Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
72/2000.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: ACIDENTE FERROVIÁRIO
CULPA
ESTADO DE NECESSIDADE
INDEMNIZAÇÃO
REDUÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
1 . As regras do Código Civil atinentes à responsabilidade civil são aplicáveis aos acidentes ferroviários.
2. Havendo, porém, que ter em conta, quanto a estes, as normas especiais que têm vindo a lume sobre os caminhos de ferro.
3 . Aquele que por força da lei e, acrescidamente por contrato realizado com a CP, tem obrigação de zelar pelo bom estado duma passagem de nível particular deve ser considerado culpado da queda duma pá em virtude dos solavancos impostos à máquina que conduzia - e em cuja pá acondicionara a que caiu - pelo mau piso de tal passagem.
4 . Tendo esta pá caído na via férrea em ordem a provocar necessariamente o descarrilamento de comboio que por ali poderia circular a 120 Km/h e tendo o condutor, perante tal iminência, passado a tentar tirá-la dali com a máquina, determinando o embate do comboio que surgiu antes contra a própria máquina, sem descarrilar, não pode beneficiar do instituto do estado de necessidade porque foi ele quem, culposamente, criou o perigo.
5 . E, ainda que o embate não tivesse tido lugar contra a pá que caíra à via, não deve deixar de ser responsabilizado, uma vez que é de relevar a causalidade indirecta.
6 . Não obstante circular a mais 10 km/h do que o limite permitido, o condutor do comboio não deve ser concorrentemente considerado culpado se não se provou que o excesso de velocidade tenha concorrido para a produção do acidente ou dos danos que se verificaram e accionou a buzina, levando concomitantemente o freio à emergência.
7. O condutor da máquina, ao agir depois da queda da pá como se referiu em 4, tendo sacrificado a própria vida que foi ceifada no embate afinal verificado, determinou uma diminuição acentuada da própria culpa.
8 . O que, aliado ao facto de terem só sido produzidos danos materiais no comboio e às dimensões da empresa ferroviária, justifica o recurso à redução indemnizatória prevista no artigo 494.º do Código Civil.
9 . A atitude dele, com o sacrifício da vida para evitar um descarrilamento de consequências terríveis, determina mesmo que tal redução seja particularmente substancial, fixando-se em 10.000 euros a indemnização, quando os prejuízos ascenderam a 73.239,34 euros.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I -
No Tribunal Judicial do Cartaxo, Caminhos de Ferro Portugueses, EP intentou a presente acção declarativa de condenação, em processo ordinário, contra:
AA, BB, sua mulher CC, DD, sua mulher EE, FF, seu marido GG, HH e seu marido II.
Alegou, em síntese, que:
No dia 19 de Junho de 1991, o comboio 314, que seguia pela Linha do Norte, com destino a Lisboa, embateu numa máquina escavadora, sem matrícula, conduzida por JJ, seu proprietário, quando esta, proveniente de um caminho particular da quinta pertencente ao referido JJ, fazia o atravessamento da passagem de nível particular situada ao km 42,064.
A composição circulava à velocidade permitida de 130 km/hora e o maquinista apercebeu-se, a cerca de 300 metros da passagem de nível, que a máquina escavadora estava a iniciar a travessia, apitou a avisar, mas não lhe foi possível parar antes da colisão, apesar de levar o freio à emergência.
O condutor da máquina escavadora, que faleceu em resultado da colisão, iniciou a travessia sem se certificar que o podia fazer sem perigo.
A autora havia concedido ao referido JJ a utilização exclusiva da passagem de nível, que é de natureza particular, através do contrato de concessão n.º 0/000000, celebrado a 15/02/1991, ao abrigo do artigo 26.º n.º 2 do Dec. Lei 156/81, de 9 de Junho, ficando estabelecido, na cláusula 2.ª, n.º 3, que o concessionário responde, independentemente de culpa, por todos os danos determinados pela utilização da passagem de nível, quer perante a CP, quer para com terceiros.
Da colisão resultaram para ela os danos que detalhadamente descreve, no montante global de 14.937.993$00.
Por morte do referido JJ, foram habilitados, como sucessores, sua mulher AA e os filhos BB, DD, FF e HH réus na acção.
Pediu, em conformidade, a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe 14.937.993$00, acrescidos de juros de mora à taxa legal, desde a citação.

Contestaram estes.
Na parte que agora importa, invocaram a nulidade da cláusula do contrato de concessão de utilização da passagem de nível que atribui responsabilidade ao concessionário independentemente de culpa.
Já em sede de impugnação, sustentaram, em resumo, que a travessia foi iniciada com toda a segurança, tendo caído entre os carris uma pá que era transportada na máquina escavadora, o que levou o JJ a efectuar diversas manobras, com o braço da máquina escavadora, tendentes a retirar a pá caída na via férrea, de modo a evitar um enorme acidente. Durante as manobras a que procedia, surgiu a composição, sendo que o maquinista podia avistar a passagem de nível a 1.200 metros, pelo que podia ter parado e evitado o acidente.

Deduziram ainda reconvenção que não interessa ao presente recurso.

A autora replicou.

II –
Após julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.

Entendeu o Sr. Juiz que:
É nula a referida cláusula, por afrontar o disposto no artigo 483º nº 2 do Código Civil;
Inexistiu culpa do referido JJ no acidente, uma vez que a sua presença na passagem de nível se fundou num evidente motivo altruístico, de preocupação pelo bem-estar dos demais utentes da via ferroviária, inclusive com risco, que se concretizou, de perder a própria vida.

III –
Apelou a autor e o Tribunal da Relação de Évora – sempre na parte que agora importa, pois havia um agravo que foi julgado improcedente - julgou parcialmente procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e condenando solidariamente os réus no pagamento da quantia de 73.239,34 euros, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal, desde a citação.

Confirmou o entendimento de que a cláusula é nula, mas considerou que o sinistrado foi culpado no acidente porque lhe competia verificar o estado do piso da passagem de nível e acondicionar, em conformidade, a pá que caiu à via, de modo a evitar tal queda.

IV –
Pede revista AA.

Conclui as alegações do seguinte modo:

1. Resulta da matéria de facto provada, que o maquinista se apercebeu da presença da máquina a uma distância menor do que aquela a que com a diligência normal se deveria ter apercebido, e que era de 1.200 metros.
2. Resulta da matéria de facto provada que se o maquinista conduzisse com a diligência normal devida, ter-se-ia apercebido da presença da máquina e tinha tempo suficiente para imobilizar o comboio e evitar o embate, pois tinha 1.200 metros à sua frente e precisava de 800 metros para imobilizar o comboio.
3. Resulta da matéria de facto provada que se o maquinista conduzisse com a diligência normal devida, teria tido tempo para imobilizar o comboio, e o JJ teria tido tempo para retirar a pá da linha sem morrer e sem que tivesse havido o embate.
4. Não é suficiente a prova produzida de que o maquinista accionou a buzina e levou o freio à emergência, porquanto importante era provar que mesmo com este procedimento, o maquinista não poderia ter evitado o acidente.
5. A matéria provada revela precisamente o contrário, ou seja, que se o maquinista tivesse levado o freio à emergência quando podia ter avistado a máquina, a 1.200 metros, o comboio teria parado nos 800 metros seguintes, e não se teria verificado o embate.
6. Resulta da matéria provada que se fosse deixada no local, a pá provocaria o descarrilamento do comboio.
7. Não compete ao concessionário proceder a obras na passagem de nível concessionada cujo piso não esteja regular, competindo-lhe apenas custear as despesas da sua conservação, sob pena de assim não se entendendo, ocorrer violação do disposto no artigo 28° n.º 2 alínea b) do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei 156/81 de 9 de Junho.
8. O Tribunal recorrido não poderia ter levado em consideração na decisão recorrida, que o concessionário não cumpriu o dever de informar a autora de defeito existente na passagem de nível, por se tratar de matéria não alegada nem discutida na primeira instância, sob pena de, assim não se entendendo, ocorrer violação do disposto no artigo 660° nº 2 do CPC.
9. Resulta dos autos e da lei que a autora era a concessionária da linha toda, concessão que recebeu do Estado Português.
10. O facto de existir o contrato de concessão não desonerou a autora do dever de zelar pela conservação da linha toda, passagens de nível incluídas.
11. No máximo, deve entender-se que havia uma responsabilidade substabelecida quanto á parte da passagem de nível concessionada, num regime de co-responsabilidade.
12. Não resulta da matéria de facto provada que JJ tenha violado ou incumprido o dever de cautela no acondicionamento da pá.
13. Não existem nos autos factos que possam sustentar a afirmação do Tribunal recorrido de que JJ tenha infringido o dever de cuidado no acondicionamento da pá.
14. O facto posterior da queda da pá, devida à irregularidade do piso da passagem de nível, é de facto de força maior, que não pode ser imputado ao JJ, na medida em que, em circunstâncias normais, a pá não deveria ter caído.
15. A queda da pá, que contudo ocorreu, deveu-se à irregularidade do piso da passagem de nível, o que não era da responsabilidade do JJ.
16. O maquinista, como agente da autora, ia na máquina para conduzir e para reagir às concretas circunstâncias do local, devendo fazê-lo com uma especial diligência.
17. Os factos provados permitem concluir que outro maquinista mais diligente teria travado a tempo de evitar o embate.
18. A decisão do Tribunal deve considerar quem actuou com diligência e quem actuou com falta de diligência, aferindo-se assim o agente com culpa no acidente, se foi do JJ que deixou cair a pá e não a conseguiu retirar a tempo de evitar o embate, ou se foi do maquinista, que tinha condições objectivas para travar a tempo de evitar o acidente o não o fez.
19. O JJ deu a contribuição suprema da sua própria vida, para evitar danos maiores, para minimizar as consequências do acidente.
20. O maquinista não contribuiu, como deveria ter feito, para evitar o acidente que podia ter sido evitado.
21. Não tendo ficado provado que JJ tenha faltado ao cumprimento de qualquer dever ou obrigação, pois iniciou a travessia da linha depois de ver que não se aproximava nenhum comboio, não violou nenhum dever contratual ou de cuidado, e não incorreu na previsão do disposto no artigo 798º do CC.
22. O JJ não é culpado pelo acidente.
23. Pelo que a decisão da Primeira Instância, que absolveu os réus, e bem, deve ser reposta, já que não se verificando um dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual e não se prefigurando qualquer presunção de culpa (que a existir teria sido invertida .. .) ou uma responsabilidade objectiva, o pedido indemnizatório é substantivamente insolvente, sob pena de assim não se entendendo, existir violação do disposto no artigo 483º do CC.
24. A decisão em crise, que condenou os réus, porquanto, havendo falta culposa do cumprimento da obrigação, por parte do falecido JJ, estão os réus obrigados, enquanto herdeiros habilitados, a reparar os danos daí resultantes, deve decair, sob pena de assim não se entendendo, ocorrer violação do disposto no artigo 798º do CC, dado que não está provado que JJ tenha faltado ao cumprimento de qualquer dever ou obrigação, bem pelo contrário.
Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que absolva os réus do pedido, assim se fazendo Justiça!
Contra-alegou a parte contrária, rebatendo os argumentos da recorrente e concluindo:

1. A acção tem como fundamento a responsabilidade contratual, assumida pelo JJ perante a ora recorrida, com a assinatura do contrato n.º 000000000, celebrado em 15 de Fevereiro de 1991, junto aos autos a fls ... ;
2, Cabia ao JJ, quer em virtude desse contrato, quer de normas imperativas (resultantes do Decreto-Lei n.º 156/81), garantir que procedia sempre ao atravessamento da Passagem de Nível Particular, de que era concessionário, e onde ocorreu o acidente, com inteira segurança;
3. Ora, o que deu azo ao acidente a que os autos se reportam, foi o facto de JJ, na travessia daquela passagem de nível, ter transportado dentro da pá da máquina escavadora uma outra pá que, e por causa da oscilação da máquina devida à irregularidade do piso da PN, caiu entre os carris da via no sentido Norte-Sul (45.°);
4. E as diligências do JJ para a retirada da pá prolongaram-se de tal forma que não retirou a tempo da via férrea a máquina escavadora;
5. Em contrapartida, ficou provado que o maquinista do comboio actuou com a adequada diligência, accionando a buzina e levando o freio à emergência, logo que avistou a máquina escavadora, pelo que não foi imputada qualquer responsabilidade à CP, ou aos seus agentes, seja a que título for, na produção do acidente;
6. Neste contexto, cabia aos RR, ora recorrentes, alegar e provar algo próximo da fórmula do artigo 493.°, n.º 2 do C. Civil, "mostrar que [JJ] empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de ( ... ) prevenir" (os danos), o que não fizeram;
7. No presente recurso os ora recorrentes ignoraram por completo que a responsabilidade contratual é o fundamento da presente acção, bem como as consequentes regras do ónus da prova, o que inquina todo o recurso;
8. A 1.ª instância também se "esqueceu" dessa circunstância, o que foi corrigido, e bem, pelo Tribunal da Relação;
9. Concretizando, ora recorrentes nada alegaram nem provaram, como lhes cabia, no sentido de sustentar que o de cujus empregou todas as diligências exigíveis para acondicionar bem a pá, de forma que esta não caísse à linha durante a travessia da Passagem de Nível (PN);
10. Era perfeitamente previsível que a dita pá, se estivesse mal acondicionada, pudesse cair à linha durante a travessia da PN, e causar acidente, sobretudo se o piso da PN era irregular, facto que o de cujus não podia ignorar;
11. Tanto mais que cabia ao concessionário, quer em virtude do contrato, quer de normas imperativas (resultantes do Decreto-Lei n.º 156/81), garantir que procedia sempre ao atravessamento da PN particular com inteira segurança;
12. E porque também cabia ao concessionário zelar pelo bom estado de conservação da PN, avisando a CP sempre que a mesma necessitasse de qualquer obras, como por ex. reparação ou substituição do pavimento, conforme resulta da cláusula 3.ª do contrato.
13. Portanto houve falta culposa do cumprimento da obrigação por parte do JJ;
14. Decorre do exposto que foi correcta a condenação dos RR., ora recorrentes, herdeiros do falecido JJ, no pedido de indemnização formulado;
15. A douta decisão recorrida deve, pois, ser integralmente mantida.

V –
Ante as conclusões das alegações, a questão que se nos depara consiste em saber se não é de considerar responsável, total ou mesmo parcialmente, pelo acidente, o JJ, revogando-se ou alterando-se em conformidade a condenação indemnizatória.

