Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
601/2002.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LEITE
Descritores: DIVÓRCIO
EFEITOS PATRIMONIAIS
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
DÍVIDA DE VALOR
ACTUALIZAÇÃO
Data do Acordão: 05/22/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DA A, CONCEDIDA , EM PARTE, A INTERPOSTA PELO R
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ FONTES, MODALIDADES E CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES - DIREITO DA FAMÍLIA/ CASAMENTO (CESSAÇÃO DAS RELAÇÕES PATRIMONIAS ENTRE OS CONJUGES)
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSOS ESPECIAIS
Doutrina: - Antunes Varela, “Das Obrigações em geral”, vol. I, 8ª edição, pág. 875.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 10.º, N.ºS 1 E 2, 473.º, 479.º, 480.º, 550.º, 551.º, 559.º, N.º 1, 804.º, 805.º, N.º 2, AL. B) E 806.º, N.º S 1 E 2, 1688.º, 1689.º, N.º 1, 1788.º, 1789.º, N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 267.º, N.º1, 660.º, N.º2, 661.º, N.º1, 664.º, SEGUNDA PARTE, 713.º, N.º2, 726.º, 1345.º, 1404.º.
Sumário :
I - Com a dissolução do casamento por divórcio, cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges, reportando-se tais efeitos à data da cessação da coabitação dos cônjuges, quando esta seja fixada na respectiva sentença, a tal se seguindo a partilha dos bens do casal, em que impende sobre cada um a obrigação de conferir à massa comum a parte da qual se mostre em dívida para com esta (arts. 1688.º, 1689.º, n.º 1, 1788.º e 1789.º, n.ºs 1 e 2, do CC).
II - Apesar da omissão do legislador sobre a qualificação jurídica da dívida do património próprio de qualquer dos cônjuges à respectiva massa comum, a mesma não pode deixar de ser considerada, não como uma obrigação pecuniária propriamente dita, mas sim como uma dívida de valor.
III - Trata-se de uma dívida que não tem directamente por objecto o dinheiro em si mesmo considerado, mas a prestação correspondente ao valor de certa coisa, constituindo o dinheiro, a repor pelo respectivo devedor, a medida do valor necessário para a liquidação da prestação em dívida, ou seja, o meio de compensação da sua não restituição em espécie, e não o objecto da efectiva obrigação em causa.
IV - Não se enquadrando as dívidas de valor no âmbito das obrigações pecuniárias, as mesmas mostram-se subtraídas ao princípio nominalista constante do estatuído no art. 550.º do CC.
V - Não tendo o legislador contemplado a obrigatoriedade da actualização das dívidas pecuniárias respeitantes a tal compensação – art. 551.º do CC –, o tribunal, na fixação do quantitativo a ressarcir pelo cônjuge/devedor, deve tomar em consideração a depreciação monetária respeitante à aludida compensação, pois, só dessa forma se concederá ao cônjuge lesado uma reparação económica susceptível de o ressarcir do período temporal que mediou entre a cessação dos efeitos patrimoniais decorrentes do divórcio e aquele em que vem a ter lugar a interpelação do devedor para proceder à efectivação da referida compensação.
VI - Não se mostra precludida ao cônjuge/devedor a faculdade de obviar ao sancionamento do enriquecimento, através do recurso ao procedimento processual a que alude o art. 1404.º, n.º 1, do CPC.

Decisão Texto Integral:

                   Acordam no Supremo Tribunal de Justiça   

            I – AA, veio demandar, na comarca de Montemor–O-Velho, BB, em que alegou, que, tendo sido com este casada, e encontrando-se do mesmo separada de facto desde Fevereiro de 1997 e divorciada por decisão judicial de 15/09/2000, com aquele realizou várias aplicações financeiras, bem como depósitos bancários em contas comuns, provenientes dos proventos da actividade comercial por ambos desenvolvida, tendo porém o R, sem o conhecimento da A, procedido ao levantamento, em seu exclusivo proveito, de tais valores pecuniários, enriquecendo assim à sua custa, no que respeita à metade actualizada dos mesmos, desde o seu levantamento até à data da propositura da presente acção.

            Assim, veio peticionar, após correcção, oficiosamente ordenada, da respectiva petição, a condenação do R:

            - A restituir à A a quantia de € 206.822,92, ou aquela que se vier a apurar ulteriormente, correspondente ao exacto montante de metade dos levantamentos efectuados pelo R dos depósitos bancários do casal, no período após a separação de facto;

            - A restituir à A a quantia de € 76.438,26, correspondente a metade dos investimentos de capitalização; e

            - No pagamento da quantia de € 320.480,00, correspondente à actualização das verbas antecedentemente indicadas,

quantitativos estes acrescidos dos respectivos juros de mora desde a citação até integral pagamento.                

            Na contestação que deduziu, o R veio invocar, como questão prejudicial, que os levantamentos de numerário invocados pela A foram efectuados em momento anterior ao da propositura da acção de divórcio,  bem como a prescrição do direito que por aquela vem accionado na presente acção, impugnando, igualmente, os factos pela mesma alegados e pedindo a sua condenação como litigante de má fé, em multa e indemnização não inferior a € 5.000,00.

            Na réplica que apresentou, a A, para além de impugnar as excepções deduzidas pelo R no seu articulado, peticionou a condenação deste como litigante de má fé.

            No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção da prescrição e prejudicada a questão prejudicial suscitada, tendo a matéria de facto, então tida por assente, sido objecto de reclamação por parte da A, a qual foi objecto de acolhimento – fls. 383/384.

            Proferida sentença, a acção foi julgada parcialmente procedente, e, em consequência, o R foi condenado a pagar à A:

- As quantias equivalentes a 11.970,48 USD e 9.607,40 FRF, a converter em função do valor da moeda em curso no país (EURO) em 07 de Novembro de 2003, acrescidas de juros contados desde a citação até efectivo pagamento; e ainda,

- No pagamento à mesma da quantia de € 169.591,28, igualmente acrescida de juros contados desde a citação até efectivo pagamento.

            De tal decisão, a A apelou, tendo a Relação de Coimbra, revogando parcialmente a sentença, condenado o R no pagamento àquela da quantia global de € 217.061,25, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 24/01/2011 sobre € 13.542,41 e desde 06/11/2002 sobre € 203.518,84.

            Inconformados com a decisão proferida pela 2ª instância, A e R vieram da mesma pedir revista, não tendo, porém, sido apresentadas contra alegações por qualquer das partes.

            Colhidos os vistos devidos, cumpre decidir.     

              II – De pertinente para o conhecimento do objecto das revistas interpostas há a considerar a seguinte matéria de facto que foi considerada como assente pela Relação, sem prejuízo, e nos termos do preceituado no art. 713º, n.º 6 do CPC, da remissão para a restante factualidade que aquela instância de recurso teve por provada:

            “A A e o R foram casados durante 18 anos, casamento dissolvido por divórcio em 15/09/2000 – (A).

A A e o R encontravam-se separados de facto desde Fevereiro de 1997 – (B).

            Por acórdão da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 265/1999-C1, respeitante ao incidente de fixação de retroacção dos efeitos do divórcio, foi declarada a retroacção de tais efeitos à data de cessação da coabitação entre os cônjuges, que se fixou em Fevereiro de 1997 – (U).

            O casal realizou investimentos de capitalização através da subscrição:

            - De Capital Divisas USD, no valor de 15.000,00 USD, resgatado a 07 de Novembro de 2003, pelo valor de 23.940,96 USD, e transferido para conta bancária de que o R é titular;

            - De Capital Divisas FRF, no valor de 11.433,68 FRF, resgatado a 07 de Novembro de 2003, pelo valor de 19.214,81 FRF.

- (2º).

            Em 21 de Março de 1995, o R ordenou ao balcão do BES, na Carapinheira, que aplicasse o montante de € 339.182,57 na Societé Bancaire de Paris, na conta n.º 00000, que ficou em seu nome – (6º).

            O R, a partir da data mencionada em (B), passou a utilizar exclusivamente todos os proveitos provenientes das actividades das sociedades e enquanto comerciante em nome individual, bem como dos bens do casal – (8º).

            O R, sem o conhecimento e autorização da A, procedeu ao levantamento da totalidade das quantias depositadas na Societé Bancaire de Paris, na conta n.º 00000, em seu nome – (9º).

            E fez suas todas essas quantias – (11º).                                                         

            Correu termos no tribunal de Montemor-O-Velho, com o n.º 00000, una autos de “Inventário/Partilha de Bens em Casos Especiais” em cujo âmbito se procedeu à patilha dos bens que integravam o património conjugal da A e do R, a qual foi feita de acordo com o mapa de partilha constante de fls. 288/291, homologado por sentença de 09/12/2002, já transitada em julgado, e no qual a ora A, em 21/02/2000,deduziu o incidente de reclamação à relação de bens apresentada pelo R.   

            Por despacho de 28/02/2002, já transitado, foi decidido remeter as partes para os meios comuns quanto à falta de relacionação de bens, entre os quais se incluíam depósitos na Societé Bancaire de Paris.                                                                        

            III – RECURSO DA A 

            A – Das conclusões que apresentou nas suas alegações, revestem relevância para a apreciação da discordância da recorrente relativamente ao decidido pela Relação, as que passam a enunciar-se:

            1 - Os textos, sentidos e funções das normas dos artigos 1689º, n.ºs 1 e 3, 551º, 2029º, n.º 3 e 2109º, n.ºs 1 e 2 do CC, entendidos conjugadamente, favorecem a interpretação  segundo  a  qual  as  compensações devem ser apuradas em função do seu valor actualizado segundo os índices médios dos preços ao consumidor, à data da efectiva partilha, ainda que feita adicionalmente, e após essa data oneradas com juros de mora à taxa legal, e não conforme foi entendido no acórdão recorrido, actualizados com aqueles índices apenas até à data da citação para a acção da partilha adicional e com juros de mora a partir desse momento.

            2 – A interpretação jurídica que salvaguarda funcionalmente a protecção dos interesses cuja regulação é feita nos arts. 1689º, n.º 1 e 3, 551º, 479º, n.º 2, 480º, al. a) e 805º, n.º 3 do CC é da de que, na acção tendente à determinação e partilha de bens, ainda que derivada de obrigações de compensação conjugais, a obrigação legal de valor, só uma vez actualizada na partilha segundo os índices médios anuais dos preços ao consumidor, passa a ser então uma obrigação pecuniária e a vencer juros de mora à taxa legal depois da sentença que decidir a partilha, ainda que feita adicionalmente e não aquele entendimento que foi adoptado no acórdão recorrido.                 

            3 – O acórdão recorrido violou, pois, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos arts. 1689º, n.º 1 e 3, 551º, 479º, n.º 2, 480º, al. a) e 805º, n.º 3, primeira parte, do CC, bem como o princípio da igualdade dos cônjuges consagrado no art. 36º, n.ºs 1 e 3, bem como o princípio da proporcionalidade, na acepção de justa medida, plasmado no art. 18º, n.º 2, os princípios da justiça e da equidade, ínsitos estes no princípio do estado de direito democrático, consagrado no art. 2º, todos estes preceitos da Constituição.

            4 – Os créditos em que o R foi condenado pelo acórdão recorrido devem, assim, ser actualizados em função do índice médio dos preços verificados desde o ano de 2003 (dois primeiros) e desde o ano de 1997 (o último) até à data do acórdão que decida a revista, nos termos do art. 551º do CC, e com juros de mora à taxa legal a partir dessa data, nos termos dos arts. 550º e 805º, n.º 3, primeira parte, do CC.

                      B – Como decorre das transcritas conclusões da recorrente, esta pretende que os quantitativos pecuniários, que na presente partilha adicional decorrente da dissolução, por divórcio, do seu casamento, integram a sua meação no respectivo património comum, sejam objecto de actualização, pelos índices dos preços ao consumidor publicados pelo INE, até à data da prolação do presente acórdão, uma vez que a Relação apenas procedeu à referida actualização até à data da citação efectuada na presente acção.

            Ora, compulsando-se o conteúdo do acórdão recorrido, verifica-se, divergentemente, aliás, do que refere a recorrente, que, no que respeita às quantias relativas ao resgate das aplicações financeiras efectuadas em moeda estrangeira, a sua actualização foi reportada à data da sentença, embora, efectivamente, e quanto ao depósito que foi objecto de levantamento por parte do R, a sua actualização haja sido efectuada até à citação deste – fls. 750/752 dos autos e 9/11 do acórdão.      

            Porém, analisando-se o teor da petição apresentada pela A, verifica-se que da mesma consta no artigo 63º:

            “Assim, deverão actualizar-se as quantias devidas, melhor identificadas nos supra artigos 8º e 41º, pelo réu à autora, desde a data do seu levantamento até à data da propositura da presente acção.”, conteúdo esse que foi integralmente reiterado no articulado corrigido, que por aquela foi ulteriormente apresentado – fls. 10v e 113v -, resultando igualmente dos pedidos pela mesma formulados, nomeadamente do respeitante à condenação do R “no pagamento de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento sobre as quantias referidas em a), b) e c) ”, que a peticionada actualização das referidas quantias deveria ser efectuada nos termos constantes do corpo do referido articulado, acima transcritos.

            Ora, o julgador, na decisão a proferir, e com excepção das questões que sejam de conhecimento oficioso, apenas se pode pronunciar sobre aquelas que tenham sido suscitadas pelas partes nos seus articulados, para tal, recorrendo, como princípio geral,  apenas  aos  factos   nos   mesmos   alegados,  mostrando-se,  de  igual  modo, precludida a possibilidade de proceder à condenação em pedido diverso daquele que tenha constituído o que haja sido formulado pelo autor – arts. 660º, n.º 2, 661º, n.º 1, 664º, segunda parte, 713º, n.º 2 e 726º do CPC.

            Temos, portanto, que os factos constitutivos da impugnação que vem aduzida pela recorrente não constam, como se referiu, quer dos alegados pela mesma nos seus articulados, quer do pedido que deduziu em juízo, pelo que, consequentemente, não pode haver lugar à apreciação da suscitada actualização dos quantitativos pecuniários em que o R foi condenado, reportada à data da publicação do presente acórdão, com a consequente prejudicialidade do argumentativo invocado respeitante às inconstitucionalidades arguidas.

            IV – RECURSO DO R  

            A - Nas conclusões que apresentou, o recorrente vem invocar a sua divergência relativamente à decisão proferida pela Relação, no que respeita à actualização que por esta foi efectuada relativamente aos quantitativos em que o mesmo foi condenado.

            Com efeito, na partilha adicional a que se reportam os autos, está em causa a determinação e entrega, pelo ora recorrente à A, da meação desta em duas aplicações financeiras e num depósito bancário, que, embora constituindo bens comuns do património do casal, os seus respectivos montantes foram objecto de integração pelo R no seu exclusivo património.

                       B - Assim, e no que respeita às aludidas aplicações financeiras, vem provado das instâncias que o seu resgate teve lugar em 07/11/2003 – (2º) -, tendo a Relação procedido à actualização do valor liquidado, desde a data do referido resgate até à da notificação ao R da sentença proferida nos presentes autos, recorrendo, para tal, aos índices médios de preços ao  consumidor, excluindo o da habitação, publicados pelo INE para o referido período de tempo, e usando uma lógica de capitalização mensal de juros compostos – fls. 750/752 dos autos e 9/11 do acórdão.

            Todavia, e como decorre da transcrição antecedentemente efectuada do alegado pela A no art. 63º do seu articulado inicial, esta, no que se reporta às aludidas aplicações financeiras, apenas requereu a sua actualização desde a data do seu levantamento até à da propositura da presente acção, devendo os respectivos juros de mora serem contados a partir da citação.

            Ora, dado que a acção deu entrada em juízo em 01/10/2002 – fls.2 e art. 267º, n.º 1 do CPC -, e o aludido resgate apenas ocorreu, como atrás se referiu, em 07/11/2003, ou seja, cerca de um ano depois do início da demanda, aquele apontado pedido de actualização formulado pela A, no que respeita ao valor liquidado das aludidas aplicações financeiras, não pode manifestamente proceder, pelo seu incontroverso desfasamento com o pressuposto em que assenta, o qual se traduz na anterioridade do invocado resgate relativamente à propositura da acção.

            Porém, e dado que, com a efectivação do referido resgate, ficou determinado, sob o ponto de vista da sua quantificação, o montante pecuniário que constituía o saldo final da subscrição das referidas aplicações financeiras, dessa forma se transformando o crédito até então ilíquido respeitante a Capital Divisas USD no valor de 15.000,00 USD e de Capital Divisas FRF no valor de 11.433,68 FRF, no crédito líquido de 23.940,96 USD e de 19.214,81 FRF, respectivamente, a partir daquela data teve lugar a constituição do R em mora relativamente à meação de que, em relação ao mesmo, a A era titular – art. 805º, n.º 3, primeira parte, do CC -, meação essa que, de acordo com a conversão efectuada pela Relação ascende a € 11.833,47, cálculo este cuja respectiva determinação não vem posta em crise pelo recorrente nas suas conclusões, nas quais, aliás, sustenta a ocorrência da sua constituição em mora quanto ao mesmo, nos termos supra indicados – conclusão 20.       

