Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1958/15.0T9BRG.G2-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: PROCESSO PENAL
JUIZ
IMPARCIALIDADE
IMPEDIMENTOS
RECUSA DE JUÍZ
Data do Acordão: 10/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/RECUSA
Decisão: RECUSADO O REQUERIMENTO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / IMPEDIMENTOS, RECURSAS E ESCUSAS.
Doutrina:
- Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal, § 2. A tutela da imparcialidade: impedimentos e suspeições, Coimbra, 2015;
- Henriques Gaspar et alii, Código de Processo Penal comentado, anotação ao artigo 43.º, Almedina, 2016.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, N.º 1, 43.º, 44.º E 45.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 203.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS (CEDH): - ARTIGO 6.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 15-04-2009, PROCESSO N.º 73/09.0YFLSB, IN SASTJ, CRIMINAL 2009, WWW.STJ.PT;
- DE 04-12-2014, PROCESSO N.º 147/13.3JELSB.L1.S1.
Sumário :
I - O princípio da independência dos tribunais (art. 203.º, da CRP) implica uma exigência de imparcialidade que, na projecção do direito a um tribunal independente e imparcial, justifica uma previsão suficientemente ampla de suspeições do juiz.

II - A protecção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada pela categoria dos impedimentos, e, complementarmente, pelo instituto das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa. Embora visando idêntica finalidade, o regime dos impedimentos (arts. 39.º a 42.º, do CPP) distingue-se do regime da recusa (arts. 43.º a 45.º)

III - A declaração de impedimento pode ser requerida pelo arguido, sendo admissível recurso do despacho que não reconhece o impedimento (art. 42.º, n.º 1, do CPP).

IV - A intervenção do juiz em processo pode originar impedimento nos casos previstos no art. 40.º (impedimento); fora deles, pode constituir motivo de recusa nos termos do art. 43.º, por intervenção noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo.

V - A intervenção dos mesmos juízes desembargadores no julgamento de um recurso de uma decisão proferida na sequência de anulação, em recurso, de uma decisão anterior, no mesmo processo e na mesma fase processual, não constitui fundamento de recusa do juiz por participação em processo.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:




1. “AA - Indústria de Perfis, S.A.”, apresenta requerimento de recusa dos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de … que, de acordo com as regras de distribuição devem conhecer do recurso interposto pelo Ministério Público nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP) e com os seguintes fundamentos (transcrição):

“Da leitura dos autos, resulta a evidente constatação que o recurso interposto pelo Ministério Público já foi decidido no digníssimo tribunal da Relação de …, secção Penal., cfr. acórdão proferido e constante de fls. 949 a 976 dos presentes autos.

Na verdade, o douto tribunal da Relação concedeu provimento ao presente recurso interposto pelo Ministério Público e nessa medida considerou válida a acusação do Ministério Público de fls. 277 e seguintes dos autos e determinou que o tribunal “ a quo” proferisse novo despacho em consonância com o ali decidido.

Dispõe o artigo 40.º al. d) do C.P. que “nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

(…)

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.”

O artigo 40.º do CPP tem em vista garantir a imparcialidade do juiz enquanto elemento fundamental à integração da função jurisdicional, face a intervenções processuais anteriores, que, pelo seu conteúdo e âmbito, considera como razão impeditiva de futura intervenção.

O envolvimento do juiz no processo, através da sua directa intervenção enquanto julgador, através da tomada de decisões, o que sempre implica a formação de juízos e convicções, sendo susceptível de o condicionar em futuras decisões, assim afectando a sua imparcialidade objectiva, conduziu o legislador a impedi-lo de intervir nas situações em que a cumulação de funções processuais pode fazer suscitar no interessado, bem como na comunidade, apreensões e receios, objectivamente fundados.

Tendo em conta as causas taxativas de impedimento previstas no artigo 40.º do CPP, o elemento comum a todas elas é a intervenção anterior do juiz em fase anterior do processo.

Que é o caso dos autos, pois salvo melhor opinião, participaram na fase anterior do presente processo Exmos. Senhores Juízes Desembargadores, o que impede-os de apreciar a presente questão.

Mas mesmo que assim não se entenda, por não ser o caso de aplicação do artigo 40.º al. d) do CPP, sempre cairá a presente situação processual na alçada do artigo 43.º do CPP.

Na verdade, diz-nos o n.º 2 do artigo 43.º do CPP que pode constituir motivo de recusa a intervenção do Juiz em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º do CPP.

O que é o caso nos presentes autos, sendo que a recusa pode ser requerida pelo arguido nos termos do n.º 3 do artigo 43.º do CPP.

O que faz ao suscitar o presente incidente de escusa/recusa do Juiz ou Juízes que anteriormente intervieram no presente processo.

Nestes tempos conturbados para a justiça em Portugal, impõe-se que a Justiça, tal como a mulher de ..., não seja apenas imparcial e séria, mas também apareça como tal aos olhos de quem recorre a esta.

É por isso que, para preservar a imagem de Justiça junto dos seus destinatários e dos cidadãos em geral, que seja outro magistrado a assegurar a tramitação do presente recurso, sob pena de ficar ínsita a ideia na mente das pessoas que a decisão tomada, para o bem e para o mal, esteja vinculada à que já antes foi tomada nos presentes autos.

Incidente de escusa/recusa que deve ser dado provimento e o processo atinente à interposição do recurso pelo Ministério Público seja atribuído aos Exmos. Senhores Juízes Desembargadores que ainda não tenham tido contacto com os presentes autos».

2. Os Senhores Juízes Desembargadores visados (Senhores Desembargadores BB e CC) pronunciam-se sobre o requerimento dizendo:

“A arguida “AA – Indústria de Perfis, S.A. – Em Liquidação”, suscitou, ao abrigo do disposto nos art.ºs. 43.º e 44.º do CPP, incidente de recusa dos Juízes Desembargadores aqui signatários.

Em face do disposto no n.º 3 do art.º 45.º daquele diploma legal, cumpre informar o seguinte:

1. Os signatários enquanto Juízes Desembargadores em exercício de funções no Tribunal da Relação de …, proferiram acórdão, em de 22 de outubro de 2018, decidindo “julgar procedente o recurso interlocutório interposto pelo Ministério Público (ainda que por razões distintas das por si aduzidas) e revogar o despacho recorrido – de fls. 772 a 776 -, determinando que seja proferido novo despacho em consonância com o ora decidido, prosseguindo os autos a subsequente tramitação processual”, tendo ficado prejudicada a apreciação de todas as demais questões suscitadas por qualquer dos recorrentes.

2. Notificada que foi do teor deste acórdão, a ora recorrente, AA – Indústria de Perfis, S.A., invocou, perante o Tribunal a quo, através de requerimento eletrónico com a referência 81…7, a nulidade insanável prevista no artº 119.º, n.º 1, al. c) do CPP, por violação do princípio do contraditório, vício que, na sua opinião, torna inválido o acórdão deste Tribunal da Relação bem como todos os demais atos que dele dependerem e que afetem os seus direitos. E isto porque em nenhum momento a arguida ou o seu defensor foram notificados para exercer o contraditório quanto ao recurso interlocutório interposto pelo Ministério Público do despacho proferido em 02.10.2017.

3. Os arguidos DD e EE aderiram, na totalidade, ao exposto pela recorrente AA – Indústria de Perfis, S.A.

4. Nesse mesmo sentido veio a pronunciar-se o Ministério Público, sublinhando que a sociedade AA – Indústria de Perfis, S.A., depois de ter sido proferido o despacho de fls. 772 a 776, foi completamente “esquecida” da tramitação dos autos e, nessa medida, os atos judiciais em causa, são inexistentes quanto à mesma e, consequentemente, insuscetíveis de produzirem efeitos jurídicos. Promoveu, para além do mais, que se declarasse, em relação àquela sociedade, a inexistência de todos os atos/despachos judiciais constantes dos autos desde a última notificação que lhe foi realizada, notificando-a nos termos legais, das alegações de recurso de fls. 796 a 803, para, querendo, responder.

5. Foi, posteriormente, proferido despacho pelo Tribunal a quo onde se “apreciou e decidiu” do seguinte modo:

“Resulta dos autos que, por via do despacho proferido em 02.10.2017, com a referência eletrónica 62…3, foi rejeitada a acusação pública deduzida a fls. 580 e sgs. ao abrigo do art.º 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. a), do CPP, por se entender que essa peça processual era manifestamente infundada, no que respeita à sociedade “AA – Indústria de Perfis, S.A. – Em Liquidação”.

Por força do decidido neste despacho a sociedade AA deixava de ser arguida nos autos.

No entanto, o Ministério Público reagiu contra o aludido despacho, dele recorrendo, nos termos constantes das alegações de recurso de fls. 796 a 803, recurso que veio a obter provimento, ainda que por razões distintas das aduzidas, no Acórdão do Tribunal da Relação de … de fls. 949 a 976, que revogou o despacho recorrido, determinando que fosse proferido novo despacho em consonância com o ali decidido.

O determinado no Acórdão do Tribunal da Relação de … teve como consequência a repristinação da acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 580 e sgs., anteriormente recebida através do despacho judicial de fls. 638 a 640, nos termos melhor explicitados no despacho judicial com a referência eletrónica 16…52.

Assim, em decorrência do recurso apresentado pelo Ministério Público e do Acórdão do Tribunal da Relação de … que o apreciou a ora requerente AA reganhou o estatuto de arguida que lhe havia sido retirado através do despacho judicial impugnado, voltando a fazer parte do objeto do processo, nos termos constantes da acusação pública também contra si deduzida.

Contudo, com bem assinala o Ministério Público, depois de proferido o despacho com a referência eletrónica 62…3, a requerente AA deixou de ter acesso ao processo via Citius, tendo mesmo sido dele dissociada e, nessa medida, os autos prosseguiram os seus termos sem que a mesma e seu defensor oficioso fossem notificados de quaisquer outros atos processuais, designadamente do recurso do Ministério Público, que, por via do acolhimento que obteve no Acórdão do Tribunal da Relação de … proferido nos autos, acabou por afetar, de forma decisiva, a posição desta arguida, que voltou a fazer parte do objeto do processo, nos termos supra explanados.

Na nossa opinião esta anomalia tem uma relevância e uma dimensão que ultrapassa e transcende a figura das nulidades processuais, traduzindo-se na inexistência jurídica relativamente à arguida AA de todos os atos praticados nos autos após a sua desassociação do processo, não lhe podendo ser atribuídos qualquer efeito jurídicos, vicio que, naturalmente, se estende e contamina, de forma decisiva, o Acórdão do Tribunal da Relação de … proferido nos autos, que, como já se disse, teve como referência um recurso do Ministério Público relativamente ao qual não foi concedida à arguida a oportunidade de se pronunciar (contrariamente, ou seja, relativamente aos demais arguidos, o Acórdão do Tribunal da Relação de … proferido nos autos deverá considerar-se transitado em julgado).

Consequentemente, decide-se:

i) Declarar, ao abrigo do disposto no art.º 122.º, nº.s 1 e 2, do CPP, aplicável ao caso concreto por identidade de razão, juridicamente inexistentes, no que concerne à arguida AA, as alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público a fls. 796 a 803, bem como todo o ulterior processado, no qual se engloba o Acórdão do Tribunal da Relação de … de fls. 949 a 976, até 31.01.2019, data da dedução do requerimento com a referência 81…7;

ii) ordenar a notificação à AA das alegações de recurso do MP de fls. 796 e segs, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 411.º, n.º 6, do CPP.

Notifique (…)”.

6. Notificada, a AA – Indústria de Perfis, S.A., apresenta, junto deste Tribunal da Relação, a sua resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público do despacho de 2 de Outubro de 2017, suscitando, como questão prévia, o impedimento dos Juízes Desembargadores e subsidiariamente, o pedido de recusa dos citados Juízes Desembargadores.

7. Tendo sido julgado improcedente o impedimento, subsiste o pedido de recusa dos Juízes Desembargadores.

8. Tal pedido tem como fundamento apresentado pela arguida “preservar a imagem da Justiça junto dos seus destinatários e dos cidadãos em geral” devendo ser “outro magistrado a assegurar a tramitação do presente recurso, sob pena de ficar ínsita a ideia na mente das pessoas que a decisão tomada, para o bem e para o mal, esteja vinculada à que já antes foi tomada nos presentes autos”.

Afigura-se-nos que o invocado incidente de recusa não tem cobertura em qualquer das alíneas contempladas no art.º 43.º do CPP».

3. Estão juntas cópias:

(a) Do acórdão do Tribunal da Relação de … de 22.10.2018 proferido no processo, assinado pelos Senhores Juízes Desembargadores agora visados pelo requerimento de recusa;

(b) Do requerimento de 28.01.2019, em que a requerente arguiu nulidade insanável decorrente da falta de notificação para exercer o contraditório quanto ao recurso interlocutório do Ministério Público do despacho de 02.10.2017 que, «ao abrigo do disposto no artigo 122.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal», declarou inexistentes os despachos do Ministério Público e decidiu rejeitar a acusação pública por ser manifestamente infundada quanto á arguida;

(c) Do despacho judicial (1.ª instância) de 19.03.2019 que, apreciando este requerimento, declarou «juridicamente inexistentes, no que concerne à arguida AA, as alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público a fls. 796 a 803, bem como o ulterior processado, no qual se engloba o acórdão do Tribunal da Relação de … de fls. 949 a 976 [acórdão de 22.10.2018], até 31.01.2019» e ordenou a «notificação à AA das alegações de recurso do MP de fls. 796 e seguintes, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 411.º, n.º 6, do Código De Processo Penal»;

(d) Da resposta da «AA» a esse recurso do Ministério Publico, no qual, como «questão prévia», sob a denominação «incidente de recusa», é suscitado, nos termos do artigo 40.º, alínea b), do CPP, o impedimento dos Senhores Juízes Desembargadores da Relação de Guimarães que subscreveram o anterior acórdão de 22.10.2018, e subsidiariamente («mesmo que assim não se entenda», diz-se no requerimento»), é requerida a sua recusa, nos termos do n.º 2 do artigo 43.º do CPP.

4. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, para decisão.

5. Dispõe o artigo 43.º do Código de Processo Penal (CPP):

“1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º

3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis. (…)”.

6. O princípio da independência dos tribunais (artigo 203.º da Constituição) implica uma exigência de imparcialidade que, na projecção do direito a um tribunal independente e imparcial (artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – acórdão de 15.4.2009, Proc. 73/09.0YFLSB, em www.stj.pt/wpcontent/ uploads/2018/01/criminal2009.pdf, rel. Cons. Henriques Gaspar), justifica uma previsão suficientemente ampla de suspeições do juiz (impedimentos, recusas e escusas – artigos 39.º a 47.º do CPP) (assim, Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal, § 2. A tutela da imparcialidade: impedimentos e suspeições, Coimbra, 2015).

A protecção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada pela categoria dos impedimentos, e, complementarmente, pelo instituto das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa (artigos 43.º a 45.º do CPP).

Na determinação de uma suspeição que justifique o afastamento do juiz do processo deve atender-se à cláusula geral enunciada no n.º 1 do artigo 43.º, segundo a qual “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”. Esta cláusula geral de suspeição revela que a preocupação central que anima o regime legal é prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade (id., ibid.).

A recusa constitui um meio processual instrumental da garantia da imparcialidade, que completa a função dos impedimentos (acórdão de 4.12.2014, Proc. 147/13.3JELSB.L1.S1).

Os fundamentos da recusa podem referir-se à imparcialidade subjectiva, do foro íntimo, que se presume, só podendo ser posta em causa em circunstâncias muito excepcionais e objectiváveis, ou à imparcialidade objectiva, por verificação de “circunstâncias relacionais ou contextuais objectivas susceptíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa” (assim, Henriques Gaspar, anotação ao artigo 43.º, Código de Processo Penal comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, 2016).

Na interpretação e aplicação da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência deste Tribunal tem adoptado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o princípio do juiz natural, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, como requer o artigo 43.º, n.º 1, do CPP.

O critério objectivo, que se exprime na célebre formulação do sistema inglês “justice must not only be done: it must be seen to be done”, enfatiza a importância das “aparências”, como tem sublinhado a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a propósito da interpretação da expressão “tribunal imparcial” constante do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

7. A recusa é uma suspeição oposta à intervenção do juiz pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (artigo 43.º, n.º 3, do CPP).

Resulta dos elementos juntos que:

(a) Em 31.01.2017 o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos EE, DD, FF e «AA – Indústria de Perfis, S.A. – em liquidação», imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelo artigo 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) – acusação de fls. 277 e segs..

(b) Em 06.02.2017 o Ministério Publico declarou essa acusação nula (despacho de fls. 535-536), por não ter abrangido a matéria de outro inquérito (n.º 516/15.4T9BRG), apensado por despacho de 26.11.2015.

(c) Em 09.02.2017 o Ministério Público deduziu nova acusação contra os arguidos EE, DD e FF e ainda contra a arguida «AA – Comércio, S.A. – em liquidação» e «AA – Indústria de Perfis, S.A.», pelo mesmo tipo de crime (fls. 578 e segs.).

(d) Em 06.03.2017 foi enviada notificação a todos os arguidos desta nova acusação, a qual, remetida para o tribunal de julgamento, foi recebida a 19.04.2017, tendo sido designado dia para julgamento.

(f) Em 02.10.2017, na sequência de requerimento apresentado no início da audiência de julgamento pelo arguido DD, acompanhado pelos arguidos FF e EE, foi proferido despacho que declarou inexistente o despacho do Ministério Público de 06.02.2017 que declarou nula a acusação de 31.01.2017 (de fls. 277 e segs.) e a segunda (nova) acusação (de fls. 578 e segs), e, considerando que aquela acusação de 31.01.2017 mantinha a sua validade, rejeitou-a «por ser manifestamente infundada no que respeita à sociedade arguida “AA – Indústria de Perfis, S.A. – em liquidação” e recebeu-a contra os arguidos EE, DD, FF e AA – Comércio, S.A.».

(g) O Ministério Público e o arguido DD recorreram desse despacho de 02.10.2017 para o Tribunal da Relação de … .

(h) O Ministério Público e os arguidos DD e EE recorreram também da sentença de 18.12.2017, que, julgando a acusação de fls. 277 procedente, condenou estes quatro arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

(i) Nos recursos do despacho de 02.10.2017,

- O Ministério Público defendia que a acusação de fls. 578 e segs. era válida e que a acusação de fls. 277 e segs era nula, nulidade que foi reparada por seu despacho de fls. 535 e 536, pelo que o tribunal deveria conhecer daquela e não desta;

- O arguido DD defendia a nulidade da acusação de fls. 277 e segs., pelo que deveria ser rejeitada quanto a todos os arguidos.

(j) Nos recursos da sentença,

- O Ministério Público manteve a posição assumida no recurso do despacho de 02.10.2017, defendendo que o julgamento deveria ter incidido sobre a acusação de fls. 578 e segs e não sobre a de fls. 277 e segs.;

- Os arguidos DD e EE defendiam que não se encontravam preenchidos os elementos constitutivos do crime por que foram condenados porque «não criaram voluntariamente uma situação económica deficitária da sociedade da qual eram administradores», mas viram-se confrontados «com uma verdadeira necessidade» para assegurar a sobrevivência da empresa e dos postos de trabalho, o que afastaria a ilicitude, nos termos do n.º 1 do artigo 36.º do Código Penal, pelo que deveriam ser absolvidos.

(k) No acórdão de 22.10.2018, o Tribunal da Relação de Guimarães começou por apreciar o recurso do Ministério Público do despacho de 02.10.2017 e, considerando «não ser possível “repristinar” uma acusação que já foi declarada nula pelo titular da acção penal enquanto teve o dominus do inquérito», concluiu tornar-se «inevitável a revogação do despacho exarado a fls. 772 a 776 [despacho de 02.10.2017], devendo a audiência de julgamento realizar-se com referência à acusação que foi recebida [acusação de fls. 578 e segs., ou seja, a nova acusação, de 09.02.2017], depois dos arguidos e seus defensores terem sido notificados da “nova acusação”», a qual «inexoravelmente condicionará os ulteriores termos do processado».

(l) Para fundamentar esta conclusão, a Relação pronunciou-se nos seguintes termos:

«De acordo com o princípio da preclusão, uma vez praticado determinado acto ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão).

Assim, recebida que foi determinada acusação será ele que fixa o objecto dos autos e com base na qual será realizada a audiência de julgamento. O poder jurisdicional fica esgotado quanto à matéria em causa (efeito preclusivo do caso julgado).

Proferida sentença ou proferido um despacho que decida sobre determinada questão, fica precludida a possibilidade de o Tribunal voltar a pronunciar-se sobre essa mesma questão, sendo que a decisão proferida só permite a correcção de lapsos a que se refere o artigo 380.º do Código de Processo Penal.

O disposto no artigo 380.º n.º 1 e n.º 2 aplica-se, como determina o n.º 3, aos actos decisórios previstos no art.º 97.º do Código de Processo Penal.

Proferido o despacho a que alude o art.º 311.º está prejudicada a possibilidade de o juiz renovar a prática do acto. O acto praticado tornou-se definitivo e parte integrante do processado.

Acresce que, ainda que assim se não entendesse, podendo ser defensável que não se forma caso julgado formal com o recebimento da acusação, sempre se diga que a primeira acusação deduzida nos autos padecia de omissão de pronúncia porque deixava de fora, sem objecto de apreciação, parte da factualidade constante num dos seus apensos, razão pela qual sempre poderia o Ministério Público proceder á declaração da sua nulidade. Realce-se que não se trata de matéria exclusiva da competência do juiz de instrução, por se encontrara excluída da matéria de reserva jurisdicional prevista no art.º 268.º do Código de Processo Penal».

(l) Em consequência, o tribunal da Relação não conheceu de qualquer outra das questões – «Naturalmente que fica prejudicada a apreciação de todas as demais questões suscitadas por qualquer dos recorrentes», diz o acórdão da Relação.

(m) Sucede que:

(n) Notificada do teor deste acórdão da Relação, mediante requerimento de 28.01.2019, a que aderiram os arguidos DD e EE, a «AA – Indústria de Perfis, S.A»., invocou, perante o Tribunal da 1.ª instância, a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, n.º 1, al. c) do CPP, por violação do princípio do contraditório, vício que, na sua opinião, tornaria inválido o acórdão do Tribunal da Relação bem como todos os demais actos dele dependentes e que afectassem os seus direitos, isto porque em nenhum momento a arguida ou o seu defensor foram notificados para exercer o contraditório quanto ao recurso interlocutório interposto pelo Ministério Público do despacho proferido em 02.10.2017;

(o) Por despacho judicial de 19.03.2019, foi decidido «i) Declarar, ao abrigo do disposto no art.º 122.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, aplicável ao caso concreto por identidade de razão, juridicamente inexistentes, no que concerne à arguida AA, as alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público a fls. 796 a 803, bem como todo o ulterior processado, no qual se engloba o Acórdão do Tribunal da Relação de … de fls. 949 a 976, até 31.01.2019, data da dedução do requerimento com a referência 8182137; ii) ordenar a notificação à AA das alegações de recurso do MP de fls. 796 e segs, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 411.º, n.º 6, do CPP».

(p) Notificada na sequência deste despacho, veio a arguida «AA» responder ao recurso do Ministério Público que incidiu sobre o despacho de 02.10.2017.

(q) Nesta resposta, a arguida requer a declaração de impedimento dos Senhores Juízes Desembargadores da Relação de … que subscreveram o anterior acórdão de 22.10.2018, e subsidiariamente («mesmo que assim não se entenda», diz-se no requerimento»), é requerida a sua recusa, nos termos do n.º 2 do artigo 43.º do CPP.

(r) Por despacho de 09.09.2019, os Senhores Juízes Desembargadores, tendo em conta que a sua intervenção se «cingiu» à prolação do acórdão de 22.10.2018 e a «motivação apresentada», não reconheceram o alegado impedimento («improcede o impedimento suscitado», lê-se na decisão).

(s) Porém, tendo a arguida apresentado, subsidiariamente, pedido de recusa, foi ordenada a sua notificação para dar «cabal cumprimento» ao disposto no artigo 45.º do CPP, o que esta fez nos termos acima expostos (supra, 1).

8. No requerimento de recusa, a requerente renova o que disse perante a Relação quando requereu aos Senhores Juízes Desembargadores que se declarassem impedidos para conhecer do recurso do Ministério Público do despacho de 02.10.2017.

Alega a requerente que a anterior intervenção destes, ao subscreverem o acórdão de 22.10.2018, constitui motivo de impedimento para conhecer, de novo, da questão suscitada no recurso do Ministério Público, nos termos da alínea d) do artigo 40.º do CPP.

O requerimento de recusa é, na formulação da requerente, apresentado a título subsidiário, ao dizer: «Mas mesmo que assim não se entenda, por não ser o caso de aplicação do artigo 40.º al. d) do CPP, sempre cairá a presente situação processual na alçada do artigo 43.º do CPP. Na verdade, diz-nos o n.º 2 do artigo 43.º do CPP que pode constituir motivo de recusa a intervenção do Juiz em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º do CPP. O que é o caso nos presentes autos, sendo que a recusa pode ser requerida pelo arguido nos termos do n.º 3 do artigo 43.º do CPP. O que faz ao suscitar o presente incidente de escusa/recusa do Juiz ou Juízes que anteriormente intervieram no presente processo».

Para fundamentar o pedido, recorde-se, diz apenas que: «Nestes tempos conturbados para a justiça em Portugal, impõe-se que a Justiça, tal como a mulher de ..., não seja apenas imparcial e séria, mas também apareça como tal aos olhos de quem recorre a esta. É por isso que, para preservar a imagem de Justiça junto dos seus destinatários e dos cidadãos em geral, que seja outro magistrado a assegurar a tramitação do presente recurso, sob pena de ficar ínsita a ideia na mente das pessoas que a decisão tomada, para o bem e para o mal, esteja vinculada à que já antes foi tomada nos presentes autos».

9. Nos termos da alínea d) do artigo 40.º do CPP, nenhum juiz pode intervir em recurso em que tiver «proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objecto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a)» [aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º], «ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior».

De acordo com o artigo 43.º, n.º 2, do CPP, agora invocado, pode constituir fundamento de recusa a «intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º», quando essa intervenção «correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade» (n.º 1).

10. No presente caso, em que apenas está em causa a intervenção num recurso sobre uma questão de natureza processual já anteriormente apreciada pelos mesmos juízes desembargadores no acórdão de 22.10.2018 tornado inválido (melhor dito, «inexistente», nos termos da decisão) por efeito da declaração da «inexistência» do processado posterior à apresentação das «alegações de recurso» do Ministério Público do despacho de 02.10.2017 [supra (n) e (o)], não ocorre qualquer das situações previstas neste preceito – não se trata nem de intervenção «noutro processo», pois que o processo é o mesmo, nem de intervenção «em fase anterior do mesmo processo», pois que a intervenção ocorre na mesma fase processual (de recurso). Sendo que, para além disso, não vem invocado qualquer motivo que, em concreto e tendo em conta o acima exposto (supra, 6), possa ser considerado sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de qualquer dos Senhores Juízes Desembargadores que devem intervir na decisão do recurso.

Acresce ainda que não há lugar à apreciação, nestes autos, do mérito do despacho dos Senhores Juízes Desembargadores que não reconheceram o impedimento suscitado pela requerente, que só poderia ter lugar em recurso desse despacho, legalmente admissível nos termos da segunda parte do n.º 1 do artigo 42.º do CPP. O que não é o caso.

11. Nesta conformidade, deve o requerimento de recusa ser recusado e considerado manifestamente infundado.

De acordo com o n.º 7 do artigo 45.º do CPP, se o tribunal recusar o requerimento do arguido, do assistente ou das partes civis por manifestamente infundado, condena o requerente ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC.

Decisão

12. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em:

a) Recusar o requerimento de recusa da Senhora Juíza Desembargadora BB e do Senhor Juiz Desembargador CC, apresentado por “AA - Indústria de Perfis, S.A.”.

b) Condenar a requerente na soma de 6 UC, nos termos do n.º 7 do artigo 45.º do CPP.

Custas pela requerente fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, nos termos do artigo 7.º, n.º 4, e da Tabela II do Regulamento das Custas Processuais ex vi artigo 524.º do Código de Processo Penal.


Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Outubro de 2019.


José Luís Lopes da Mota (Relator)

Maria da Conceição Simão Gomes