VI –
Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. A autora é uma empresa transportadora que se dedica à exploração da rede ferroviária nacional, constituindo essa exploração a sua principal fonte de receitas.
2. No dia 19 de Junho de 1991, pelas 11.15 horas, ao quilómetro 42,064 da linha do Norte, onde existe uma passagem de nível particular, ocorreu um acidente, consistente no embate do comboio n.º 314, pertencente à autora, que seguia no sentido Norte-Sul, com destino a Lisboa, na máquina escavadora sem matrícula, conduzida pelo seu proprietário, JJ, concessionário daquela passagem de nível, quando esta máquina, proveniente de um caminho particular da quinta pertencente a este e sua mulher, atravessava a referida passagem de nível.
3. Em 15 de Fevereiro de 1991 foi celebrado entre a autora e JJ, que, com sua mulher, eram proprietários do terreno atravessado pela referida passagem de nível, o contrato de concessão no 0000000, junto aos autos a fls. 18 a 22 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, pelo qual a autora lhe concedeu uma licença de utilização exclusiva daquela passagem de nível, que permitia ao casal uma mais fácil e mais rentável exploração daquele terreno.
4. A referida passagem de nível está dotada de uma cancela, fechada a cadeado sempre que não se verifica a sua utilização, estando o referido JJ autorizado a abri-la sempre que necessitasse de a atravessar, nos termos da cláusula 2.ª n.º 1 do referido contrato.
5. No n.º 3 da cláusula 2.ª desse contrato consta que "O concessionário responde, independentemente de culpa, por todos e quaisquer danos determinados pela utilização da passagem de nível, quer perante a CP (na sentença escreveu-se, por evidente lapso, Código Penal), quer perante terceiros, incluindo os resultantes da falta de visibilidade da passagem de nível".
6. Em 12 de Setembro de 1991, foi celebrada uma escritura de habilitação de herdeiros por óbito de JJ, o qual, em testamento outorgado em 26 de Outubro de 1979, instituiu sua herdeira fiduciária a mulher AA e seus herdeiros fideicomissários os seus filhos BB, DD, FF e HH.
7. Em consequência do referido acidente, JJ, de nacionalidade alemã, casado no regime da comunhão geral de bens com AA, sofreu lesões que lhe determinaram a morte na mesma data.
8. Na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo encontra-se descrito sob o no 0000000 o prédio misto denominado Quinta das B............... sito na freguesia e concelho de Azambuja, e registado desde 16 de Fevereiro de 1993, pela inscrição G-3, a aquisição da sua propriedade, em comum e sem determinação de parte ou direito, por meação e sucessão por óbito de JJ, em favor da viúva e filhos deste.
9. O comboio embateu na parte posterior da máquina escavadora.
10. O comboio circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas entre 120-130 quilómetros/hora, sendo a velocidade máxima autorizada para a sua marcha de 120 quilómetros/hora.
11. O comboio podia ser avistado a 700 metros, tanto a jusante como a montante do local onde estava a passagem de nível, se existisse luz natural, não existisse nevoeiro e o observador se encontrasse colocado nos limites da plataforma da via.
12. O maquinista do comboio accionou várias vezes a buzina antes de avistar a passagem de nível.
13. O maquinista do comboio apercebeu-se da presença da máquina escavadora na via-férrea a uma distância não concretamente apurada, distância esta que não permitiu que o comboio se imobilizasse após ter levado o freio à emergência, sendo que seriam necessários cerca de 800 metros para que tal sucedesse, atenta a velocidade e características do comboio.
14. O maquinista do comboio, quando se apercebeu dessa travessia, accionou a buzina para avisar o tripulante da escavadora e levou o freio à emergência.
15. JJ parou antes de iniciar a travessia da passagem de nível.
16. E iniciou a travessia depois de ver que não se aproximava nenhum comboio.
17. Um observador colocado na plataforma da via junto aos carris e com boas condições de visibilidade podia avistar a via-férrea numa extensão de 1.200 metros para o lado Norte da passagem de nível.
18. JJ transportava dentro da pá da máquina escavadora uma outra pá que, durante a travessia da passagem de nível e por causa da oscilação da máquina devida à irregularidade do piso desta última, caiu entre os carris da via do sentido Norte - Sul.
19. Devido à sua dimensão, cor e estado de sujidade de terra, a pá, no local onde caiu, não era visível para o maquinista do comboio que circulasse na via Norte-Sul a tempo de o imobilizar sem nela embater.
20. Por isso, se fosse deixada no local onde caiu, a pá provocaria o descarrilamento do comboio que circulasse na via Norte-Sul.
21. Para evitar isso e por que o peso da pá não permitia movimentá-la de outra forma, JJ fez manobras usando os hidráulicos da máquina escavadora para retirar a pá do local onde caíra, empurrando-a para fora da linha-férrea.
22. Enquanto fazia essas manobras começou a aproximar-se o comboio.
23. Na sequência do embate, a máquina escavadora foi projectada para a linha ascendente, provocou avarias em cerca de 100 metros da mesma, derrubou um poste e catenária e destruiu o poste nº 42/01.
24. Em consequência do embate, o comboio ficou com a sua unidade motora - locomotiva nº 2608 avariada.
25. Por causa dessa avaria ficou impossibilitada de se deslocar pelos seus meios e permaneceu imobilizado no local desde as 11.15 horas até às 12.32 horas, altura em que foi impelida pelo comboio nº 540 até à estação do Carregado, na qual a respectiva locomotiva dele pôde ser separada.
26. Os trabalhos de reparação das avarias da via ascendente implicaram a inoperacionalidade da mesma desde as 11.15 horas até às 20.20 horas.
27. E por isso foi necessário estabelecer o serviço temporário em via única pela via descendente, o que causou atrasos em 76 comboios nos dois sentidos durante aquele período, que causaram à autora um prejuízo global de 1.606.123$00 (8.011,31 euros) e implicou que fossem suprimidos os comboios nºs 54030, 63341, 54032 e 66031, o que lhe causou um prejuízo global de 856.433 (4.271,87 euros).
28. Para reparar a catenária referida em 23., a autora teve de deslocar ao local um comboio de serviço e uma viatura, no que despendeu, respectivamente, 100.000$00 (498,80 euros) e 6.300$00 (31,42 euros)..
29. E teve de despender 128.000 (638,46 euros) em mão-de-obra e 248.600 (1.240,00 euros) em materiais.
30. E despendeu ainda, com desarmes e manobras do disjuntor, 10.000$00 (49,88 euros) e 4.000$00 (19,95 euros), respectivamente.
31. Com a reparação das avarias da via ascendente a autora despendeu 212.708$00 (1.085,92 euros) em materiais e 326.400$00 (2.684,10 euros) em mão-de-obra.
32. Em consequência do embate, a parte lateral direita da locomotiva nº 2608 ficou empenada e a sua zona central ficou com rasgos numa extensão de 6 metros e sofreu danos na caixa do transformador e tampas respectivas.
33. E também no cabeçote e estribos de apoio, no tubo de ar comprimido, em 2 farolins, em 2 torneiras e em 16 persianas.
34. Na reparação destes danos da locomotiva nº 2608 a autora despendeu 3.580.536$00 (17.859,64 euros).
35. Essa reparação causou a depreciação do material.
36. A reparação destes danos na locomotiva nº 2608 demorou 58 dias, durante os quais a mesma não pôde ser utilizada pela autora, que teve de utilizar outras de reserva, o que importou para a mesma um prejuízo de 7.337.116$00 (36.597,38 euros).
37. Em consequência do embate, o condutor do comboio, KK, sofreu lesões que lhe determinaram um período de incapacidade para o trabalho desde a data do acidente e até 8 de Julho de 1991.
38. Durante esse período a autora ficou privada desse trabalhador e pagou-lhe, a título de indemnização, por acidente de trabalho, a quantia global de 50.043$00 (249,61 euros).
39. Naquele troço da linha-férrea há tráfego ferroviário constante, o que era do conhecimento JJ.
40. As vias da linha-férrea tinham 1,73 metros cada uma e o intervalo entre elas media 2,10 metros, sendo a largura total da via-férrea (de catenária a catenária) de 10 metros.
41. A máquina escavadora era de cor amarela e tinha o comprimento, com a lança recolhida, de 8,54 metros.
42. Com boas condições de visibilidade e dadas as suas características, a máquina escavadora podia ser avistada pelo maquinista do comboio a pelo menos 700 metros da passagem de nível, desde que essa máquina se encontrasse na plataforma da via-férrea.
43. Perante a eminência do embate, JJ desistiu de continuar as manobras referidas em 21. e tentou retirar da linha-férrea a máquina escavadora.
44. No dia do acidente as condições atmosféricas eram boas.
45. No local onde se deu o acidente a linha-férrea desenvolve-se em recta.
46. Com data de 20 de Novembro de 1992 e 15 de Julho de 1993, a autora enviou à ré AA as cartas juntas aos autos a fls. 43 e 44, nas quais solicita o pagamento da quantia global de 15.384.850$00 (76.739,31 euros), a título de indemnização dos prejuízos sofridos em consequência do referido acidente, que até à data ela não pagou.

