Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
538/14.2YRLSB.S2
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: JOÃO SILVA MIGUEL
Descritores: COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
CONVENÇÃO EUROPEIA DE EXTRADIÇÃO
EXTRADIÇÃO
RECUSA
Data do Acordão: 02/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL - COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL / EXTRADIÇÃO.
Doutrina:
- Ireneu Cabral Barreto, A “Convenção Europeia dos Direitos do Homem” anotada, Almedina, 5.ª edição Revista e Atualizada, 2015, anotação 3, ao artigo 3.º, 102, anotação 4, ao artigo 3.º, 104, e jurisprudência citada.
- Grupo de Especialistas sobre Direitos Humanos e a Luta contra o Terrorismo do Conselho da Europa (DH-S-TER), relatório final sobre garantias diplomáticas (Doc. CM (2006) 64, 13-IV-2006, Apêndice 2, § 3, p. 9, disponível na Internet).
- J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, Artigos 1.º a 107.º, vol. I, 4.ª edição revista, 2007, Coimbra, Coimbra Editora, anotação IX ao artigo 1.º, 199-200.
- Ugur Erdal e Hasan Bakirci, Article 3 de la Convention Européenne des Droits de l’Homme, Collection Guides Juridiques de l’OMCT, vol. I, 124-125, acessível na internet.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 144.º, AL. D), 147.º, N.º1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 1.º.
LEI N.º 144/99, DE 31 DE AGOSTO: - ARTIGOS 6.º, AL. A), 12.º, N.º1.
RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA 23/89: - ARTIGO 1.º, AL. B), DO N.º 3.
Legislação Estrangeira:
CÓDIGO PENAL DA UCRÂNIA: - ARTIGOS 49.º, N.OS 1, 3), E 2, 121.º, N.º2.
Referências Internacionais:
CARTA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA: - ARTIGO 19.º,N.º2.
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CONVENÇÃO EUROPEIA PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS, DE 4 DE NOVEMBRO DE 1950 (CEDH): - ARTIGOS 3.º, 6.º.
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CONVENÇÃO EUROPEIA DE EXTRADIÇÃO DE 1957, DITA «CONVENÇÃO DE PARIS», APROVADA PARA RATIFICAÇÃO PELA RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA N.º 22/89, E RATIFICADA PELO DECRETO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA N.º 51/89, AMBOS PUBLICADOS NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, N.º 191, DE 21 DE AGOSTO DE 1989, TENDO O INSTRUMENTO DE RATIFICAÇÃO SIDO DEPOSITADO EM 25 DE JANEIRO DE 1990, SENDO O INÍCIO DE VIGÊNCIA RELATIVAMENTE A PORTUGAL EM 25 DE ABRIL DE 1990. PELO DECRETO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA N.º 23/90, DE 20 DE JUNHO (DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, N.º 140, DE 20 DE JUNHO DE 1990, P. 2580), SÃO RATIFICADOS OS DOIS PROTOCOLOS ADICIONAIS ÀQUELA CONVENÇÃO, TAMBÉM APROVADOS, PARA RATIFICAÇÃO, PELA RESOLUÇÃO ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA N.º 23/89, EM 8 DE NOVEMBRO DE 1988, PRODUZINDO ESTE DECRETO EFEITOS DESDE A DATA DA ENTRADA EM VIGOR DO DECRETO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA N.º 57/89, DE 21 DE AGOSTO. RELATIVAMENTE À UCRÂNIA, A CONVENÇÃO, APÓS RATIFICAÇÃO E DEPÓSITO DO INSTRUMENTO DE RATIFICAÇÃO, ENTROU EM VIGOR EM 9 DE AGOSTO DE 1998.
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PROTOCOLO N.º 13 DA CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM.
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RESOLUÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS 217A (III), DE 10 DE DEZEMBRO DE 1948, PUBLICADA MEDIANTE AVISO DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE A, N.º 57/78, DE 9 DE MARÇO DE 1978, 488- 493.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 384/2005, DE 13 DE JULHO DE 2005, DISPONÍVEL EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT/TC/ACORDAOS/20050384.HTML .

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 7 DE JANEIRO DE 2009, PROCESSO N.º 08P4144.
-DE 24 DE MARÇO DE 2011, PROCESSO N.º 523/10.3YRLSB.S1, DE 2 DE NOVEMBRO DE 2011, PROCESSO N.º 736/10.8YRLSB.S1, DE 24 DE AGOSTO DE 2012, PROCESSO N.º 136/12.5TRPPTR.P1.S1, E DE 8 DE AGOSTO DE 2014, PROCESSO N.º 364/14.9URLSB.S1, EM TODOS ELES SENDO AUTORIZADA A EXTRADIÇÃO, E OS ACÓRDÃOS DE 30 DE MAIO DE 2012, PROCESSO N.º 290/11.3YRCBR1.S1 E DE 21 DE MAIO DE 2015, PROCESSO N.º 16/13.7YREVR.E1.S3.
-DE 3 DE MAIO DE 2012, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 290/11.3YRCBR1.S1.
-DE 30 DE MAIO DE 2012, PROCESSO N.º 290/11.3YRCBR1.S1, E DE 21 DE NOVEMBRO DE 2013, PROCESSO N.º 87/13.6YREVR.S1.
Jurisprudência Internacional:
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (TEDH):

-ACÓRDÃO SOERING C. REINO UNIDO, DE 7-07-1989.
-ACÓRDÃOS DE 15 DE NOVEMBRO DE 1996, NO CASO CHAHAL C. REINO UNIDO, DE 28 DE FEVEREIRO DE 2008, CASO SAADI C. ITÁLIA, DE 18 DE FEVEREIRO DE 2010, CASO BAYSAKOV E OUTROS C. UCRÂNIA E DE 17 DE JANEIRO DE 2012, CASO OTHMAN C. REINO UNIDO, E DE 27 DE FEVEREIRO DE 2014, CASO ZARMAYEV C. BÉLGICA, E DEMAIS ACÓRDÃOS AÍ CITADOS.
-ACÓRDÃOS DE 23 DE OUTUBRO DE 2008, CASO SOLDATENKO C. UCRÂNIA (§73) E DE 18 DE FEVEREIRO DE 2010, E A DECISÃO DE 9 DE MAIO DE 2006, PROFERIDA NO CASO ABU SALEM C. PORTUGAL.
(TODOS ACESSÍVEIS, EM FRANCÊS E INGLÊS, NO SÍTIO INTERNET DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (TEDH), EM HTTP://HUDOC.ECHR.COE.INT/ )
Sumário :

I - O TEDH, desde o acórdão Soering c. Reino Unido, de 7-07-1989, considera que os Estados podem incorrer em responsabilidade se decidirem extraditar uma pessoa que corra o risco de ser sujeita a tratamentos desumanos no Estado requerente, jurisprudência que reafirmou posteriormente em muitos outros acórdãos, neste domínio devendo ser de ponderar a qualidade da garantia do Estado requerente de que os direitos do extraditando serão respeitados e a confiança que merece a prática seguida pelas autoridades requerentes.

II - Tendo em vista apreciar da existência desse risco, o Tribunal pondera as consequências previsíveis do reenvio do extraditando para o Estado requerente, tendo em vista a situação geral no país e das circunstâncias específicas do requerente, sendo que, quanto às circunstâncias gerais no país, o Tribunal atribui relevância a relatórios recentes oriundos de associações internacionais independentes de defesa dos direitos do homem ou de fontes governamentais, mas sem que se deva entender em si contrária ao mencionado direito a mera possibilidade de abuso resultante de condições instáveis num país, recaindo sobre o requerente o ónus de produzir os elementos de prova suscetíveis de demonstrar que há razões sérias para crer que, se a decisão autorizando a extradição for executada, ele ficará exposto a um risco real de sofrer tratamentos contrários aos previstos no art.º 3.º da Convenção.

III - No caso de o Estado requerente oferecer garantias diplomáticas, assegurando o respeito dos direitos humanos relativamente ao extraditando, as mesmas constituem um fator pertinente a que o Tribunal atende, embora possam não ser suficientes para garantir uma proteção satisfatória contra o risco de maus tratos, sendo necessário verificar se as mesmas prevêem na sua aplicação prática, uma garantia bastante de que o extraditando se mostra protegido do risco de maus tratos, sendo o valor a atribuir a tais garantias dependente das circunstâncias específicas de cada caso e em cada momento.

IV - Não se verifica com a decisão de extradição, uma violação da reserva efectuada por Portugal à Convenção Europeia de Extradição, ao disposto no art. 1.º da CRP e ao protocolo n.º 13 à CEDH, relativo à abolição da pena de morte, se consta da decisão recorrida que, no caso concreto, não se provam factos que conduzam à conclusão de que o extraditando será sujeito a um processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal respeitador das condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem ou que o cumprimento da respectiva pena ocorrerá em condições desumanas, e além disso, a República da Ucrânia no pedido que efetua presta expressamente a garantia de que nos termos das normas legais internacionais, o extraditando beneficiará de todos os instrumentos de defesa, incluindo advogados, e não será submetido a torturas nem a penas e tratamentos desumanos ou degradantes (artigo 3.º da CEDH) e bem assim afirma que garante que o pedido de extradição não visa a acusação do extraditando por motivos políticos, étnicos, de confissão religiosa, nacionalidade ou opiniões políticas, não existindo assim, razão objetiva alguma para descrer da veracidade ou honestidade intelectual da prestação destas garantias, face à ratificação pela República da Ucrânia da Convenção Europeia de Extradição, imbuída esta como está do respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana, não se verificando este fundamento para denegar a impetrada extradição.

V - Sendo o pedido de extradição fundado na prática de crime comum, grave, de que resultou a morte de uma pessoa, cometido mais de dez anos antes da deflagração do conflito, em Donetsk, na Ucrânia, e não havendo qualquer alegação de que, posteriormente, o recorrente tivesse integrado ou apoiasse qualquer das forças beligerantes de onde pudesse haver um risco acrescido de sofrer maus tratos, o risco do requerente não é maior do que outros casos de extradição para este país.

VI- Improcede o recurso do recorrente quanto à alegada violação da reserva aposta por Portugal à Convenção Europeia de Extradição, constante da al. b) do art. 1.º, do n.º 3 da Resolução da Assembleia da República 23/89, e às demais normas supostamente violadas, bem como, atenta a jurisprudência do TEDH, na interpretação que faz das normas convencionais, não se descortinando fundamento de recusa, por desrespeito às exigências da CEDH, nomeadamente dos seus arts. 3.º (Proibição da tortura) e 6.º (Direito a um processo equitativo), como previsto na al. a) do artigo 6.º da Lei 144/99, de 31-08.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1.   O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa promoveu, ao abrigo do disposto nos artigos 31.º e 50.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto ‒ Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal ‒, o cumprimento do pedido de extradição formulado no âmbito do Processo Criminal n° 08-18307 do Tribunal de ...., do cidadão de nacionalidade ..., AA, nascido a 19 de abril de 1978, em ..., filho de ... e de ..., residente na Rua ..., «pela eventual prática em 14 de Dezembro de 2003, de um crime de ofensas corporais graves, p. e p. pelo art.º 121.º n.º 2 do Código Penal da ..., a que corresponde uma moldura penal abstratamente aplicável de pena de prisão de 7 a 10 anos e para procedimento criminal»[1].

2.  Apresentado o pedido, a Senhora Desembargadora Relatora determinou a notificação do extraditando, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 55.º da Lei n.º 144/99, de 23 de agosto, o qual, em resposta, veio dizer, no essencial, que:

«(…) é um facto público e notório, pelo que não carece de prova, o conflito político-militar, que existe entre a ... e a ..., coadjuvada por forças e milícias separatistas pró-... iniciado em 2014, na sequência da chamada crise da ....

Alias, o pedido de extradição também data de 2014, sendo contemporâneo do referido conflito e o mesmo só terá sido formulado na medida em que, aquando do inerente processo ou procedimento, na República da ... ainda se vivia um período de relativa acalmia e de estabilidade político-militar.

O conflito militar de que se fala, tem gerado vários mortos, em resultado do estado de Guerra que ali se vive, bem como uma grave crise humanitária, levando a evasão das populações para fugirem daquela da guerra. Infelizmente, tal conflito tem preenchido de forma diária ou quase, as edições da Imprensa Internacional.

(…) tal conflito atingiu o seu apogeu precisamente na cidade de ..., onde o requerido, caso seja extraditado, será supostamente julgado.

Sucede que tal contingência não permite assegurar, que o requerido seja julgado condignamente, com respeito da sua dignidade humana, enquanto pessoa que é, ou sequer que será julgado, pois o mais certo é que o requerido seja mobilizado para participar no conflito, integrando as forças militares ucranianas, em vez de ser julgado.

Termos em que, entende o arguido que tal factualidade preenche a reserva, que Portugal fez à Convenção Europeia de Extradição de 1957, ao abrigo do artigo 26.º desta e ainda constante da alínea b) do artigo 1.° do n.° 3 da Resolução da Assembleia da República n.° 23/89, segundo a qual “Portugal não concede a extradição de pessoas: ( … ) b) quando se prove que serão sujeitas a processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal, que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis a salvaguarda dos direitos do homem, ou que cumprirão pena em condições desumanas; ..."

A final, o requerido pede que o pedido de extradição seja indeferido; ou, «no mínimo, (…) [que] as competentes autoridades ... [devem] ser interpeladas para garantirem que, não obstante o conflito militar e a crise humanitária que se vive na cidade de ..., o julgamento terá lugar de acordo com as condições que asseguraram estarem preenchidas aquando da emissão do pedido de extradição».

Face a esta última parte do pedido e perante a não oposição do Ministério Público, foi determinado que fosse oficiado «às autoridades ucranianas, nos precisos termos», o que foi efetuado, em 14 de maio pp, por ofício dirigido ao juiz de direito do «.... District Court ...».

Não tendo sido recebida resposta até 14 de julho de 2015, foi designado o dia 21 de julho, dia de turno da Senhora Desembargadora Relatora, para a conferência, «com dispensa de “vistos”».

