Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2343
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
REVISTA AMPLIADA
Nº do Documento: SJ200401150023432
Data do Acordão: 01/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8639/02
Data: 01/23/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECL CONFERÊNCIA.
Decisão: INDEFERIMENTO.
Sumário : Não constitui nulidade a falta de sugestão do relator, de qualquer dos adjuntos ou do Presidente da Secção no sentido de o julgamento se fazer com intervenção do plenário das secções cíveis, em virtude de a decisão a proferir se encontrar em eventual contradição com anterior jurisprudência do STJ.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Notificada do acórdão deste Tribunal, proferido no âmbito do recurso de revista por si interposto, veio a recorrente A, ao abrigo do disposto no art. 668°/1.d) do CPC, arguir a nulidade do referido acórdão.

No dizer da recorrente, ora reclamante, o Supremo demitiu-se "de verificar se na interpretação da declaração negocial (dela, recorrente) foram ou não observados os preceitos dos arts. 236° e 238° do Cód. Civil", o que deveria ter feito por em causa estar matéria de direito; e, assim, decidiu em oposição à jurisprudência perfilhada em dois outros acórdãos do mesmo Tribunal, que a recorrente identifica.
Por isso - continua a recorrente - estar-se-ia, no caso vertente, perante uma situação em que se imporia o julgamento, ampliado da revista (art. 732°-A e 732°-B do CPC), o que deveria ter sido sugerido pelo relator ou por algum dos adjuntos, ou pelo Presidente da secção. É que, embora em causa esteja um poder discricionário, tal circunstância não afasta a observância do princípio do contraditório, mediante audição prévia das partes, quando o Supremo se proponha tomar uma decisão que colida com a sua jurisprudência anterior e não tenha sido suficiente debatida nas alegações, importando nulidade a preterição dessa audição.

Também quanto à condenação da recorrente como litigante de má fé teria ocorrido - e pelas mesmas razões - a mesma nulidade, uma vez que a decisão aqui assumida está em oposição com o decidido em quatro outros acórdãos deste Tribunal, que aquela identifica, pelo que "sempre se imporia, também neste particular, o julgamento ampliado da revista, por forma a evitar-se o conflito jurisprudencial.

O não atendimento da pretensão da recorrente - i.e., o não reconhecimento da arguida nulidade e a não efectivação do julgamento ampliado da revista - traduzindo denegação de um grau de jurisdição, importaria violação do art. 20° da Constituição.
E a recorrente remata as suas considerações pela forma seguinte: verifica-se, no caso em apreço, a nulidade decorrente de não ter sido observado o princípio do contraditório mediante audição prévia das partes por forma a que o julgamento tivesse decorrido com observância do disposto nos arts. 732°-A e 732°-B do C PC; pelo que deve ser decretada tal nulidade, realizando-se o julgamento da revista pela forma ampliada, prevista naqueles preceitos.

O recorrido B respondeu, manifestando "a sua justa indignação", e sustentando que a recorrente "pretende manifestamente e de forma ínvia obstar ao trânsito em julgado da decisão e ao cumprimento do julgado", culminando um comportamento processual grosseiro e "inadequado à ideia de um processo justo e leal e em que a mais retinta má fé vai de par com a gritante falta de isenção científica, violando os mais elementares padrões de comportamento exigíveis.

Para o recorrido, o acórdão deste Tribunal não enferma do vício de nulidade que lhe é imputado. A nulidade invocada é, no seu entender, "uma forma retorcida e artificial [de que se serve a recorrente] para poder invocar o julgamento ampliado da revista" - o qual só poderia ser requerido ou sugerido até à prolação do acórdão.
De todo o modo - continua o recorrido - o acórdão proferido nestes autos não está em oposição à jurisprudência dos dois acórdãos citados pelo recorrente, antes é com eles totalmente coincidente; e também não se verifica a afirmada oposição do acórdão, na parte respeitante à condenação como litigante de má fé, com os arestos a tal propósito referidos pelo recorrente.
Finalmente, a pretensa violação do art. 20º da Constituição, no caso de não atendimento da reclamação, patenteia a verdadeira intenção do recorrente - levar o processo ao Tribunal Constitucional, "para arrastar sem limite os embargos para além dos mais de sete anos que já levam, numa indesmentível obstrução à justiça, entupindo os tribunais e contribuindo para o seu descrédito".
Deve, por tudo isso, ser indeferido o requerido.

2. O requerimento da recorrente/reclamante é manifestamente infundado.
Começa logo na patente confusão que faz entre nulidades da sentença e nulidades de processo - realidades bem distintas, mas que a reclamante manuseia de forma desastrada.
As primeiras são apenas as taxativamente indicadas no art. 668°/1 do CPC. A nulidade prevista na primeira parte da al. d), que a reclamante começa por invocar, está directamente relacionada com a regra do art. 660°/2, segundo a qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

E nula a sentença - diz a referida al. d), na sua primeira parte - quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Perante a invocação, pela reclamante, deste transcrito normativo, cabe perguntar qual a questão ou questões sobre que este Tribunal omitiu pronúncia.
Debalde se procurará encontrá-la(s), nem mesmo na companhia de Diógenes e com a ajuda da sua lanterna ...
Porque, em boa verdade, nenhuma questão, das que a este Supremo Tribunal cumpria analisar e decidir, foi esquecida e ficou sem resposta.
É que a nulidade que, afinal, a reclamante imputa a este Tribunal, nada tem a ver com as nulidades previstas no art. 668° do CPC. A nulidade invocada é - di-lo a reclamante - a "decorrente de não ter sido observado o princípio do contraditório mediante audição prévia das partes por forma a que o julgamento tivesse decorrido com observância do disposto nos arts. 732°-A e 732°-B do C PC, ou seja, o julgamento ampliado da revista".
Esta não é, porém, uma nulidade da sentença - poderia ser, quando muito, uma mera nulidade de processo (mas nem isso é). Como refere o Prof. M. Andrade, as nulidades de processo são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual previsto na lei, e a que esta faça corresponder - embora não de modo expresso uma invalidade mais ou menos extensa de actos processuais. Estes desvios ao formalismo prescrito podem consistir na prática de um acto proibido, na omissão de um acto prescrito na lei, ou na realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Nos termos do art. 201°/1 do c PC, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Ora, não se vê que tenha sido omitido, por este Tribunal, acto ou formalidade que a lei prescreva, pois que nada impunha ao relator, ou aos adjuntos, ou ao presidente da secção, sugerir o julgamento alargado da revista, nem a lei fulmina com a nulidade a omissão desse procedimento, nem, tão pouco, essa omissão é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa. A mera possibilidade de contradição de acórdãos do Supremo, não sendo caso de jurisprudência uniformizada (jurisprudência anteriormente firmada, na terminologia do n.º 2 do art. 732°-A), não obriga ao julgamento ampliado (cf. Isabel Alexandre, Problemas recentes da uniformização da jurisprudência em proc. civil, ROA, ano 60, Jan/2000, pág. 130/131).
Não foi pois cometida, por este Tribunal, qualquer nulidade.

3. Ademais, a questão do julgamento alargado da revista, nos termos em que vem colocada, é uma falsa questão.
Na verdade, e decisivamente, o acórdão proferido nos presentes autos não colide com a jurisprudência do Supremo na matéria, e designadamente com a doutrina dos dois acórdãos ode 09.02.88 (BMJ 374/436) e o de 17.11.94 (www.dgsi.pt) - referidos pela reclamante.
O que se referiu no acórdão proferido nestes autos foi, em suma:
- que o Supremo, no exercício dos seus poderes de censura sobre o uso que a Relação haja feito dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 712° do C PC, apenas deve verificar se esta agiu dentro dos limites traçados por lei, não podendo sindicar a apreciação das provas feita pela Relação, uma vez que esta actividade, respeitando ao apuramento da matéria de facto, é da exclusiva competência das instâncias;
- que, por isso, sendo matéria de facto a determinação da vontade real dos declarantes, tinha o Supremo que aceitar a vontade real da recorrente, ora reclamante, tal como foi apurada pela Relação, porquanto, não se verificando (como não se verificava) o caso excepcional previsto no n.º 2 do art. 722°, O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista;
- que, apurada a vontade real da recorrente, e sendo esta do conhecimento da recorrida, é de acordo com essa vontade real que vale a declaração negocial da recorrente, nos termos do n.º 2 do art. 236° do CC - não logrando, pois, aplicação o disposto no n.º 1 do mesmo art. 236°, conducente à determinação do sentido jurídico, normativo, da declaração de vontade da mesma recorrente (e só neste caso e que estaríamos perante matéria de direito, de que o Supremo, como tribunal de revista, poderia conhecer).
Não diverge deste entendimento o adoptado no acórdão de 09.02.88, onde expressamente se afirma que o sentido objectivo da declaração, acolhido no n.º 1 do art. 236° do CC como aquele que deve ser tido em conta na interpretação da declaração negocial, "não pode ser atendido quando não coincida com a vontade real do declarante e esta seja conhecida do declaratário (art. 236º, n.º2)", logo se acrescentando que esta matéria depende de prova, por constituir matéria de facto. "Na verdade, saber se o declaratário conhecia a vontade do declarante ou saber se este não podia contar com o sentido objectivo da declaração constituem acontecimentos da vida susceptíveis de serem captados pelos diferentes meios de prova ".

Também nada permite concluir, do sumário do acórdão de 17.11.94, referido pelo reclamante, pela existência de qualquer oposição entre aquele acórdão e o lavrado nestes autos (1). Também neste último se entendeu que a determinação da vontade real do declarante e da vontade comum dos contraentes constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias, e por isso se considerou estar fora da competência do Supremo a reapreciação do julgado pela Relação, no quadro do art. 236°/2 do CC, quanto ao apuramento da vontade real da recorrente e ao conhecimento dessa vontade pelo recorrido.
Foram, pois, claramente mal escolhidos os acórdãos invocados pela ora reclamante, nada mais sendo necessário acrescentar para rejeitar, por manifestamente infundada, a afirmação de que se estaria perante uma situação em que se justificaria o julgamento ampliado da revista.

E a mesma conclusão vale - e aqui de modo ainda mais evidente - quanto à pretensa oposição, quanto à questão da litigância de má fé, do acórdão proferido nestes autos com os indicados pela reclamante.
Desde logo, os acórdãos de 03.12.81 e de 20.12.90 foram lavrados no domínio de vigência do art. 456° do CPC, na redacção anterior à actualmente em vigor. E a redacção actual, no âmbito da qual foi proferida a decisão ora em análise, alargou o conceito de litigância de má fé, estendendo-o às situações de negligência grave que, no regime anterior - em que só o comportamento doloso relevava para tal efeito - dela estavam excluídas.
Tais acórdãos, só por isso, estariam, à partida, excluídos, não podendo ser convocados como fundamento do julgamento alargado (art. 732°-A, n.º 2).
Mas, mais importante do que isso é a gritante evidência de que não há qualquer oposição entre esses acórdãos - os indicados e os de 21.10.96 e de 01.10.98 - e o proferido nestes autos, onde se referiu, justificando a manutenção da condenação da recorrente como litigante de má fé, ter esta "optado, ab initio, por uma conduta - a acima sintetizada pela Relação - que não pode deixar de merecer reparo e censura".

Na verdade, a Relação considerou que a recorrente emitiu uma declaração contratual com determinado sentido, que sempre manifestou em várias peças de processos instaurados anteriormente, e que, posteriormente, na fase executiva - é dizer, nos presentes autos - vem sustentar que é outro o sentido dessa declaração, calando que é contrário ao da sua vontade real, para, deste modo, aproveitando-se de uma eventual interpretação objectiva da declaração que lhe seja favorável, conseguir evitar pagar a quantia reclamada que sabe ser efectivamente a devida em conformidade com aquilo que contratou. Esta actuação da recorrente foi entendida, no acórdão proferido nestes autos, como "um exercício que claramente ultrapassa os limites daquilo a que Luso Soares chamou de litigiosidade séria, isto é, aquela que dimana da incerteza", já que não só deduziu, conscientemente, oposição à execução cuja falta de fundamento não podia ignorar, como fez do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de impedir a descoberta da verdade, violando, consciente e voluntariamente, o dever de verdade e probidade (o dever de boa fé) a que se achava vinculada. A sua condenação - diz-se ainda no acórdão - assenta num juízo de censura incidente sobre um comportamento por ela adoptado, inadequado à ideia de um processo justo e leal, que constitui emanação do princípio do Estado de direito.
É bom de ver que a decisão, nesta parte, sobre não se achar em oposição com a doutrina dos acórdãos indicados pela reclamante, coincide inteiramente com os princípios que estes expressam, como a simples leitura das passagens transcritas na reclamação deixa, de imediato, perceber .
Aliás, a reclamante nem sequer arriscou precisar e definir os contornos da invocada contradição.
4. É, pois, totalmente inconsistente a argumentação desenvolvida pela reclamante na (vã) tentativa de justificar uma pretensa nulidade por inobservância do princípio do contraditório, "mediante audição prévia das partes por forma a que o julgamento tivesse decorrido com observância do disposto nos arts. 732°-A e 732°-B do C PC".
E por isso, o não reconhecimento da (inexistente) nulidade não envolve, obviamente, violação de qualquer preceito, designadamente o art. 20° da Constituição, abusivamente invocado.
Termos em que se acorda em indeferir a reclamação deduzida.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 8 UC (art. 16° do CCJ).

Lisboa, 15 de Janeiro de 2004
Santos Bernardino
Moitinho de Almeida
Ferreira de Almeida
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(1) Do aludido acórdão de 17.11.94 apenas o sumário se encontra disponível na Internet.