VII –
O n.º3 do artigo 508.º do Código Civil (Diploma a que pertencem os artigos que se vão referir sem menção de inserção) não deixa dúvidas sobre a aplicabilidade, em geral, aos acidentes ferroviários, do disposto nos preceitos deste código atinentes à responsabilidade civil (assim, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9.ª ed., I, 678, nota de pé de página e Menezes Leitão, Direito das Obrigações I, 369 e, bem assim, os Ac.s deste Tribunal de 4.7.1995, na CJ STJ, 1995, II, 152, de 18.5.2006, processo n.º 06B297, de 16.11.2006, processo n.º05B2392 e de 17.4.2007, processo n.º07A701, estes disponíveis em www.dgsi.pt).
Já no plano especial, tinha vindo a lume, em 21.9.1954, o Decreto-Lei n.º 39.380 que aprovou o Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro. Em 9.6.1981 foi publicado o Decreto-Lei n.º 156/81 que abrogou aquele e, em 23.12.1999, foi publicado o Decreto-Lei n.º568/99 que revogou este.
O acidente teve lugar em 1991, pelo que está aqui afastada a aplicação deste último normativo.
É, pois, no quadro legislativo traçado, no plano geral, pelo Código Civil e, especificamente, pelo Decreto-Lei n.º156/81 que temos que nos mover.
Interessando daquele, fundamentalmente, o artigo 483.º e deste os artigos 3.º (Os veículos ferroviários gozam de prioridade absoluta de passagem nas PN), 24.º, n.º1 (Os utentes das PN públicas só devem efectuar o atravessamento depois de terem tomado as precauções necessárias para se certificarem de que o podem fazer sem perigo, quer para si, quer para terceiros) e 28.º (1 - Os utentes das PN particulares ficam obrigados a observar o disposto no artigo 24.º…; 2 –Os titulares das licenças ou do direito de servidão, além de sujeitos ao regime estabelecido no número anterior, deverão: a)…… b) Proceder à vigilância das PN de forma que o atravessamento se faça sempre com inteira segurança e custear as despesas da sua conservação)

