Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B3744
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
PROVA PLENA
CONFISSÃO
CONTRATO DE FORNECIMENTO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
Nº do Documento: SJ200511290037447
Data do Acordão: 11/29/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 3545/05
Data: 05/03/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. Estabelecida a autoria de um documento particular continente de uma declaração a outrem dirigida contrária aos interesses de quem a profere, ela envolve a confissão do declarante, razão por que tem força probatória plena, como se de confissão se tratasse, nas relações entre ele e o declaratário,
2. Embora não impugnada pela parte contrária a quem é apresentada, a factura ou a guia de transporte emitida por terceiro não assume a eficácia de prova plena por não ser da autoria da sua primeira, operando o relevo da livre apreciação do tribunal.
3. Os produtores de tomates, as suas organizações e as respectivas empresas transformadoras são elementos base da organização comum de mercado europeu de produtos hortícolas.
4. Face ao regime legal de origem interna e comunitário, a recorrida, como organização de produtores, angaria fornecimentos dos seus associados, incluindo a recorrente, para a respectiva empresa transformadora, a quem eles devem vender a totalidade da produção.
5. O designado contrato de fornecimento reconduz-se, em regra, a um contrato de compra e venda desenvolvido por sucessivas, contínuas e periódicas prestações autónomas de coisas pelo vendedor mediante o pagamento pela contraparte do respectivo preço.
6. A convenção entre a recorrente - cooperativa de produtores - e a recorrida - associada da primeira - em que esta se comprometeu a entregar a uma empresa transformadora certa quantidade de tomate da sua plantação, não consubstancia um contrato de fornecimento ou de compra e venda entre ambas celebrado, antes se traduzindo em contrato unilateral inominado e atípico, de natureza comercial, cuja vinculação só ocorreu em relação à primeira quanto à entrega convencionada àquela empresa.
7. A recorrida, não é, por isso, no quadro da responsabilidade civil contratual, sujeito da obrigação de indemnizar a recorrente pelo dano emergente e lucro cessante que a afectou, decorrente de recusa de recebimento de tomate deteriorado e impossibilidade de entrega de parte da quantidade convencionada, por causas imputáveis à empresa transformadora do tomate, designadamente a falta de capacidade de recebimento do produto, o compasso de espera para a sua entrega e o limite temporal do funcionamento da fábrica.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
"A" Ldª intentou, no dia 6 de Março de 2001, contra B, CRL, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 3 167 274$, sob o fundamento de recusa da ré do recebimento de tomate que lhe vendera, na danificação daquele produto e no prejuízo correspondente a despesas feitas para a sua entrega.
A ré, na contestação, expressou que a recusa do tomate derivou de ele não ter correspondido às normas de qualidade em vigor e que, por isso, foi justificada, e a autora replicou em sentido contrário.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 12 de Outubro de 2004, por via da qual a acção foi declarada improcedente, da qual a autora apelou, e a Relação, por acórdão proferido no dia 5 de Maio de 2005, negou provimento ao recurso.
Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- deve ser modificada a matéria de facto a ter em conta para a decisão da causa, constante de documento não impugnado, sob pena de violação das normas que fixam a força probatória dos documentos particulares;
- o contrato celebrado com a recorrida não é de fornecimento, mas de compra e venda, pelo que a Relação violou os artigos 406º e 874º do Código Civil;
- não entregou todo o tomate acordado por razões externas ao programa contratual e derivadas da conduta da recorrida, que não tinha obrigação de conhecer, por àquela dizerem respeito ou por não terem sido convencionadas;
- o acordo não previa risco especial de não realização da prestação por motivo de espera no acto de descarga, de falta de capacidade da fábrica para receber a prestação ou por imposição da regulamentação comunitária, factos que lhe não são oponíveis, por os não ter aceitado;
- a não execução integral da prestação da recorrente foi causada por actos da recorrida, por não ter criado as condições necessárias para o cumprimento do acordado, pelo que incorreu em mora, nos termos dos artigos 762º, nº 2, e 813º do Código Civil;
- a mora da recorrida responsabiliza-a pelos danos causados à recorrente em consequência dela, nos termos do artigo 816º, e houve inversão do risco de não realização da prestação, nos termos do artigo 815º, nº 1, ambos do Código Civil;
- o contrato implicou a transferência do domínio sobre o tomate, o risco de não realização da prestação corre desde logo, por conta da recorrida, nos termos do artigo 796º, nº 1, do Código Civil;
- a recorrida é, em qualquer caso, responsável pelo pagamento do preço do tomate que deveria ser entregue pela recorrente ao abrigo do contrato, nos termos dos artigos 796º, nº 1, e 815º, nº 2, do Código Civil;
- a recorrida também é responsável pelas despesas acrescidas que a recorrente realizou por causa da mora da primeira nos termos do artigo 816º do Código Civil.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão:
- ao não observar o disposto no artigo 690º-A do Código de Processo Civil, a recorrente inviabilizou a alteração pela Relação da decisão da matéria de facto proferida no tribunal da 1ª instância;
- os factos indicados pela recorrente não têm a virtualidade de alterar a decisão da matéria de facto e não houve violação da lei substantiva relativa à força probatória dos documentos particulares;
- o contrato em causa é de fornecimento, o que é harmónico com a legislação comunitária, e, se assim não fosse, isso não relevaria para a responsabilização da recorrida;
- a recorrida, mera intermediária, não pode proceder ao pagamento do valor da totalidade da quota de produção de tomate atribuída à recorrente por C, SA haver recusado a entrega de parte do tomate;
- nada tinha a ver com o processo relativo à entrega do tomate para transformação e à emissão de guias determinante do valor a pagar ao produtor;
- não faltou culposamente ao cumprimento da sua obrigação, porque entregou o dinheiro correspondente ao tomate entregue pela recorrente e recebido de C, SA;
- se a recusa do tomate da recorrente foi injustificada, isso apenas é imputável a C, SA.