            C - Como, também, atrás se referiu, o recorrente questionou, igualmente, a actualização, por parte da Relação, do depósito bancário por si efectuado como único titular, na Societé Bancaire de Paris, no valor € 339.182,57, já que, não estando em causa uma obrigação valutária, vigora o princípio nominalista, e, dessa forma, a meação da A respeitante ao mesmo, deverá corresponder exclusivamente a metade daquele quantitativo - € 169.591,28 -, acrescida de juros de mora desde a citação.

            Assim, e quanto a tal questão, a 1ª instância considerou, que às compensações devidas pelo património comum ao património próprio de qualquer dos cônjuges, dada a falta de regra específica relativa à sua qualificação como dívidas de valor, seria aplicável o princípio nominalista previsto no art. 550º do CC, tese esta que corresponde, aliás, à que ora vem subscrita pelo recorrente.

Por seu turno, a Relação, fazendo apego ao instituto do enriquecimento sem causa, em que aduziu, para tal, que, “sendo o fundamento da obrigação imposta ao R. o de evitar o seu enriquecimento à custa do património comum (em que a A. obviamente participa), é apodítico que o mesmo só é alcançado através da adstrição daquele ao pagamento da medida desse enriquecimento, medida que não pode coincidir com a mera representação aritmética da moeda ao tempo dos movimentos efectuados”, concluiu “que o R. e ora apelado tem de restituir à A. o valor efectivo daquilo que desviou do património comum, havendo que calcular tal valor para que o equilíbrio entre as várias massas patrimoniais conviventes seja restabelecido”, pelo que, tendo em linha de consideração que o “benefício ilegítimamente auferido pelo R com o levantamento de valores comuns prolongou-se ao longo do inventário e mesmo depois dele”, dado que “o R., não obstante o encerramento da partilha, permaneceu na fruição exclusiva dos dinheiros comuns, privando a A. do respectivo poder aquisitivo desde essa apropriação, sendo, por isso, justo que esse poder aquisitivo perdido, como medida do empobrecimento da A., seja integralmente reposto até à citação do R. para a presente acção”, decidiu “como a opção mais razoável, a de tomar  a  data  da  citação  do  R. para os termos da presente acção (6/11/2002) como aquela em que se deve ter por fixado o valor da sua obrigação, por analogia com o disposto nos art.ºs 479º, nº 2 e 480º, alínea a) do CC”, procedendo assim à actualização, a partir da cessação da coabitação entre A e R, e com recurso aos índices médios de preços ao consumidor, excluindo o da habitação, com a capitalização mensal de juros compostos, do quantitativo àquela devido, montante esse acrescido dos respectivos juros legais, contados a partir da data da citação.

            Com efeito, com a dissolução do casamento por divórcio cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges, reportando-se tais efeitos à data da cessação da coabitação dos cônjuges, quando esta seja fixada na respectiva sentença, a tal se seguindo, e como passo necessariamente subsequente e imediato, a partilha dos bens do casal, em que impende sobre cada um dos mesmos a obrigação de conferir à massa comum a parte da qual se mostre em dívida para com esta – arts. 1688º, 1689º, n.º 1, 1788º e 1789º, n.ºs 1 e 2 do CC.

            Ora, apesar da omissão do legislador sobre a qualificação jurídica da dívida do património próprio de qualquer dos cônjuges à respectiva massa comum, parece que a mesma não pode deixar de ser considerada, não como uma obrigação pecuniária propriamente dita, mas sim como uma dívida de valor, ou seja, uma dívida que não tem directamente por objecto o dinheiro em si mesmo considerado, mas a prestação correspondente ao valor de certa coisa, constituindo portanto o dinheiro a repor pelo respectivo devedor, a medida do valor necessário para a liquidação da prestação em dívida, ou seja, o meio de compensação da sua não restituição em espécie, e não o objecto da efectiva obrigação em causa – “Das Obrigações em geral” do Prof. Antunes Varela, vol. I, 8ª edição, pág. 875 -, já que a aludida compensação pecuniária tem em vista a recomposição dos bens que integram o património comum do dissolvido casal e não qualquer montante com diversa natureza devido ao referido património.     

            E não se enquadrando as dívidas de valor, na esteira do antecedentemente explanado, no âmbito das obrigações pecuniárias, as mesmas mostram-se subtraídas ao princípio nominalista constante do estatuído no art. 550º do CC, pelo que, não tendo, porém, o legislador contemplado a obrigatoriedade da actualização das dívidas pecuniárias respeitantes a tal compensação – art. 551º do CC -, como ocorre, v.g., relativamente  à  obrigação  de  alimentos  (art. 2012º),  às  doações  em  dinheiro (art. 2109º, n.º 3) ou às tornas, não satisfeitas, devidas em dinheiro na partilha em vida (art. 2029º, n.º 3), não sofre, todavia, e em nosso entender, qualquer dúvida, que o tribunal, na fixação do quantitativo a ressarcir pelo cônjuge/devedor, deve tomar em consideração a depreciação monetária respeitante à aludida compensação, pois, só dessa forma se concederá ao cônjuge lesado uma reparação económica susceptível de o ressarcir do período temporal que medeou entre a cessação dos efeitos patrimoniais decorrentes do divórcio e aquele em que vem a ter lugar a interpelação do devedor para proceder à efectivação da referida compensação, uma vez que, durante o decurso de tal espaço temporal, sempre assistiu àquele último a livre disponibilidade do aludido montante pecuniário, com a inerente faculdade de do mesmo dispor e de daí obter os consequentes proventos económicos, nomeadamente os resultantes da subscrição de quaisquer instrumentos financeiros relativos à aplicação de capitais – arts. 473º, 479º e 480º do CC -, não se mostrando, por outro lado, precludida ao cônjuge/devedor a faculdade de obviar ao sancionamento do apontado enriquecimento, através do recurso ao procedimento processual a que alude o art. 1404º, n.º 1 do CPC.

            Transpondo o explanado para a situação em causa nos autos, constata-se que, por acórdão da Relação de Coimbra, já definitivamente transitado em julgado, foi fixada em Fevereiro de 1997 a cessação da coabitação entre A e R, não vindo, porém, provada nos autos a data em que foi apresentada, por parte daquele último, na sua qualidade de cabeça de casal, como cônjuge mais velho – art. 1404º, n.º 2 do CPC -, a respectiva relação de bens, pelo que, devendo a conferência das dívidas dos cônjuges ao património comum ter lugar na referida fase processual do inventário - arts. 1345º, n.º 1 e 1404º, n.º 3 do CPC -, a relacionação da dívida do R ao património comum do casal deverá ser efectuada pelo seu montante actualizado à referida data, actualização esta para a qual, e fazendo apego à analogia com as situações directamente contempladas no citado art. 511º da codificação substantiva civil – art. 10º, n.ºs 1 e 2 do CC -, se deverá lançar mão dos índices dos preços ao consumidor, com exclusão da habitação, publicados pelo INE.

            Por outro lado, atenta a referida imposição legal respeitante à relacionação da dívida em causa,  a  omissão  cometida pelo ora recorrente deverá ter,  como directa e imediata consequência, a sua constituição em mora a partir da data da prática daquela apontada ocorrência, com a consequente obrigação de indemnização da A, traduzida nos juros legais devidos, desde aquela aludida data até integral pagamento do quantitativo em dívida – arts. 559º, n.º 1, 804º, 805º, n.º 2, al. b) e 806º, n.º s 1 e 2 do CC.                    

            V – Perante o que vem de expor-se, vai negada a revista da A e concedida, em parte, a interposta pelo R, e, em consequência, alterando-se o decidido pela Relação, condena-se este último a pagar àquela a quantia de € 11.833,47 (onze mil oitocentos e trinta e três euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora desde 07/11/2003 e até integral pagamento, calculados à taxa legal, bem como no pagamento da quantia de € 169.591,28 (cento e sessenta e nove mil quinhentos e noventa e um euros e vinte e oito cêntimos), actualizada, de acordo com os índices dos preços ao consumidor, com exclusão da habitação, publicados pelo INE, desde Fevereiro de 1997 até à data da apresentação da relação de bens no processo de inventário n.º 00000 do tribunal judicial de Montemor-O-Velho, incidindo, sobre o referido montante actualizado, e desde aquela última indicada data até ao seu integral pagamento, os respectivos juros de mora, calculados à taxa legal.    

            Custas nas instâncias e neste Supremo na proporção dos respectivos vencimentos e decaimentos, nestes se incluindo as respeitantes à revista interposta pela A.

 Lisboa, 22 de Maio de 2012                     

                              
Sousa Leite (Relator)
Salreta Pereira
João Camilo