3.   Por acórdão datado de 21 de julho, depois de se mencionar que «[o] objeto do processo reconduz-se à verificação dos requisitos do pedido de extradição apresentado pela República da ..., em relação ao cidadão - AA», foi decidida «a recusa do pedido de Extradição solicitado pela República ... – art.º 6.º n.º 1 al.ª [sic] da já referida Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto», além do mais, mas no essencial, porque o conflito político-militar que opõe e que «atingiu o seu apogeu precisamente na cidade de ..., onde o requerido, caso seja extraditado, será supostamente julgado (…) não permite assegurar, que o requerido seja julgado condignamente, com respeito da sua dignidade humana, enquanto pessoa que é, ou sequer que será julgado, pois o mais certo é que o requerido seja mobilizado para participar no conflito, integrando as forças militares ucranianas, em vez de ser julgado» o que «preenche a reserva, que Portugal fez à Convenção Europeia de Extradição de 1957, ao abrigo do artigo 26.º desta e ainda constante da alínea b) do artigo 1.º do n.º 3 da Resolução da Assembleia da República n.º 23/89», nos termos da qual Portugal não concede a extradição de pessoas, «quando se prove que serão sujeitas a processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal, que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis a salvaguarda dos direitos do homem, ou que cumprirão pena em condições desumanas».

4.   Inconformado com a decisão de recusa de extradição, dela recorreu o Ministério Público, suscitando ‒ para além de irregularidades processuais, decorrentes da omissão de diligências, cuja reparação requeria, e incorreções a serem corrigidas ‒, a nulidade do acórdão, por não conter a enumeração dos factos provados e não provados nem a indicação das provas relativas aos factos provados, em violação do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, e a nulidade por omissão de pronúncia, prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por não se ter pronunciado sobre questão que devia apreciar, pedindo, a final, que o acórdão recorrido fosse «declarado nulo e substituído por decisão que ordene as diligências e atos processuais em falta ou, em qualquer caso, se assim não for entendido, ser ordenada a extradição por não estar preenchida a reserva formulada por Portugal ao artigo 1.º da Convenção Europeia de Extradição».

5.   Respondeu o requerido, pedindo que o recurso fosse «julgado não provado e consequentemente improcedente», argumentando, além do mais, que a «concessão do pedido de extradição implicará a entrega do Recorrido, não para ser julgado, mas a uma execução sumária pelas forças russas (ou pró-russas) ou à participação no conflito armado pelas forças ucranianas, em violação da reserva feita por Portugal à Convenção Europeia de Extradição».

6.   Colhidos os vistos e realizada a conferência, foi proferido acórdão, que deu provimento ao recurso, quanto à alegada nulidade, por não discriminação dos factos provados e não provados e não indicação das provas, e declarada a nulidade do acórdão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.os 1, alínea a), e 2, do CPP, e artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, o qual devia ser reformulado no mesmo Tribunal, e conhecendo, oficiosamente, da composição do tribunal e da falta do número de juízes que o devem constituir, foi também declarada a nulidade do acórdão recorrido, nos termos das disposições combinadas dos artigos 3.º e 57.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto; 73.º, alínea d), 56.º, n.º 1, e 74.º, n.º 1, todos da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto; e 12.º, n.os 3, alínea c), e 4, e 119.º, alínea a), ambos do CPP, e determinada a repetição da decisão, por tribunal, em cuja composição intervenham dois juízes adjuntos, não tendo sido conhecido das demais questões suscitadas, por prejudicadas.

7.   Baixado o processo à relação, foi diretamente, por fax, insistido por resposta ao ofício dirigido ao .... District Court ..., a que se alude no final do ponto 2 antecedente; volvidos 30 dias sem nada ter sido recebido, o Ministério Público exarou promoção em que afirma que, tendo sido «ultrapassadas como foi ordenado pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, as duas nulidades, deverá ser proferido novo Acórdão no qual se tenha em consideração a já mencionada situação da Ucrânia e também a jurisprudência dos Acórdãos Soering e Bayasacov cujo teor ajuda a confirmar o sentido da decisão do acórdão deste Tribunal que foi objeto do recurso (…)».

8.   Presentes os autos à Senhora Relatora, foi determinado «Aos “Vistos” e após, à conferência», tendo sido proferido acórdão, em 9 de dezembro de 2015, em que foi decidido, com um voto de vencido, «autorizar a extradição para a República da Ucrânia de ...., que também usa o nome de AA, para procedimento penal pelos indicados factos integradores do crime previsto e punido pelo artigo 121.º, n.º 2, do Código Penal da Ucrânia».

Deste acórdão recorreram o Ministério Público e o requerido.

9.   O Ministério Público, considerando que «[o] Acórdão recorrido não está fundamentado em conformidade com o disposto no artigo 374º nº 2 do CPP e padece da nulidade prevista no artigo 379º n° 1 al a) do CPP», pede que o mesmo seja «declarado nulo (…) devendo ser proferido novo Acórdão que dando como provados os factos que foram dados como não provados em a), b), e c) decida pela não entrega do extraditando uma vez que a ... não chegou sequer a renovar a garantia que lhe foi pedida não tendo sequer respondido.»

10.         O requerido, na motivação de recurso, formulou as seguintes conclusões:

«1.ª O conflito político-militar que se vive, desde 2014, na região de ..., na República da ..., na sequência da chamada crise da ..., não permite assegurar que o Recorrente será julgado condignamente, em respeito pelo valor/princípio da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA garantido pela CRP e por vários instrumentos de Direito Internacional que vinculam Portugal, ou sequer que será julgado.

2.ª O pedido de extradição só se compreende se tivermos presente que ele foi feito antes daquele conflito eclodir ou, no mínimo, antes do mesmo evoluir para uma situação de GUERRA.

3.ª O conflito em causa tem lugar na zona para a qual o arguido será extraditado. Falamos, pois, de GUERRA, cujos efeitos são, designadamente, crises humanitárias, vítimas mortais e fugas de populações, estes dois, aliás, reconhecidos pelo douto Tribunal a quo.

4.ª À questão de saber se a situação político-militar vivida na cidade de Donetsk, nomeadamente o estado de guerra e a grave crise humanitária, preenche a reserva efetuada por Portugal à Convenção Europeia de Extradição, segundo a qual “Portugal não concederá a extradição de pessoas: … b) quando se prove que serão sujeitas a processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem, ou que cumprirão pena em condições desumanas;…”, a resposta deve ser afirmativa.

5.ª A execução do pedido de extradição implicará a entrega do Recorrente, não para ser julgado, mas para uma execução sumária pelas forças independentistas ou para a participação no conflito armado pelas forças ucranianas, em violação da reserva feita por Portugal à Convenção Europeia de Extradição e do valor da dignidade humana.

6.ª Pelo exposto, encontram-se violadas as seguintes normas:

-  Artigo 1.º da CRP, no que tange à proclamação e garantia do valor de dignidade de pessoa humana;

- Artigo 26.º da Convenção Europeia de Extradição de 1957, conjugado com a alínea b) do artigo 1.º do n.º 3 da Resolução da Assembleia da República n.º 23/89, segundo a qual “Portugal não concederá a extradição de pessoas: … b) quando se prove que serão sujeitas a processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem, ou que cumprirão pena em condições desumanas;…”.

- A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no seu Protocolo n.º 13 relativo à abolição da pena de morte;

- O artigo 2.º do Tratado de União Europeia, no segmento em que proclama o valor da dignidade humana;

- O artigo 1.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia;

- A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu Preâmbulo e no seu artigo 1.º».

11.        Na resposta, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta pronuncia-se pela improcedência do recurso interposto pelo requerido/extraditando, e pela confirmação da decisão proferida, no essencial, porque:

«(…) não obstante a previsível volatilidade da situação política na zona de conflito de ..., região em cujo tribunal pende o procedimento criminal instaurado contra o requerido, e das preocupações e recomendações feitas à República da Ucrânia relativas ao efetivo cumprimento dos direitos humanos, com enfoque em tal zona de conflito , constantes no citado Relatório das Nações Unidas , estando o requerido acusado da prática de um crime de delito comum, ocorrido em 2003, e não havendo quaisquer elementos de prova nos presentes autos - sequer alegados pelo requerido, de que o mesmo seja, ou tenha sido, ou possa vir a ser, perseguido por razões de opinião política por qualquer das forças atuantes na zona de conflito de ... (ou étnicos, de confissão religiosa, ou nacionalidade), afigura-se que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa fundamenta com objetividade a valoração positiva que conferiu à garantia oferecida pelas autoridades ucranianas, junta (…) , quanto à submissão do requerido a um julgamento justo, desse modo se valorando "a suficiência e monitorização de tal garantia, em conformidade com os requisitos estabelecidos no art. 3º da CEDH", conforme salientado a fls. 337 do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça».

12.         Respondendo ao recurso do Ministério Público, o recorrido afirmou que «adere integralmente à alegação aduzida pela Digna Procuradora-Geral Adjunta, para a qual remete», sintetizando na conclusão que a «manutenção da decisão recorrida e a execução do pedido de extradição implicará a violação da reserva feita por Portugal à Convenção Europeia de Extradição, segundo a qual “Portugal não concederá a extradição de pessoas: … b) quando se prove que serão sujeitas a processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem, ou que cumprirão pena em condições desumanas;…», pelo que «o recurso interposto pelo MP deve ser julgado procedente por provado e o douto acórdão recorrido substituído por outro que ordene a não execução do pedido de extradição do Requerido (…)».

13.         Recebidos os autos neste Supremo Tribunal e notificado o Ministério Público, atento a existência de posições contraditórias defendidas pelo Ministério Público na 2.ª instância sobre o pedido e a decisão, o Senhor Procurador-Geral Adjunto veio desistir do recurso interposto, desistência que foi verificada com a consequente declaração de extinção da instância (artigos 415º, n.os 1 e 2, do CPP, e 277.º, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do preceituado no artigo 4.º do CPP).

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
14. Constitui jurisprudência assente que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, relativas aos vícios da decisão quanto à matéria de facto, a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP, e às nulidades, a que alude o n.º 3 do mesmo preceito, é pelo teor das conclusões apresentadas pelo recorrente, onde resume as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se define e delimita o objeto do recurso.
No recurso interposto, o requerido alega que a sua extradição para a Ucrânia, com a situação político-militar vivida na cidade de Donetsk, nomeadamente o estado de guerra e a grave crise humanitária existente, sendo que a execução do pedido de extradição não se destina a que seja julgado, «mas para uma execução sumária pelas forças independentistas ou para a participação no conflito armado pelas forças ucranianas (…)», viola a reserva efetuada por Portugal à Convenção Europeia de Extradição, bem como o disposto no artigo 1.º da CRP, o Protocolo n.º 13 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, relativo à abolição da pena de morte, o artigo 2.º do Tratado de União Europeia, no segmento em que proclama o valor da dignidade humana, o artigo 1.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como o Preâmbulo e o artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (Conclusões 1.ª a 6.ª).
Conhecendo.

a. Matéria de facto assente

15.        O acórdão recorrido dá como provada e não provada a seguinte matéria de facto:

«1) Aos 6 de Dezembro de 2003, o investigador superior do Departamento de Investigação Distrital de ... – cidade de ..., Departamento do Ministério da Administração Interna da ..., em peça intitulada de “acusação”, fez constar que apurou o seguinte:

Que existem provas suficientes no processo para deduzir acusação contra ...., nascido a 19 de abril de 1978, por ter cometido um crime nas circunstâncias seguintes:

A 14 de dezembro de 2003, pelas 12h30m, perto do "Holywood leisure center" (centro de entretenimento Holywood) localizado em ..., zona da cidade de ... enciumado, na sequência de uma comunicação da sua mulher com ...., atuou deliberadamente na tentativa de lhe infligir danos corporais, começando a agredir .... Durante a agressão ... desferiu uma série de pancadas com os punhos e os pés na face, cabeça e tronco, com esta ação infligiu deliberadamente danos físicos: escoriações na cavidade periorbital, na fronte do lado direito, ferida na pálpebra superior direita, hemorragias na periórbita de ambos os olhos, fricção no canto inferior do olho direito, hemorragia da mucosa do lábio inferior, hemorragia dos tecidos moles da cabeça, hemorragias subdural e subaracnoide, lesão por esmagamento da substância encefálica, contusões no antebraço direito e articulação do cotovelo, que, segundo o relatório n. 3787 do perito médico legal, de 29 de janeiro de 2004, foram produzidas por objetos oblíquos, algumas horas antes da condução de .... à urgência do hospital. Estas lesões são consideradas como ofensas graves à integridade física e perigo de morte.

Seguidamente AA com.... colocaram o agredido... na viatura "Moskvich-2141" pertencente a .... e conduziram-no a ... no bairro ..., zona da cidade de ... onde o deixaram inconsciente, sentado num banco junto do prédio nº..., tendo chamado telefonicamente uma ambulância

A 14 de dezembro de 2003, pelas 03h20m, ... foi entregue pela equipa da ambulância no Departamento neurocirúrgico 2, do DRCTHM (Serviços de Saúde da Organização de Gestão Clínica Terriorial).

A 16 de dezembro de 2003, ... faleceu no hospital. A morte foi causada pelo traumatismo craniano e pelas hemorragias, esmagamento da massa encefálica e por lesões complexas na face. Existe conexão causal direta entre estas lesões e a causa da morte.

Consequentemente, AA., pela sua atuação deliberada que, manifesta e intencionalmente, causou ofensas corporais graves à vítima, e motivaram a sua morte, cometeu um crime previsto e punido pelo artigo 21, parte 2, do Código Penal da ... (como se afirmou retro, também aqui se trata de um lapso da tradução, pois do demais expediente constata-se que se refere ao artigo 121º, nº 2).

2) O requerido reside em Portugal desde 2004.

3) Tem exercido atividade em Portugal na área da construção civil; Vive com uma companheira, que se encontra desempregada.

4) Na Ucrânia tem uma filha com catorze anos de idade.

5) Desde 2014 ocorre um conflito de natureza político- militar entre forças da República da ... e elementos pró-independentistas na região de ..., que tem provocado várias vítimas mortais, levando à fuga de elementos da população para se subtraírem aos efeitos desse conflito.

Não se provaram os seguintes factos:

a) Que o conflito mencionado em 5) ocorra entre a República da ... e a ... coadjuvada por forças e milícias separatistas pró-....

b) Que o conflito mencionado em 5) tenha provocado uma grave crise humanitária.

c) Que o conflito mencionado em 5) não permite assegurar que o requerido seja julgado condignamente, com respeito da sua dignidade humana.

d) Que o requerido sequer será julgado.

e) Que o mais certo é que o requerido seja mobilizado para participar no conflito, integrando as forças militares ucranianas, em vez de ser julgado.»

O recorrente, apesar de aludir que, «incompreensivelmente» não foi dado como provado que o aludido «conflito político-militar» é uma «grave crise humanitária», não contesta a matéria de facto dada como provada, que assim se dá por assente, não se reconhecendo na decisão recorrida qualquer vício dos elencados no artigo 410, n.º 2, do CPP que deva ser declarado.

b. Enquadramento normativo

16.         O artigo 229.º do CPP, relativo à prevalência dos acordos e convenções internacionais, estabelece, além do mais, que a extradição é regulada pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial, estando inscrito princípio similar no artigo 3.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

Pela extradição para efeitos de procedimento penal ou para cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade um Estado requer a outro a entrega de uma pessoa por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais desse Estado[2].

Inicialmente regulada por acordos particulares entre os Estados, passou posteriormente a ser regulada por leis internas dos países, tendo a Convenção de Extradição do Conselho da Europa de 1957, desempenhado um papel influente na elaboração das leis internas reguladoras da cooperação em matéria penal, e, em particular, da extradição.

17.        Coube ao Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de agosto, na ausência de lei interna sobre a extradição, a primeira definição do regime deste instituto jurídico, quer no seu aspeto substantivo, quer no processual.

O Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de janeiro, tendo presentes os inúmeros trabalhos do Conselho da Europa, da União Europeia e das Nações Unidas sobre as demais formas de cooperação internacional em matéria penal, teve por objetivo, como se menciona no preâmbulo, dotar o país de uma lei interna que regulasse, além da extradição, «as restantes formas de cooperação internacional penal, porquanto as disposições do Código de Processo Penal constituem um reduzido núcleo de regras de aplicação subsidiária relativamente aos tratados e convenções».

O subsequente diploma que regulou a extradição e outras formas de cooperação judiciária internacional em matéria penal e que se encontra em vigor – Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, antes aludida –, não alterou as traves mestras do sistema de cooperação judiciária penal do diploma que revogou, incorporando atualizações decorrentes de necessidades ditadas pela conformação com a revisão constitucional de 1997, dos ensinamentos recebidos da prática havida, e de compromissos internacionais e europeus assumidos.

18.         Não havendo tratado bilateral entre Portugal e a Ucrânia que discipline a extradição entre os dois países – o Acordo entre a República Portuguesa e a Ucrânia no Domínio do Combate à Criminalidade, assinado em Lisboa em 24 de junho de 2008, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 77/2010, de 22 de Julho, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 75/2010, da mesma data, Diário da República, 1.ª série, n.º 141, de 22 de julho de 2010, pp. 2775-2781, expressamente exclui do seu âmbito, no n.º 3 do artigo 2.º, a cooperação judiciária em matéria de extradição ou em matéria penal –,o regime da extradição reger-se-á pela Convenção Europeia de Extradição e a lei nacional antes aludida.

Estabelece o artigo 6.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, relativo aos «Requisitos gerais negativos da cooperação internacional», na alínea a) do n.º 1, que o pedido de cooperação é recusado quando «[o] processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal».

O recorrente invoca na sua argumentação que a decisão recorrida viola a reserva efetuada por Portugal à Convenção Europeia de Extradição[3], o disposto no artigo 1.º da CRP, o Protocolo n.º 13 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, relativo à abolição da pena de morte, o artigo 2.º do Tratado de União Europeia, no segmento em que proclama o valor da dignidade humana, o artigo 1.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como o Preâmbulo e o artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Toda a argumentação do recorrente, impugnando a decisão recorrida, tem subjacente a alegação por si apresentada na oposição ao pedido de extradição (fls 253-255), que foi embebida no voto de vencido da Senhora Desembargadora (fls 378-380), e assente na dignidade da pessoa humana.

O Ministério Público, na resposta, pugna pela improcedência do recurso.

19.         A dignidade da pessoa humana é um princípio inscrito, além do mais, no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual, se «legitima a imposição de deveres especiais» e se «assume como deveres públicos a proteção da pessoa em situações especiais propícias a graves atentados a essa dignidade (refugiados, detidos, deportados, deslocados, (…)»[4].

A Constituição da República, assumindo a dignidade da pessoa humana como valor estruturante da República e fundamento e limite do Estado democrático, permite a extradição de pessoas para outro Estado, observados os parâmetros constitucionais e os termos da lei. A dignidade da pessoa humana enquanto princípio inerente a muitos direitos fundamentais, e vedando, entre outros, a pena de morte, a tortura e tratamentos desumanos ou degradantes, não é incompatível com a extradição de pessoas de um Estado para outro, incompatibilidade que só acontecerá se, por via dela, direitos fundamentais forem violados ilegitimamente.

Nessa medida a invocação da alegada violação do princípio da dignidade da pessoa humana previsto nos diversos instrumentos normativos de direito europeu e internacional que o recorrente elenca, analisa-se na compreensão antes enunciada incorporada na Constituição da República e nas dimensões que o mesmo princípio compreende, e que não seja violado no cumprimento de obrigações internacionais a que Portugal se vinculou.

A conformidade daquele princípio não se analisará em abstrato, mas por referência ao risco de violação de direitos fundamentais em execução do pedido de extradição e tendo em conta os alegados subjacentes à sua violação.

20.       Como se referiu supra, a Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, reclama o respeito pelos direitos humanos, erigindo em fonte de recusa de pedido de extradição, aquela em que o processo não respeite os standards exigidos pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal.

Nesta previsão, atentos os seus termos, não se inclui a alegada violação do Preâmbulo e da Declaração Universal dos Direitos Humanos[5] por não se tratar de instrumento incluído naquela norma, atenta a ausência de ratificação, mas ter-se-ão presentes os valores da Declaração na interpretação e aplicação de outros direitos nacional e internacionalmente reconhecidos.

O recorrente invoca em 1.º lugar a violação da reserva formulada por Portugal à Convenção Europeia de Extradição, nos termos da qual não é concedida extradição de pessoas, «quando se prove que serão sujeitas a processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem, ou que cumprirão a pena em condições desumanas».

21.         O acórdão recorrido, quanto à matéria de facto, deu como provado que «o requerido reside em Portugal desde 2004» (facto n.º 2), e que «desde 2014 ocorre um conflito de natureza político- militar entre forças da República da ... e elementos pró-independentistas na região de ..., que tem provocado várias vítimas mortais, levando à fuga de elementos da população para se subtraírem aos efeitos desse conflito» (facto n.º 5), e deu como não provado que: «o conflito mencionado em 5) ocorra entre a República da ... e a ... coadjuvada por forças e milícias separatistas pró-...» [alínea)], que esse conflito «tenha provocado uma grave crise humanitária» [alínea b)], e que «não permite assegurar que o requerido seja julgado condignamente, com respeito da sua dignidade humana» [alínea c)], tal como não deu como provado que «o requerido sequer será julgado» [alínea d)], ou que, «o mais certo é que o requerido seja mobilizado para participar no conflito, integrando as forças militares ucranianas, em vez de ser julgado» [alínea e)].

Analisando a alegada reserva como fundamento de recusa da extradição, a decisão recorrida afirma: «a factualidade em que o extraditando alicerça a sua oposição à extradição não se provou, bem como não estão provados factos alguns que conduzam à conclusão de que o extraditando será sujeito a um processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal respeitador das condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem ou que o cumprimento da respetiva pena ocorrerá em condições desumanas», além disso, «a República da Ucrânia no pedido que efetua presta expressamente a garantia de que nos termos das normas legais internacionais, ... beneficiará de todos os instrumentos de defesa, incluindo advogados, e não será submetido a torturas nem a penas e tratamentos desumanos ou degradantes (artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades fundamentais, bem como às correspondentes convenções da organização das Nações Unidas, do Conselho da europa e respetivos protocolos) e bem assim afirma que garantimos que o pedido de extradição não visa a acusação desta pessoa por motivos políticos, étnicos, de confissão religiosa, nacionalidade ou opiniões políticas», não existindo assim, «razão objetiva alguma para descrer da veracidade ou honestidade intelectual da prestação destas garantias, até porque “tendo a República da Ucrânia ratificado a Convenção Europeia de Extradição, imbuída esta como está do respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana, é de crer que a justiça daquele país e o seu sistema penitenciário se conformem a princípios estruturantes dos modernos estados democráticos, entre os quais se contam o respeito por aqueles direitos fundamentais, que terão sido sopesados em termos de capacidade de cumprimento e credibilidade na valoração do pedido de adesão por parte do Estado ora requerente, que a ratificou – DR, I Série, n.º 181/97, de 7.8.97” – cfr. Ac. do STJ de 07/01/2009, Proc. N.º 08P4144, disponível em www.dgsi.pt - pelo que também não se verifica este fundamento para denegar a impetrada extradição.»

22.         Para além da firme argumentação da decisão recorrida que não merece censura e repudia, nos próprios termos, o alegado pelo recorrente, nas conclusões 1.ª a 3.ª, dir-se-á, quanto à invocação, por aquele, na conclusão 5.ª, da violação do princípio da dignidade da pessoa humana e da antes mencionada reserva, que a matéria de facto provada não consente tais conclusões, por ter sido dado como não provado que a sua entrega seja para «não ser julgado» ou «para a participação no conflito armado pelas forças ucranianas» ou «para execução sumária», afirmação conclusiva que é feita, pela primeira vez (vd supra, n.º 5), já depois da oposição à extradição, na resposta ao recurso apresentado pelo Ministério Público ao acórdão de 21 de julho de 2015 (conclusão 9.ª) e agora reiterada na conclusão 5.ª da motivação de recurso.

Não assentando as conclusões apresentadas em matéria de facto provada e nessa parte não merecendo censura a decisão recorrida, as afirmações produzidas são especulativas, sem suporte fáctico, tendo sobretudo em conta que o pedido de extradição se funda num grave crime comum, cometido mais de dez anos antes das hostilidades e que não se se prova, nem alega, nem muito menos se descortina, qualquer ligação entre um e outras, e nessa medida a alegada violação do Protocolo n.º 13 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, relativa à abolição da pena de morte, ou qualquer outros dos normativos invocados, não tem consistência nem merece outras considerações.

23.        Afastada a violação da reserva formulada por Portugal à Convenção Europeia de Extradição, impõe-se analisar se ocorre algum fundamento de recusa, especialmente o previsto na alínea a) do artigo 6.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, relativo aos requisitos gerais negativos de cooperação internacional, por o processo não satisfazer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950 (CEDH), ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria.
A CEDH garante a qualquer cidadão relevando da jurisdição dos Estados Membros, nomeadamente, o direito a um processo equitativo (artigo 6.º), e o direito a não ser submetido a torturas nem a penas e tratamentos desumanos e degradantes (artigo 3.º), podendo o Estado Português incorrer em responsabilidade internacional[6], no caso de autorizada a extradição de uma pessoa para um país onde existem razões para acreditar que ela será submetida a um tratamento contrário ao artigo 3.º, porquanto o Estado que extradita expõe o indivíduo a um risco de tratamento contrário ao disposto na referida norma[7].
Nesse sentido, o n.º 2 do artigo 19.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia expressamente consagra que «ninguém pode ser (…) extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes».

24.         O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), como se referiu no anterior acórdão deste Supremo Tribunal proferido nos autos, desde o acórdão Soering c. Reino Unido, de 7 de julho de 1989, considera que os Estados podem incorrer em responsabilidade se decidirem extraditar uma pessoa que corra o risco de ser sujeita a tratamentos desumanos no Estado requerente, jurisprudência que reafirmou posteriormente em muitos outros acórdãos[8], neste domínio devendo ser de ponderar a qualidade da garantia do Estado requerente de que os direitos do extraditando serão respeitados e a confiança que merece a prática seguida pelas autoridades requerentes[9].

Tendo em vista apreciar da existência desse risco, o Tribunal pondera as consequências previsíveis do reenvio do extraditando para o Estado requerente, tendo em vista a situação geral no país e das circunstâncias específicas do requerente, sendo que, quanto às circunstâncias gerais no país, o Tribunal atribui relevância a relatórios recentes oriundos de associações internacionais independentes de defesa dos direitos do homem ou de fontes governamentais, mas sem que se deva entender em si contrária ao mencionado direito a mera possibilidade de abuso resultante de condições instáveis num país, recaindo sobre o requerente o ónus de produzir os elementos de prova suscetíveis de demonstrar que há razões sérias para crer que, se a decisão autorizando a extradição for executada, ele ficará exposto a um risco real de sofrer tratamentos contrários aos previstos no artigo 3.º da Convenção[10].

25.        No caso de o Estado requerente oferecer garantias diplomáticas[11], assegurando o respeito dos direitos humanos relativamente ao extraditando, as mesmas constituem um fator pertinente a que o Tribunal atende, embora possam não ser suficientes para garantir uma proteção satisfatória contra o risco de maus tratos, sendo necessário verificar se as mesmas preveem na sua aplicação prática, uma garantia bastante de que o extraditando se mostra protegido do risco de maus tratos, sendo o valor a atribuir a tais garantias dependente das circunstâncias específicas de cada caso e em cada momento[12].

26.        A extradição do recorrente funda-se na suspeita da prática de um crime comum, de ofensas corporais graves de que resultou a morte da vítima, punível com pena de prisão até 10 anos, nos termos do artigo 121.º, n.º 2, do Código Penal da Ucrânia, com correspondência nos artigos 144.º, alínea d), e 147.º, n.º 1, ambos do Código Penal Português.

O procedimento criminal não se mostra extinto, como decorre da certidão junta aos autos (fls 80) e atento o disposto no artigo 49.º, n.os 1, 3), e 2, do CP da Ucrânia, sendo aceites em Portugal os motivos de interrupção ou de suspensão da prescrição segundo o direito do Estado que formula o pedido, conforme o estatuído no artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto[13].

O acórdão recorrido ponderou as garantias oferecidas pelo Estado requerente, de que «nos termos das normas legais internacionais, ... beneficiará de todos os instrumentos de defesa, incluindo advogados, e não será submetido a torturas nem a penas e tratamentos desumanos ou degradantes (artigo 3 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades fundamentais, bem como às correspondentes convenções da organização das Nações Unidas, do Conselho da europa e respetivos protocolos) e bem assim afirma que garantimos que o pedido de extradição não visa a acusação desta pessoa por motivos políticos, étnicos, de confissão religiosa, nacionalidade ou opiniões políticas», tendo concluído que «não existe razão objetiva alguma para descrer da veracidade ou honestidade intelectual da prestação destas garantias, até porque “tendo a República da ... ratificado a Convenção Europeia de Extradição, imbuída esta como está do respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana, é de crer que a justiça daquele país e o seu sistema penitenciário se conformem a princípios estruturantes dos modernos estados democráticos, entre os quais se contam o respeito por aqueles direitos fundamentais, que terão sido sopesados em termos de capacidade de cumprimento e credibilidade na valoração do pedido de adesão por parte do Estado ora requerente, que a ratificou – DR, I Série, n.º 181/97, de 7.8.97” – cfr. Ac. do STJ de 07/01/2009, Proc. nº 08P4144, disponível em www.dgsi.pt – pelo que também não se verifica este fundamento para denegar a impetrada extradição.»

E apreciando os elementos disponíveis, por um lado a garantia oferecida pela República da ..., e por outro a vinculação deste país à Convenção Europeia de Extradição, imbuída do respeito aos direitos fundamentais, conclui que serão respeitados não só o direito a um processo equitativo, atendendo a que «beneficiará de todos os instrumentos de defesa, incluindo advogados», como também o extraditando não será submetido a tratamentos desumanos ou degradantes.

27.        O recorrente, para além das afirmações genéricas formuladas, de que a execução da extradição não de destina a que o mesmo seja julgado, «mas para uma execução sumária pelas forças independentistas» ou «para a participação no conflito armado pelas forças ucranianas», não indicou qualquer facto ou qualquer meio probatório, para comprovar tais afirmações conclusivas e infirmar o julgado.

O Ministério Público, na resposta ao recurso, sufraga o acórdão recorrido, no sentido de que, «fundamenta com objetividade a valoração positiva que conferiu à garantia oferecida pelas autoridades ucranianas, junta a fls. 84/ 114 (tradução portuguesa), quanto à submissão do requerido a um julgamento justo, desse modo se valorando "a suficiência e monitorização de tal garantia, em conformidade com os requisitos estabelecidos no art. 3.º da CEDH", conforme salientado a fls. 337 do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça», pois «não obstante a previsível volatilidade da situação política na zona de conflito de ..., região em cujo tribunal pende o procedimento criminal instaurado contra o requerido, e das preocupações e recomendações feitas à República da ... relativas ao efetivo cumprimento dos direitos humanos, com enfoque em tal zona de conflito, constantes no (…) Relatório das Nações Unidas [12.º Relatório do Gabinete do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos" baseado no trabalho da "United Nations Human Rights Monitoring Mission in Ukraine"(HRMMU), datado de 9.12.2015, cobrindo o período de 16 Augusto a 15 Novembro 2015”, acessível em ''http://www.ohchr.org/Documentes/Countries/UA/12thReport Ukraine.pdf], o requerido está acusado da prática de um crime de delito comum, ocorrido em 2003, não havendo quaisquer elementos de prova nos presentes autos ‒ sequer alegados pelo requerido ‒, de que o mesmo seja, ou tenha sido, ou possa vir a ser, perseguido por razões de opinião política por qualquer das forças atuantes na zona de conflito de Donetsk (ou étnicos, de confissão religiosa, ou nacionalidade).

28.        Para além das afirmações aduzidas pelo recorrente não terem suporte fáctico, quem alega uma violação deve apresentar um mínimo de prova[14], não bastando referir a existência de um conflito beligerante, pois como o Tribunal Europeu já referiu, incumbe ao extraditando invocar factos suscetíveis de demonstrar que há razões fundadas para acreditar que, sendo autorizada a extradição, será exposto a um risco sério de violação do artigo 3.º da CEDH. Esta conclusão é igualmente válida por referência ao para o direito consagrado no artigo 6.º da CEDH.

Num caso paralelo, apreciado pelo TEDH, envolvendo a extradição de um cidadão defensor da causa Chechena para a Rússia, aquele Tribunal afirmou não poder «deduzir que a situação geral na Rússia, especialmente na Chechénia, seja grave o suficiente para concluir que a extradição de chechenos envolveria em si violação ao disposto no artigo 3.º da Convenção»[15].

Revertendo ao caso concreto, sendo o pedido de extradição fundado na prática de crime comum, grave, de que resultou a morte de uma pessoa, cometido mais de dez anos antes da deflagração do conflito, e não havendo qualquer alegação de que, posteriormente, o recorrente tivesse integrado ou apoiasse qualquer das forças beligerantes de onde pudesse haver um risco acrescido de sofrer maus tratos, o risco do requerente não é maior do que outros casos de extradição para este país.

E da análise da jurisprudência europeia, o TEDH não proferiu até hoje nenhum acórdão em que fosse reconhecida a violação dos direitos consagrados na Convenção Europeia, nomeadamente no seu artigo 3.º, pelo Estado que extradita, por extradição para o leste da Ucrânia.

Do mesmo modo, dos elementos públicos existentes, o TEDH, com recurso ao artigo 39.º do seu Regulamento, relativo a «medidas provisórias», não aplicou, em caso de extradições decretadas para a Ucrânia, qualquer medida provisória, nomeadamente de suspensão da entrega do extraditando ao Estado requerente.

29.         Este Supremo Tribunal de Justiça já teve oportunidade de apreciar situações relativas a pedidos de extradição para a Ucrânia[16], uma delas, com pontos de convergência com o ora em apreciação, onde se alegava a instabilidade política, social e judicial na Ucrânia, evidenciando graves violações dos direitos humanos, e onde se teciam considerações acerca do sistema judiciário ucraniano, bem como a potencial situação de desrespeito do direitos fundamentais do extraditanda, a concretizar-se a extradição, nela se tendo afirmado:

«VII - Resulta do presente pedido que o processo seguiu tramitação normal, esbarrando com a fuga do requerido, enunciando-se a descrição das diligências efetuadas, apresentando a fundamentação da culpa nos meios de prova recolhidos. Como se colhe de acórdãos do STJ proferidos sobre pedidos de extradição, a Ucrânia tem apresentado pedidos de extradição que foram deferidos. Estes dados não podem deixar de significar que o sistema judicial ucraniano funciona.

VIII - O crime pelo qual foi pedida a extradição não tem qualquer conotação com atividade política (trata-se de situação ocorrida de madrugada junto a bares), não se mostrando razoavelmente adequada qualquer suspeita sobre o processo penal por tal crime desrespeitar a CEDH, nem duvidar das garantias prestadas.»

30.         Tudo conjugado improcede o recurso do recorrente quanto à alegada violação da reserva aposta por Portugal à Convenção Europeia de Extradição, constante da alínea b) do artigo 1.º do n.º 3 da Resolução da Assembleia da República n.º 23/89, e às demais normas supostamente violadas, bem como, atenta a jurisprudência do TEDH, na interpretação que faz das normas convencionais, não se descortina fundamento de recusa, por desrespeito às exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, nomeadamente dos seus artigos 3.º (Proibição da tortura) e 6.º (Direito a um processo equitativo), como previsto na alínea a) do artigo 6.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:
a. Julgar improcedente o recurso interposto por AA, que também usa o nome de ..., confirmando o acórdão recorrido, que autorizou a extradição daquele para a República da Ucrânia, para procedimento penal pelos indiciados factos integradores do crime previsto e punido pelo artigo 121.º, n.º 2, do Código Penal da Ucrânia;
b. Não tributar em custas, pela gratuitidade do processo (Artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto).

*

Supremo Tribunal de Justiça, 3 de fevereiro de 2016

(Texto elaborado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)

Os Juízes Conselheiros,

João Silva Miguel

Manuel Augusto de Matos

Pereira Madeira

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[1]     As transcrições respeitam o original, salvo gralhas evidentes e ortografia, sendo a formatação do relator.
[2]     Ver os acórdãos de 30 de maio de 2012, processo n.º 290/11.3YRCBR1.S1, e de 21 de novembro de 2013, processo n.º 87/13.6YREVR.S1.
[3]     A Convenção Europeia de Extradição de 1957, dita «Convenção de Paris», foi aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 22/89, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 51/89, ambos publicados no Diário da República, I Série, n.º 191, de 21 de agosto de 1989, tendo o instrumento de ratificação sido depositado em 25 de janeiro de 1990, sendo o início de vigência relativamente a Portugal em 25 de abril de 1990. Pelo Decreto do Presidente da República n.º 23/90, de 20 de Junho (Diário da República, I Série, n.º 140, de 20 de junho de 1990, p. 2580), são ratificados os dois Protocolos Adicionais àquela Convenção, também aprovados, para ratificação, pela Resolução Assembleia da República n.º 23/89, em 8 de novembro de 1988, produzindo este Decreto efeitos desde a data da entrada em vigor do Decreto do Presidente da República n.º 57/89, de 21 de agosto. Relativamente à Ucrânia, a Convenção, após ratificação e depósito do instrumento de ratificação, entrou em vigor em 9 de agosto de 1998.
[4]     J J Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa — Anotada – Artigos 1.º a 107.º, vol. I, 4.ª edição revista, 2007, Coimbra, Coimbra Editora, anotação IX ao artigo 1.º, pp. 199-200.
[5]     Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na Resolução 217A (III), de 10 de dezembro de 1948, publicada mediante aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, no Diário da República, I Série A, n.º 57/78, de 9 de março de 1978, pp. 488- 493
[6]     Vd o acórdão deste Supremo Tribunal de 7 de janeiro de 2009, processo n.º 08P4144.
[7]     Sobre a questão e para mais detalhes, Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem anotada, Almedina, 5.ª edição Revista e Atualizada, 2015, anotação 3, ao artigo 3.º, p. 102.
[8]     Nomeadamente nos acórdãos de 15 de novembro de 1996, no caso Chahal c. Reino Unido, de 28 de fevereiro de 2008, caso Saadi c. Itália, de 18 de fevereiro de 2010, caso Baysakov e outros c. Ucrânia e de 17 de janeiro de 2012, caso Othman c. Reino Unido, e de 27 de fevereiro de 2014, caso Zarmayev c. Bélgica, todos acessíveis, em francês e inglês, no sítio internet do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em http://hudoc.echr.coe.int/
[9]     Entre outros, os acórdãos de 23 de outubro de 2008, caso Soldatenko c. Ucrânia (§73) e de 18 de fevereiro de 2010, o já citado caso Baysakov e outros c. Ucrânia (§51), e a decisão de 9 de maio de 2006, proferida no caso Abu Salem c. Portugal.
[10]   Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, caso Zarmayev c. Bélgica, §§89-91 e demais acórdãos aí citados.
[11]   As garantias diplomáticas (Assurances diplomatiques, em francês, ou Diplomatic assurances, em inglês) consistem numa garantia escrita concedida pelo Estado requerente, garantindo que a pessoa solicitada não será objeto de violação de direitos humanos, em particular de tortura e tratamentos desumanos ou degradantes. Passaram a ser usadas sobretudo depois do 11 de setembro de 2001, para tornar possível a extradição ou expulsão de pessoas, em regra presumíveis terroristas, para Estados onde ocorre um risco apreciável de violação de direitos Humanos. O Grupo de Especialistas sobre Direitos Humanos e a Luta contra o Terrorismo do Conselho da Europa (DH-S-TER) no seu relatório final sobre garantias diplomáticas (Doc. CM(2006)64, 13-IV-2006, Apêndice 2, § 3, p. 9, disponível na Internet), descreve-as como consistindo em compromissos escritos (nota verbal, memorando de entendimento, etc) e as promessas feitas por meio diplomático, relativas à transferência obrigatória de uma pessoa de um país para outro, que são desenhadas para garantir os direitos fundamentais da pessoa transferida. Organizações de defesa dos direitos humanos, como a Amnistia Internacional, o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas e o Comité das Nações Unidas contra a Tortura são críticas sobre a fiabilidade das garantias diplomáticas quando há violações sistemáticas da proibição da tortura por parte de Estados de destino, nomeadamente em caso de extradição de terroristas. Sobre o assunto ver, Ugur Erdal e Hasan Bakirci, Article 3 de la Convention Européenne des Droits de l’Homme, Collection Guides Juridiques de l’OMCT, vol. I, pp. 124-125, acessível na internet.
      Sobre garantias e o seu valor em direito internacional público, vd o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 384/2005, de 13 de julho de 2005, disponível no sítio do Tribunal Constitucional no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050384.html.
[12]   Neste sentido, os acórdãos do Tribunal Europeu, de 17 de janeiro de 2012, caso Othman (Abu Qatada) c. Reino Unido, §187, e de 27 de fevereiro de 2014, caso Zarmayev c. Bélgica, §92.
[13]   Sobre a delimitação e conteúdo deste regime, vd o acórdão deste Supremo Tribunal, de 3 de maio de 2012, proferido no processo n.º 290/11.3YRCBR1.S1.
[14]   Vd. Ireneu Cabral Barreto, ob. cit,, anotação 4, ao artigo 3.º, p. 104, e jurisprudência citada.
[15]   Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, caso Zarmayev c. Bélgica, §98, adaptando a um caso de extradição uma conclusão retirada de um caso de expulsão, a que se refere o acórdão de 12 de junho de 2012, proferido no caso Bajsultanov c. Áustria, §67.
[16]   Indicando-se, entre os mais recentes, os acórdãos de 24 de março de 2011, processo n.º 523/10.3YRLSB.S1, de 2 de novembro de 2011, processo n.º 736/10.8YRLSB.S1, de 24 de agosto de 2012, processo n.º 136/12.5TRPPTR.P1.S1, e de 8 de agosto de 2014, processo n.º 364/14.9URLSB.S1, em todos eles sendo autorizada a extradição, e os acórdãos de 30 de maio de 2012, processo n.º 290/11.3YRCBR1.S1 e de 21 de maio de 2015, processo n.º 16/13.7YREVR.E1.S3, em nenhum destes a recusando se fundando em insuficiências ou não funcionamento dos sistema de justiça, ou por tratamento desumano ou degradantes, mas sim, no 1.º caso, pela extinção do procedimento criminal, e no último, por «o facto de uma vez extraditada para a Ucrânia não só não ter qualquer apoio familiar naquele território, como ainda o facto de poder vir a ser novamente sujeita a maus tratos e violência doméstica, ou seja, existindo risco para a sua integridade física e psicológica decorrente daquela extradição, o que não constitui uma decorrência normal de uma extradição ou da prática de um crime».