VIII –
Em 15.2.1991, a CP – Caminhos de Ferro Portugueses, EP e o sinistrado subscreveram o contrato a que foi dado o n.º3/91 – Gaar que se encontra junto a folhas 18 a 22, no qual, além de outras que agora não importam, incluíram:
A cláusula referida em 5 da enumeração factual;
A cláusula 3.ª, cujos n.ºs 1 e 2 são do seguinte teor:
1 – Compete ao concessionário zelar pelo bom estado de conservação de todo o equipamento de Passagem de Nível devendo, designadamente, avisar por escrito a CP sempre que a mesma necessite de quaisquer obras.
2 – São da responsabilidade do concessionário todas as despesas com a conservação reparação ou substituição de pavimento, drenagem, cancelas ou outros equipamentos da Passagem de Nível, bem como da melhoria de visibilidade.

A primeira foi considerada nula pelas instâncias, face, no essencial, ao disposto no artigo 483.º, n.º2 do Código Civil e ao regime das cláusulas contratuais gerais (artigos 12.º, 18.º, al.s a) e b) e 20.º do DL n.º 445/85, de 25.10).
Tal construção não vem sequer posta em causa no presente recurso e a ela nada temos a opor.

Mas, subsistindo o contrato sem ela – como também sem impugnação vem entendido – ficam de pé as demais que transcrevemos.

IX –
Do que vem sendo referido resulta, quer directamente da lei, quer do contrato estabelecido nos termos legais, que a responsabilidade pela vigilância da irregularidade do piso da passagem de nível impendia sobre o JJ.
A aferição da culpa situa-se, pois, em terreno jurídico, o que permite a sua apreciação por este Supremo Tribunal em recurso de revista.

X –
Sendo responsável pela constatação do mau estado do piso, o JJ poderia e devia ter previsto eventual queda da pá que veio a cair e, bem assim, as suas possíveis consequências.
A passagem de nível era um local extremamente delicado em geral e especificamente para ele. Os comboios tinham absoluta prioridade, podiam passar à velocidade até 120 Km/h e a presença na linha da pá que transportava dentro da própria pá da máquina poderia ter consequências de tal modo danosas que lhe era exigido um grau de diligência elevadíssimo em ordem a evitar tal queda. Tanto mais que, como referimos, sobre ele impendia, por força da lei e, reforçadamente, do contrato o dever de proceder à vigilância da PN de forma a que o atravessamento se pudesse fazer com inteira segurança. Quanto a esta parte, não interessa sequer se ele incumpriu o dever de informação da CP sobre o mau estado do piso, irrelevando o argumentado na conclusão 8.ª das alegações da recorrente. O que essencialmente interessa é que ele estava vinculado a saber do mau piso, o que acrescentava intensidade ao grau de diligência, já, à partida, elevado, quanto ao acondicionamento da pá que veio a cair.
Este grau de diligência era de tal modo elevado que preclude mesmo qualquer consideração sobre hipotéticas, mas raríssimas, causas de queda de origem não normalmente previsível. O afastamento da normalidade seria nítido e com ele a necessidade de serem os réus a demonstrar os factos que o integrariam (cfr-se, a anotação 3.ª ao artigo 342.º do Código Civil feita por Pires de Lima e A. Varela). Para a negligência, basta-nos, então, que a pá tenha caído durante a travessia, não procedendo também o constante da conclusão 12.ª.

XI –
A presença da pá no local onde caiu provocaria o descarrilamento do comboio que circulasse na via no sentido norte-sul (ponto 20.º dos factos provados). O comboio que se aprestou para circular fazia-o a velocidade situada entre 120 e 130 Km/h, pelo que se estava perante a iminência duma tragédia de consequências terríveis.
Perante isso, o sinistrado tentou remover a pá do local com a ajuda da máquina em que circulava. Conseguiu-o, porque o comboio não veio a embater naquela, nem descarrilou.
Mas embateu na própria máquina, ceifando-lhe a vida e produzindo para a CP os prejuízos que se enumeram nos factos.

XI –
A colocação da máquina em sítio atingível e efectivamente atingido pelo comboio não assumiu foros de licitude com base no instituto do estado de necessidade, porque havia sido o próprio agente, exclusivamente, a criar o imenso perigo que pretendia remover – artigo 339.º, n.º2.

XII –
Além disso, a queda da pá – em que o agente agiu culposamente – não fica perdida no nexo causal que desembocou no acidente, pelo facto de o próprio agente ter evitado o choque do comboio com esta, lidando com a máquina onde, afinal, a composição veio a embater.
Como refere Manuel de Andrade na Teoria Geral das Obrigações, I, 353 “Basta que a acção, não tendo provocado ela mesma o dano, todavia desencadeie outra condição que directamente o suscite (causalidade indirecta)”. Entendimento que vem sendo assumido pelo comum da doutrina (cfr-se A. Varela, ob. e vol. citados, 954 e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.º ed., 657) e pela jurisprudência (Ac.s deste Tribunal de 13.5.2004, processo n.º04B927, 7.4.2005, processo n.º 05B294 e 6.3.2007, processo n.º 07A138, todos disponíveis no referido sítio).

XIII –
Por outro lado, de todo o quadro factual supra descrito não resulta a contribuição negligente do condutor do comboio para o evento. Circulava, é certo, com excesso de velocidade (ponto 10.º da enumeração factual), mas num grau tão pequeno que não se vê a sua relevância. Aliás caberia às instâncias a consideração, se fosse caso disso, de que tal pequeno excesso teria contribuído para o acidente ou para agravar as suas consequências.
Accionou a buzina e levou o freio à emergência, não se vendo o que de mais no plano da diligência, lhe poderia ser exigível.
Concluímos, assim, que o falecido foi o único culpado do acidente e suas consequências.


XIV –
Só que há um ponto que, a nosso ver – e aqui afastando-nos do entendimento da Relação - não pode deixar de projectar os seus efeitos jurídicos. No acórdão recorrido escreveu-se:
“Uma nota final: merece realce a conduta abnegada e louvável de JJ, na tentativa de retirar da linha férrea a pá que aí deixara tombar, o que o fez perder a própria vida. Mau grado, não é isso que cabe valorar em sede de responsabilidade pelo incumprimento contratual.”
Na verdade, perante o quadro dramático que criou com a queda da pá, o sinistrado não deixou de assumir as suas responsabilidades, procurando remover o enorme perigo. Conseguiu remover este, evitando o choque com a pá e consequente descarrilamento. Não evitou tudo, mas envolveu-se de tal modo, no evitar do acidente ou, pelo menos, no minimizar das consequências, que deixou lá a própria vida.
Não se deverá, a nosso ver, ficar indiferente a esta redução substancial do grau de culpa. Sendo certo que temos lei para a relevar.
O artigo 494.º dispõe que, nos casos de mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem. Para além do relevo da diminuição do grau de culpa, já referido, temos dois factores atendíveis para irmos para a subsunção também neste preceito. O primeiro radica-se no facto de estarem em causa apenas bens materiais, normalmente, menos delicados, quanto a ressarcimento, do que os pessoais. O segundo nas dimensões da autora, para quem, independentemente da sua situação económica global, a diminuição do montante que vamos operar necessariamente pouco significará.
Cremos, então, que se justifica a redução do montante indemnizatório.
Na aferição do “quantum” a reduzir há ainda que ter em conta todo o quadro que vem sendo descrito quanto à actuação do sinistrado. Continua a relevar aqui a dimensão da tragédia humana que ia ter lugar e a contraposição a ela que encerra o sacrifício da própria vida. Começando por agir negligentemente, passou a agir heroicamente, salvando a vida e a integridade física das muitas pessoas que seguramente circulavam na composição. Justifica-se a redução para dez mil euros.

XV –
Face a todo o exposto, em provimento parcial da revista, fixa-se o montante indemnizatório a pagar pelos réus à autora em dez mil euros, acrescidos de juros contados nos termos constantes do acórdão recorrido.

Custas aqui e nas instâncias por autores e réus na proporção do vencimento e decaimento.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2011
João Bernardo (Relator)
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista