Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
129/16.3GILRS.L1-B.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: NUNO GOMES DA SILVA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
Data do Acordão: 02/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / DECLARAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA – PROVA / MEIOS DE PROVA / DECLARAÇÕES DO ARGUIDO, ASSISTENTE E PARTES CIVIS – MEDIDAS DE COACÇÃO E GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / MEDIDAS ADMISSÍVEIS / MODOS DE IMPUGNAÇÃO – FASES PRELIMINARES / DETENÇÃO – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / ADMISSÃO DO RECURSO.
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA / MAUS TRATOS.
Doutrina:
- Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª Edição, aafdl, p. 110;
- Cristina Augusta Teixeira Cardoso, A violência doméstica e as penas acessórias, UC, Porto, p. 16, in http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/9686/1/Tese%20mestrado%20-%20A%20Viol%C3%AAncia%20dom%C3%A9stica%20e%20as%20penas%20acess%C3%B3rias.pdf;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição, p. 510;
- Henriques Gaspar et all, Código de Processo Penal Comentado, 2.ª Edição, p. 853 a 855;
- Plácido Conde Fernandes, Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, n.º 8 (especial), p. 304 e 305;
- Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Volume I, p. 1371.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 1.º, ALÍNEA J), 33.º, N.º 2, 141.º, 202.º, N.º 1, ALÍNEA B), 219.º, 223.º, N.º 4, ALÍNEA C), 254.º, 400.º, N.º 1, ALÍNEA C) E 414.º, N.º 7.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 152.º, N.º 1, ALÍNEAS A), B), C) E D).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 14-05-2014, PROCESSO N.º 23/14.2YLSB.S1;
- DE 28-05-2014, PROCESSO N.º 921/12.8TAPTM-D.S;
- DE 16-03-2015, PROCESSO N.º 122/13.TELSB-L.S1.
Sumário :
I - O paradigma legislativo relativo ao controle e acompanhamento da prisão preventiva alterou-se com a reforma do CPP operada pela Lei 48/2008.
II - Com a norma do n.º 7 do art. 414.º do CPP cuja epígrafe é «Admissão do recurso» parece inquestionável que, admitido o recurso da decisão final, o acompanhamento mas também o controle da privação de liberdade ao nível do estatuto coactivo cabe agora somente ao tribunal da 1ª instância e não ao tribunal ad quem.
III - O que introduziu uma nota de coerência no sistema. A ser possível o tribunal de recurso alterar as medidas de coacção decretando a prisão preventiva isso implicaria a intervenção de uma instância superior para apreciar o recurso que inevitavelmente teria de considerar-se cabida por estar em causa a defesa do direito à liberdade e a interferência do princípio in dubio pro libertate de acordo com o qual na dúvida há-de reconhecer-se maior preponderância aos direitos fundamentais em confronto com as restrições só poderia ser adequada uma actividade interpretativa sistémica que possibilitasse o recurso para o tribunal superior da decisão que determinou a prisão preventiva. Num tal quadro, o regime do art. 219.º apresentar-se-ia, digamos, como um regime específico ou especial relativamente ao regime geral dos recursos e designadamente no que toca ao determinado no art. 400.º, n.º 1, al. c) segundo o qual não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso pelas relações que não conheçam a final do objecto do processo.
IV - Sendo a alteração do estatuto coactivo, designadamente com o decretamento da prisão preventiva levada a cabo num tribunal da relação seria obrigatória a intervenção do STJ desvirtuando aquele outro paradigma que vem desde a alteração legislativa da Lei 59/98, de 25-08: o de reservar a competência do STJ para o julgamento dos recursos dos casos mais graves e de maior relevância determinados pela gravidade dos crimes aferida esta pelo critério da pena primeiro aplicável e depois, mais restritivamente ainda, pela pena aplicada. E se esse caminho de operar a alteração da medida de coacção viesse também a ser trilhado pelo STJ sobraria a questão de saber qual seria a entidade ad quem pois a pertinência de um grau de recurso manter-se-ia face à imposição constitucional.
V - O crime de violência doméstica pelo qual o requerente veio a ser condenado no tribunal da relação, na sequência de recurso da assistente, é punido com pena de 2 a 5 anos de prisão. Assim só é enquadrável na al. b) do n.º 1 do art. 202.º do CPP onde se estipula que a prisão preventiva pode ser imposta se o juiz considerar inadequadas ou insuficientes outras medidas no caso de haver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta a qual na definição do art. 1.º, al. j) se traduz em condutas que dolosamente se dirijam contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e sejam puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.
VI - Acerca da identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica é generalizado o entendimento de que são carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas als. a) a d) do n.º 1 do art. 152.º do CP. Assim, fica evidenciado que as dimensões da integridade física e da liberdade pessoal estão entre aquelas que o tipo legal visa proteger o que torna possível à luz da conjugação das disposições citadas a imposição da prisão preventiva.
VII - No presente caso, considerando-se que não é o tribunal da relação o competente para a modificação da medida de coacção ocorre uma incompetência funcional cuja verificação conduz ao procedimento previsto no art. 33.º, n.º 2: «As medidas de coacção ou de garantia patrimonial ordenadas pelo tribunal declarado incompetente conservam eficácia mesmo após a declaração de incompetência, mas devem no mais breve prazo, ser convalidadas ou infirmadas pelo tribunal competente».
VIII - Mas há também, após a prisão do requerente, um excesso de prazo para audição do arguido à face do que dispõe o art. 254.º em conjugação com o art. 141.º, ambos do CPP, pois a apresentação do arguido detido é sempre obrigatória e essa audição deve ocorrer em 48h. Omissão essa que gera mais do que um procedimento nulo, uma situação de ilegalidade.
IX - Daqui não resulta, contudo, necessariamente a libertação. Deferindo embora por motivos em parte diversos a petição de habeas corpus a conjugação dos arts. 33.º, n.º 2 e do art. 223.º, n.º 4, al. c), do CPP aponta para o seguinte caminho: a apresentação do requerente no tribunal competente, o da 1ª instância, no prazo de 24 horas, com a cominação expressa na última das referidas normas, para aí ser ouvido com a subsequente prolação de despacho.

Decisão Texto Integral:

        1 – AA, arguido no processo nº 129/16.3GILRS actualmente em prisão preventiva veio requerer a providência de habeas corpus «com os seguintes fundamentos constantes no nº 1 e na al. b) do nº 2 do art. 222º do Código de Processo Penal» nos termos seguintes (transcrição):

1. Os presentes Autos tiveram origem numa queixa apresentada pela ex-namorada do Arguido, pela prática de actos que alegadamente se enquadrariam no crime de violência doméstica.

2. O Julgamento decorreu no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Torres Vedras - Juízo Local Criminal - Juiz 2, cumprindo todas as formalidades Legais, nomeadamente quanto à audição do Arguido, Assistente e demais testemunhas.

3. Tendo aí ficado demonstrado que, foi face à existência de uma sociedade comercial, a BB, Lda., da qual ambos são sócios gerentes, e por a Assistente ter utilizado exclusivamente bens da empresa, tendo com eles obtido proveitos avultados, sem nunca ter prestado contas quer à sociedade, quer ao outro sócio, aqui Arguido, situação que levou a divergências entre ambos.

4. Também que, foi por via dessas divergências que ficou provado que numa única ocasião o Arguido agrediu a Assistente, situação que o próprio confessou, e que levou à condenação do mesmo pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de dano, em cúmulo jurídico na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,00.

5. Enquanto decorreu o julgamento em 1.a Instância, foi aplicada ao Arguido uma medida cautelar de não aproximação da Assistente, sendo que em todo esse período, apenas houve uma ocorrência, tendo ficado demonstrado que terá acontecido por falta de sinal GPS.

6. Logo no final do julgamento no Tribunal de 1.a Instância, o Procurador Adjunto, em alegações pediu a desqualificação do crime pelo qual o Arguido vinha acusado de violência doméstica para ofensa à integridade física simples.

7. Também o Procurador-geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Lisboa respondeu ao recurso interposto pela Assistente, emitindo parecer no sentido da improcedência do mesmo, pugnando pela manutenção da decisão do Tribunal de 1.a Instância, por a mesma não merecer qualquer reparo.

8. O Arguido é primário, e está integrado profissional e pessoalmente.

9. Por Acórdão proferido na 9.a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, foi a decisão do Tribunal de 1.a Instância revogada, tendo o Arguido sido condenado em cúmulo jurídico pela prática de um crime de violência doméstica e de um crime de dano.

10. Acontece que, no passado dia 16 de Fevereiro de 2018 o Arguido foi contactado telefonicamente por Agente da Autoridade, quando se encontrava em serviço na zona de ..., para que se deslocasse à Esquadra a fim de receber uma notificação.

11. Quando regressou, após um dia de trabalho, e por entender que se trataria de algo urgente dirigiu-se ao Posto da GNR de ..., onde chegou cerca da meia-noite desse dia, colaborando com as autoridades, aliás, como é seu apanágio.

12. Nesse momento foi detido, tendo-lhe sido entregue uma notificação, onde, além do mais, constava que:

O/A Dr.(a) ..., Juiz Desembargador do(a) .... ª Secção - Tribunal da Relação de Lisboa:

MANDA que o(a) arguido(a) abaixo indicado(a), por acórdão hoje proferido, seja detido para aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.

(...)"

13. O Arguido foi de imediato conduzido ao Estabelecimento Prisional de Lisboa, onde tem permanecido.

14. No final do douto Acórdão pode ter-se que:

"(...)

Entende-se que ambos os arguidos devem aguardar em prisão preventiva o trânsito de presente decisão, para obviar a que no tempo que media possam exercer represálias sobre a recorrente, continuando com actividade criminosa.

Passem-se, de imediato mandados para detenção de ambos.

15. Independentemente da decisão proferida, e, sobre a qual o Arguido se pronunciará em momento próprio, o Arguido não consegue alcançar como é possível que um processo que teve o seu inicio no ano de 2016. Onde,

16. O Arguido foi sujeito a uma pulseira electrónica, para não aproximação da Assistente, sendo que, durante esse período nada houve a assinalar, conforme consta dos relatórios juntos aos presentes autos.

17. Ao longo dos presentes autos, que foram analisados em 1ª Instância pela Meritíssima Juiz do Tribunal de ..., e também pelos Digníssimos Procuradores do Ministério Público, quer do Tribunal de Primeira Instância, quer do Tribunal da Relação de Lisboa, todos consideraram não estarmos na presença de um crime de violência doméstica.

18. Tendo ainda presente que, o Arguido nunca se furtou à presença perante as autoridades, quer Judiciais, quer Policiais, prova disso foi o facto de se ter apresentado às 00.30 horas, na noite de sexta-feira para sábado perante as Autoridades Policiais, momento em que foi detido.

19. Não consegue o mesmo entender porque lhe foi aplicada a medida de coacção mais gravosa, de prisão preventiva.

20. Entende este que, essa medida foi aplicada sem o cumprimento dos formalismos legais previstos para a sua aplicação.

21. Desde logo, o constante no art. 191° do Código de Processo Penal, referente ao princípio da legalidade quanto à sua aplicação.

22. Também o constante no art. 193° do Código de, Processo Penal não foi cumprido, nomeadamente o n° 2 do mesmo, onde é referido que a Prisão Preventiva só poderá ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.

23. Foi igualmente incumprido o previsto no art. 194° do Código de Processo Pena!, quanto à Audição do Arguido, atendendo a que a presente medida de coacção foi aplicada sem a Audição do Arguido, situação que implica a nulidade da medida aplicada, o que desde já se argui perante V. Exas.

24. Mas mais, no presente caso, ainda não foi comunicado ao aqui Mandatário constituído a decisão de aplicação de Prisão Preventiva ao Arguido, em conformidade com o previsto no art. 194º, n° 10 do Código de Processo Penal.

25. Os requisitos para aplicação da medida de coacção Prisão Preventiva previstos no art. 202.° do Código de Processo Penal, não estão igualmente preenchidos.

26. Na decisão tomada foi igualmente incumprido o constante no art. 28º da Constituição da República Portuguesa, quanto à Prisão Preventiva.

27. Como o Acórdão bem refere, este Arguido é primário, está plenamente integrado, trabalha, a aplicação da medida de coacção prisão preventiva da forma como foi aplicada, na nossa opinião, de forma a suscitar a nulidade agora invocada, perante uma gritante injustiça, in casu, perante este Arguido, leva um total descrédito da justiça.

28. Face à nulidade agora invocada, requer-se a V. Exas. a imediata restituição do Arguido à liberdade.

29. Ou, caso assim não se entenda a revogação da medida de coacção aplicada, optando V. Exas. por outra menos gravosa, tenda em consideração a realidade dos factos bem demonstrados ao logos destes autos e que bem justificariam, na nossa opinião, tal alteração.

                                                  *

2. – Os autos foram remetidos e indevidamente distribuídos sem deles constar a informação a que se refere o art. 223º, nº 1 CPP (diploma a que pertencem as normas adiante referidas sem menção de origem).

Foi proferido despacho a solicitar a dita informação bem como outros elementos sendo a resposta a que seguinte (transcrição):

                «Relativamente ao solicitado no V/ ofício acima indicado, por ordem verbal da Exma Sra Desembargadora Relatora, informo V. Exa de que a informação a que se refere o art. 223°  n° 1 do CPP, se encontra na parte final do acórdão preferido pelo Colectivo em 15 de Fevereiro p. p..

               Mais informo, que sobre o requerimento apresentado em 18-02-2018, ainda não recaiu qualquer despacho, encontrando-se os autos conclusos para o efeito.

                Informo ainda que o acórdão foi notificado ao mandatário do peticionante, por carta registada expedida em 16-02-2018.

                Com os melhores cumprimentos,

                Por ordem da Mma Juiz Desembargadora,

                A Escrivã de Direito».

                                                                              *

         3. – Os elementos relevantes para a apreciação da questão em discussão são os seguintes comprovados pelos elementos oriundos do processo:

        - Foi deduzida acusação contra outro arguido e contra o requerente imputando a este em autoria material e concurso real um crime de violência doméstica do art. 152º, nºs 1, al. b) e 2 do C. Penal e um crime de dano do art. 212º, nº 1 do mesmo diploma.

         - Por sentença de 2017.07.14 proferida no Juízo Local Criminal de Torres Vedras, Juiz 2, da Comarca de Lisboa Norte, foi o requerente condenado por um crime de ofensa à integridade física simples do art. 143º, nº 1 do C. Penal na pena de 100 dias de multa e por um crime de dano do art. 212º, nº 1 do mesmo diploma na pena de 150 dias de multa. Em cúmulo foi a pena única fixada em 220 dias de multa à taxa diária de € 5, perfazendo € 1.100,00.

        - Foi interposto recurso pela assistente vindo a ser proferido acórdão no Tribunal da Relação de Lisboa, em 2018.02.15 que condenou o requerente por um crime de violência doméstica do art. 152º, nºs 1, al. b) e 2 do C. Penal na pena de 2 anos e 6 meses de prisão e por um crime de dano do art. 212º, nº 1 do mesmo diploma na pena de 8 meses de prisão.

        Em cúmulo foi fixada a pena única de 2 anos e 8 meses de prisão.

         - No final do acórdão ficou a constar o seguinte:

«Atendendo ao grau de impunidade com que os arguidos entenderam que podiam actuar, invadindo o domicílio da assistente, destruindo os seus bens, arrombando-Ihe a porta, seguindo-a, retirando-lhe o carro de que também é dona, na qualidade de sócia de indústria (pelo menos) da empresa que também é pertença do 1° arguido, o nível da agressão física perpetrada (arrastar pelo cabelos), entende-se que ambos ao arguidos devem aguardar em prisão preventiva o trânsito de presente decisão, para obviar a que no tempo que media possam exercer represálias sobre a recorrente, continuando com a actividade criminosa.

Passem-se, de imediato, mandados para detenção de ambos.»

- O requerente está actualmente e desde as 00h30m de 2018.02.17, em prisão preventiva.

                                         *

3. - Determina o art. 31º, nº 1 da Constituição da República que o habeas corpus se destina a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal.

         Dispondo, por seu turno, o art. 222º nos seus nºs 1 e 2, que a qualquer pessoa ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede a providência se a ilegalidade da prisão advier de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;

c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Neste quadro legal, o Supremo Tribunal de Justiça entende desde há muito, de forma pacífica, que a providência de habeas corpus tem uma natureza excepcional destinando-se a assegurar o direito à liberdade mas não é um recurso. É um remédio único, digamos, a ser usado quando falham as demais garantias do direito de liberdade mas não pode ser utilizado para impugnar quaisquer deficiências ou irregularidades processuais que têm no recurso a sua sede própria de apreciação[1].

Como tem sido foi acentuado por inabarcável jurisprudência deste Supremo Tribunal a providência «não almeja a reanálise do caso; almeja a constatação da ilegalidade, que, por isso mesmo, tem de ser patente» apresentando-se como erro grosseiro ou manifesto abuso de poder. Por isso não pode ser tida como «um sucedâneo dos recursos admissíveis, esses sim os meios ordinários e adequados de impugnação das decisões judiciais».

Terá, pois, natureza excepcional por se propor como reacção expedita perante uma situação de prisão ilegal oriunda de uma inusitada ou patente desconformidade processual, adjectiva ou material que redunde numa situação de prisão ilegal.

Porém, a excepcionalidade da medida de habeas corpus não excluirá a possibilidade de ser usada em alternativa ao recurso ordinário, quando este se revele insuficiente para dar resposta imediata e eficaz à situação de detenção ou prisão ilegal»[2].

Ou dito de outra maneira: a «excepcionalidade da providência de habeas corpus não significa que ela tenha carácter residual ou subsidiário, mas apenas que o seu campo de aplicação está rigorosamente definido: a prisão ilegal. Desde que verificada tal situação o habeas corpus é admissível. Esta solução é hoje incontestável, depois das alterações introduzidas no art. 219º, nº 2 pela Lei nº 48/2007, de 29-08, que veio por termo à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que considerava inadmissível o habeas corpus quando tivesse sido interposto, ou houvesse possibilidade de interpor recurso ordinário da decisão»[3].

De todo o modo, como é jurisprudência consolidada o habeas corpus não é «o meio próprio de impugnar o mérito do despacho que decreta a prisão preventiva, nem quanto à suficiência ou solidez dos indícios das infracções praticadas nem quanto à pertinência dos fundamentos invocados para justificar essa medida, nem relativamente à insuficiência de outras medidas de coacção (…) Não é também o habeas corpus o meio adequado para impugnar as decisões processuais ou arguir nulidades ou irregularidades processuais que terão de ser impugnadas através de recurso ordinário[4].

                                             *

4. – Não há dúvida de que o procedimento que está na origem do presente habeas corpus, conduzindo à prisão preventiva do seu requerente, é defeituoso. Designadamente por algumas das razões que este invoca.

Em primeiro lugar, decorre do art. 194º, nº 1 que as medidas de coacção, à excepção do termo de identidade e residência, aplicadas após o inquérito devem ser precedidas de audição do Ministério Público sob pena de nulidade.

Em segundo lugar, determina o nº 4 do artigo referido que a aplicação dessas medidas é precedida de audição do arguido que pode ter lugar no primeiro interrogatório judicial salvo casos de impossibilidade devidamente fundamentada.

Em terceiro lugar determina o art. 254º, nº 2 que o arguido detido fora de flagrante delito para aplicação ou execução da medida de prisão preventiva é sempre apresentado ao juiz sendo correspondentemente aplicável o disposto no art. 141º.

No caso, porém, a prisão preventiva foi decretada sem que o Ministério Público se pronunciasse a tal respeito, sem que o arguido, aqui requerente, fosse previamente ouvido e, finalmente, sem que o despacho que a decretou fundamentasse porque não se procedia à audição.

E também não foi ouvido na sequência da sua detenção para execução da medida no prazo de 48 horas como decorre da aplicação do art. 141º, nº 1.

Qualquer destas vicissitudes, porém, deveria ser objecto de suscitação em sede de recurso ordinário aí se retirando as necessárias consequências.

Está claro na sistemática do Código de Processo Penal que esse é um «Dos modos de impugnação» da medida de coacção, a par do habeas corpus tal como está definido no Capítulo IV, do Título II (Medidas de coacção) do seu Livro IV (Das medidas de coacção e garantia patrimonial).

E, em abstracto, não seria a circunstância de a medida ter sido fixada no Tribunal da Relação que coarctaria essa possibilidade sabido como é que o art. 32º, nº 1 CRP consagra como garantia primeira de defesa o direito ao recurso.

Estando em causa a defesa do direito à liberdade e a interferência do princípio in dubio pro libertate de acordo com o qual na dúvida há-de reconhecer-se maior preponderância aos direitos fundamentais em confronto com as restrições só poderia ser adequada uma actividade interpretativa sistémica que possibilitasse o recurso para o tribunal superior da decisão que determinou a prisão preventiva.

Num tal quadro, o regime do art. 219º apresentar-se-ia, digamos, como um regime específico ou especial relativamente ao regime geral dos recursos e designadamente no que toca ao determinado no art. 400º, nº 1, al. c) segundo o qual não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso pelas relações que não conheçam a final do objecto do processo[5].

Seria isto assim não fosse a circunstância de o paradigma legislativo ter sido alterado a partir da reforma operada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto.

É sabido que o carácter algo transitório das leis processuais e a sua natureza instrumental fazem delas sujeito de constantes mudanças visando, espera-se, outros tantos aperfeiçoamentos.

Ora, ao art. 414º cuja epígrafe é «Admissão do recurso» foi, então, aditada uma disposição que passou a ser o seu nº 7 que reza assim: «Se o recurso subir nos próprios autos e houver arguidos privados da liberdade, o tribunal antes da remessa do processo para o tribunal superior, ordena a extracção de certidão das peças necessárias ao seu reexame».

Parece, pois, inquestionável que, com esta norma, certamente o  acompanhamento mas também controle da privação da liberdade ao nível do estatuto coactivo cabe agora somente ao tribunal da 1ª instância e não ao tribunal ad quem.

O que introduziu, crê-se, uma nota de coerência no sistema. A ser possível o tribunal de recurso alterar as medidas de coacção isso implicaria a intervenção de uma instância superior para apreciar o recurso que inevitavelmente teria de considerar-se cabida pelas razões já supra expostas.

Ora, sendo essa alteração levada a cabo num tribunal da relação seria obrigatória a intervenção do Supremo Tribunal desvirtuando aquele outro paradigma que vem desde a alteração legislativa da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto: o de reservar a competência do STJ para o julgamento dos recursos dos casos mais graves e de maior relevância determinados pela gravidade dos crimes aferida esta pelo critério da pena primeiro aplicável e depois, mais restritivamente ainda, pela pena aplicada.

E se esse caminho de operar a alteração da medida de coacção viesse a ser trilhado pelo STJ sobraria a questão de saber qual seria a entidade ad quem pois a pertinência de um grau de recurso manter-se-ia face à imposição constitucional.

Além disso, esta orientação processual é também a que melhor se coaduna com as atribuições dos tribunais superiores que têm como limite de intervenção o objecto dos recursos sujeitos à sua apreciação para além, naturalmente, das que visam a estrita regulação do processo.

Ver-se-á, em seguida, qual a consequência deste entendimento.

                                             *

5. – Atendendo ao que a lei densifica como «prisão ilegal» no nº 2 do art. 222º CPP verifica-se que o requerente faz incidir a sua análise na circunstância de essa prisão ser motivada por facto que a lei não permite.

Muito singelamente (cfr ponto 25 do sua petição) diz que não estão reunidos os pressupostos do art. 202º para o decretamento da prisão preventiva.

Este seria, porventura, dos invocados e na aparência, o mais consistente fundamento para apreciação, nesta sede, da legalidade da prisão.

O crime de violência doméstica pelo qual o requerente veio a ser condenado é punido com pena de 2 a 5 anos de prisão.

Assim só é enquadrável na alínea b) do nº 1 do citado art. 202º onde se estipula que a prisão preventiva pode ser imposta se o juiz considerar inadequadas ou insuficientes outras medidas no caso de haver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta a qual na definição do art. 1º, al. j) se traduz em condutas que dolosamente se dirijam contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e sejam puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.
Simplificadamente se dirá que embora seja conhecida alguma flutuação doutrinal e jurisprudencial sobre a identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica é generalizado o entendimento de que são carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa[6]-[7] entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa porém, como também já foi salientado, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada[8]. Assim fica evidenciado que as dimensões da integridade física e da liberdade pessoal estão entre aquelas que o tipo legal visa proteger o que torna possível à luz da conjugação das disposições citadas a imposição da prisão preventiva.
Razão pela qual não assiste razão ao requerente nesta vertente da sua invocação de ilegalidade.
Mas há um aspecto de que importa tirar consequências a partir do que se expôs sobre a (in)competência para modificar as medidas de coacção.
Outro dos motivos pelo qual se pode aferir a ilegalidade da prisão tal com determinado no art. 222, nº 2, al. a) é a de esta ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente.
O escrutínio do que seja «entidade competente» tem contudo, limites de aferição. Para o efeito da norma mencionada a incompetência compreende «apenas a de carácter formal, a falta de jurisdição; ou seja, haverá incompetência apenas se a entidade que efectuou ou ordenou a prisão não tem o estatuto requerido para ordenar a prisão, isto é, se não tem o  estatuto de juiz»[9].
Ora, não é isso que está em equação no presente caso embora como já se referiu se considere que não é o tribunal da relação o competente para a modificação da medida de coacção.
Trata-se, porém de uma incompetência funcional cuja verificação conduz ao procedimento previsto no art. 33º, nº 2: «As medidas de coacção ou de garantia patrimonial ordenadas pelo tribunal declarado incompetente conservam eficácia mesmo após a declaração de incompetência, mas devem no mais breve prazo, ser convalidadas ou infirmadas pelo tribunal competente».
Por conseguinte, temos, no caso, por um lado um tribunal que decretou a prisão preventiva sem competência funcional para tal e, por outro, um inequívoco excesso de prazo para audição do arguido à face do que dispõe o art. 254º em conjugação com o art. 141º, pois a apresentação do arguido detido é sempre obrigatória[10] e essa audição deve ocorrer em 48 horas. Omissão essa que gera mais do que um procedimento nulo, uma situação de ilegalidade.
Daqui não resulta, contudo, necessariamente a libertação. A conjugação dos arts. 33º, nº 2 e do art. 223º, nº 4, al. c) aponta para o que se crê ser o mais adequado caminho: a apresentação do requerente no tribunal competente no prazo de 24 horas, com a cominação expressa na última das referidas normas, para aí ser ouvido com a subsequente prolação de despacho.

                                           *

6. – Em face do exposto, deferindo, em parte embora por outros motivos, o pedido de habeas corpus determina-se:
A) Que o requerente AA seja apresentado no prazo de 24 horas, sob pena de desobediência qualificada para interrogatório judicial, nos termos do art. 141º do Código de Processo Penal, Juízo Local Criminal de Torres Vedras, Juiz 2, da Comarca de Lisboa Norte, com a prolação subsequente de despacho.
B) Que a esse Tribunal seja remetida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, onde o processo se encontra, certidão das peças necessárias para o eventual reexame dos pressupostos de aplicação da medida de coacção.
Sem tributação.

Remeta cópia, de imediato ao Tribunal da Relação de Lisboa e ao Juízo Local Criminal de Torres Vedras, Juiz 2, da Comarca de Lisboa Norte.


Afigurando-se que não obstante solicitação expressa nesse sentido não foi dado o devido cumprimento ao preceituado no art. 223º, nº 1 CPP extraia e remeta ao Conselho Superior da Magistratura certidão integral dos autos para os efeitos tidos como convenientes.


Feito e revisto pelo 1º signatário.

Nuno Gomes da Silva (relator) *
Francisco Caetano
Santos Carvalho (com declaração de voto)

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[1] Cfr, neste sentido, v.g. o Código de Processo Penal Anotado, vol I, pag. 1371, dos Cons. Simas Santos e Leal-Henriques.

[2] Cfr. Ac. deste Supremo Tribunal, de 14.05.2014, proc 23/14.2YLSB.S1, desta 5ª Secção, reflectindo a posição de Gomes Canotilho e Vital Moreira in CRP Anotada, Vol I, 4ª edição, pag 510.
[3] Cfr a anotação 4 ao art.222º do Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar et all, 2ª ed., pag. 854.
[4] Cfr a anotação 3 ao art. 222º da ob cit. pag 853 e entre muitos, o Acórdão STJ de 2015.03.16, proc 122/13.TELSB-L.S1

[6] Cfr, v.g. Plácido Conde Fernandes, «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal» in “Revista do CEJ, nº 8 (especial), pags 304-305, que refere a este propósito a existência de um «entendimento sedimentado».
No mesmo sentido Augusto Silva Dias «Crimes contra a vida e a integridade física», 2ª ed. aafdl, pag. 110.
[7] Sem embargo de haver oposição a que seja erigida a específico bem jurídico protegido a dignidade humana. Cfr a este respeito Nuno Brandão, ob cit, pag 14.
[8] Cfr para uma resenha das posições doutrinais, Cristina Augusta Teixeira Cardoso, «A violência doméstica e as penas acessórias» UC, Porto, pag. 16 consultável em
 http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/9686/1/Tese%20mestrado%20-%20A%20Viol%C3%AAncia%20dom%C3%A9stica%20e%20as%20penas%20acess%C3%B3rias.pdf
[9]  Cfr a anotação 6 ao art. 222º do Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar et all, 2ª ed., pag. 855.
[10] Cfr Acórdão STJ de 2014.05.28, proc (de HC) 921/12.8TAPTM-D.S1