II
É a seguinte a factualidade propriamente dita declarada provada no acórdão recorrido:
1. A ré, enquanto organização de produtores, assegura a programação e a adaptação da produção à procura, nomeadamente em quantidade e qualidade, a promoção da concentração da oferta e colocação no mercado da produção dos associados, a redução dos custos de produção e a regularização dos seus preços, surgindo como entidade que angaria fornecimentos dos seus associados para C-Sociedade de Produtos Alimentares SA, forma de actuação que visa auxiliar os cooperantes.
2. Depois de determinada a quota que cada empresa da indústria transformadora pode trabalhar, a ré distribui a sua quota às diferentes organizações de produtores e ou produtores individuais.
3. Representantes da ré, como organização de produtores, e de C, SA, declararam a primeira entregar à última, para transformação, 67 000 000 de quilos de tomate, e só então a primeira distribuiu a quota a cada um dos seus associados.
4. Após a colheita, o tomate é transportado em galeras ou tractores para as instalações da fábrica de C, SA, onde lhes é atribuído um número de ordem e, chamados por esse número, passam para os seus transportadores ao processo de classificação e, após o mesmo, o carregamento do tomate passa para a pesagem.
5. No processo de classificação são avaliadas as qualidades do tomate, de acordo com os normativos comunitários aplicáveis e tendo em conta as normas para fornecimento de tomate à indústria e, uma vez classificado, o que não for excluído por falta de classificação é admitido e só então é remetido para a secção de pesagem.
6. No dia 23 de Fevereiro de 1999, representantes da autora, associada da ré, e desta, declararam por escrito, designado acordo de fornecimento de tomate, campanha 1999/2000, que entre elas era celebrado acordo pelo qual o associado se comprometia a entregar na C, SA, com fábrica na Chamusca, a quantidade de 250 000 quilos de tomate da sua plantação, com a área de 70 000 m2, sita em Almegue, Quinta de São João, Constância.
7. A autora e a ré recorriam habitualmente a tal procedimento na época da apanha do tomate para escoamento da produção da primeira, a fábrica onde o tomate devia ser entregue pertencia a C, SA, que passava as guias da sua recepção, sendo esta quem vendia o produto preparado resultante da transformação do entregue pela autora, para posterior utilização em indústrias do sector agro-alimentar.
8. O preço do tomate sempre foi, porém, pago pela ré através de transferência bancária.
9. Durante a campanha, a fábrica da C, SA trabalha 24 horas por dia, sem paragem em fins de semana ou feriados, para que pudesse fazer face às entregas de tomate por parte dos produtores, tem capacidade diária para ter em parque estacionados e em compasso de espera 1 000 000 de quilos de tomate, 1 000 000 quilos em armazém e cerca de 1 200 000 quilos em transformação.
10. A capacidade da fábrica da C, SA para receber o tomate obriga, por vezes, a compassos de espera desde a entrada do parque da fábrica até se iniciar o processo de classificação, tendo sido a esse compasso de espera que a autora se sujeitou, como todos os outros produtores que nesse dia fizeram entregas de tomate.
11. A apanha de tomate varia consoante a época de campanha, e esta tem em consideração as condições climatéricas e a altura em que estas a permitirem, pelo que também determinam a época da colheita.
12. A campanha de tomate de 1999/2000 teve início no dia 26 de Julho de 1999, a autora entregou na fábrica de C, SA 81 259 quilos de tomate ao abrigo do acordo mencionado sob 2, quantidade que correspondia a uma parte da prestação ali mencionada.
13. No dia 26 de Agosto de 1999, quinta-feira, deram entrada na fábrica de C, SA 1 770 815 quilos de tomate, no dia imediato mais 2 099 010 quilos, e nos três dias seguintes, respectivamente, 966 812 quilos, 610 897 quilos e 2 105 140 quilos.
14. Tendo tido conhecimento que a referida fábrica encerraria mais cedo do que o habitual, a autora procurou informar-se junto da ré sobre eventual local alternativo de entrega do tomate, mas não obteve qualquer resposta, e foram afixados avisos nas balanças.
15. A autora só voltou a entregar tomate no dia 26 de Agosto de 1999, tendo feito quatro entregas de tomate apanhado no mesmo dia, mas só no dia 28 de Agosto de 1999 é que o tomate foi descarregado, tendo permanecido entretanto, por indicação de C, SA, dentro dos veículos que o transportaram até à fábrica.
16. O carro entrou no parque às 18.54 horas no dia 26 de Agosto de 1999, foi para a balança às 10.43 horas do dia 28 de Agosto de 1999 e, neste mesmo dia, deram entrada e foram classificados mais três carregamentos provenientes da autora, sendo que, em todos eles, o tempo médio de espera rodeou as 41 horas.
17. Em resultado da referida espera de três dias em que a carga ficou exposta a temperaturas elevadas, próprias da altura do ano em que os factos ocorreram, 57 504 quilos de tomate ficaram impróprios para transformação na fábrica da C, SA, e, por isso, foram por ela recusados.
18. A restante quantidade de tomate que a autora se obrigara a entregar não chegou a sair da plantação, e, nos anos anteriores, a fabrica de C, SA mantivera-se aberta até Outubro, porque a última apanha de tomate decorre habitualmente nos últimos dias de Setembro.
19. O parecer técnico da Direcção Regional de Agricultura do Ribatejo e Oeste de 29 de Setembro de 1999 revelou que a produção da autora se encontrava em bom estado sanitário, sem focos de podridão, apesar de ter chovido abundantemente.
20. "C", SA, que procedia à classificação e à pesagem do tomate, conhecia o acordo mencionado sob 2, portanto o nº 113 de identificação do agricultor, que é o mesmo que consta naquele acordo e nas guias da ré.
21. "C", SA, com base na quantidade de tomate entregue, processava os pagamentos à ré, e esta procedia então ao pagamento aos produtores.
22. Após 28 de Agosto de 1999, C, SA recebeu outros carregamentos da autora, os quais obtiveram classificações satisfatórias, e o teste realizado naquele dia foi feito ao tomate de campo.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não direito a exigir da recorrida o pagamento de € 15 798,30.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente e pelo recorrido, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- deve ou não ser alterada a decisão da Relação sobre a matéria de facto?
- síntese do conteúdo do acórdão recorrido;
- regime comunitário envolvente;
- natureza e escopo finalístico da recorrida;
- regime legal da mora do credor e da responsabilidade civil obrigacional;
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida;
- tem ou não a recorrente direito a exigir da recorrida indemnização em causa?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comemos pela análise da questão de saber se deve ou não ser alterada a decisão da matéria de facto.
A recorrente já tinha afirmado no recurso de apelação a sua discordância com o decidido pelo tribunal da 1ª instância no que concerne à determinação da matéria de facto declarada assente.
A Relação manteve a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da 1ª instância sob o fundamento de a recorrente não haver identificado o quesito a modificar nem os meios probatórios a considerar para além do documento a que se referiu, ou seja, com base no incumprimento por ela do ónus de discriminação factual e de conclusão.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º do Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico, incluindo a prova plena derivada de documentos idóneos para o efeito.
Por isso, excede o âmbito do recurso de revista o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova produzidos livremente apreciáveis pelo julgador.
Assim, tendo em conta o caso concreto em apreciação, este Tribunal só pode alterar a decisão da Relação sobre a matéria de facto, desde que ela tenha infringido as normas de direito probatório material relativas à força probatória plena dos documentos particulares.
A propósito dos documentos particulares, a lei expressa que a sua letra e a sua assinatura, ou só a sua assinatura se consideram verdadeiras se forem reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem são apresentados, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras (artigo 374º, n.º 1, do Código Civil).
Os documentos particulares cuja autoria esteja reconhecida nos termos do mencionado normativo faz prova plena quanto às declarações atribuídas aos seus autores, sem prejuízo da arguição e prova da sua falsidade (artigo 376º, n.º 1, do Código Civil).
Todavia, os factos compreendidos na declaração só se consideram provados na medida em que sejam contrários aos interesses do respectivo declarante (artigo 376º, n.º 2, do Código Civil).
A determinação do favor ou desfavor do facto objecto da declaração em relação ao declarante deve, naturalmente, ocorrer no confronto com a titularidade dos direitos discutidos pelas partes.
Assim, estabelecida a autoria de um documento particular continente de uma declaração a outrem dirigida, contrária aos interesses de quem a profere, ela envolve a confissão do declarante, motivo pelo qual assume força probatória plena nas relações entre ele e o declaratário, como se de confissão se tratasse.
Aproximemos, ora, as referidas considerações de ordem jurídica à dinâmica processual que ocorreu, tendo em conta que a recorrente se baseia na sua afirmação de que produziu na petição inicial no sentido de que a partir de 28 de Agosto de 1999 C, SA lhe recusou novos carregamentos de tomate que lhe enviara e que ela se limitara a afixar na portaria da fábrica um aviso no qual informava que a fábrica encerrara, e no documento nº 8 que juntou àquela petição.
O referido documento consubstancia-se numa factura dirigida à recorrente, emitida no dia 3 de Setembro de 1999 pela sociedade D, Ldª, relativa ao transporte de tomate a granel para fábrica de C, SA, com indicação do seu vencimento naquele dia.
Nela são mencionados a guia de transporte 426299, a carga recusada, a viatura QL 100738 26.8.99, a quantidade 26 000,00, o preço unitário sem imposto sobre o valor acrescentado de 1.50, o valor líquido 39 000,00, o imposto sobre o valor acrescentado de 17% e o total a pagar de 45 630$.
Importa assinalar que a recorrente não afirmou na petição inicial o facto concreto de C, SA lhe haver recusado o recebimento do carregamento de 26 000 quilos de tomate, a que se refere o mencionado documento.
Conforme resulta do artigo 341º do Código Civil, os documentos são meios de prova de factos que devem ser articulados pelas partes, ou seja, a sua junção não as dispensa do ónus de alegação fáctica a que alude o artigo 467º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
Por isso, não tendo articulado o mencionado facto concreto - recusa por C , SA do recebimento de 26 000 quilos de tomate - não podia a recorrente exigir que, com base no referido documento, ele fosse declarado provado.
E foi com base na mencionada afirmação da recorrente, o tribunal da primeira instância formulou o quesito 11º, no qual inseriu a questão de saber se, a partir de 28 de Agosto de 1999, C, SA recusou novos carregamentos de tomate enviados pela autora, e se C, SA se limitou a afixar na portaria da fábrica um aviso informativo de que esta encerrara.
Ao formular o mencionado quesito da base instrutória não obstante o conteúdo do aludido documento, naturalmente que o tribunal da 1ª instância não considerou que ele tinha, na espécie, a eficácia de prova plena. E o entendimento contrário do tribunal não se pode inferir na altura da decisão da matéria de facto porque respondeu àquele quesito (artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil).
A resposta à mencionada questão de facto foi no sentido de não provado, e a Relação, no recurso de apelação, manteve-a, embora sob a argumentação de omissão de especificação fáctica e de conclusão.
Mas o referido documento, embora não impugnado pela recorrida, é insusceptível de produzir a prova plena a que as normas substantivas se reportam, porque não contém qualquer assinatura ou declaração de agentes ou representantes da recorrida.
Em consequência, porque emitido por entidade diversa das partes na acção, o referido documento é de apreciação livre pelo tribunal, ou seja, não se está, na espécie, perante um meio de prova plena.
Assim, ao invés do que a recorrente alegou, a Relação não infringiu o disposto nos artigos 374º, nº 1 ou 376º, nº 1, do Código Civil, nem mesmo o estatuído nos artigos 646º, nº 4 e 659º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Por isso, não tem este Tribunal competência funcional, para, com base no referido documento, reapreciar o juízo de prova que envolveu a resposta ao quesito 11º da base instrutória ou modificar a matéria de facto fixada pela Relação.

2.
Atentemos agora na síntese do conteúdo do acórdão recorrido, que a recorrente impugna.
A Relação qualificou o contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida como contrato de fornecimento.
E no que concerne à matéria da indemnização pretendida pela recorrente no confronto com a recorrida, concluiu que o desconhecimento pela primeira da data do encerramento da fábrica derivou exclusivamente da sua incúria, que os danos por ela sofridos não decorreram de actuação de C, SA ou de omissão da recorrida, que esta não faltou culposamente ao cumprimento da sua obrigação e que a prestação da recorrente se tornou impossível por culpa exclusiva da recorrente.
Chegou à referida solução sob a motivação, por um lado, de que a recorrente sabia que a capacidade de C, SA para receber o tomate a obrigava a compassos de espera desde a entrada no parque até ao momento do processo de classificação e ao da posterior pesagem.
E, por outro, que tais compassos de espera eram usuais durante a campanha, que à recorrida não incumbia a organização da capacidade da fábrica de C, SA ou a programação das entregas do tomate pelos seus associados com vista à eliminação daquelas situações de espera.
Finalmente acrescentou, por um lado, que embora o tomate se tivesse tornado impróprio para o consumo em virtude da sua exposição ao sol durante a referida espera, a outros produtores que a ela se sujeitaram não foi recusada a entrega, e que a recusa em relação à recorrente decorreu exclusivamente das normas relativas ao fornecimento do tomate à indústria.
E, por outro, que o conhecimento pela recorrente das oscilações anuais do início e do final da época da campanha lhe tornava exigível a diligência que omitiu de se informar sobre a data do fecho da campanha, designadamente atentando na informação veiculada no local por C, SA.

3.
Vejamos agora a síntese do regime legal comunitário conexo com o caso em análise.
O Regulamento (CE) nº 2 200/96, do Conselho, de 28 de Outubro de 1996, estabeleceu a organização comum de mercado no sector das frutas e dos produtos hortícolas, onde se incluem os tomates (artigo 1º e Anexo I).
Para efeitos do referido Regulamento, organizações de produtores são as pessoas colectivas constituídas por iniciativa dos produtores, por exemplo de espécies hortícolas, como é o caso dos tomates, que tenham por finalidade assegurar a programação da produção e a adaptação da procura, nomeadamente em quantidade e qualidade, promover a concentração da oferta e a colocação no mercado da produção dos associados, reduzir os custos de produção, regularizar os preços na produção, promover práticas de cultivo e técnicas de produção e de gestão dos resíduos respeitadoras do ambiente, nomeadamente para proteger a qualidade das águas, do solo e da paisagem e para preservar e ou fomentar a biodiversidade, e cujos estatutos obriguem os seus produtores associados, designadamente, a vender por intermédio da organização de produtores a totalidade da sua produção (artigo 11º, nº 1, alíneas a), ii), b), nºs 1 a 4, e c) nº 3).
Por seu turno, o Regulamento (CE) nº 2201/96 do Conselho, de 28 de Outubro de 1996, estabeleceu a organização comum de mercado no sector dos produtos transformados à base de frutas e de produtos hortícolas, espécie hortícola onde se incluem os tomates.
Estabelece um regime de ajuda à produção dos produtos derivados de frutas secas e produtos hortícolas, incluindo a produção de tomates com vista à indústria de transformação, operando a uniformização nos diversos estádios de produção, desde a fase do cultivo até à da fase da sua comercialização.
Ao referido produto é, pois, aplicável um regime de ajuda à produção, que é concedida ao transformador que pela matéria prima tenha pago ao produtor um preço pelo menos igual ao preço mínimo, nos termos dos contratos celebrados entre, por um lado, as organizações de produtores reconhecidas ou pré-reconhecidas ao abrigo do Regulamento (CE) nº 2200/96, e, por outro, os transformadores, sendo que os contratos devem ser assinados antes do início de cada campanha de comercialização (artigo 2º, nºs 1 e 2).
O preço mínimo a pagar ao produtor, a fixar antes do início de cada campanha de comercialização, é determinado com base no preço mínimo aplicável durante a campanha de comercialização anterior, na evolução dos preços de mercado no sector das frutas e dos produtos hortícolas, na necessidade de assegurar o escoamento normal do produto fresco de base para os diferentes destinos, incluindo o abastecimento da indústria de transformação (artigo 3º, nºs 1 e 2).
Os Estados-Membros repartem pelas empresas de transformação estabelecidas no seu território as quantidades que lhes tiverem sido atribuídas em função da média das quantidades que tenham sido produzidas, respeitando o preço mínimo no decurso das três campanhas de comercialização anteriores à campanha em relação à qual é efectuada a repartição (artigo 6º, nº 4).
A ajuda à produção é fixada em função do peso líquido do produto transformado e é paga aos transformadores apenas por produtos transformados obtidos a partir da matéria-prima colhida na comunidade, pela qual o interessado tenha pago pelo menos o preço mínimo acima referido, em conformidade com as exigências de qualidade mínima (artigo 3º, nºs 3 e 4).
Assim, a ajuda na produção é concedida ao transformador que pela matéria prima tenha pago ao produtor um preço, pelo menos igual ao mínimo, nos termos dos contratos celebrados entre as organizações de produtores reconhecidas e os transformadores.
Com efeito, uma vez definida pela União Europeia e acordada com o Estado-Membro qual a quota que este pode trabalhar, é atribuída a cada uma das indústrias transformadoras a respectiva quota, ou seja, a quantidade de tomate fresco destinado à transformação.
É um sistema complexo de ajuda comunitária, além do mais, à produção do tomate que envolve, entre outros, contratos celebrados entre as organizações de produtores, como é o caso da recorrida, e as empresas transformadoras, que recebem directamente aquela ajuda, como ocorre em relação a C, SA, e entre as primeiras e os seus associados, como é o caso da recorrente.
Dele resulta, além do mais, que as organizações de produtores, como e o caso da recorrida, e as empresas transformadoras, como e o caso da C, SA, tal como os produtores, como é o caso da recorrente, são elementos base da organização comum de mercado europeu.

4.
Atentemos ora, em tanto quanto releva na determinação das relações comerciais triangulares que se estabeleceram entre a recorrente, a recorrida e C, SA, na estrutura e escopo finalístico da segunda.
Às organizações de produtores era inicialmente aplicável o Regulamento (CEE) nº 1035/72, do Conselho, de 18 de Maio, que foi alterado pelo Regulamento (CEE) nº 2602/90, da Comissão, de 7 de Setembro de 1990.
O Decreto-Lei nº 362/87, de 26 de Novembro, complementou, quanto às organizações de produtores portuguesas, o regime decorrente do Regulamento nº 1035/72, do Conselho, de 18 de Maio.
O Decreto-Lei nº 49/95, de 15 de Março, revogou o Decreto-Lei nº 362/87, de 26 de Novembro, e regulou de novo a referida matéria (artigo 10º).
O Regulamento (CE) nº 2200/96, do Conselho, de 28 de Outubro, que revogou o Regulamento (CEE) nº 1035/72, do Conselho, de 18 de Maio, alterou o regime de reconhecimento das referidas organizações.
As normas de execução do novo regime foram estabelecidas pelo Regulamento (CE) nº 412/97, da Comissão, de 3 de Março, e o Decreto-Lei nº 252/98, de 11 de Agosto, estabeleceu, quanto às organizações de produtores portuguesas, a título complementar, as modalidades de aplicação do referido regime comunitário de reconhecimento (artigo 1º).
O referido reconhecimento dependia, além do mais, do preenchimento dos requisitos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 11º do primeiro dos referidos regulamentos, a que acima se fez referência, e de revestirem a natureza jurídica de cooperativa agrícola e serem exclusivamente constituídas por produtores (artigo 3º, proémio, alíneas a), c) e d)).
Importa salientar, neste ponto, conforme já resulta do acima exposto, por um lado, que estas organizações devem assegurar a programação da produção e a sua adaptação à procura em quantidade e qualidade, promover a concentração da oferta e a colocação no mercado da produção dos associados, reduzir os custos e regularizar os preços da produção, e por outro, deverem os seus estatutos consagrar a obrigação dos seus associados a vender, por seu intermédio, a totalidade da sua produção.
Entretanto, o Regulamento (CE) nº 1432/2003, da Comissão, de 11 de Agosto, revogou o Regulamento (CE) nº 412/97, e estabeleceu novas regras de execução do Regulamento (CE) nº 2200/96 no que concerne ao mencionado de reconhecimento.
O Decreto-Lei nº 222/2004, de 3 de Dezembro, permitiu que as normas complementares do Regulamento (CE) nº 1432/2003, da Comissão, de 11 de Agosto, fossem objecto de portaria, o que aconteceu com a Portaria nº 210/2005, de 24 de Fevereiro.
E a referida Portaria manteve essencialmente pressupostos de reconhecimento das organizações de produtores constantes do Decreto-Lei nº 252/98, de 11 de Agosto (artigos 1º a 3º).
Conforme resulta dos factos provados, de harmonia com as referidas de origem interna e internacional, a recorrida, com o estatuto de cooperativa de responsabilidade limitada, consubstancia-se em organização de produtores que são os seus associados, com o escopo de assegurar a programação da produção e a sua adaptação à procura, nomeadamente em preço, quantidade e qualidade.
Nesse quadro, promove a concentração da oferta e a colocação no mercado da produção dos associados, a redução dos custos de produção e a regularização dos preços desta.
Configura-se, assim, como uma entidade que angaria fornecimentos dos seus associados para a C, SA, actuação que os visa auxiliar, como cooperantes, o que se conforma com a respectiva consignação estatutária de os seus associados deverem vender, por seu intermédio, a totalidade da respectiva produção.
Nesse quadro, depois de determinada a quota que cada empresa da indústria transformadora pode trabalhar, C, SA distribui a sua às organizações de produtores e ou aos produtores individuais.
Nesse âmbito, representantes da recorrida, enquanto organização de produtores, e representantes da sociedade C, SA, com empresa transformadora, declararam convencionar que a primeira entregaria à última, para transformação, 67 000 000 de quilos de tomate.
E foi na sequência do referido convénio, que a recorrida distribuiu a mencionada quota de produção de tomates aos seus associados, incluindo a recorrente.

5.
Vejamos agora a síntese do regime legal moratório do credor e da responsabilidade civil obrigacional que a recorrente invocou.
A situação de mora do credor ocorre quando ele injustificadamente omitir a sua necessária cooperação ao cumprimento pelo devedor ou não aceitar a prestação por este oferecida e em termos de implicar o atraso do envolvente cumprimento (artigo 813º do Código Civil).
Trata-se de colaboração exigida nas prestações de facto e não raro nas prestações de coisa que, omitida pelo credor, o coloca em situação de mora.
No caso de a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor, não fica este desobrigado da contraprestação (artigo 795º, nº 2, do Código Civil).
Nos contratos que importem transferência do domínio sobre certa coisa, o perecimento ou deterioração desta por causa não imputável ao alienante - devedor - corre por conta do adquirente - credor (artigo 796º, nº 1, do Código Civil).
Continuando a coisa em poder do alienante em consequência de termo constituído a seu favor, o risco só se transfere com o vencimento do termo ou a entrega da coisa (artigo 796º, nº 2, do Código Civil).
Mas no caso de coisas genéricas, a transferência do domínio sobre elas não ocorre sem a respectiva concentração ou determinação (artigo 408º, nº 2, do Código Civil).
No caso de mora do credor, a posição do devedor é desagravada por via da sua desresponsabilização, da possibilidade de se exonerar da obrigação de prestação de coisa por via da consignação em depósito, da dispensa de pagamento de juros, e da inversão do risco de impossibilidade superveniente da prestação por caso fortuito ou de força maior (artigos 798º, 814º, nº 2, 815º e 841º, nº 1, alínea b), do Código Civil).
E se o objecto da prestação perecer ou se deteriorar por causa que não advenha de caso fortuito ou de força maior, o devedor só responde se a impossibilidade ocorrer com dolo seu (artigo 814º, nº 1, do Código Civil).
Além disso, tem o devedor o direito de exigir do credor a indemnização pelas maiores despesas que seja obrigado a fazer com o oferecimento da prestação e a guarda e conservação do respectivo objecto (artigo 816º do Código Civil).
Entre as várias modalidades de obrigações que a lei comporta, releva a obrigação de indemnizar, susceptível de derivar do não cumprimento de obrigações ou da prática de factos ilícitos stricto sensu, designada neste caso de responsabilidade civil extra-obrigacional ou extracontratual e, naquele, de responsabilidade civil obrigacional ou contratual.
Os pressupostos da obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil contratual são, naturalmente, a inexecução ilícita e culposa de alguma obrigação, a existência de um prejuízo reparável e o nexo de causalidade adequada entre o último e a primeira (artigos 562º, 563º, 564º, n.º 1, 566º, 798º, 799º e 808º, n.º 1, do Código Civil).
Entre os factos derivantes da responsabilidade civil obrigacional contam-se o não cumprimento de obrigações, a mora no seu cumprimento, o seu cumprimento defeituoso e a impossibilidade da prestação imputável ao devedor (artigos 798º, 801º, nº 1, 804º, nº 1, 898º, 899º, 908º e 913º, do Código Civil).

6.
Atentemos agora na natureza e nos efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida.
No tribunal da 1ª instância foi entendido que se não estava perante um contrato de compra e venda nem de fornecimento, e que se tratava de mero acordo de comprometimento apenas vinculativo em relação à recorrente.
Na Relação, por seu turno, foi o referido contrato qualificado como mero contrato de fornecimento, sem a concretização de qualquer das suas espécies.
A recorrente exclui a mencionada qualificação por falta da incerteza quanto à quantidade que a final seria prestada e por ser devido o preço correspondente à quantidade de tomate que efectivamente fosse por ela entregue, acrescentando que a obrigação do devedor da prestação de facto estava quantitativamente definida, tal como o respectivo preço, este por via da mera subsunção do relativo a cada quilo à aludida quantidade.
Nessa perspectiva, alegou que se trata de um contrato de compra e venda, por nele se estabelecer a entrega 250 000 quilos de tomate determinado pelo seu género, com entregas diferidas - prestação de facto - a um terceiro indicado pelo credor com o acordo do devedor.
A lei expressa, sob a perspectiva da função económico-social típica do contrato de compra e venda, ser esta o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (artigo 874º do Código Civil).
Trata-se, pois, de um contrato oneroso, bilateral, com recíprocas prestações e eficácia translativa, envolvendo a dupla e correlativa transmissão de duas prestações - o direito de propriedade ou de outro direito e o preço.
No que também concerne às respectivas vertentes estrutural e obrigacional, a lei estabelece como seus efeitos essenciais a transmissão da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a de pagar o preço (artigo 879º do Código Civil).
Em regra, o comprador adquire a propriedade da coisa logo que celebre o contrato; mas nem sempre assim é, como ocorre, por exemplo, com os contratos de compra e venda de coisas genéricas ou futuras.
Sob a designação de acordo de fornecimento, o que os representantes da recorrente e da recorrida declararam foi que a primeira se comprometia a entregar a C, SA, com fábrica na Chamusca, 250 000 quilos de tomate da sua produção.
O fornecimento é o acto ou o efeito de fornecer alguma coisa. Daí que, em sentido não jurídico, se possa qualificar de contrato de fornecimento todo aquele que tenha por objecto essa coisa ou um serviço.
Essa designação também tem sido atribuída aos contratos geradores de obrigações duradouras em que o âmbito das prestações de cada uma das partes dependa do consumo efectivo de uma delas.
Mas o contrato que visa directamente a transmissão do direito de propriedade sobre essa coisa ou a prestação de algum serviço há-de traduzir-se em contrato de compra e venda ou de prestação de serviços, conforme os casos, ainda que se trate de contratos de execução continuada ou emparelhada com a sua especificidade de não homogeneidade quantitativa de prestações.
O designado contrato de fornecimento reconduz-se, em regra, a um contrato de compra e venda desenvolvido por sucessivas, contínuas e periódicas prestações autónomas de coisas pelo vendedor mediante o pagamento pela contraparte do respectivo preço.
Tendo em conta as declarações negociais em causa, certo é que se está perante um contrato, porque a recorrida, associação de produtores, e a recorrente, sua associada, regulamentaram os seus interesses com a garantia legal de dela resultarem efeitos jurídicos.
Não se trata, porém, não obstante a qualificação operada pela recorrente e pela recorrida, em sentido jurídico, de um contrato de fornecimento, porque essa designação não assume, no quadro legal, conformação jurídica.
