Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10/20.1SVLSB.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ISABEL SÃO MARCOS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
PENA DE PRISÃO
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO O RECURSO IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - No âmbito da moldura penal abstracta do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos arts. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22-01, 75.º e 76.º, do CP (situada entre cinco e quatro meses e doze anos de prisão), a pena de 6 (seis) anos de prisão, revelando-se proporcional à culpa do arguido, adequada a garantir a protecção do bem jurídico tutelado pela norma violada e a não comprometer a sua reintegração social, cumpre satisfatoriamente as finalidades da punição.
II - E isto considerando, a par das condições pessoais do arguido, o elevado grau de ilicitude de que se reveste o facto típico, a culpa concreta e o intenso dolo directo com que actuou e bem assim a acentuada exigibilidade de que se revestem as necessidades de prevenção geral e sobretudo especial, tendo em vista a preocupante predisposição que o mesmo, imune às condenações já sofridas, manifesta possuir par a prática de crimes dolosos, designadamente de tráfico de estupefacientes, mas não só.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 10/20.1SVLSB.S1

5.ª Secção

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I. Relatório

1.

No Tribunal Judicial da Comarca ……, Juízo Central Criminal ….. - Juiz ….., e no âmbito do Processo n.º 10/20……., o arguido AA foi julgado e, a final, condenado, no que ora releva, pela prática:

A - Em autoria material e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, número 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, por referência à tabela I-A anexa e artigos 75.º e 76.º do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos prisão.

B - Em autoria material, de uma contra-ordenação de violação da obrigação de parar, prevista e punida pelos artigos 4.º, número 3, por referência ao disposto nos artigos 146.º alínea l), 147.º e 148.º número 1, alínea b), do Código da Estrada, na coima de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).

C - Em autoria material, de uma contra-ordenação de circulação em veículo automóvel em sentido proibido, prevista e punida pelo artigo 13.º, número 5, por referência ao disposto nos artigos 145.º, número 1, alínea a), 147.º e 148.º número 1, alínea a), do Código da Estrada, na coima de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros).

D - Em cúmulo jurídico das coimas aplicadas, na coima única de € 900,00 (novecentos euros).

2.

Inconformado com esta decisão, o arguido AA interpôs recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo da motivação apresentada extraído as seguintes conclusões[1]:

“1ª - Dos factos provados resulta que:

a) O arguido foi um “mero” transportador de droga, pertença de outrem, durante um curto trajecto, mediante a promessa da parca contrapartida monetária € 200,00, sendo que na prática apena recebeu € 100;

b) Reconhece que agiu mal, encontra-se profundamente arrependido de ter acedido em transportar o produto e tem plena consciência dos efeitos nefastos da droga;

c) Usufruía de inserção sócio familiar e profissional;

2ª - A que acresce que, no caso dos transportadores, segundo a jurisprudência, o que deve ser valorado, não é a quantidade de droga transportada, mas a contrapartida económica efectivamente auferida pelo transportador, in casu, apenas € 100.

3ª – Ora, sendo certo que se encontram preenchidos os pressupostos da reincidência, o facto é que a moldura penal abstracta já sofre um incremento considerável no seu limite mínimo, pelo que a pena concreta deveria ter sido mais baixa.

4ª - Efectivamente, em face de todas as atenuantes supra mencionadas, em particular o facto de nos encontrarmos ante um “simples” transportador que recebeu uma módica quantia pelo transporte, correta e ponderadamente apreciadas tais atenuantes, e bem assim as exigências de prevenção, à luz e atentos os critérios referidos nos artºs 70.º e 71.º do CP deverá conduzir à aplicação, pelo crime de tráfico de estupefacientes, em detrimento da pena de 6 (seis) anos de prisão, que lhe foi aplicada deverá ser condenado na pena de 5 anos e 6 (seis) meses de prisão.

5ª - A decisão recorrida violou o disposto nos artºs 70.º e 71.º, ambos do Código Penal”.

3.

Notificado do motivado e assim concluído pelo arguido, respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido, que concluiu assim:

“A) O objecto do presente recurso, assenta na discordância do recorrente relativamente à medida da pena fixada, em 6 (seis) anos de prisão.

B) Por acórdão proferido nos presentes autos, o Recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p no art.º 21.º/1 do D.L 15/93 de 22.1, com referência à Tabela 1-A Anexa, na pena de seis anos de prisão.

C) O Recorrente alega que o Colectivo não valorou as atenuantes de caracter geral previstas no art.º 71.º n.º 2 do C. Penal, designadamente a confissão, o arrependimento, a inserção familiar e profissional; a modalidade de execução do crime, mero transporte no veículo a troco de 200,00, sendo o trajecto efectuado curto.

D) Sustenta que a pena aplicada, tendo em consideração a reincidência não devia ter ultrapassado os 5 anos e 6 meses de prisão.

E) Ora, na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal valorou a confissão do Recorrente, o grau de ilicitude do facto que considerou elevado, atenta a qualidade e quantidade da heroína apreendida, a intensidade do dolo, directo, os seus antecedentes criminais e a inserção familiar e profissional.

F) Ponderou as exigências de prevenção geral e especial, considerando- as de grau equivalente.

G) Assim, na moldura penal decorrente da reincidência – art.º 76.º do C. Penal – a pena de 6 anos de prisão fixada mostra-se adequada e proporcional, face às exigências de prevenção presentes, não excedendo a culpa do Recorrente.

H) O colectivo observou o disposto nos artºs. 40.º, 70.º, 71.º n.º 2, 75.º e 76.º, todos do C. Penal”.

4.

Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-Geral-Adjunta na oportunidade conferida pelo artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu fundamentado parecer em que, subscrevendo no mais a resposta apresentada pela Senhora Magistrada do Ministério Público na 1ª Instância, considerou, em síntese, que “atendendo ao percurso de vida do recorrente AA, ao seu grau de culpabilidade (aferido pela natureza do crime por si praticado), às elevadas exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, e à moldura penal aplicável - pena de prisão de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses a 12 (doze) anos - …. a pena de 6 (seis) anos de prisão que lhe foi aplicada mostra-se justa, adequada e proporcional”.

5.

Notificado, nos termos do artigo 417.º, número 2, do Código de Processo Penal, o arguido AA reiterou a posição assumida.

6.

Por não ter sido requerida a realização de audiência (número 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal), com projecto de acórdão os autos seguiram para a conferência [artigo 419.º, número 3, alínea c), do Código de Processo Penal], de onde foi tirado o presente acórdão.

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II. Dos Fundamentos

II.1 – De Facto

A matéria de facto dada como assente pelo tribunal recorrido é a seguinte:

“1. No dia 04/02/2020, pelas 12 horas e 20 minutos, o arguido AA circulava ao volante do veículo automóvel, com a matrícula …-XF-…, na Avenida ….., na ….., …….

2. Nas apontadas circunstâncias um veículo automóvel da Polícia de Segurança Pública, descaracterizado, decidiu abordar o arguido.

3. Assim, os elementos da Polícia de Segurança Pública ligaram os sinais sonoros e luminosos do seu veículo automóvel e deram ordem de paragem ao arguido, identificando-se como polícias.

4. O arguido não acatou a referida ordem e acelerou, dirigiu-se à Rua ….. e, seguidamente, seguiu em sentido proibido pela Rua …...

5. O arguido foi perseguido pelo veículo automóvel da Polícia de Segurança Pública, que mantinha os dispositivos rotativos ligados.

6. O arguido continuou a sua marcha, seguindo em sentido contrário pela Avenida …, ainda no município …….

7. O arguido foi interceptado pela Polícia de Segurança Pública na Avenida …., em …..

8. O arguido tinha consigo, na bagageira do sobredito veículo automóvel, duas embalagens que continham heroína, com o peso líquido de 997,400 g e quinze embalagens, que continham uma mistura de paracetamol e cafeína.

9. O arguido tinha também consigo a quantia de € 185,00.

10. Na mesma data, pelas 15 horas, o arguido tinha no interior da sua residência, sita na Rua …., em ..….., a quantia de € 1350,00.

11. A referida mistura de paracetamol e cafeína serve para cortar produtos estupefacientes.

12. A quantia de € 100,00 foi entregue ao arguido em troca do transporte do produto estupefaciente.

13. O arguido tem carta de condução para os veículos das categorias B e B1.

14. Esse título foi emitido em 17/04/2019.

15. O arguido agiu com o propósito concretizado de ter consigo o mencionado produto estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conhecia.

16. O arguido actuou também com o desígnio conseguido de circular aos comandos do apontado veículo automóvel e de não acatar o sinal de paragem realizado pela Polícia de Segurança Pública, sabendo que essa ordem era emanada de elementos policiais e que era obrigado a fazê-lo.

17. O arguido agiu igualmente com o fito conseguido de circular ao volante do referido veículo automóvel no sentido contrário ao legalmente existente no local, ciente de que esse comportamento lhe estava legalmente vedado.

18. O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Da contestação

19. Foi proposto ao arguido que realizasse o transporte do produto estupefaciente pelo que receberia a contrapartida de € 200,00.

20. Reconhece que agiu mal, encontra-se profundamente arrependido de ter acedido em transportar o produto, tendo plena consciência dos efeitos nefastos da droga.

Factualidade relativa à inserção familiar, socioprofissional e antecedentes criminais do arguido.

21. O arguido é natural …., onde cresceu inserido numa família de fracos recursos económicos - o pai era …… e a mãe ……..

22. É o elemento mais velho de uma fratria de quarto irmãos, inserido numa dinâmica familiar harmoniosa e coesa.

23. Iniciou a escolaridade obrigatória em idade regular, concluindo no país de origem o quarto ano de escolaridade, após o que se dedicado à actividade profissional na área da ...........

24. Em 1998, com vinte e três anos de idade, emigrou para Portugal, com o objectivo de obter melhores condições de vida, tendo à data sido acompanhado pela namorada e actual esposa, que tinha familiares a residir em Portugal (a esposa já tinha nacionalidade portuguesa apesar de à data estar a viver em …..), fixando residência na zona …., onde permaneceram com excepção de uma fase em que viveram …….

25. Em Portugal manteve sempre trabalhos instáveis e precários na….., como…….

26. Sendo esta a terceira vez que está preso, os seus primeiros contactos com o sistema judicial reportam-se ao ano de 2001, tendo sido colocado em liberdade em 2006.

27. Em 2011 voltou a ser preso e cumpriu um somatório de penas de dez anos e seis meses de prisão, tendo saído em liberdade condicional.

28. À data da prisão, o arguido encontrava-se em liberdade condicional desde 26/04/2018, tendo o seu termo previsto para 09/08/2021.

29. Residia com a esposa e os dois filhos do casal, de vinte e um e vinte anos de idade, numa habitação na morada anteriormente indicada, cuja renda era no valor de € 350,00.

30. A esposa trabalhava numa empresa ….. auferindo cerca de € 700,00/mês de vencimento, empresa onde o arguido se encontrava a trabalhar há um mês, na realização de três horas diárias (das 6 horas às 9 horas) e ganhava € 220,00/mês.

31. Tinha como perspectiva começar a trabalhar a tempo inteiro na mesma empresa, "V......".

32. Antes desta actividade laboral, e logo após a sua saída em liberdade, o arguido trabalhou em regime de biscates na ……, durante mês trabalhou num .......... e alguns meses (cerca de sete meses) numa empresa .........., "S......", das (6 horas às 14 horas) auferindo o vencimento de aproximadamente € 500,00.

33. Na sequência da falência desta empresa, e depois de angariar a habilitação legal para a condução de veículos automóveis em Abril de 2019, o arguido não aceitou outras propostas laborais de empresas .........., por não ser compensatório em termos remuneratórios face as despesas com a deslocação e o número de horas a realizar, ficando então inactivo.

34. Entretanto, viajou para …, em Junho de 2019, para visitar os progenitores uma vez que a progenitora havia sofrido um …….

35. Quando regressou a Portugal, um mês depois, voltou a trabalhar na .......... para um familiar, contudo, e devido a problemas de saúde, (lombalgias, febre e vómitos) esta actividade foi realizada de forma intermitente e irregular.

36. O filho mais novo era trabalhador/estudante - frequentava o estágio de um curso profissional e aos fins de semana trabalhava numa loja …….., recebendo cerca de € 300,00 de vencimento mensal.

37. O filho mais velho trabalhava num ……., sendo que desde o início da pandemia, está desempregado e aufere o subsidio de desemprego no valor de € 400,00/mês.

38. Neste contexto, a situação económica era estável e suficiente face às necessidades do agregado.

39. Porém e depois de viajar para ….. o arguido começou a manifestar grande preocupação com a situação económica dos progenitores em ……, dado que a progenitora está acamada e o progenitor é reformado.

40. Por outro lado, considera-se o único elemento da família que tinha condições para ajudar os progenitores, não obstante em …. residirem os seus três irmãos, dois dos quais, foram extraditados de Portugal para o país de origem e a irmã tem a seu cargo os seus filhos.

41. No estabelecimento prisional, o arguido tem mantido um comportamento adequado às normas e encontra-se a trabalhar na …….  do estabelecimento há dois meses.

42. Recebe a visita regular da esposa e dos dois filhos, os quais lhe prestam todo o apoio afectivo e logístico, mas que não entendem como o arguido voltou a ser preso.

43. O arguido tem o seguinte registo criminal:

- por acórdão de 03/12/2002, transitado em julgado a 03/01/2003, proferido no âmbito do processo 262/01….. do ….. Juízo do Tribunal Judicial da comarca  ….., foi condenado na pena de 8 anos de prisão e 150 dias de multa pela prática de 1 crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, 22/01 e de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p., no artigo 3.º n.º 1 e n.º 2 da Lei n.º 2/98, de 03/01, por factos ocorridos a 09/05/2001;

- por despacho de 14/01/2010, transitado em julgado a 14/01/2010, proferido no âmbito do processo 1144/03…… do …... Juízo de Execução de Penas  ….., foi concedida a liberdade condicional a 24/10/2006 e convertida em liberdade definitiva a partir de 20/08/2009 com referência à pena imposta no âmbito do processo 262/01…..;

- por acórdão de 20/12/2004, transitado em julgado a 28/02/2005, proferido no âmbito do processo 77/00…… do ….. Juízo do Tribunal Judicial da comarca  ….., foi condenado na pena de 120 dias de multa pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p., no artigo 3.º n.º 1 e n.º 2 da Lei n.º 2/98, de 03/01, por factos ocorridos a 28/04/1999;

- por sentença de 20/12/2007, transitada em julgado a 22/01/2008, proferida no âmbito do processo 434/07…… do …... Juízo Criminal  ….., foi condenado na pena de 190 dias de multa pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p., no artigo 3.º n.º 1 e n.º 2 da Lei n.º 2/98, de 03/01, por factos ocorridos a 19/07/2007;

- por sentença de 20/10/2008, transitada em julgado a 19/11/2008, proferida no âmbito do processo 298/08…… do Tribunal Judicial da comarca ….., foi condenado na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, por factos ocorridos a 10/10/2008;

- por sentença de 10/12/2009, transitada em julgado a 04/01/2010, proferida no âmbito do processo 155/09…. do …... Juízo Criminal ….., foi condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p, no artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23/02, por factos ocorridos a 23/11/2009;

- por despacho de 21/01/2003, transitado em julgado a 18/02/2013, proferido no âmbito do processo 155/09…… do ……. Juízo Criminal ..…., foi revogada a suspensão da execução da pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

- por sentença de 03/03/2011, transitada em julgado a 02/11/2011, proferida no âmbito do processo 1678/10……. do Juízo de Pequena Instância Criminal ….. do Tribunal Judicial da comarca

….., foi condenado na pena de 18 meses de prisão, pela prática de 1 crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p., no artigo 347.º do Código Penal, por factos ocorridos a 07/12/2010;

- por acórdão de 22/07/2011, transitado em julgado a 06/10/2012, proferido no âmbito do processo 130/11….. do …. Juízo do Tribunal Judicial da comarca ….., foi condenado na pena de 8 anos de prisão, pela prática de 1 crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, 22/01, por factos ocorridos a 11/02/2011;

- por acórdão cumulatório de 17/11/2014, transitado em julgado a 29/12/2014, proferido no âmbito do processo 130/11…… do …... Juízo do Tribunal Judicial da comarca ….., foi condenado na pena única de 9 anos de prisão, em cúmulo jurídico das penas aplicadas neste processo e no processo 1678/10…….;

- por despacho de 26/04/2018, transitado em julgado a 26/04/2018, proferido no âmbito do processo 713/13…. do …... Juízo do Tribunal de Execução das Penas .….. foi concedida liberdade condicional até 09/08/2021.

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II.2 – De Direito  

2.1           

Face à motivação e às conclusões formuladas pelo recorrente [e que, salvo as de conhecimento oficioso, são as que definem e delimitam, como se sabe, o objecto do recurso (número 1 do artigo 412.º do Código de Processo Penal)], constata-se que a única questão que nelas se coloca é a concernente à medida judicial da pena parcelar  de 6 (seis) anos de prisão em que, como reincidente, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos  21.º, número 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, por referência à tabela I-A anexa, 75.º e 76.º do Código Penal.

Pena parcelar de 6 (seis) anos de prisão que, considerando excessiva, o recorrente entende dever ser fixada em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, atendendo ao condicionalismo que depõe em seu benefício, designadamente o atinente às circunstâncias de “mediante promessa da parca contrapartida monetária de € 200,00” de que recebeu € 100,00, ter agido como “mero transportador”, entre o mais, da Heroína, pertencente a outrem, com  o peso líquido de 997,400 gramas, que tinha em seu poder na ocasião em que foi detido, e bem assim de se encontrar arrependido e de estar social, familiar e profissionalmente inserido. 

Apuremos então da razão (ou falta dela) do recorrente.

2. 2 - Da Pena

2.2.1

Como se sabe, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade são, como bem decorre do disposto no 40.º, número 1 do Código Penal, os fins visados pelas penas que, servindo finalidades exclusivas de prevenção geral e especial, têm por escopo, com a prevenção geral positiva ou de integração assegurar a tutela dos bens jurídicos, o que vale por dizer a confiança dos cidadãos na validade da norma jurídica e restabelecer a paz jurídica afectada com a prática do crime, e com a prevenção especial ressocializar o agente, o que vale por dizer prepará-lo para no futuro não cometer outros crimes.

O que significa que a reintegração do agente na sociedade, fornecendo uma outra vertente de prevenção, aqui de prevenção especial ou de socialização, que tem a ver com razões de política criminal, assenta no objectivo de fazer reinserir o delinquente na sociedade, no sentido de evitar que ele cometa novos crimes, isto é que ele respeite os valores jurídicos tutelados pela lei penal, e já não no sentido de obter a sua regeneração. 

Assim, se uma e outra das aludidas finalidades (a tutela dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade) prosseguidas com a aplicação das penas e das medidas de segurança concorrem para um único objectivo, que mais não é que o de evitar a lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos, consubstanciado na prática de crimes definidos nos respectivos tipos legais, verdade resulta que a função de cada qual é, porém, delimitada por exigências próprias, de sorte que à primeira sempre cabe a primazia de, no quadro de valores traçado pela moderna política criminal, transposto para o artigo 40.º do Código Penal, definir a medida da tutela dos bens jurídicos.

Medida da tutela dos bens jurídicos que, sendo referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo, ainda suportável pela necessidade comunitária de reafirmar a validade da norma jurídica violada com a prática do crime, tem como consequência que, como refere Figueiredo Dias[2], é entre esses dois limites, máximo e mínimo que, devem satisfazer-se as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, incumbindo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade.

E se é verdade que, como estabelece o artigo 71.º, número 1, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, igualmente certo é também que as circunstâncias referidas no número 2 do citado preceito são, para além de outras, todas as que, não tendo já sido valoradas no tipo legal de crime, importa levar em linha de conta na fixação concreta da pena, no âmbito da submoldura definida pelas exigências de prevenção geral e limitadas no seu máximo pela medida da culpa, de sorte que a pena constitui sempre o resultado da avaliação de todos esses factores.

Factores entre os quais se destacam, conforme decorre do disposto no número 2 do artigo 71.º do Código Penal, os que, relativos à execução do facto, ao tipo de culpa e à conduta do agente, se tenham manifestado antes e depois da prática do facto ilícito típico.

2.2.2

2.2.2.1

Retendo estes aspectos e revertendo ao caso concreto aqui em apreciação, constata-se que o tribunal recorrido entendeu − e bem − que os factos dados como provados configuravam a prática pelo arguido, como reincidente, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes previsto e punido pelos artigos 21.º, número 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, e 75.º, e 76.  do Código Penal.

E isto, em suma, na consideração de que se encontravam reunidos os pressupostos formais da reincidência [tais sejam, os reportados ao cometimento pelo agente, em pleno período de liberdade condicional, de que usufruíra no âmbito do Processo n.º 130/11……, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, previsto  pelo artigo 21.º, número 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 e punido com a pena abstracta de 4 a 12 anos de prisão, depois de o mesmo ter sido condenado, por sentença já transitada em julgado aquando da data da prática do crime reiterado, em pena de prisão de medida superior a 6 meses, mais exactamente de 8 anos de prisão] e bem assim o pressuposto material de as condenações anteriormente sofridas pelo arguido não lhe terem servido de suficiente admonição contra o crime.

Por via disso, entendeu – igualmente bem – o tribunal recorrido que a moldura penal abstracta prevista para aquele ilícito com a reincidência passaria a ser, nos termos dos artigos 75.º e 76.º do Código Penal, de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses a 12 (doze) anos de prisão.

Agravação pela verificação da reincidência que, não podendo exceder a medida da pena mais elevada aplicada ao arguido nas condenações anteriores, como ensinam Jorge de Figueiredo Dias[3], e Maria João Antunes[4], e também anota Paulo Pinto de Albuquerque[5], impõe, para efeitos de determinação da pena do reincidente, que se proceda a uma operação que comporta quatro fases, de sorte que:

- Na primeira fase deverá o tribunal determinar, de acordo com critérios gerais, maxime os previstos nos artigos 70.º e 71.º do Código Penal, a pena que concretamente aplicaria ao arguido se ele não fosse reincidente.

Procedimento que, permitindo verificar se no caso se preenche o pressuposto formal da reincidência atinente à exigência de o crime reiterado ser punido com pena de prisão efectiva superior a seis meses, possibilitará ainda a realização da quarta e última fase da dita operação, imposta pelo segundo segmento da norma do número 1 do artigo 76.º do Código Penal;

- Na segunda fase há-de o tribunal estabelecer a moldura penal da reincidência que, como referido, tem como o limite mínimo o limite mínimo legalmente previsto para o tipo de crime, elevado de um terço por via do desrespeito manifestado pelo agente pela advertência contida na condenação ou nas condenações anteriormente sofridas, e como limite máximo o limite máximo previsto pela lei para o mesmo crime;

- Na terceira fase da dita operação o tribunal determinará, no âmbito da moldura penal da reincidência, a medida concreta da pena cabida ao facto ilícito típico, observando os já mencionados critérios gerais previstos nos artigos 70º e 71º do Código Penal.

E fá-lo-á sem perder de vista, por um lado, que o limite mínimo da moldura penal abstracta encontra-se ora elevado de um terço e o limite máximo de pena concreta consentido pela culpa será, por princípio, mais elevado, e tendo em atenção, por outro lado, que as exigências de prevenção especial e também geral se representam muito provavelmente mais elevadas.

Condicionalismo que, como é bom de ver, dará azo a que a pena seja, por força, mais elevada do que seria se o agente não fosse reincidente;

Na quarta e última fase da dita operação, tendente à determinação da medida concreta da pena do reincidente, impor-se-á ao tribunal comparar a medida da pena que alcançou sem entrar em linha de conta com a reincidência com a que achou dentro da moldura da reincidência.

E o tribunal sempre deverá assim proceder considerando que, de harmonia com estatuído no referenciado segundo segmento da norma do número 1 do artigo 76.º do Código Penal, a agravação determinada pela reincidência não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.

Limitação absoluta e externa que, como refere Maria João Antunes[6], podendo levar a que a medida concreta da pena do reincidente fique aquém do limite mínimo da moldura penal da reincidência, no dizer de Jorge de Figueiredo Dias[7], “deriva do desejo compreensível de evitar que uma condenação anterior numa pena pequena possa, por efeito da reincidência, ir ter a consequência de agravar desproporcionadamente a medida da pena pelo crime anterior”, o que vale por dizer “evitar agravamentos reputados demasiado severos da pena da reincidência”.

No caso concreto aqui em análise, o tribunal recorrido, atendendo aos factores que ponderam em sede de determinação da medida concreta da pena, tais sejam os previstos nos artigos 71.º e 76.º do Código Penal, considerou, como visto, que a pena parcelar de 6 (seis) anos de prisão a aplicar ao arguido, pela prática, como reincidente, do referenciado crime de tráfico ilícito de estupefacientes, se revelava adequada às exigências de prevenção geral e especial e bem assim respeitadora do limite imposto pela culpa manifestada pelo agente.

Segmento decisório de que o recorrente, considerando excessiva tal pena, discorda, pretendendo que a mesma seja fixada em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Ora, não perdendo de vista isto e o demais que para trás se anotou, e passando a avaliar a conduta havida pelo arguido AA, impõe-se então apurar da justeza (ou não) da indicada pena de 6 (seis) anos de prisão e, como tal, se ao fixá-la na indicada medida o tribunal recorrido desrespeitou os princípios da proibição do excesso e da proporcionalidade (artigo 18.º, número 2 da Constituição da República Portuguesa).

Assim procedendo, cabe reparar que a ilicitude dos factos que integram o aludido crime de tráfico ilícito de estupefacientes se representa elevada, tendo em conta a natureza e quantidade global das substâncias (Heroína com o peso líquido de 997,400 gramas e 15 embalagens de uma mistura constituída por paracetamol e cafeína, usada para “cortar” estupefacientes) detidas e transportadas pelo arguido na bagageira do veículo automóvel que conduzia.

Para além disto, importa ainda não perder de vista as motivações do arguido que, perfeitamente conhecedor das características e propriedades dos mencionados produtos e efeitos nefastos que os mesmos produzem na saúde de quem os consome, de harmonia com a matéria de facto provada, se dispôs a transportá-los em troca da quantia de €100,00 que lhe foi entregue.

De outro modo, impõe-se não perder de vista que muito elevada se representa a culpa concreta do arguido que agiu com intenso dolo directo.

Com efeito, apesar das duas condenações antes sofridas – uma em 03.12.2002 e outra em 22.07.2011, em penas de 8 anos de prisão cada, pela prática de crimes de tráfico ilícito de estupefacientes, previstos e punidos pelo artigo 21.º, número 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 −, em pleno período de liberdade condicional, que no Processo n.º 713/13…… (aquele em que sofreu a última das referidas condenações) lhe foi concedida em 26.04.2018 e com efeitos até 09.08.2021, e menos de dois anos após tornou a incorrer na prática do crime de tráfico ilícito de estupefacientes em que   viria a ser condenado nos presentes autos.

Sempre importando ter igualmente presente que, no caso, muito acentuadas se mostram as necessidades de prevenção geral, e sobretudo especial.

As primeiras a imporem a reintegração da norma jurídica persistentemente violada pelo arguido e dos interesses jurídicos por ela visados, a reclamarem pela comunidade grande firmeza das instâncias formais de controlo no sentido de se reprimir este tipo de criminalidade que, como é por demais sabido, aporta de forma inexorável profunda e devastadora erosão dos valores sociais.

E as últimas, as necessidades de prevenção especial, ditadas pela preocupante predisposição que o arguido, imune às condenações antes sofridas [não tão-só por crimes de tráfico ilícito de estupefacientes, mas também por detenção de arma proibida (uma), de condução sem habilitação legal (três), resistência e coacção sobre funcionário (uma)], revela possuir para manter comportamentos ilícitos dolosos, para além de outros integradores de crimes de tráfico ilícito de estupefacientes, sem esquecer o nulo efeito que nele têm produzido as ditas condenações.    

 A par de tudo isto, há que ter em devida conta o demais condicionalismo que depõe a favor e contra o arguido, com especial enfoque para:  i) a sua idade (contando aquando dos factos ilícitos dos autos 44 anos, tem na actualidade 45 anos) e situação familiar (casado, é pai de dois filhos de maior idade); ii) as suas competências académicas (concluiu o 4.º ano de escolaridade) e profissionais (tendo sempre tido trabalhos instáveis e precários na .......... como .........., na ocasião dos factos trabalhava na mesma área de forma intermitente e irregular; iii) o comportamento adequado às normas institucionais estabelecidas que tem mantido em reclusão, encontrando-se a trabalhar na cozinha do estabelecimento prisional onde se encontra; iv) a admissão que fez dos factos que, todavia, se revela de pouca valia, atenta a evidência de que se revestiram os mesmos, e o verbalizado arrependimento por ter acedido a transportar o produto estupefaciente; v) o apoio familiar que lhe é proporcionado pelo cônjuge e pelos dois filhos do casal, que o visitam no estabelecimento prisional.

Ponderando tudo isto e sem nunca perder de vista que a imposição da pena, justificando-se pela necessidade de garantir a protecção dos bens jurídicos e visando finalidades exclusivas de prevenção geral e especial, não pode em circunstância alguma exorbitar a medida da culpa, entende-se que, no âmbito da respectiva moldura penal abstracta, a pena de prisão de 5 (cinco) e 4 (quatro) meses sem entrar em linha de conta com a reincidência e de 6 (seis) anos com a verificação da reincidência, mostrando-se perfeitamente adequada à culpa do arguido e de todo proporcional às fortíssimas exigências de prevenção geral e sobretudo especial que se fazem sentir, cumpre satisfatoriamente as finalidades da punição.

Daí que, em conclusão, se entenda ser de manter a pena de 6 (seis) anos de prisão imposta pelo tribunal recorrido ao arguido AA pela prática, como reincidente, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 21º, número 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, 75.º, e 76.º do Código Penal.

Improcede, assim, o recurso do arguido AA

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III. Decisão

Termos em que se acorda, na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Julgar improcedente o recurso do arguido AA e, em resultado disso, manter a pena de 6 (seis) anos de prisão que lhe foi imposta pela prática, como reincidente, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 21º, número 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, 75.º, e 76.º do Código Penal;

2. Manter no mais o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

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Lisboa, 11 de Fevereiro de 2021

      

Os Juízes Conselheiros

Isabel São Marcos (Relatora)

Helena Moniz

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[1] Na parte transcrita o texto corresponde ao original.
[2] “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Parte Geral, Editorial Notícias, 1993, §301, página 227 e seguintes.
[3] “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Reimpressão, Aequitas, Editorial Notícias, página 269 e seguintes.
[4]  “Penas e Medidas de Segurança”, 2018, Reimpressão, página 55 e seguintes.
[5]  “Comentário do Código Penal”, 3.ª edição actualizada, Universidade Católica Portuguesa, em anotação ao artigo 76.º do Código Penal, página 374.
[6] Obra e local já citados.
[7] Obra e local antes citados.