Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5178/10.2TBCSC-B.L1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
AÇÃO EXECUTIVA
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
PENHORA
VENDA JUDICIAL
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULAR O ACÓRDÃO RECORRIDO, ORDENANDO-SE QUE OS AUTOS BAIXEM AO TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Sumário :
Tendo sido invocada em oposição à execução por embargos de terceiro a existência de um arrendamento para fins habitacionais desde data anterior à da penhora e venda em acção executiva da fracção do imóvel a que dizia respeito, e tendo sido contestada a celebração e validade desse contrato, é forçoso concluir pela insuficiência da matéria de facto para a decisão da causa de acordo com as soluções possíveis do litígio, nos termos e com as consequências previstas no artigo 682.º n.º 3 do Código de Processo Civil, quando as instâncias omitiram qualquer referência à celebração e validade de qualquer contrato de arrendamento.
Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


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RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1. Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa intentada por Banco Comercial Português, Sociedade Aberta, S A, contra CC e DD, vieram AA e BB interpor, em 13 de novembro de 2018, oposição à execução por embargos de terceiro, nos termos dos artigos 342.º e seguintes do Código de Processo Civil, alegando, em síntese, o seguinte:

Residem desde 2006 na Rua ..., cave, ... ..., tendo celebrado em 30 de julho de 2012, de boa-fé, contrato de arrendamento da referida fracção com os executados CC e DD, que se identificaram como seus legítimos proprietários – sendo o contrato válido até 30 de julho de 2032 – e tendo sempre pago desde então o valor da renda acordada.

Tiveram conhecimento de penhora do imóvel pelos presentes autos a 18 de outubro de 2018, quando os senhorios os informaram da penhora de imóvel e da subsequente necessidade de entrega da fracção do imóvel, tendo deles recebido posteriormente informação de que a penhora da fracção iria prosseguir e era necessária a sua entrega devoluta de pessoas e bens no dia 15 de Novembro.

Os embargantes não são devedores e não foram notificados da realização da penhora.

Acresce que sempre cumpriram o seu contrato de arrendamento, pagando atempadamente as rendas e mantendo o locado em boas condições de conservação, os seus bens pessoais, mobília, vestuário, alimentos se encontram no imóvel, estando ameaçados os seus direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados nos artigos 26º da Constituição da República Portuguesa quanto ao direito fundamental à dignidade pessoal e no artigo 65º quanto ao direito fundamental à habitação, na modalidade de direito a não ser privado da habitação.

Os requerentes têm uma filha ainda dependente e o embargante sofre de uma incapacidade de 60%, sendo urgentes as necessidades de tutela do seu direito, pelo que requerem, a final, a manutenção da sua posição de arrendatários da fracção penhorada.

2. Os embargos foram liminarmente admitidos e ordenada a suspensão dos termos da execução quanto à referida fração do imóvel.

3. O exequente/embargado deduziu contestação, alegando, em síntese, que:

Detinha hipoteca voluntária sobre o referido imóvel, por força de escritura pública outorgada em 18 de agosto de 2003 para garantia de pagamento de um empréstimo bancário, a qual estava devidamente registada, sendo certo que os executados não procederam ao pagamento das prestações vencidas a partir de 25 de novembro de 2009.

O contrato de arrendamento invocado terá sido celebrado em data posterior à do registo da hipoteca e caducou com a venda judicial do imóvel ao Banco Exequente, como decorre do artigo 824.º n.º 1 e 2 do Código Civil.

Os embargos de terceiro foram deduzidos muito para além do prazo concedido pelo artigo 344.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

4. Teve lugar uma audiência prévia. Foi depois proferida sentença que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos, no essencial com base na circunstância de a hipoteca sobre o prédio vendido no âmbito da execução se encontrar registada a favor da exequente desde 5 de junho de 2006 e de a penhora estar registada desde 11 de julho de 2011, sendo o invocado contrato de arrendamento posterior a essas duas datas, pelo que, o contrato de arrendamento invocado, a existir, caducou automaticamente com a venda do imóvel no processo executivo.

5. Inconformados os embargantes interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa e, tendo apresentado as respectivas alegações, concluem deste modo:

21. Os embargantes cumpriram sempre o pagamento da renda estipulada, primeiro pagando aos executados e depois, desde o conhecimento da penhora do imóvel, ao Exequente, por via de depósito autónomo à ordem dos presentes autos.

22. Conforme depósitos autónomos mensalmente apresentados à ordem dos presentes autos no valor de 400€ e que se mantiveram até o corrente mês de Junho de 2022, foi depositado um total de dezassete mil e seiscentos euros e tal deve constar da fundamentação de facto para a boa decisão da causa.

23. Os embargantes vêem ameaçados os seus direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados nos artigos 26º da Constituição da República Portuguesa quanto ao direito fundamental à dignidade pessoal e 65º quanto ao direito fundamental à habitação, na modalidade de direito a não ser privado da habitação.

24. Concluindo-se que deve ser tido em conta o contrato de arrendamento, mesmo que para efeitos de penhora ou venda do imóvel, mantendo sempre os requerentes a sua posição de arrendatários, mantendo a posse legítima do mesmo.

25. Caso assim não se entenda, o que por mera cautela se equaciona, sempre seria devolvido o montante depositado de 17.600,00 euros aos embargantes, por não se reconhecer o pagamento de rendas.

26. Sendo evidente que a pretensão dos embargantes é continuar a viver na casa de morada de família que habitam desde 2006”.

6. O exequente apresentou resposta às alegações de apelação, pugnando pela confirmação da sentença impugnada.

7. Por seu acórdão de 17 de novembro de 2022 o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, por maioria de votos, a sentença impugnada, alicerçando o julgamento, no essencial, no facto de o contrato de arrendamento ter caducado automaticamente com a realização da venda judicial da fracção do imóvel, nos termos do artigo 824.º n.º 1 e 2 do Código Civil.

A declaração de voto divergente é do seguinte teor:

“A posição que fez vencimento (quanto à extinção do arrendamento por efeito da venda executiva, “ex vi” do artigo 824.º n.º 2 do Código Civil) é minoritária na doutrina (só Oliveira Ascensão a perfilha) sendo contrariada por Miguel Teixeira de Sousa, Amâncio Ferreira, Rui Pinto e Pedro Romano Martinez. A regra quanto ao arrendamento, em caso de alienação de imóvel arrendado, é a que está consagrada no artigo 1057.º do Código Civil.”


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Parte II – A Revista

8. Inconformados com o assim decidido os embargantes interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo as suas alegações de recurso pela forma seguinte:

“I - Vem o presente recurso intentado da Decisão do Tribunal da Relação de Lisboa o qual confirma a decisão recorrida, alegando em suma que versando os embargos de Executado apenas sobre o arrendamento, é entendimento do Tribunal recorrido que o referido arrendamento caduca automaticamente, em caso de prévia constituição de hipoteca caso opere venda em sede de processo executivo, o que interpreta à luz do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.

II - O arrendamento não assume natureza real, mas meramente obrigacional.

III - Fundamenta o Tribunal a quo a caducidade automática da relação locatícia com a interpretação que faz ao nº. 2 do artigo 824.º do Código Civil.

IV - A norma em causa tem uma regra: Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia.

V — E uma excepção que importa sublinhar: com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em elação a terceiros independentemente de registo.

VI - Segundo o Tribunal a quo, apesar de não assumir o contrato de arrendamento natureza real, é-lhe aplicável em sede de venda em execução o disposto no nº 2 do art.º 824 do Código Civil.

VII - Assim sendo, e crendo como válida esta interpretação, sempre se teria de analisar o arrendamento como enquadrável na excepção e não na regra (artigo 824.º nº 2 in fine), dado produzir o arrendamento, independentemente de registo, efeitos em relação a terceiros (aqui os locatários embargantes).

VIII - Por outro lado, e como bem defende o Sr. Desembargador Adjunto com voto de vencido, é entendimento maioritário quer ao nível da Doutrina, quer pela Jurisprudência, ser aplicável aos casos de extinção do arrendamento por venda executiva, não o nº 2 do artigo 824.º do Código Civil, mas antes o artigo 1057º do mesmo diploma legal, o qual prescreve: O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.

IX — Assim, em caso de alienação executiva do imóvel objecto de locação, independentemente do registo, o adquirente, in casu exequente, sucede nos direitos e obrigações do locador (perante o locatário).

X - Incorre assim o Acórdão sob escrutínio na violação da lei substantiva, em primeira linha ao nível da interpretação do artigo 824.º nº 2 do Código Civil, pelos motivos acima aduzidos,

XI - E numa segunda linha ao nível da aplicação dado não ser esta a norma aplicável in casu, mas sim o artigo 1057.º do Código Civil, conforme jurisprudência do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa.

XII - Ademais, os embargantes vêem ameaçados os seus direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados nos artigos 26º da Constituição da República Portuguesa quanto ao direito fundamental à dignidade pessoal e 65º quanto ao direito fundamental à habitação, na modalidade de direito a não ser privado da habitação.

XIII - Os embargantes cumpriram sempre o pagamento da renda estipulada, primeiro pagando aos executados e depois, desde o conhecimento da penhora do imóvel, ao Exequente, por via de depósito autónomo à ordem dos presentes autos.

XIV - Conforme depósitos autónomos mensalmente apresentados à ordem dos presentes autos no valor de 400€ e que se mantiveram até o corrente mês de Novembro de 2022, foi depositado um total de dezassete mil e seiscentos euros e tal deve constar da fundamentação de facto para a boa decisão da causa.

XV- Concluindo-se que deve ser tido em conta o contrato de arrendamento, mesmo que para efeitos de penhora ou venda do imóvel, mantendo sempre os requerentes a sua posição de arrendatários, mantendo a posse legítima do mesmo.

XVI - Caso assim não se entenda, o que por mera cautela se equaciona, sempre seria devolvido o montante depositado de 19.200€00 aos embargantes, por não se reconhecer o pagamento de rendas.

XVII - Sendo evidente que a pretensão dos embargantes é continuar a viver na casa de morada de família que habitam desde 2006, como legitimamente e de boa fé esperavam.

XVIII – Como o voto vencido no Acórdão recorrido referiu ser doutrina dominante, declarando que “A posição que fez vencimento (quanto à extinção do arrendamento por efeito da venda executiva ex vie do artigo 824º/2 do Código Civil) é minoritária na doutrina (só Oliveira Ascensão a perfilha) sendo contrariado por Miguel Teixeira de Sousa, Amândio Ferreira, Rui Pinto e Pedro Romano Martinez. A regra quanto ao arrendamento, em caso de alienação do imóvel arrendado, é a que está consagrada no artigo 1057º do Código Civil”.

Nestes termos e nos demais de direito deve o presente Recurso obter provimento, e em consequência revogar-se a decisão proferida com fundamento em violação da lei substantiva e contrária à jurisprudência, por errada interpretação e aplicação do artigo 804.º nº 2 do Código Civil”.

9. O exequente apresentou resposta às alegações do recurso de revista que concluiu pela forma seguinte:

“A. O fundamento dos Embargos de Terceiro deduzidos pelos Recorrentes é a alegada existência de um contrato de arrendamento a termo certo, com início em 01/08/2012 e termo em 30/07/2032, celebrado entre os Executados, na qualidade de ... e os Recorrentes AA e BB, na qualidade de arrendatários.

Ora, a existência do contrato de arrendamento não foi dada como provada na douta Sentença do Tribunal de 1.ª Instância.

Acontece que, os aqui Recorrentes não impugnaram a matéria de facto da douta Sentença de 23/05/2022.

Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto.

B. Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, por mero dever de patrocínio sempre se dirá que os Embargos de Terceiro são extemporâneos, por dois motivos:

Em primeiro lugar, como bem decidiu o douto Tribunal 1.ª Instância, são extemporâneos nos termos do disposto no artigo 344.º, n.º 2, parte final do CPC, uma vez que foram deduzidos em 13/11/2018, isto é em data posterior à adjudicação do imóvel pelo Exequente (a 05 de julho de 2017, mostrando-se a aquisição registada pela Ap. ...28 de 21/12/2017).

Mas ainda que assim não se entenda, o que não se concede, seriam sempre extemporâneos, uma vez que o primeiro edital afixado no imóvel data de 11/07/2011, sendo assim anterior ao alegado contrato de arrendamento. Foi ainda afixado edital a 31/05/2017.

Pelo que, a verdade é que à data da interposição dos embargos (13/11/2018) já se encontrava esgotado o prazo de dedução dos presentes embargos de terceiro. De facto, alegando os Recorrentes que residem no imóvel desde 2006, o que não se concede, não se mostra verosímil que apenas em 2018 tenham tido conhecimento da penhora e da venda do imóvel ao Exequente, atentos os editais afixados e relação de parentesco entre os Executados e os inquilinos, aqui Recorrentes.

Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto.

C. Mas ainda que se entenda que deverá ser considerada provada a existência do contrato de arrendamento, o que não se concede, por mero dever de patrocínio sempre se dirá que o contrato foi alegadamente celebrado em 01/08/2012, isto é, em data posterior à constituição da hipoteca voluntária a favor do Banco Exequente (por escritura outorgada em 18/08/2003 e registada pela AP. ...4 de 05.06.2006) e, bem assim, da penhora registada nos autos (cfr. auto de penhora de 11.07.2011 e registo pela Ap. ...89 de 11.07.2011).

Pelo que, bem decidiu o douto Acórdão aqui Recorrido que «(…) A relação locatícia estabelecida após constituição de hipoteca sobre o imóvel objeto do contrato, por aplicação do art. 824º, nº2 do Código Civil, caduca automaticamente com a venda do imóvel arrendado no processo executivo, inviabilizando, por isso, a dedução dos embargos por parte do arrendatário, de harmonia com o disposto no art. 344º, nº2, 2ª parte, do CPC”(ac. STJ, de 18/10/2018 – Proc. 12/14....).

Fundando-se, no caso, os embargos, tão somente, na celebração de contrato de arrendamento relativo ao imóvel objecto de penhora e ulterior adjudicação ao exequente, forçoso seria, pois, concluir pela sua improcedência».

E, bem já tinha decido o douto Tribunal de 1.ª Instância que «(…) considerando que a hipoteca sobre o prédio vendido no âmbito da execução encontrava-se registada a favor da exequente desde 05.06.2006 e que a penhora foi registada em 11.07.2011 e que o invocado contrato de arrendamento é posterior a estas datas, impõe-se concluir que, a existir, o mesmo caducou automaticamente com a venda do imóvel no processo executivo, o que deveria ter inviabilizado, desde logo, a dedução dos presentes embargos de harmonia com o disposto no art. 344º, nº 2, 2ª parte do CPC.» (sublinhados nossos)

De facto, a jurisprudência maioritária tem entendido que o contrato de arrendamento caduca com a venda judicial do bem, nos termos do disposto no artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil. Neste sentido, veja-se a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/02/2013 (Processo n.º 6/09.4TBCBR.C1), o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31/05/2016 (Processo n.º 2252/13.7TBVCD-B.P1) e, bem assim, os Acórdãos invocados na douta sentença recorrida – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/10/2018 (Processo 12/14.7TBEPS-A.G1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/) e de 03/12/1998.

Assim, não incorreu o Acórdão recorrido, ao contrário do que é alegado pelos Recorrentes, em errada aplicação da lei. Não é aplicável o disposto no artigo 1057.º do Código Civil.

O Acórdão recorrido aplicou corretamente o disposto no artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil. O contrato de arrendamento, a existir, o que não se concede, caducou com a venda do imóvel.

Também por este motivo, deverá ser negado provimento ao recurso interposto.

D. Por último, vêm os Recorrentes juntar com o seu recurso de revista cinco depósitos autónomos no valor mensal de €400,00, referentes aos meses de julho a novembro de 2022.

Ora, a Exequente, ao abrigo do disposto no artigo 919.º do CPC e no artigo 21.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, vem impugnar as mencionadas Consignações em depósito efetuadas pelos Recorrentes, por não serem as mesmas devidas, uma vez que os Recorrentes não têm título legítimo para ocupar o imóvel, muito menos aquele de que se arrogam (arrendamento), requerendo a entrega do imóvel pelos Recorrentes.

E. Em face do exposto, forçoso se torna concluir que o acórdão recorrido não enferma dos vícios assacados pelos Recorrentes.

Termos em que se requer seja negado provimento ao recurso interposto e, consequentemente, mantido o Acórdão recorrido.”


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10. Admitida a revista interposta pelos embargantes e colhidos que foram os Vistos dos Senhores Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta.

Atendendo às conclusões das alegações do recurso de revista apresentadas, a questão de que cumpre conhecer é a da existência de fundamento legal para a manutenção da alegada posição dos embargantes – terceiros na relação entre o exequente e os executados – quanto à fracção do imóvel identificado que foi objecto de penhora e venda na execução de que estes autos são apenso.


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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

São os seguintes os factos considerados provados em primeira instância, não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto:

1 – No âmbito da execução foi penhorado o prédio urbano sito na Rua ..., ..., descrito na ... Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...81, da freguesia ..., conforme auto de penhora de 11.07.2011.

2 – A referida penhora foi registada pela Apresentação 2789, de 11 de julho de 2011, conforme certidão junta aos autos.

3 – Por escritura pública de “Empréstimo com hipoteca”, outorgada em 18 de agosto de 2003, os executados declararam, entre o mais, constituir hipoteca sobre o referido prédio a favor da exequente, que declarou aceitar, conforme certidão junta com o requerimento executivo.

4 – A hipoteca voluntária mostrava-se registada a favor da exequente pela Apresentação 54, de 5 de junho de 2006, conforme certidão junta aos autos.

5 – No âmbito da execução, o prédio, entretanto, foi adjudicado à exequente, mostrando-se a respetiva aquisição registada pela Ap. ...28, de 21 de dezembro de 2017, conforme certidão junta aos autos.


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Parte II – O Direito

1. Na presente revista está em causa o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito de uma oposição à execução mediante embargos de terceiro sendo fundamento da oposição a existência de um título legítimo de ocupação de uma fracção de um imóvel entretanto vendida ao exequente – no caso um contrato de arrendamento – e a ele oponível.

Nos termos do artigo 342.º n.º 1 do Código de Processo Civil o terceiro – que não seja parte na causa – que for lesado por penhora ou por qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens que seja ofensivo da sua posse ou de qualquer direito incompatível com a realização desse acto ou diligência, pode fazer valer esse direito através de embargos de terceiro.

2. No caso presente, os embargantes alegaram no seu requerimento inicial residir na fracção do imóvel em causa desde 2006, tendo o contrato de arrendamento sido reduzido a escrito em 30 de julho de 2012.

O exequente, a favor de quem os proprietários da fracção em causa tinham constituído hipoteca voluntária registada em 5 de junho de 2006, promoveram no âmbito do processo de execução instaurado a penhora da fracção que foi registada em 11 de julho de 2011.

Os factos descritos no parágrafo anterior foram considerados provados pelas instâncias e mostram-se assentes.

Provado está também que a fracção do imóvel foi adjudicada ao exequente no âmbito da venda executiva realizada, sendo essa aquisição registada em 21 de dezembro de 2017.

3. Partiram as instâncias do pressuposto de que era aplicável à situação dos autos o disposto no artigo 824.º do Código Civil, nos termos do qual, transferindo a venda em execução para o aquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida, os bens são vendidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhor ou garantia.

Nessa conformidade com a venda do imóvel em acção executiva teria caducado o contrato de arrendamento celebrado entre os anteriores proprietários e os terceiros embargantes.

4. É certo, como se depreende da declaração de voto divergente aposta no acórdão recorrido, que a solução da questão de direito que foi adoptada no acórdão recorrido não é a única que tem sido equacionada a propósito na doutrina e na jurisprudência, estando em causa a transmissão em processo executivo de fração autónoma de um imóvel objecto de arrendamento.

À opção entre as duas orientações que resultam da análise do acórdão recorrido – aplicação do artigo 824.º n.º 2 do Código Civil (solução que fez vencimento) ou do artigo 1057.º do Código Civil (solução defendida na declaração de voto de vencido) – poderá acrescer a que resulte, verificados os respectivos condicionalismos legais, da ponderação da tutela derivada do registo da penhora anterior ao contrato de arrendamento com a consequente ineficácia deste em relação ao exequente nos termos do artigo 819.º do Código Civil.

5. O fundamento dos embargos deduzidos pelos terceiros, alegados arrendatários desde data anterior à do registo da penhora, foi exactamente a existência de um contrato de arrendamento sobre a fracção do imóvel adquirido pelo exequente, onde residem desde 2006.

Relativamente a esse facto essencial no contexto da causa de pedir dos embargos de terceiro deduzidos as instâncias nada disseram, seja para afirmar a sua realidade seja para a negar.

Tal omissão ficou certamente a dever-se ao facto de se ter considerado que o título de ocupação da fracção por parte dos embargantes era irrelevante face ao disposto imperativamente no artigo 824.º n.º 2 do Código Civil.

Não obstante, o discurso argumentativo das decisões proferidas nas instâncias e bem assim a posição das partes em relação a elas – mantida aliás, nas alegações de revista e sua resposta – parte do princípio de que o que está efectivamente em causa nos autos é a caducidade de um contrato de arrendamento face à venda executiva da fracção do imóvel a que ele respeitava.

Assim se entende que, perante a ausência de referência na sentença ao contrato de arrendamento o exequente – que tinha impugnado a sua validade – tenha feito notar na resposta às alegações do recurso de apelação que os recorrentes não impugnaram a decisão sobre a matéria de facto.

6. Porém, o que se alcança é que, apesar de raciocinarem no pressuposto da sua celebração em 31 de julho de 2012, as instâncias não se pronunciaram expressamente sobre a existência e/ou validade do alegado contrato de arrendamento, decidindo se o mesmo tinha sido efectivamente celebrado e em que data ou se a sua alegação não tinha correspondência com a realidade.

Ora sobre a existência e validade desse contrato de arrendamento e da data a partir de quando ele produziria os seus efeitos, porque se trata elementos essenciais à decisão da causa segundo uma das possíveis soluções de direito e controvertidos entre as partes, importaria ter sido emitida pronúncia.

Essa omissão de pronúncia acerca dos factos essenciais alegados faz com que seja manifestamente insuficiente o elenco dos factos necessários ao respectivo enquadramento jurídico e à decisão da causa.

7. Como se viu, a existência ou inexistência do um contrato de arrendamento que legitime a permanência dos embargantes no locado desde 2006 constitui o fundamento central – contestado – dos embargos de terceiro deduzidos pelos alegados arrendatários, e representa a base factual indispensável para a decisão acerca do direito discutido nos autos, no sentido de terem ou não os embargantes título válido oponível ao adquirente continuar a utilizar para sua habitação a fração do imóvel adquirida pelo exequente.

Dito de outro modo: a decisão sobre se os embargantes são arrendatários da fracção do imóvel objecto dos autos e desde quando constitui um dos elementos mais relevantes para a decisão a tomar em relação ao cerne da questão na perspectiva de que só no caso de a primeira hipótese se confirmar e de o registo da penhora ser posterior ao início da vigência do contrato de arrendamento – independentemente da sua redução a escrito em 30 de julho de 2012 – podem proceder os embargos de terceiros deduzidos.

8. Nos termos do artigo 682.º n.º 1 e 3 do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o direito aos factos fixados pelo tribunal recorrido, só ordenando a sua baixa ao tribunal recorrido quando entenda que a decisão de facto deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.

É o que sucede no caso presente em que o conjunto dos factos apurados e descritos pelas instâncias é manifestamente insuficiente para a decisão jurídica do caso.

Nestes termos há que anular o acórdão recorrido e determinar que os autos sejam devolvidos ao Tribunal da Relação de Lisboa a fim de se apurarem os fundamentos dos embargos deduzidos, relacionados com a celebração e validade do contrato de arrendamento invocado pelos terceiros embargantes, o que, se assim for entendido, poderá ser feito através de novo julgamento da matéria de facto alegada, em primeira instância.

9. Não havendo neste momento elementos para decidir da responsabilidade das custas nesta fase do recurso de revista face ao disposto no artigo 527.º nº 1 do Código de Processo Civil, a responsabilidade pelo seu pagamento será feita de acordo com o que vier a ser decidido a final.


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DECISÃO

Termos em que, ao abrigo do disposto no artigo 682.º n.º 3 do Código de Processo Civil, decidem anular o acórdão recorrido e determinar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa a fim de que ali (ou por sua determinação na primeira instância, caso tal seja tido por necessário) se aprecie a alegada existência do contrato de arrendamento que serve de fundamento aos embargos de terceiro deduzidos, procedendo a novo julgamento de acordo com o que, sobre essa matéria, for decidido.

As custas da fase da revista serão suportadas pelos embargantes e/ou pelo embargado nos termos que forem definidos na decisão final do processo.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 9 de maio de 2023

Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Jorge Manuel Leitão Leal

Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor