo representante é AA. 

5 - Entre a data de sua fundação e 31.12.2010, em Portugal, nomeadamente a partir da …, a sociedade CC Inc., através de AA, que actuava por si e como representante daquela, dedicou-se à actividade de recebimento, por conta própria ou alheia, de depósitos, com a promessa de juros, entre os 2% e os 7% ao mês, pagamento mensal, possibilidade de resgate imediato garantindo a sua robustez financeira, e restituição a quem a solicitasse nomeadamente através de assinatura de confissão de dívida. 

6 - AA afirmava que o rendimento provinha da aplicação do dinheiro em produtos de alta rentabilidade, variando a versão consoante as pessoas que o abordavam, podendo ser numa plataforma que geria uma série de outras aplicações financeiras, designadamente na bolsa, petróleo, pedras preciosas e moedas.

7 - A arguida BB é advogada com escritório na Av. …, …, 1º Dtº, … . 

8 - A arguida BB actuava como angariadora de clientes para a CC Inc. e AA, recebia toda a correspondência, disponibilizou o seu escritório para sede da mesma, afiançava aos potenciais investidores a segurança no investimento, procedia à redacção de documentos jurídicos, reconhecia assinaturas e até emitiu um cheque em nome próprio para garantia do investimento do administrador da massa insolvente de “EE – Sociedade Industrial Metalúrgica, Ldª”.

9 - Em troca, a arguida BB recebia dinheiro da CC Inc. e de AA e recebia valores directamente de “investidores” que depositava na sua conta e posteriormente transferia parte para a sociedade arguida. 

10 - Entre Agosto de 2007 e Outubro de 2010, no âmbito dessa actividade de recebimento de valores para investimentos, a conta nº … do BANCO HH, S.A. (actual II), titulada por CC Inc., apresentou créditos no total de € 5.499.379,89 euros e débitos no mesmo valor.

11 - Desse montante, € 2.222.802,62 euros correspondiam a depósitos, sendo € 627.226,61 euros referentes a depósitos em numerário e € 1.594.556,04 euros de depósitos de cheques. 

12 - Nessa conta foram recebidas transferências no valor total de € 1.907.630,69 euros. 

13 - Desta mesma conta: foram transferidos € 96.867 euros para contas de arguida BB; € 530.365,48 euros foram transferidos para contas de empresas estrangeiras; € 91.069,23 euros foram objecto de levantamentos; € 67.234,70 euros foram utilizados em pagamento de compras; € 110.103,74 euros foram usados em pagamentos de serviços e € 64.186,19 euros correspondem a pagamentos realizados com o cartão de crédito. 

14 - Com o referido modo de angariação de dinheiro, para além das transferências acima referidas, foram efectuados pagamentos de algumas prestações a título de juros a outros investidores.

I - Herança de DD

15 - Em data próxima e anterior a 27 de Novembro de 2009, a arguida BB propôs a JJ que aplicasse o dinheiro da herança de DD na empresa CC Inc., garantindo-lhe toda a segurança, mediante remuneração de 0,5% ao mês, e dizendo que era uma excelente aplicação e com óptima remuneração. 

16 - JJ, acreditando no que lhe foi dito pela arguida BB, emitiu o cheque n.º … do KK, relativo à Herança de DD, no valor de €173.196,49 euros, à ordem da arguida, após o que lho entregou. 

17 - Em 23.11.2009, a arguida BB depositou na sua própria conta, aquele cheque n.º … do KK e no dia 27.11.2009 transferiu a importância de 170.122,00 euros, para a conta titulada pela CC Inc. no LL Bank. 

18 - CC Inc. recebeu o referido dinheiro, que o fez seu e reverteu a favor de AA, ficando a arguida BB com a diferença entre o valor do cheque e o montante transferido.

19 - CC Inc., representada por AA, na qualidade de primeira outorgante, emitiu, com data de 4 de Janeiro de 2010, uma “Confissão de dívida” a favor de JJ, na qualidade de segundo outorgante representado pela arguida BB, declarando: 

- o primeiro outorgante “se confessa devedor do montante de Euros: 170.000€ (cento e setenta mil euros) desde o dia 1 de dezembro de dois mil e nove, sendo o pagamento desse montante ao Segundo Outorgante, sem data a fixar”; 

-“o segundo outorgante, na pessoa da sua legal representante Drª BB: Que aceita a respectiva confissão de dívida, dando ao Primeiro a correspondente e respectiva quitação total de dívida […] não há lugar à cobrança de juros a qualquer título ao Primeiro Outorgante por parte do Segundo Outorgante”. 

20 - No dia 17 de Junho de 2010, a arguida BB transferiu 3.400 euros da sua conta 4…4 do KK a favor da conta nº 000…3 do Banco MM, S.A., a favor de JJ. 

21 - No dia 19 de Julho de 2010 a arguida BB transferiu 3.400 euros da sua conta 4…4 do KK a favor de conta nº 000…3 do Banco MM, S.A., a favor de JJ. 

22 - No dia 17 de Novembro de 2010 a arguida BB fez duas transferências de 3.400 euros, cada uma, da sua conta 4….4 do KK a favor de conta nº 000…3 do Banco MM, S.A., a favor de JJ. 

23 - No dia 17 de Fevereiro de 2010 a arguida BB emitiu o cheque nº …7 da sua conta nº 4…4 do KK, no valor de €11.771,33, a favor de JJ, que o recebeu e fez seu. 

24 - No dia 9 de Março de 2010 a arguida BB emitiu o cheque nº …5 da sua conta nº 4…4 do KK, no valor de €3.400, a favor de JJ, que o recebeu e fez seu. 

25 - No dia 20 de Abril de 2010 a arguida BB emitiu o cheque nº …6 da sua conta nº 4…4 do KK, no valor de €3.400, a favor de JJ, que o recebeu e fez seu. 

26 - Os arguidos receberam o referido dinheiro, que fizeram seus e apenas restituíram a JJ as referidas quantias. 

NN 

II.1- massa insolvente de “EE”

27 - Em Setembro de 2010, NN era Administrador de Insolvência no âmbito do processo de insolvência n.º 1069/05.7T…, do … Juízo do Tribunal Judicial de …, em que foi declarada insolvente “EE – Sociedade Metalúrgica, Ldª”. 

28 - A arguida BB, como advogada, era mandatária de um trabalhador e membro da comissão de credores no âmbito desse processo de insolvência. 

29 - Em 6 de Setembro de 2010, a arguida BB disse a NN que era agente de intermediação da empresa CC Inc., que existia há mais de cinco anos e era muito segura. 

30 - A arguida BB propôs a NN que aplicasse o dinheiro da massa insolvente com toda a segurança mediante remuneração de 0,5% ao mês, o que era óptima remuneração e seria vantajoso para a massa insolvente. 

31 - Face ao teor da explicação, NN acreditou que uma aplicação financeira na CC traria vantagens para aquela massa insolvente.

32 - Ainda mais confiou porque, como garantia e caução, exigiu e a arguida BB aceitou entregar-lhe um seu cheque pessoal e um reconhecimento de dívida, correspondendo o cheque e a confissão de dívida ao montante de investimento, além de que esta era membro da comissão de credores e advogada.

33 - Conforme combinou com NN, a arguida BB emitiu o cheque n.º …2 da sua conta do HH, agência de …, com o NIB 00…7, válido até 2011.07.06, no valor de 227.500,00 euros com data de 2010.09.07, a favor de massa insolvente de EE, Lda. 

34 - Após, a arguida BB entregou aquele cheque a NN.

35 - No mesmo dia 7 de Setembro de 2010 ---face à “confissão de dívida”, à entrega do cheque e ao mais que lhe foi dito pela arguida BB, sendo a mesma advogada e membro da comissão de credores--, NN realizou uma “aplicação” em CC Inc, na sua qualidade de administrador de insolvência de massa insolvente de “EE – Sociedade Industrial Metalúrgica, Ldª” pelo valor de € 227.500 euros, sem risco de perda de capital, com prazo de vencimento em 15 de Novembro de 2010, com juros e sem retenção de IRC, sendo a documentação emitida com vencimento de aplicação. 

36 - Para tanto, nesse mesmo dia foi efectuado um depósito de 227.500 euros a favor de CC Inc., na conta n.º …01 do HH, através do cheque nº …9 da conta nº 5…3, da conta da Caixa OO de …, assinado por NN e pela arguida BB, datado daquele dia e no referido valor. 

II.2- massa insolvente de “FF”

37 - Em data indeterminada, a arguida BB abordou novamente NN para que este aplicasse o dinheiro existente na massa insolvente de “FF – Fabricação de Moldes, Ldª”, de que também era administrador, na CC Inc. 

38 - Para tanto, a arguida BB invocou os mesmos argumentos anteriormente referidos de bom investimento, ausência de risco e boa renumeração.

39 - Acreditando na veracidade do que lhe era dito pela arguida BB, em 12 de Outubro de 2010, NN fez uma “aplicação”, a favor de CC Inc. por parte de massa insolvente de FF – Fabricação de Moldes, Lda. no valor de € 80.000 euros, através de depósito, sem risco de perda de capital, com prazo de vencimento em 30 de Dezembro de 2010, com juros sem retenção de IRC, com documentação contratual emitida com o vencimento de aplicação. 

40 - Para o efeito, no dia 12 de Outubro de 2010 foi realizado um depósito do montante de € 80.000 euros a favor de CC Inc., conta n.º …1 do HH. 

41 - CC Inc. recebeu o referido dinheiro, que o fez seu e reverteu a favor de AA, o qual entregou parte à arguida BB. 

42 - Em 15 de Novembro de 2010 NN recebeu em numerário, em mão, da arguida BB, o valor de € 2.275 euros, correspondente a 1% do valor aplicado por conta da massa insolvente de “EE – Sociedade Industrial Metalúrgica, Ldª”. 

43 - Perante este recebimento, NN ficou com a convicção reforçada de que o contrato era válido. 

44 - Em 30 de Novembro de 2010, NN solicitou à arguida a devolução de capital e juros, ao que a mesma respondeu que teria de aguardar porquanto existia auditoria e o dinheiro vinha do estrangeiro; 

45 - Naquele dia acordou com a arguida BB a devolução de quantia aplicada e juros na data de 31.12.2010. 

46 - No dia aprazado, a arguida BB disse a NN que, pelos mesmos motivos, não era possível devolver o dinheiro e acordaram a data limite de 30 de Janeiro de 2011, sem prorrogações. 

47 - Na referida data não ocorreu qualquer devolução do dinheiro e nada mais foi devolvido posteriormente. 

48 - Em 29 de Junho de 2011, perante a não devolução do dinheiro, NN apresentou a pagamento o cheque, que a arguida BB lhe entregara, com o n.º …2 no valor de € 227.500 euros.

49 - Em 1 de Julho de 2011, aquele cheque foi devolvido, na compensação, indicando como motivo “cheque revogado – extravio”. 

50 - Com efeito, no dia 10 de Dezembro de 2010, na agência do Juncal, a arguida BB apresentou no HH, S.A. um requerimento de revogação do cheque nº …2, para que o mesmo não fosse pago invocando justa causa, por extravio. 

51 - Mais declarou a arguida BB que “assumo (…) inteira e exclusiva responsabilidade pelas declarações aqui prestadas, bem como pelas consequências das mesmas”. 

52 - A arguida BB sabia que tinha entregue aquele mesmo cheque a NN para garantia do investimento financeiro nos termos acima referidos e que, em caso de incumprimento, o aludido cheque seria apresentado a pagamento. 

53 - A arguida BB quis com a referida declaração obstar ao pagamento do cheque e assim assegurar a quantia em dinheiro que havia recebido da massa insolvente de “EE – Sociedade Industrial Metalúrgica, Ldª”. 

54 - Durante os anos de 2007 a 2011, no âmbito da sua actuação, nas contas por si tituladas nº …1 do HH (II) e nº ..4 do KK, a arguida BB recebeu € 276.525,88 euros em depósitos e € 156.331,95 euros de transferências. 

55 - A arguida BB transferiu das referidas contas o valor de € 170.122 euros para a CC Inc., emitiu cheques no valor de € 99.042,39 euros, efectuou pagamentos com cartão de crédito e compras no valor de € 70.282,22 euros e levantamentos em numerário no montante de € 26.042,39. 

56 - Nos anos de 2007 a 2011, a arguida BB recebeu na sua conta nº …1 do HH € 22.067 euros provenientes da conta do HH da CC Inc.; sendo que em 2010 recebeu € 16.462 euros. 

57 - No ano de 2010, na sua conta nº …54 do KK, a arguida BB e recebeu ainda mensalmente, onze transferências no valor de € 6.800 euros cada uma, provenientes da conta do HH da arguida CC Inc.. 

58 - AA, actuando por si e como representante de CC Inc., e a arguida BB agiram de forma livre, deliberada e consciente, em comunhão de esforços e intentos.

59 - Previram e quiseram criar a aparência de uma instituição financeira para receber depósitos de outras pessoas, por conta própria ou alheia, sem a respectiva autorização do Banco de Portugal. 

60 - Visaram receber aquele dinheiro, sem intenção de o devolver, aproveitando-se da confiança que criaram nas pessoas que lho entregaram.

61 - Pretendiam obter, como conseguiram, um enriquecimento, correspondente aos valores acima referidos, que sabiam não lhes pertencer e que só os receberam por terem dito que era um investimento seguro e que estava garantido pela confissão de dívida e pelo cheque (no caso da “EE”), o que sabiam ser ilegítimo. 

62 - A arguida BB previu e quis assinar a referida declaração para assim obstar ao pagamento do cheque, bem sabendo que o tinha entregue como garantia do valor recebido por CC Inc.. 

63 - A arguida BB tinha perfeito conhecimento de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 

64 - Com data escrita de 7 de Março de 2008, a arguida CC Inc., representada por arguido AA, na qualidade de primeira outorgante, emite “Confissão de dívida” a favor de PP e QQ, na qualidade de segundo outorgante representado pela arguida BB, declarando: 

- o primeiro outorgante “se confessa devedor do montante de Euros: 20.000€ (cento e setenta mil euros) desde o dia 7 de Março de dois mil e oito, sendo o pagamento desse montante aos Segundos Outorgantes, sem data a fixar, reservando-se o Primeiro Outorgante no direito de só efectuar o pagamento quando lhe for possível”; 

- “Declararam os segundos Outorgantes: Que aceitam a respectiva confissão de dívida, dando ao Primeiro a correspondente e respectiva quitação total de dívida […] não há lugar à cobrança de juros a qualquer título ao Primeiro Outorgante por parte dos Segundos Outorgantes”. 

65 - O reconhecimento de assinatura de arguido AA foi efectuado por arguida BB. 

66 - Com data-valor de 08.02.2010, foi creditado na conta nº 4…4 do KK, titulada pela arguida, a quantia de 8.371,33 euros, remetido dos Estados Unidos da América, correspondentes a 11.701,44 dólares americanos, enviados por RR e resultantes da venda de um veículo que integrava a herança de DD.

67 - A arguida BB não manifesta arrependimento.

68. - Nada consta no registo criminal da arguida BB.

69.1- A arguida BB nasceu a … de Abril de 1970, em … e veio para Portugal com dois meses de idade, tendo crescido com os pais e um irmão mais novo na cidade da … .

69.2- A família morava numa vivenda; o pai era … do exército e reformou-se como …; a mãe trabalhava como administrativa numa empresa da … e está igualmente reformada.

69.3- A arguida BB é licenciada em Direito; estudou em …, onde ficou a residir após conclusão do curso e iniciou a sua vida profissional na área do direito.

69.4 - Pouco tempo depois casou e regressou à … onde se fixou profissionalmente e passou a residir.

69.5 - O casamento acabou em separação pouco tempo depois; de outra relação amorosa, já finda, nasceu uma filha actualmente com 11 anos de idade. 

69.6 - A arguida reside com a filha na …, num apartamento arrendado, mantendo contactos com familiares e com o pai da filha.

69.7- Profissionalmente, a arguida tem escritório aberto a clientes, situado no seu apartamento residencial, onde dispõe uma área reservada ao exercício da advocacia, o qual partilha também com outra advogada; para além do domicílio profissional na sua residência, mantém um escritório em … .

69.8 - No plano económico, a arguida paga uma renda mensal de 279,62 euros, ao qual acrescem as despesas fixas inerentes a energias e telecomunicações e condomínio totalizando cerca de 122 euros; aufere em média 1.200 euros mensais.

69.9- A arguida é considerada como boa profissional, dedicada ao trabalho e à família, com bom relacionamento interpessoal.

69.10 - No meio residencial, a arguida e os seus pais são conhecidos como pessoas de hábitos de trabalho.


Factos não provados.

Nenhuns outros factos relevantes para a decisão da causa se provaram em audiência de discussão e julgamento, nomeadamente não ficou demonstrado que: 

a - AA e BB convidaram PP e QQ a participar num negócio da empresa CC Inc.;

b - QQ entregou ao arguido AA o valor de € 20.000 euros nem que este repartiu esse dinheiro com a arguida BB; 

c - como forma complementar de garantia, o arguido AA efectuou na SS Seguros seguro de vida com o capital de € 100.000, sendo em caso de morte os beneficiários QQ e PP; 

d - a arguida BB recebeu dinheiro de QQ ou TT;

e - a arguida BB disse a JJ que era agente de intermediação da CC Inc.;

f - a quantia de 8.371,33 euros creditada na conta nº 4…4 do KK, a arguida BB, resultante da venda de um veículo que integrava a herança de DD foi aplicada no investimento da CC Inc.;

g - a arguida BB teve qualquer intervenção nos factos alinhados sob os números 25 a 35 e 49 a 79 da acusação (para salvaguardar eventual interpretação de não pronuncia do tribunal colectivo quanto a factos constantes da acusação).”


II. B. – DE DIREITO.

II. B.i) – PERDA (A FAVOR DO ESTADO) DAS VANTAGENS ADVENIENTES DA PRÁTICA DE FACTO ILÍCITO.

Na divergência oposta à decisão – e no solipso segmento que agora interessa, restrito à matéria civil da condenação – a recorrente entende que não poderia ter sido condenada ao pagamento das quantias em que as ofendidas Herança de DD e massa insolvente “FF” sob pena de essa condenação poder vir a percutir uma dupla condenação, ou seja, nas palavras da recorrente, “terá de pagar duas vezes o mesmo valor, o que não se concebe”.

Em pródromo às considerações que iremos tecer acerca do tema importa reconstituir a argumentação que justificou a condenação.

Escreveu-se, adrede, no aresto impugnado (sic): “3ª Questão: da pretensa incorreta condenação da arguida a pagar ao Estado Português a quantia de 480.696,49 euros (quatrocentos e oitenta mil, seiscentos e noventa e seis euros e quarenta e nove cêntimos) correspondentes à vantagem patrimonial obtida em resultado da prática dos crimes pelos quais foi condenada, nos termos do disposto no artigo 111º, nºs. 2 e 4, do Código Penal.

1. O tribunal recorrido fundamentou a condenação nos seguintes termos:

“Perda das vantagens do facto ilícito típico a Favor do Estado

O artigo 111º, dispõe que:

1 - Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.

2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.

3 - O disposto nos números anteriores aplica-se às coisas ou aos direitos obtidos mediante transacção ou troca com as coisas ou direitos directamente conseguidos por meio do facto ilícito típico.

4 - Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.

A perda de vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção; este preceito tem em vista "mais uma perigosidade em abstracto" e visa a "prevenção da criminalidade em geral" [[1]].

Para além deste efeito preventivo, o confisco tem ainda «subjacente uma necessidade de restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente. Um Estado de Direito não pode deixar de preocupar-se em reconstituir a situação patrimonial que existia antes de alguém através de condutas ilícitas ter adquirido vantagens patrimoniais indevidas, mesmo que estas não correspondam a um dano de alguém em concreto»[2]. Como dizia Sidónio Rito «o crime nunca é título legítimo de aquisição»[3] e a melhor forma de o demonstrar é um veredictum judicial[4].

Não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque também não depende de uma condenação[5]

Na perspectiva da sua natureza jurídica, a perda de vantagens constitui uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança[6].

A perda de vantagens constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes, "mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do objecto"[7].

Como salientam João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, é imprescindível que a sentença torne claro que o «crime não compensa». Se não for assim, se se condenar o arguido mas permitir que ele mantenha incólumes as vantagens da prática do crime, estará a transmitir à comunidade um sinal contraditório e incompreensível[8].

Aparentemente não existe qualquer controvérsia sobre o significado da expressão vantagem: todo e qualquer benefício patrimonial que resulte do crime ou através dele tenha sido alcançado [[9]]. 

No caso concreto, não restam dúvidas de que a arguida BB obteve a vantagem equivalente aos montantes de que se apoderou em resultado das suas actuações correspondentes aos crimes de burla pelos quais vai condenada.

Por isso, nos termos do nº 4 do artigo 111º do Código Penal, não sendo possível a apropriação em espécie, deve a mesma ser substituída pela condenação da arguida no pagamento ao Estado do respectivo valor.

Os montantes de que a arguida BB se apoderou em resultado das suas actuações correspondentes aos crimes de burla pelos quais vai condenada são os seguintes: 173.196,49 euros (recebido da herança de DD), 227.500,00 euros (recebido da massa insolvente de “EE”) e 80.000,00 euros (recebido da massa insolvente de “FF”).

Assim, o valor total que a arguida recebeu, em resultado da actividade que desenvolveu, ascende a 480.696,49 euros.

Esse é o montante em que a arguida deve ser condenada a pagar ao Estado, nos termos do disposto no artigo 111º, nº 4, do Código Penal”.

2. Concorda-se, no essencial, com a fundamentação do julgador a quo inerente à condenação do agente do crime, a favor do Estado, do montante de que se apropriou, para contrariar precisamente a ideia de que o «crime não compensa» e ainda que «o crime nunca é título legítimo de aquisição»

Todavia, o artigo 111º, nº 2, do Código Penal, aplicado, ressalva:

“São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie”.

Ou seja, a perda da vantagem patrimonial a favor do Estado deve levar em conta os direitos do ofendido ou terceiro de boa-fé.

 Não sendo explícito o pensamento do julgador quanto à melhor interpretação a retirar desta salvaguarda dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé, entende-se que se devem, no entanto, considerar as seguintes premissas, emergentes do teor da disposição em análise:

 - A ratio que preside a esta perda da vantagem obtida pelo agente do crime tem subjacente a anunciada ideia de que o crime não deve compensar, pelo que tudo o que seja obtido de modo ilícito, deve estar sujeito a confisco, deve existir/prevalecer a perda de tal “lucro”, com a prática do crime.

- Todavia, este confisco reveste natureza subsidiária perante o ressarcimento dos prejuízos do ofendido ou de terceiro de boa fé, ou seja, só deve ser decretada a perda de vantagem patrimonial do agente do crime, em termos de confisco, se essa vantagem continuar na esfera jurídica do agente e não já revertida a favor do ofendido, para a reparação dos seus prejuízos ou danos, quer no próprio processo crime (pedido civil enxertado), quer em ação própria, em separado, para o efeito (se se verificarem os pressupostos do artigo 72º, do Código de Processo Penal). É que este pedido de reparação/indemnização, pode ou não coincidir com a vantagem obtida pelo agente, por diversas razões. Pode, nomeadamente, ser superior, se o ofendido teve outros prejuízos para além do que se apropriou ilicitamente o agente (v. juros, despesas, incómodos, danos morais). Como pode até o ofendido obter a reparação dos seus prejuízos (sempre com a dita vantagem englobada ou consistindo apenas nessa) com um eventual acordo com o agente do crime, quanto a essa reparação.

- Se faz sentido a perda da vantagem pelo agente do crime para que o crime não compense, também deve ser considerado que o legislador não pretende ou exige que o agente “pague duas vezes”, a dita vantagem, uma com a declaração de tal vantagem a favor do Estado e outra com o pagamento a favor do ofendido.

Sob pena de se estar perante a dita dupla condenação do agente, a devolver duas vezes o montante indevidamente apropriado. Neste sentido, v. ac. do TRPorto de 07-12-2016, proferido no proc. nº 193/15.2IDPRT.P1:

“Posto isto, acresce que na normalidade das coisas, quando as vantagens do crime não vão além do prejuízo da vítima, e o lesado não prescinde da reparação apresentando o respectivo pedido, a providência não terá justificação – vide Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág.633§ 105.
Por sua vez, M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, in Código Penal, Iº Volume, Págs. 785 ponderam “Pode deixar de ser declarada a perda a favor do Estado quando o ofendido ou terceiro tenha uma pretensão tutelada pelo direito civil ao património obtido pelo agente, já que a perda dos proventos ilicitamente obtidos deve servir também para restabelecer o direito do ofendido, não devendo, portanto, piorar a sua situação”. Na problemática do confisco dos proventos do crime podem conflituar eventuais pretensões indemnizatórias do lesado, que pode ver-se na contingência de não fazer valer os seus direitos, e do outro lado, o arguido pode ser constrangido a «pagar» duas vezes - vide Conde Correia, Ob. Cit, pág.. 9”.

Também o ac. TRPorto de 23-11-2016 proferido no proc. nº 905/15.4IDPRT.P1, decide: “A vantagem adquirida (por apropriação) é susceptível de ser declarada perdida a favor do Estado. Porém, teremos que compreender a locução conjuntiva subordinativa condicional utilizada pelo legislador- sem prejuízo dos direitos do ofendido.

Ofendido, nos termos do artigo 68º, nº1, alínea a) do Código de Processo Penal, é o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, posição que lhe confere legitimidade para se constituir como assistente.

Entendemos, em abstracto, que o Mº Pº apenas deverá accionar o mecanismo de perda das vantagens adquiridas pelo agente através do facto ilícito típico que correspondam à prestação da obrigação de indemnização civil pela prática daquele facto quando o ofendido (o titular do interesse penalmente tutelado) se desinteressa pela mesma (em sentido aproximado, Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág.633).

Só nestes casos poderá tal perda corresponder às suas finalidades supra referidas, de prevenção da criminalidade em globo, que não podem ou devem conflituar com o direito do ofendido de obter a reintegração no seu património daquilo que lhe foi subtraído (até porque a obrigação resultante para o agente da perda em espécie ou por pagamento do seu valor não deve piorar a situação do ofendido – cfr. CP Anotado, M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, 4ª edição, págs.534 e 535).

E se dúvidas permanecessem quanto a tal solução, as mesmas encontram conforto no artigo 130º, nº2, do Código Penal onde se prevê, em nome do referido direito de indemnização do lesado de um crime, a atribuição ao mesmo, até ao limite dos danos sofridos, dos objectos declarados perdidos (ou produto da sua venda) ou o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes do crime pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos artigos 109º e 110º.

3. Resulta dos autos, sobre esta questão, o seguinte:

- Nos termos da cópia da sentença proferida no Juízo de Comércio de Leiria, de 06.05.2017, do processo nº 1069/05.7BMGR-O, que correu por Apenso ao Processo de Insolvência de “EE”, de ação declarativa instaurada por “UU, Aços e Serviços, Lda” contra NN, BB e “Companhia de Seguros VV, S.A.”[10] , consta do seu segmento decisório:

“(…) 4.2 – Condeno a Ré “GG (Europe), Lda.” a pagar à Autora Massa Insolvente “EE, Lda.”, em virtude da responsabilidade civil (profissional) da Ré BB … a quantia máxima de 150.000,00€, (descontada a franquia (…);

4.3 – Condeno os Réus NN e BB no pagamento solidário à Autora Massa Insolvente “EE, Lda.” de 227.500,00€ (…) sendo esta última Ré pelo valor diferencial entre o valor a liquidar pela companhia de seguros e a sua condenação efectiva, descontada a quantia de 2.227,00 €”

- Não foram deduzidos nos presentes Autos quaisquer pedidos de indemnização civil pelos lesados “Herança de DD” (173.196,49 €) e massa insolvente de “FF” (80.000,00 €).

4. Face a estes elementos, dúvidas não se suscitam que, quanto às vantagens obtidas referentes à “Herança de DD” no valor de 173.196,49 € e Massa insolvente de “FF” no valor de 80.000,00 €, deve a arguida BB ser condenada na perda dessa vantagem.

Quanto à vantagem obtida da Massa Insolvente “EE, Lda. no valor de 227 500,00€, existe na verdade o teor da sentença supramencionada, que assegura à ofendida (Massa Insolvente “EE, Lda) a possibilidade de se ressarcir dos danos ou prejuízos sofridos.

E dessa sentença consta nomeadamente a condenação da aí ré BB (arguida e recorrente nestes autos crime) no pagamento à Autora Massa Insolvente “EE, Lda.” de 227.500,00€, coincidente com a vantagem patrimonial apurada nestes autos de processo crime.

Com uma ressalva: esta Ré, BB, pagará apenas, no imediato, o valor diferencial entre os 227.500,00€ e o valor a pagar pela companhia de seguros.

E é assim porque, foi a Ré “GG (Europe), Lda.” condenada a pagar à Autora Massa Insolvente “EE, Lda.”, em virtude da responsabilidade civil (profissional) da Ré BB … a quantia máxima de 150.000,00€, (descontada a franquia (…).

Ou seja, a recorrente apenas fica obrigada a pagar à ofendida Massa Insolvente “EE, Lda.”, o montante de 227.500,00€, deduzida a quantia de 150.000,00€, acrescida da dita franquia a pagar à Seguradora ré.

Esta sentença constitui, para todos os efeitos, título executivo válido para a ofendida ser reparada dos prejuízos, do mesmo modo que o seria se esta condenação ocorresse neste processo crime.

Ou seja, se o pedido da ofendida Massa Insolvente “EE, Lda. tivesse sido deduzido nestes autos e a arguida condenada a pagar esse montante de 227.500,00€, dúvidas não se suscitariam de que, com esta condenação, ficaria assegurado o direito da ofendida, não se justificando, neste mesmo processo, a também condenação da arguida na perda patrimonial a favor do Estado, desse mesmo montante.

Tal como na sentença supramencionada como em eventual condenação nestes autos crime, face à condenação da arguida, juridicamente, está salvaguardado o direito da ofendida em ver reparados os prejuízos, ao mesmo tempo que a arguida “perde a vantagem patrimonial obtida”.

O momento seguinte, continua a ser idêntico em ambas s situações: a questão da execução da condenação, enquanto título executivo.

Mas uma diferença ressalta desde logo: a arguida BB, por força da transferência para a ré Seguradora, da responsabilidade profissional, não irá pagar o montante correspondente a essa responsabilidade. O que significa que, nessa medida, a arguida BB mantenha na sua esfera jurídica, essa vantagem.

Resulta da sentença proferida no processo nº 1069/05.7BMGR-O, que a questão do valor de 227.500,00€ foi apreciada naquela ação cível, apenas “num quadro negocial não concretamente apurado e informal, a que não foi alheio o relacionamento pessoal entre NN e BB”.

E sem prejuízo de a aí ré Seguradora ter invocado duas cláusulas de exclusão da sua responsabilidade, de natureza estritamente civil, as mesmas foram julgadas improcedentes, acabando por ser condenada. Ou seja, não foi (nem teria de ser, em princípio), apreciada qualquer responsabilidade criminal da arguida BB, naquela ação. Nem as ditas cláusulas de exclusão invocadas pela ré Seguradora, têm a ver com a responsabilidade criminal da arguida, apenas apurada agora nos presentes autos.

O que significa que, sem prejuízo da já condenação da ré Seguradora naquela ação cível, perante a agora condenação crime da arguida BB, não possa a mesma (Seguradora), exercer qualquer direito de regresso contra a arguida, peticionando o que, entretanto, pagou, se qualquer cláusula contratual assim o permitir.

Sintetizando:

- Na sentença proferida no proc. nº 1069/05.7BMGR-O, foi a ré BB (arguida e recorrente nestes autos crime) condenada no pagamento à Autora Massa Insolvente “EE, Lda.” no montante de 227.500,00€, coincidente com a vantagem patrimonial apurada nestes autos de processo crime.

- Esta sentença constitui, para todos os efeitos, título executivo válido para a ofendida ser reparada dos prejuízos, do mesmo modo que o seria se esta condenação ocorresse neste processo crime.

- Todavia, porque foi a Ré “GG (Europe), Lda.” condenada a pagar à Autora Massa Insolvente “EE, Lda.”, em virtude da responsabilidade civil (profissional) da Ré BB … a quantia máxima de 150.000,00€, (descontada a franquia (…), a recorrente apenas fica obrigada a pagar à ofendida Massa Insolvente “EE, Lda.”, o montante de 227.500,00€, deduzida a quantia de 150.000,00€, acrescida ainda da dita franquia a pagar à seguradora ré.

- Pelo que a vantagem patrimonial efetiva obtida será o que a ré Seguradora vier a pagar por efeito da transferência de responsabilidade da arguida BB.

- Quantia esta que neste momento ainda não se mostra apurada nem é possível quantificar, desde logo, porque não é conhecido o que a arguida irá pagar de franquia; e, por outro, também se desconhece qual a atitude processual a tomar pela Seguradora perante a arguida, pela condenação desta, da sua conduta criminosa que envolve os factos da ofendida Massa Insolvente “EE, Lda.”, nomeadamente quanto a eventual direito de peticionar junto desta o montante entretanto já pago ou a pagar.

- O que significa que a condenação da arguida na dita perda de vantagem patrimonial deverá salvaguardar esta situação, ou seja, salvaguardar a hipótese (possibilidade) de apenas ser decretado o perdimento da quantia que a seguradora venha a pagar, de forma definitiva, isto é, sem posterior obtenção de reembolso da arguida, no âmbito do contrato de seguro. O que poderá ser feito em incidente posterior de liquidação.

Sendo esta a posição que se nos afigura mais consentânea com a interpretação do preceito 111º, do Código Penal e a mais pragmática para a concreta situação em análise, afasta-se, por sua vez, a posição defendida no ac. do TRPorto de 22-02-2017, proferido no proc. nº 2373/14.9IDPRT.P1, de que “concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens prevalecerá a primeira delas, remetendo-nos para uma fase de tramitação posterior, em que já estão atribuídos e devidamente delimitados quer os valores da indemnização do ofendido ou de terceiro e o da perda de vantagens”.

Entende-se que não existe fundamento para criar uma eventual situação de conflito e/ou concorrência entre duas execuções, tornando complexo o que pode ser simplificado.

E, repete-se, se a questão dos direitos da ofendida, tivessem sido apreciados no processo crime, como era possível, não faria sentido a condenação da arguida duplamente. Se fosse condenada a pagar os prejuízos à ofendida, onde se mostrasse incluída a vantagem adquirida com a prática do crime, não seria a mesma condenada, concomitantemente, na perda da vantagem patrimonial obtida porque esta deixaria de o ser com a condenação a favor da ofendida.

5. Nota final sobre esta questão:

A decisão final teve por base o regime aplicável à data da prática dos factos, ou seja, o teor do então artigo 111º, do Código Penal, supracitado.

Com efeito, aquele regime foi alterado pelo artigo 10º, da Lei nº 30/2017, de 30 de maio, que veio regular esta matéria, agora no artigo 110º, do mesmo Código Penal, com o seguinte teor:

Artigo 110.º

Perda de produtos e vantagens

1 - São declarados perdidos a favor do Estado:

a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e

b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.

3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.

4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.

5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.

6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.

Ou seja, apesar da alteração referida, a perda da vantagem patrimonial obtida mantém-se, continuando a não serem prejudicados os direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, nos termos analisados.”

A condenação operada no processo não teve embase, ou impulso, legítimo e capaz, de pedido por parte de quem tinha o dever de o desencadear.

O Ministério Público desfiados 112 artigos do requerimento em que requestou o julgamento dos arguidos, AA, “CC Mangement, Inc” e BB, gizou a imputação jurídico-penal que a facticidade reclamava, sem outro cuidado ou tenção petitória, notadamente que os arguidos viessem a ser condenados a pagar ao Estado as vantagens que tivessem obtido da prática dos ilícitos típicos que lhe eram assacados. (cfr. fls. 2365 a 2400)

Após a demandante “UU” deduziu pedido de indemnização cível contra os arguidos e NN, administrador da massa insolvente da firma “EE” – ainda que este, NN não tivesse sido acusado –, sem outros sucessos (processuais) influentes na marcha do processo até ao momento da prolação do despacho de recebimento da acusação e designação da data para julgamento.

No despacho em que recebeu a acusação e designou data para julgamento, o Senhor Juiz lavrou o sequente despacho (sic): “Notifique os arguidos para, querendo, se pronunciarem acerca da possibilidade de serem condenados, nos temos do artigo 111º, nºs 2 e 4 do Código Penal, no pagamento ao Estado da quantia correspondente à vantagem patrimonial obtida pela prática dos crimes imputados.”  

A iniciativa ou propensão processual não havia sido manifestada pelo detentor das acção penal e/ou defensor dos interesses materiais-financeiros do Estado, “invece” por iniciativa do próprio tribunal que, motu próprio, se incumbiu, por substituição da posição processual originária do detentor de legitimidade, o Ministério Público, da defesa dos interesses do Estado português.

Facto é que nenhum sujeito processual suscitou a questão da carência de legitimidade para o surto processual assumido, por mão própria, pelo tribunal.

Assoalhado na inércia propositiva dos intervenientes processuais, não se suscitaram dúvidas ao tribunal de proceder á condenação operada na sentença, abrangendo toda a importância apropriada pelos arguidos.

O despacho que ordenou a notificação dos arguidos, para os efeitos nele contidos, transitou em julgado e cauciona a tenção decisória em que culminou a condenação, nem se nos afigura que, em sede de recurso seja possível ao tribunal conhecer, oficiosamente, da falta de «legitimidade oficiosa» do tribunal de 1ª instância para accionar, de mão própria, a perda de vantagens a favor do Estado português.

Na verdade, a recorrente não suscitou a questão, no recurso, e este tribunal está ilaqueado pelo trânsito em julgado do despacho.

Queda imota e impertérrita a questão que intentamos exsurdir.     

Porque assim passar-se-á a conhecer do recurso admitido, ou melhor se o recurso admitido deverá ser objecto de conhecimento.

O tribunal da Relação de Coimbra, sem divergência jurídica e qualitativa de fundamentação, acabaria por corrigir a quantidade da condenação, por supressão/ablação da quantia em que a arguida havia sido condenada no processo nº 1069/05.7BMGR-O, “à Massa Insolvente “EE, Lda.” no montante de 227.500,00€, coincidente com a vantagem patrimonial apurada nestes autos de processo-crime.”

A fundamentação em que o tribunal recorrido embasa a justificação para reduzir a condenação da recorrente não diverge, fundadamente, daquele em que o tribunal de primeira (1ª) instância se escorou para alçapremar a condenação.

Qualquer das decisões, parte do pressuposto de que a condenação operada ancora no disposto do artigo 111º, nºs 2 e 4 do Código Penal e na necessidade de confisco, por parte do Estado, das vantagens obtidas por agentes criminosos da actividade delitiva que hajam perpetrado.

A divergência que se evidencia entre as decisões prolatadas nas instâncias salda-se numa divertida perspectiva quanto a uma das verbas em que a primeira (1ª) instância e a segunda desestimou, por entender que a recorrente já havia sido condenado em acção adrede o que obstaria a perda decretada, sob pena de poder vir a ocorrer uma dupla condenação. Não ocorre uma divergente fundamentação, no plano jurídico, mas tão só uma redução do quantitativo condenatório, que o tribunal de 2ª instância justifica, com recurso a fundamentação adequada à posição que adopta.          

Na verdade, a “dupla conforme” constituiu-se como restrição jusprocessual ao alor recursivo, por se entender que a confirmação pela instância de recurso – tribunal de apelação – do julgado proferido pela primeira (1.ª) instância, que confirmasse, ainda que fundamentação diversa – na versão original do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto – a decisão de primeira instância (1ª) representava uma garantia de suficiente e presuntiva correcção da aplicação do direito, ao caso concreto, e que, sendo o Supremo Tribunal de Justiça um órgão jurisdicional que, estatutariamente, só conhece do direito, para além dos casos taxativamente indicados na lei para conhecimento de matéria de facto não deveria ser chamado a decidir questões que já tinham obtido uma dupla apreciação e essa apreciação tinha sido uniforme e correspondente.

Em artigo que consagrou a esta temática, o Professor Teixeira de Sousa escreveu que: “Há casos nos quais o funcionamento do sistema da "dupla conforme" não levanta certamente nenhuns problemas, Se, por exemplo, o réu tiver sido absolvido na 1ª instância e vier a ser condenado na Relação (ou vice-versa), é claro que o acórdão da Relação é "desconforme" com a decisão da 1ª instância e que, por isso, a revista é admissível nos termos gerais. Mas também há casos nos quais a aferição da "conformidade" ou "desconformidade" das decisões das instâncias pode ser bastante mais complexa. Nomeadamente, há que verificar se toda a coincidência no conteúdo de procedência ou de improcedência das decisões das instâncias é suficiente para assegurar a "conformidade" entre elas e se qualquer divergência nesse conteúdo basta para implicar uma "desconformidade" entre essas decisões.”

Casos ocorrem em que o discernimento da questão não se antolha tão linear antes coloca aporias em que a linearidade exposta merece ser escandida.

Assim, genericamente haverá que traçar ou recortar os contornos em que a “dupla conforme” deve ser enfocada, “(…) a avaliação da "dupla conformidade" das decisões das instâncias, para efeitos de análise da admissibilidade da interposição de revista para o Supremo, tem de ser realizada através de uma dupla operação:

- Primeiro, há que escolher os elementos que podem ser utilizados para comparar as decisões das instâncias; esses elementos só podem ser aqueles que sejam relevantes para a pronúncia do Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, só podem ser elementos que caibam na competência decisória do Supremo;

- Depois, há que aplicar esses elementos na comparação das decisões das instâncias para verificar se, para efeitos da admissibilidade da revista, elas são "conformes" ou "desconformes"; em particular, importa analisar em que condições duas decisões com o mesmo conteúdo decisório podem ser consideradas "desconformes" e duas decisões com diferentes conteúdos decisórios podem ser tidas por "conformes".” [[11]]

Tratando-se de acções em que a causa de pedir teve por base uma obrigação pecuniária ou uma situação de responsabilidade civil refere este Preclaro Professor que: “Se o conteúdo condenatório ou absolutório do acórdão da Relação coincidir, em termos quantitativos, com o conteúdo da decisão da 1.ª instância, parece não haver dúvidas de que a revista não é admissível, por se verificar uma situação de "dupla conforme". Por exemplo: a 1.ª instância e a Relação condenam ou absolvem, ambas, o réu no pagamento de € 100.000. Admita-se, no entanto, que a Relação, em vez de condenar ou absolver exactamente no mesmo montante da decisão da 1.ª instância, condena ou absolve num montante distinto, maior ou menor. Por exemplo: a 1ª instância condenou o réu em € 80.000 e a Relação condenou essa mesma parte em € 85.000 ou em € 75.000. Em hipóteses como estas, coloca-se o problema da admissibilidade da revista com base na seguinte ordem de considerações: se a Relação tivesse condenado exactamente nos mesmos € 80.000 a que o réu foi condenado na 1.ª instância, nem o réu, nem o autor poderia interpor recurso de revista, porque se trata de duas decisões “conformes”; sendo assim, tendo a Relação condenado o réu em menos € 5.000 ou em mais € 5.000, não é coerente admitir a interposição de revista, respectivamente, pelo réu ou pelo autor, porque afinal a sentença tem para eles um conteúdo mais favorável do que aquela da qual eles não poderiam recorrer. Em concreto: se o réu não pode interpor recurso de revista de uma decisão que o condena em € 80.000, então não é coerente admitir que ele possa interpor revista de uma decisão que só o condena em € 75 000; se o autor não pode interpor recurso de uma decisão que condena o réu em € 80.000, então não é lógico admitir que ele possa recorrer de uma decisão que lhe concede € 85.000.” [[12]] Porquanto, e na necessidade de clarificar as situações, refere mais adiante o Distinto Professor, que “(…)decorre a necessidade de construir um critério pelo qual se possa aferir em que condições as decisões das instâncias, respeitantes a diferentes montantes pecuniários, estão abrangidas pelo regime da “dupla conforme”. O critério proposto desdobra-se nas seguintes premissas:

- O apelante que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância - isto é, o réu que é condenado em “menos” do que na decisão da 1ª instância ou o autor que obtém “mais” do que conseguiu na 1.ª instância - nunca pode interpor recurso de revista para o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a - para ele menos favorável - decisão da 1.ª instância;

- O apelado que é prejudicado pelo acórdão da Relação relativamente àquilo que tinha obtido na 1.ª instância só pode interpor recurso de revista se a sua sucumbência for superior a metade da alçada do tribunal da Relação, isto é, exceder € 15.000 (cfr. art. 678.º, n.º 1); se assim suceder e se esse apelado interpuser recurso de revista, o apelante pode beneficiar da aplicação analógica do disposto no art. 682.º, n.º 5, e interpor um recurso subordinado.”

Os ensinamentos plasmados no citado estudo já obtiveram aceitação e abalizamento na jurisprudência deste Supremo Tribunal, notadamente, no acórdão de 30 de Outubro de 2012, relatado pelo Conselheiro Abrantes Geraldes, quando refere que: “Apesar de não existir uma total coincidência quantitativa entre a sentença de 1ª instância e o acórdão da Relação, estamos perante uma situação que deve ser qualificada como de dupla conforme, de tal modo que a interposição de recurso de revista teria de ser veiculada pela via da excepcionalidade prevista no art. 721º-A do CPC, e não pela via “normal” do art. 721º.

Com efeito, a diferença entre ambas as decisões circunscreve-se ao pedido reconvencional que, tendo sido julgado totalmente improcedente na 1ª instância, foi julgado parcialmente procedente na Relação.

Se a Relação tivesse confirmado integralmente a sentença também na parte em que apreciou a reconvenção, mantendo a absolvição da A. da totalidade do pedido reconvencional, era evidente que o acórdão seria insusceptível de impugnação através da interposição de recurso de revista “normal”, nos termos do art. 721º, nº 1, do CPC (conformidade do resultado e unanimidade dos subscritores). Em tal eventualidade, a impugnação em sede de revista ficaria condicionada à demonstração de alguma das situações excepcionais previstas no art. 721º-A, nº 1.

Neste contexto, aquela primeira via recursória também deve considerar-se encerrada em casos, como o dos autos, em que a parte interessada acabou por sair beneficiada (ainda que em proporção inferior à pretendida) pelo acórdão da Relação.

Trata-se de solução que se funda no argumento “por maioria de razão” que mais não traduz do que o relevo dado ao elemento teleológico na interpretação normativa, levando a que, a par do texto legal, se atenda aos motivos que estiveram na génese de uma determinada solução. Confluindo, assim, para soluções coerentes e racionais, acabam por ser rejeitados por essa via resultados que não se inscrevem nos objectivos propostos pelo legislador.

Tal solução foi exposta em primeira via por Teixeira de Sousa num artigo intitulado “Dupla Conforme: critério e âmbito da conformidade”, em Cadernos de Direito Privado, nº 21, págs. 21 e segs., com a concordância do Cons. Pereira da Silva, em intervenção no âmbito do “Colóquio sobre o Processo Civil”, realizado neste mesmo Supremo Tribunal de Justiça em 27-5-10, acessível através de www.stj.pt/colóquios.

O mesmo entendimento vem ganhando apoio jurisprudencial, como o revelam os Acs. de 10-5-12 (Lopes do Rego) ou de 12-7-11 (João Bernardo), ambos acessíveis através de www.dgsi.pt. 

Trata-se, aliás, de solução que também foi assumida no Ac. de 16-11-11 (Fernandes da Silva), no âmbito de um recurso de revista interposto em processo do foro laboral. Outrossim, no Ac. de 5-7-12 (Santos Carvalho), proferido no âmbito de um recurso sobre pedido cível em sede de processo penal.

Tal entendimento segue trajecto semelhante ao que na área central do processo penal leva a que se considere vedado o recurso para o Supremo por parte do arguido quando a Relação atenua a pena aplicada na primeira instância (v.g. Acs. de 6-1-11 – Rodrigues da Costa, 27-1-10, Isabel Pais Martins, ou de 8-11-06 – Sousa Fonte).” [[13]/[14]]  

A alteração operada pela lei nº 41/2013, de 26 de Junho, alterou o quadro conceptual em que se havia formada o instituto da dupla conforme, passando a exigir, para além da conformidade do veredicto judicial e da unanimidade do juízo confirmativo dos julgadores, que a fundamentação das decisões proferidas pelas instâncias não obtivesse um sentido argumentativo e lógico-racional distinto, ou seja na formulação positiva do preceito (artigo 671º, nº 3) não fosse “essencialmente diferente”. 

Em apreciação deste novo elemento conceptual exigível para a enformação jusprocessual da dupla conforme escreveu o Conselheiro Abrantes Geraldes no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 20-11-2014 (Proc. n.º 3479/10.9TBGDM-B.P1.S1) que (sic): “Com a reforma do regime dos recursos de 2007, a necessidade de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça determinou a consagração de uma restrição assente na dupla conforme: confirmação, sem voto de vencido e ainda que com fundamento diverso, da decisão da 1ª instância. 

Esta medida foi objecto de largo debate entre os defensores da manutenção do sistema anterior que não previa este impedimento ao terceiro grau de jurisdição e aqueles que sublinhavam a necessidade de reduzir a quantidade de recursos, como forma de racionalizar o uso dos meios processuais e de valorizar a intervenção do Supremo, proporcionando reais condições para a criação de correntes jurisprudenciais estáveis.

Se, em abstracto, a multiplicidade de graus de jurisdição constitui elemento potenciador de maior segurança jurídica, também é certo que os meios disponíveis para a tarefa de Administração da Justiça são limitados e que a necessidade de alcançar uma decisão definitiva em tempo razoável não é compatível com o esgotamento da multiplicidade de recursos. 

Foi consagrada no âmbito daquela revisão do regime de recursos cíveis a regra da inadmissibilidade de recurso em situações de dupla conforme, com excepção das três situações particulares enunciadas no nº 1 art. 721º-A do anterior CPC.

O regime entretanto foi modificado. 

Inicialmente a aludida medida restritiva era totalmente independente da fundamentação de cada uma das decisões: a dupla conforme verificava-se sempre que a Relação confirmasse, sem voto de vencido, e mesmo com fundamentação diversa, a decisão da primeira instância. Já com o NCPC o regime restritivo deixa de se aplicar quando a Relação empregue para a confirmação da decisão da 1ª instância “fundamentação essencialmente diferente” (art. 671º, nº 3).

Efectivamente, em tais circunstâncias, embora o resultado final seja idêntico, o facto de as instâncias divergirem, de modo substancial, no enquadramento jurídico da questão que se mostre verdadeiramente decisiva para o atingir é revelador de uma cisão que deve permitir, nos termos gerais, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, sem necessidade de invocar alguma das situações típicas da revista excepcional. Intervenção, aliás, justificada pela missão que é especialmente atribuída ao Supremo no campo da identificação, interpretação e aplicação do regime jurídico ajustado aos casos.

O quotidiano forense é susceptível de nos revelar diversas situações que impedem a verificação de uma situação de dupla conforme com aquele motivo.

Assim ocorre designadamente:

- Quando, depois de a 1ª instância assumir uma determinada qualificação contratual, a Relação adopte uma outra distinta ou envolva a decisão num enquadramento jurídico substancialmente diverso;

- Quando uma eventual condenação tenha sido sustentada na aplicação das regras de um determinado contrato, sendo a decisão confirmada ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa ou de normas que regulam os efeitos da nulidade do mesmo contrato;

- Quando um determinado resultado tenha sido sustentado na apreciação da validade de um contrato e a Relação, oficiosamente, reconheça a existência de nulidade que nenhuma das partes invocou;

- Ou ainda, nos casos em que a primeira decisão tenha absolvido o réu da instância com fundamento numa determinada excepção dilatória e a Relação tenha encontrado motivo para a mesma decisão noutra excepção.

Em cada uma destas situações que nos limitámos a exemplificar, posto que o resultado final seja idêntico, a diversidade do percurso seguido acaba por infirmar as razões que levaram o legislador de 2007 a restringir o acesso ao terceiro grau de jurisdição, justificando que, nos termos gerais, a parte vencida suscite a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça como órgão jurisdicional que tem a primazia na aplicação do direito.

4. Todavia, a atenuação do condicionalismo legal de que depende a verificação de uma situação de dupla conforme não pode ser interpretada como um regresso ao modelo recursório anterior à reforma de 2007, fazendo depender o recurso de revista unicamente do valor do processo ou da sucumbência em conexão com a alçada da Relação. O relevo atribuído à fundamentação jurídica para evitar a formação de uma situação de dupla conformidade decisória não pode servir de pretexto para, na prática, restaurar de pleno o terceiro grau de jurisdição que o legislador de 2007 limitou, sustentado nas vantagens que uma tal restrição assegura, na medida em que evita o recurso indiscriminado ao Supremo Tribunal de Justiça, só porque o valor do processo ou da sucumbência o permitem.

Assim, a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação implica que prevaleça o seu núcleo fundamental, ou seja, os aspectos que verdadeiramente se mostram decisivos para a obtenção do resultado, levando a desconsiderar, para este efeito, as divergências marginais, secundárias, periféricas, que não representam efectivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo acontece nas situações em que a diversidade de fundamentação se traduza apenas na não aceitação, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado pela 1ª instância ou que não tenha sido admitido e que sirva para reforçar o mesmo resultado.

Se, como é natural, a sistematização das decisões ou a variedade dos argumentos jurídicos empregues numa e noutra das decisões é susceptível de conduzir a resultados formalmente diversos ou não inteiramente coincidentes, releva unicamente para o caso a essencialidade da fundamentação que, seguindo trilhos diversos, sustente uma e outra das decisões.

Para o efeito importa não devem confundir-se questões jurídicas com argumentos jurídicos, sendo relevante que os resultados tenham sido motivados por respostas diversas à mesma questão de direito essencial para ambos os resultados.” [[15]]

Pensamos, com o que deixou escrito, ficar suficientemente explicitada a questão da dupla conformidade, in mellius, e da divergência fundamental, essencial e necessária para que a lei adjectiva permita a recorribilidade da decisão.

O despacho que admitiu o recurso, não vincula o relator – cfr, nº 2 do artigo 641º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal –, mesmo que essa admissibilidade haja sido proferida em sede de reclamação, como foi o caso. O relator, na apreciação a que procede tem a obrigação de verificar se estão verificados os requisitos de que depende a cognoscibilidade do recurso e actuar de acordo com a situação processual que lhe é presente.      

Nestes termos, e pelas razões que deixamos explanadas, não se conhece do objecto do recurso, quanto à parte civil.      


III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os Juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Em rejeitar o recurso, por se haver constituído uma situação (processual) de dupla conformidade, in mellius, entre o decidido nas instâncias;

- Condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 3 Uc´s.


Lisboa, 30 de Outubro de 2019


Gabriel Catarino (Relator)

Manuel Augusto Matos

_____________

[1] Leal Henriques e Simas Santos, 2002: 1162 e 1164, e Sá Pereira e Alexandre Lafayette, 2007: 299, anotação 6ª ao artigo 111º, citados por João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues.

[2] acórdão do TC n.º 392/2015, de 12 de agosto, citado por João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues.

[3] AA. VV., Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, 2, Lisboa, AAFDL, 1979, p. 200, citado por João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues.

[4] João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, “O confisco das vantagens e a pretensão patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos crimes tributários”, Julgar Online, Janeiro de 2017, (Anotação ao Acórdão do TRP de 23-11-2016, processo n.º 905/15.4IDPRT.P1).

[5] Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 315, em anotação ao artigo 111º.

[6] Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág. 638: P. Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição, pág.460: M. M. Garcia e J. M. C. Rio, CP comentado, 2ª edição 2015, pág.465: M. Simas Santos e M. Leal Henriques, Código Penal comentado, 4ª edição 2015, pág.537, citados por João Conde Correia / Hélio Rigor Rodrigues.

[7] Figueiredo Dias, 1993: 638; também nesse sentido, Maia Gonçalves, 2007: 436, anotação 3ª, ao artigo 111º.

[8] “O confisco das vantagens e a pretensão patrimonial ….”;

[9] cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. pág.632, P. Pinto Albuquerque, ob. e pág. Cit., e J. Conde Correia/H. Rigor Rodrigues, Julgar online 8, pág.12.
[10] Cfr. fls. 2343 a 2364.
[11] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in Cadernos de Direito Provado, n.º 21, Janeiro/Março 2008, pág. 21 e 22.
[12] Miguel Teixeira de Sousa, in loc. cit. pág. 24.
[13] Disponível em www.dgsi.pt. Importará, para melhor explicitação da temática, transcrever aqui, por aquilo que comporta de esclarecedor e conclusivo, o que ficou dito no acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Maio de 2012, relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego. “(…) o referido conceito de dupla conformidade tem de ser interpretado, não em termos empíricos de coincidência puramente numérica ou matemática dos valores pecuniários das condenações constantes das decisões já proferidas pelas instâncias, mas com apelo a um elemento normativo, funcionalmente adequado à actual fisionomia dos recursos e do acesso ao STJ. E, nesta perspectiva, não faria o menor sentido admitir que a parte que viu a sua condenação ser atenuada pelo acórdão proferido pela Relação tivesse a possibilidade de aceder ao Supremo – quando seguramente a não teria se o acórdão proferido em 2ª instância tivesse mantido, nos seus precisos termos, o montante condenatório mais elevado, arbitrado na sentença proferida em 1ª instância. Constituiria, na verdade, seguramente solução normativa qualificável como arbitrária ou discricionária a que se traduzisse em conceder o direito ao recurso à parte beneficiada pela decisão da 2ª instância – quando era inquestionável que não poderia recorrer se a Relação, em vez de proferir decisão mais favorável para o recorrente, se tivesse limitado a manter, ipsis verbis, a condenação mais gravosa, decretada na sentença proferida na 1ª instância.
Saliente-se que, numa situação com os contornos da que agora nos ocupa, existe uma relação de inclusão quantitativa entre o valor concedido à lesada na 1ª instância e o que lhe foi atribuído no acórdão da Relação – ou seja, o valor pecuniário atribuído pela Relação já estava logicamente compreendido no âmbito do montante – superior – arbitrado na sentença: como refere Castro Mendes (Limites Objectivos do Caso Julgado, pags.336 e segs.), ao analisar o fenómeno da extensão do caso julgado e das relações de coerência prática e lógico-jurídica que lhe subjazem, verifica-se a extensão por inclusão quantitativa quando é elemento da decisão uma quantidade ideal – um valor, uma medida de coisas fungíveis, uma percentagem. Então, a indiscutibilidade da soma alarga-se às parcelas.
Se R. é condenado a pagar 70 a A, não pode propor contra este uma acção pedindo (rebus sic stantibus) a declaração de não dever mais de 50. E se A propuser pela mesma causa de pedir uma acção pedindo a condenação de R a pagar 40( não: mais 40), pode opor-se-lhe a excepção dilatória de caso julgado. O efeito que ele pretende (ser tido como credor de 50), embora quantitativamente diferente do pedido formulado na primeira acção, no entanto, está incluído na respectiva decisão ( se é credor por 70, é-o por 50) e beneficia por inferência do respectivo caso julgado, e consequentemente da possibilidade de opor a excepção respectiva.
Ocorrendo, deste modo, uma relação de inclusão quantitativa entre o montante arbitrado na 2ª instância e o que foi decretado na sentença proferida em 1ª instância, de tal modo que o valor pecuniário arbitrado pela Relação já estava, de um ponto de vista de um incontornável critério de coerência lógico-jurídica, compreendido no que vem a ser decretado pelo acórdão de que se pretende obter revista, é evidente que tem de se ter por verificado o requisito da dupla conformidade das decisões, no que respeita ao montante pecuniário arbitrado pela Relação.
Neste sentido, pode invocar-se o decidido no recente Ac. de 12/7/11, proferido pelo STJ no P. 203/08.0YYPRT-A.P1.S1, a cuja argumentação inteiramente se adere:
O alcance do art. 721.º, n.º 3, do CPC não é uma questão de hoje. Esta mesma questão foi já problematizada tanto pelo Professor Miguel Teixeira de Sousa (Cadernos de Direito Privado, 21, 21 e seguintes) como ainda pelo Vice-Presidente deste Supremo Tribunal, Conselheiro Pereira da Silva, numa intervenção no colóquio, em 27.5.2010 “Recursos em Processo Civil: abordagem crítica à última reforma”, (http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Coloquios/Discursos/Intervenção-colóquioVPPS%2027%2005.pdf).
Naquele artigo refere Teixeira de Sousa que: “Há casos nos quais o funcionamento do sistema da dupla conforme não levanta certamente nenhuns problemas. Se, por exemplo, o réu tiver sido absolvido na 1.ª instância e vier a ser condenado na Relação (ou vice-versa), é claro que o acórdão da Relação é “desconforme” com a decisão da 1.ª instância e que, por isso, a revista é admissível nos termos gerais. Mas também há casos nos quais a aferição da conformidade ou desconformidade das decisões das instâncias pode ser bastante mais complexa…Um dos casos … é aquele que se refere às decisões relativas a obrigações pecuniárias (respeitantes, por exemplo, a prestações contratuais ou a indemnizações resultantes de incumprimentos contratuais ou de responsabilidade extra-obrigacional). Se o conteúdo condenatório ou absolutório do acórdão da Relação coincidir, em termos quantitativos, com o conteúdo da decisão da 1.ª instância, parece não haver dúvidas de que a revista não é admissível, por se verificar uma situação de dupla conforme. Por exemplo: a 1.ª instância e a Relação condenam ou absolvem, ambas, o réu no pagamento de € 100.000. Admita-se, no entanto, que a Relação, em vez de condenar ou absolver exactamente no mesmo montante da decisão da 1.ª instância, condena ou absolve num montante distinto, maior ou menor. Por exemplo: a 1.ª instância condenou o réu em € 80.000 e a Relação condenou essa mesma parte em € 85.000 ou em € 75.000. Em hipóteses como estas, coloca-se o problema da admissibilidade da revista com base na seguinte ordem de considerações: se a Relação tivesse condenado exactamente nos mesmos € 80.000 a que o réu foi condenado na 1.ª instância, nem o réu, nem o autor pode interpor recurso de revista, porque se trata de duas decisões “conformes”; sendo assim, tendo a Relação condenado o réu em menos € 5.000 ou em mais € 5.000, não é coerente admitir a interposição de revista, respectivamente, pelo réu ou pelo autor, porque afinal a sentença tem para eles um conteúdo mais favorável do que aquela da qual eles não poderiam recorrer. Em concreto: se o réu não pode interpor recurso de revista de uma decisão que o condena em € 80.000, então não é coerente admitir que ele possa interpor revista de uma decisão que só o condena em € 75.000; se o autor não pode interpor recurso de uma decisão que condena o réu em € 80.000, então não é lógico admitir que ele possa recorrer de uma decisão que lhe concede € 85.000. Do exposto decorre a necessidade de construir um critério pelo qual se possa aferir em que condições as decisões das instâncias, respeitantes a diferentes montantes pecuniários, estão abrangidas pelo regime da dupla conforme. O critério proposto desdobra-se nas seguintes premissas:
– O apelante que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância – isto é, o réu que é condenado em “menos” do que na decisão da 1.ª instância ou o autor que obtém “mais” do que conseguiu na 1.ª instância – nunca pode interpor recurso de revista para o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a – para ele menos favorável – decisão da 1.ª instância…”
Na intervenção de Pereira da Silva é referido que: “Acompanhamos, uma vez mais, Teixeira de Sousa, noutro sentido se não pronunciando António Santos Abrantes Geraldes, quando afirma que o sistema de “dupla conforme” está longe de conduzir a “soluções fáceis e indiscutíveis”, sucedendo que, “ao contrário do que o legislador talvez tenha imaginado, a “conformidade” ou “desconformidade” das decisões das instâncias não podem ser aferidas pelo critério puramente formal da coincidência ou não coincidência do conteúdo decisório da sentença”. E aponta, para além de outras situações em que, a seu ver, a conformidade ou desconformidade devem ser concretamente apreciadas, como um dos casos, muito frequente, em que “apesar de se verificar uma divergência no conteúdo decisório das decisões das instâncias, a aferição da “conformidade” ou “desconformidade” dessas decisões se torna algo problemática”, “aquele que se refere às decisões relativas a obrigações pecuniárias “respeitantes, por exemplo, a prestações contratuais ou a indemnizações resultantes de incumprimentos contratuais ou de responsabilidade extra-obrigacional, nas seguintes premissas se desdobrando o critério que advoga para aferir em que condições as decisões das instâncias, respeitantes a diferentes montantes pecuniários, estão abrangidas pelo regime da “dupla conforme”: 1.º - “O apelante que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância – isto é, o réu que é condenado em “menos” do que na decisão da 1.ª instância ou o autor que obtém “mais” do que conseguiu na 1.ª instância – nunca pode interpor recurso de revista para o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a – para ele menos favorável – decisão da 1.ª instância…
Constitui, assim entendida, a regra da “dupla conforme” uma malha mais apertada, um óbice mais alargado, ao atingir do 3.º grau de jurisdição.»
Esta posição mais abrangente não deixa de se nortear por elementos que têm necessariamente que ser levados em consideração na interpretação da lei, relativamente aos quais já fizemos referência supra, como sejam a ratio legis, a dogmática, e os elementos teleológico, histórico e sistemático.
Com efeito, não podemos descurar, a este propósito, aquilo que consta do preâmbulo do DL n.º 303/2007 de 24-08. Aí se refere: “A presente reforma dos recursos cíveis é norteada por três objectivos fundamentais: simplificação, celeridade processual e racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, acentuando-se as suas funções de orientação e uniformização de jurisprudência. (…)
Submetem-se claramente nesse desígnio de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça a revisão do valor da alçada da Relação para € 30.000, que é acompanhada da introdução da regra de fixação obrigatória do valor da causa pelo juiz e da regra da dupla conforme, pela qual se consagra a inadmissibilidade de recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância. (…).”
Ora, estes objectivos, clara e expressamente assumidos, de racionalização seriam destituídos de sentido caso se fizesse uma interpretação formalista e meramente literal do art. 721.º, n.º 3, do CPC.
Que racionalidade existe em não permitir um recurso numa situação de confirmação total da decisão recorrida (que para todos os efeitos equivale a uma improcedência do recurso), mas já o permitir numa confirmação mais vantajosa para o recorrente?
Os recursos existem para sindicar as sucumbências e não se antevê que lógica e racionalidade existam em permitir o recurso num caso em que a sucumbência é maior e já o permitir noutro em que a sucumbência é menor.
Assim, vale aqui o princípio de que, quando se proíbe o mais se proíbe o menos, por esta proibição estar logicamente contida na primeira.”    
[14] No sentido de que ocorre dupla conforme quando a decisão do tribunal de apelação confirma de forma favorável, ainda que não totalmente coincidente, no seu dispositivo, ou seja de modo a existir uma sobreponibilidade total e impressiva, vejam-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 30.10.2012; 11.07.2013; 12.07.2011 (Proc. nº 203708.0YYPRT-A.P1.S1); de 10.05.2012 (Proc. nº 645/08.0TBALB.C1.S1); de 08.10.2015; de 18.09.2014; de 10.04-2014; e de 28.04.2014:   
[15] No mesmo sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 28.05.20115, (Proc. nº 1340/08.6TBFIG.C1.S1), relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, em que se escreveu (sic): “Na verdade, temos entendido que só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância (Ac. de 19/2/15, proferido pelo STJ no P. 302913/11.6YIPRT.E1.S1).” Vejam-se no mesmo sentido os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.2015 (Proc. nº 542/13.8T2AVR.C1.S1), relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, em que se sumariou: “1. A alteração do conceito de dupla conformidade, enquanto obstáculo ao normal acesso em via de recurso ao STJ, operada pelo actual CPC (mandando atender a uma diferença essencial nas fundamentações que suportam a mesma decisão das instâncias), obriga o intérprete e aplicador do direito a – analisada a estruturação lógico argumentativa das decisões proferidas pelas instâncias, coincidentes nos respectivos segmentos decisórios - distinguir as figuras da fundamentação diversa e da fundamentação essencialmente diferente. 2. Não é qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido, relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica por ele assumida para manter a decisão já tomada em 1ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme. 3. Só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância – não preenchendo esse conceito normativo o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada.”