Mas também se não trata de um contrato de compra e venda celebrado entre a recorrente e a recorrida, porque não declararam que a primeira transmitia para a segunda, mediante determinado preço, a quantidade de tomate que mencionaram.
Do que se trata, na realidade, é de um contrato unilateral inominado e atípico, de natureza comercial, por via do qual só a recorrente se vinculou a entregar a mencionada quantidade de tomate a um terceiro (artigos 405º, nº 1, do Código Civil, 2º, 3º e 13º, nº 2, do Código Comercial).
Naturalmente que a entrega do tomate a C, SA por parte da recorrente implica a transferência para ela do direito de propriedade sobre o tomate, e a obrigação da primeira de lhe pagar o preço, no caso através da recorrida, porque a recorrente é dela associada.
A tal não obsta, tendo em conta o objecto social da recorrida, que actua na concertação de quotas de produção e na representação dos interesses dos produtores no confronto com as empresas transformadoras, a circunstância, a partir da quantidade de tomate entregue, de C, SA lhe processar o pagamento do preço e ela proceder à sua entrega aos seus associados, incluindo a recorrente.
Isso conforma-se, aliás, com a especificidade do produto hortícola em causa e a regulamentação comunitária concernente, a que acima se fez referência, bem como com a estrutura e fins da recorrida, cujos estatutos devem prever a obrigação dos seus associados de venderem a totalidade da sua produção às empresas transformadoras por seu intermédio.

7.
Vejamos agora se a recorrida está ou não sujeita à obrigação de indemnizar a recorrente no quadro da responsabilidade civil contratual.
A recorrente pretende ser indemnizada pela recorrida pelas suas perdas relativamente aos lucros cessantes relativos ao tomate que não entregou por virtude de se ter deteriorado e ao que ficou na área da plantação, bem como pelos danos emergentes derivados de despesas por ela realizadas para entrega frustrada daquele produto.
Fundou essa sua pretensão, por um lado, na espera a que os carregamentos de tomate foram sujeitos, sob temperaturas elevadas, nos camiões e reboques antes da sua entrega a C, SA, na sua recusa por esta com fundamento em impropriedade para o consumo por ela fundado na falta de qualidade originária apesar de tal haver derivado da referida espera.
E, por outro, no encerramento da fábrica em momento anterior ao que havia ocorrido em colheitas anteriores, acrescentando que essas circunstâncias, não contempladas no contrato, ocorridas sem qualquer negligência da sua parte, impossibilitaram parcialmente a sua prestação e são imputáveis à recorrida, credora dela.
Certo é que por virtude do mencionado circunstancialismo relativo à capacidade de recebimento do tomate pela C, SA, ao limite temporal do funcionamento da fábrica daquela e ao compasso de espera para a entrega, a recorrente não recebeu o preço de toda a quota de tomate que lhe foi distribuída pela recorrida, porque não entregou parte dela a C, SA, e por via disso ficou negativamente afectada na sua esfera jurídica na vertente de lucro cessante e de dano emergente.
Todavia, conforme acima se referiu, os pressupostos da obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil contratual são a inexecução ilícita e culposa de alguma obrigação, a existência de um prejuízo reparável e o nexo de causalidade adequada entre o último e a primeira.
Ora, a recorrente e a recorrida não celebraram um contrato de compra e venda do tomate em causa, certo que só a primeira que se vinculou no confronto da segunda, a entregar, ou seja, a vender a referida quantidade de tomate a C, SA.
Por isso, não é imputável à recorrente qualquer das causas do seu prejuízo, ou seja, alguma omissão ilícita censurável do ponto de vista ético-jurídico aos seus agentes ou representantes.
Não ocorre, por isso, o pressuposto da responsabilidade civil contratual concernente ao incumprimento obrigacional ilícito e culposo, de cuja verificação dependia o êxito da pretensão de indemnização formulada pela recorrente.

8.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.
O acórdão recorrido não infringiu qualquer norma de direito probatório material relativa à prova documental e este Tribunal não pode sindicar o juízo das instâncias quanto à matéria de facto por elas fixada.
A recorrida é uma organização de produtores hortícolas que estabelece a cadeia comercial de ligação entre eles e a indústria transformadora envolvida no processo, no interesse dos seus associados.
A recorrente e a recorrida não celebraram um contrato de compra e venda no que concerne ao tomate em causa e, consequentemente, não ocorreu a transmissão do direito de propriedade da titularidade da primeira para a segunda.
Como a recorrida não se vinculou no confronto da recorrente, não lhe pode ser imputado algum facto ilícito obrigacional e, consequentemente, não é sujeito da obrigação de a indemnizar relativamente ao prejuízo por ela sofrido no quadro da responsabilidade civil obrigacional.
Assim, a Relação não infringiu alguma das normas jurídicas indicadas pela recorrente, designadamente os artigos 406º, 796º, nº 1, 762º, nº 2, 813º, 815º, nº 1 ou 816º, todos do Código Civil.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 29 de Novembro de 2005.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís