Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
120/14.4TBARL.E1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: CONTRATO DE VIGILÂNCIA
DEVER DE VIGILÂNCIA
NEXO DE CAUSALIDADE
FURTO
OMISSÃO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / NEXO DE CAUSALIDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
-Antunes Varela, Obrigações, Volume I, 9.ª edição, p. 954.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 563.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4 E 639.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 26-02-1992, PROCESSO N.º 081371;
- DE 03-03-2016, PROCESSO N.º 52336/13.4YIPRT.L1.S1,
- DE 27-04-2017, PROCESSO N.º 1523/13.7T2AVR.P1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


- DE 13-05-2014, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Incumprido culposamente um dever de vigilância de instalações industriais, decorrente de um contrato de vigilância ou de alarme, aquando de um assalto em que terceiros subtraíram bens detidos naquelas instalações, verifica-se o nexo de casualidade previsto no art. 563.º do CC, entre o facto ou a omissão da entidade de vigilância e o dano decorrente do furto referido.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA, Lda. intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, no Tribunal da Comarca de Évora, contra BB, Unipessoal Lda., pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 37.935,54, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, bem como no pagamento de sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no art. 829º-A, nº 4, do Código Civil.

Para tanto alegou, em síntese, que celebrou com a ré, em 04.09.2013, um contrato de adesão, denominado Contrato de Instalação/Serviços (Empresa) – Manutenção e Ligação à Central de Alarmes, sucedendo que no dia 30.10.2013, o sócio gerente da autora deparou-se com o arrombamento de uma janela e destruição do sistema de alarme e de videovigilância instalados pela ré na sede da autora, objeto do contrato em questão, não tendo os sistemas de alarme e videovigilância ali instalados registado qualquer movimento, nem resultou qualquer sinal de alarme e aviso junto dos responsáveis da autora ou da GNR.

Em consequência do arrombamento, foi retirado do interior das instalações da autora cobre novo e velho, no montante global de € 23.947,30, o qual foi carregado num veículo pesado, de marca ..., modelo ..., com a matrícula -IT-, registado em nome da autora, também ele subtraído à autora, veículo esse que veio a ser abandonado na ... e entregue à autora posteriormente, tendo esta despendido a quantia de € 321,17 na recuperação e transporte do mesmo.

Mais alegou que teve de adquirir um equipamento ..., semelhante ao instalado na viatura furtada, que foi instalado noutra pertencente à autora, por forma a poder continuar a laborar e cumprir os contratos vigentes por si celebrados, o que teve um custo de € 7. 226,25, e pela não utilização da viatura durante 65 dias, teve a autora prejuízos no montante de € 6.440,85.

A ré contestou, impugnando parcialmente a factualidade alegada pela autora, afirmando que o sistema por si instalado no edifício em questão estava a funcionar com normalidade, aquando do assalto às instalações da autora, sucedendo que o sistema de alarme instalado no imóvel da autora sofreu um corte de energia no dia 29.10.2013 (pelas 18h 29m), que só foi restabelecido no dia 30.10.2013 (pelas 02.01), sem prejuízo do alarme ter sido acionado às 19h 23m do dia 29.10.2013. Ulteriormente, o alarme foi desativado e destruído, motivo pelo qual a ré nunca rececionou qualquer sinal transmitido por aquele aparelho.

Mais alegou que a autora não deixou expresso em momento algum que pretendia ser avisada de eventuais cortes de fornecimento elétrico, e do contrato celebrado entre as partes consta que a ré está isenta de qualquer responsabilidade quando o sistema de segurança é desligado e não assume responsabilidade por quaisquer prejuízos causados na pessoa ou bens do cliente que sejam imputáveis a atos de terceiros e, bem assim, por atos ilícitos alheios contra o sistema de segurança ou contra o património do cliente e, caso assim não se entenda, carecem de prova os danos alegados pela autora.

Alegou, por último, que a autora formula uma duplicação de pedidos, quando menciona o custo da aquisição de um novo equipamento ... e respetiva instalação e, posteriormente, invoca a perda de oportunidades de negócio, pelo que a ação deve improceder na totalidade.

Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, procedendo-se à realização da audiência final e sendo proferida sentença que condenou a ré em parte do peticionado.

Inconformado com o assim decidido, apelou a ré, tendo este recurso sido julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Évora.

Mais uma vez inconformada, veio a ré interpor a presente revista excecional que a formação prevista no nº 3 do art. 672º do Cód. de Proc. Civil – a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem – admitiu.

A recorrente, nas suas alegações formulou conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritas.

Da análise daquelas resulta que a recorrente para conhecer neste recurso, levanta apenas a seguinte questão:

Não se verifica nos autos o preenchimento do pressuposto de que depende a responsabilização da ré, consistente no nexo de causalidade entre a falha no sistema de vigilância montado pela recorrente e o dano sofrido pela autora decorrente do furto, mesmo na modalidade decorrente da doutrina da perda de chance?

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.

Como é sabido – arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.

Já acima vimos as concretas questões que a aqui recorrente levanta como objeto deste recurso.

Mas antes de mais, há que especificar a matéria de facto que as instâncias deram por apurada e que é a seguinte:

1. A autora tem por objeto: “Reciclagem, recolha e seleção de metais ferrosos e não ferrosos, transporte de quaisquer materiais recicláveis para depósito próprio ou de outrem, nacional ou internacionalmente”;

2. A autora tem a sua sede e instalações industriais na Zona Industrial – …, lotes …, …, .. e …, em ...;

3. A ré tem por objeto: “Exploração e gestão de centrais de receção e monitorização de alarmes de roubo e intrusão, bem como a gestão, manutenção e exploração de sistemas de segurança; a vigilância de bens móveis e imóveis”;

4. No dia 04 de Setembro de 2013, no âmbito da sua atividade comercial, a ré celebrou com a autora um acordo escrito denominado “Contrato de Instalação/Serviços [Empresa] (Manutenção Ligação à Central de Alarmes e Serviço de Piquete Opcional) n.º ..., junto aos autos a fls. 19 a 22, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais;

5. Na sequência do acordo mencionado em 4., a autora autorizou e aceitou o plano de ação e o projeto de instalação juntos a fls. 26 a 29, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, tendo sido instalados no imóvel mencionado em 2. três detetores que estão dirigidos a três zonas diferentes de proteção;

6. Entre as 18 horas e 30 minutos do dia 29 de Outubro de 2013 e as 08 horas e 30 minutos do dia 30 de Outubro de 2013, verificou-se a intrusão de desconhecidos nas instalações onde a autora labora, através do arrombamento de uma janela (a correspondente ao escritório) e destruição do sistema de alarme e de videovigilância ali instalados pela ré, objeto do acordo mencionado em 4. e 5.;

7. No dia 30 de Outubro de 2013, pelas 08 horas e 30 minutos, quando a autora teve conhecimento do referido em 6., contactou o 112 e a ré;

8. Durante o período mencionado em 6., o sistema de alarme e videovigilância instalados pela ré nas instalações da autora não acionaram qualquer sinal de alarme e intrusão, nomeadamente aos responsáveis da autora, bem como à GNR;

9. Na sequência do arrombamento, foram retirados das instalações da autora, sem a sua autorização, pelo menos:

i. 2 025 kg de cobre novo, a um preço de mercado, à data, de €4,90 kg;

ii. 2 800kg de cobre velho, a um preço de mercado, à data, de 4,70 kg;

iii. um veículo pesado, marca ..., modelo ..., matrícula -IT-, registado em nome da autora;

10. O veículo IT foi abandonado em ..., tendo sido entregue à autora no dia 04 de Janeiro de 2014;

11. Na recuperação e transporte do veículo identificado em 10., a autora despendeu, pelo menos, €146,88, correspondente aos quilómetros realizados;

12. A autora adquiriu um equipamento ... semelhante ao colocado na viatura IT, que instalou noutro veículo a si pertencente, em 03.12.2013, para poder cumprir os acordos em vigor, por si celebrados;

13. A aquisição do equipamento ... teve um custo de, pelo menos, €5 875,00;

14. Durante o período mencionado em 6., não foi rececionado pela ré qualquer sinal de intrusão;

15. O alarme instalado no imóvel identificado em 2. registou um corte de energia às 18 horas e 29 minutos do dia 29 de Outubro de 2013;

16. Pela central foi ainda rececionado sinais relativos ao acionamento do alarme, entre as 19horas e 23 minutos e as 11horas e 47minutos do dia 29 de Outubro de 2013;

17. Pela central foi rececionado sinal de intrusão na zona 3, pelas 02 horas, 01 minuto e 44 segundos;

18. O corte de energia mencionado em 18. foi restabelecido às 02 horas, 01 minuto e 44 segundos do dia 30 de Outubro de 2013;

19. O alarme foi desativado e destruído pelas 02horas, 02 minutos e 26 segundos do dia 30 de Outubro de 2013;

20. A ré tem vindo a adotar (e chegou a adotar com a autora que não entre os dias 29 e 30 de Outubro de 2013) o seguinte procedimento quando se verificam cortes de corrente: enviam e-mail para o cliente, mesmo que o corte permaneça apenas por alguns segundos; entram em contacto telefónico com o cliente, quando a energia não tiver sido reposta após cinco a seis horas.

Vejamos agora a concreta questão acima elencada como objeto deste recurso.

Trata-se aqui de saber se está preenchido o pressuposto legal de que depende a responsabilidade contratual da recorrente perante a autora, nexo de causalidade.

A douta sentença de 1ª instância, analisou todos os pressupostos legais de que depende aquela responsabilidade civil, concluindo pela sua verificação na totalidade – salvo relativamente a parte do dano – e, por isso, condenou a ré na parte do pedido abrangido pelo dano efetivamente apurado.

A Relação confirmou esta condenação.

Nesta revista, a ré recorrente apenas impugnou a verificação do pressuposto nexo de causalidade, pelo que apenas há que apreciar se o mesmo nexo resulta apurado dos factos apurados.

A douta sentença de 1ª instância fez uma apreciação notável da questão que foi totalmente acolhida pelo acórdão recorrido e que se nos afigura inatacável.

Assim, sobre o assunto refere aquela sentença:

O não funcionamento do sistema de segurança, só por si, não chega para fazer operar o resultado; contudo, cooperou no dano efectivamente verificado.

O princípio da responsabilidade por todas as consequências adequadas do facto, mesmo as indirectas, exige que a responsabilidade daquele que responde pelo não funcionamento do sistema de segurança subsista sempre que a persistência criminosa dos intrusos, que provocou o dano, deva ser considerado uma consequência adequada do 1.º facto.

Ou seja, o 2.º facto não provoca a interrupção do nexo causal do 1.º facto; o 2.º facto é independente do 1.º, mas existe entre ambos uma relação de adequação, representado o 2.º facto uma fase ou termo do processo causal, razão pela qual o 1.º facto deve considera-se a causa mediata do dano e o seu autor é responsável pelo dano indirecto que causou.

Existe uma relação de adequação entre o 1.º facto e o 2.º facto na medida em que é o estado de fragilidade, em termos de segurança, das instalações da autora, causado pelo 1.º facto, que favorece a eficácia causal do 2.º facto para o dano; é neste contexto e sentido que se diz que o 1.º facto cooperou efectivamente com o 2.º para o dano concretamente verificado (neste sentido, vide ac, RC de 13.05.2014, disponível in “www.dgsi.pt”).

Posto isto conclui-se pela existência de uma concorrência efectiva de causas. A responsabilidade estende-se a todas as consequências adequadas do facto, mesmo as indirectas; exige que a obrigação de indemnizar do autor do 1.º facto subsista, em princípio, mesmo nestes casos.

Nas palavras de Antunes Varela (in “Obrigações”, vol. I, 9.ª edição pág.954) “Em face do lesado, quer haja subsequência (adequada) de causas, quer haja causas cumulativas ou mera coincidência de causas de natureza distinta, qualquer dos responsáveis é obrigado a reparar todo o dano.”

In casu, o dano verificou-se em consequência da eficácia causal dos dois factos e comportamentos, que convergiram para um mesmo resultado.

Deste modo, considera-se preenchido o nexo causal. Em suma, preenchidos estão, pois, os requisitos para a obrigação de indemnização por parte da autora.»

E o acórdão recorrido reforçou este entendimento acrescentando o seguinte: “Na verdade, um dano não é, apenas, a consequência da sua causa imediata, sendo, em regra, produto de um encadeamento ou sequência de causas[1].

É certo que nem todas as causas fácticas ou naturalísticas poderão ser juridicamente havidas como causa do dano ocorrido; para tanto, hão-de integrar o critério da causalidade adequada, constante do já citado artigo 563º do Código Civil, o que ocorreu in casu, como bem se deixou demonstrado na sentença recorrida.”

Este é também o entendimento que este Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a adotar, citando-se como exemplo o acórdão proferido em 26-02-1992, na revista nº 081371, que tratou um caso com contornos fácticos idênticos aos aqui em apreço e em cujo sumário se pode ler:

 A instalação – referindo-se ao sistema de alarme – tem em vista evitar, o mais possível, o assalto do estabelecimento ou o prédio onde o sistema tem de as ter.

Mas, não actuando por deficiência da instalação, o não acionamento facilitou ou tornou mais provável o assalto que se veio a verificar, sendo condição do mesmo e causa adequada, com o que fica preenchido o adequado nexo de causalidade.”

No mesmo sentido decidiu mais recentemente, em 3-03-2016  o acórdão deste Supremo proferido no processo nº 52336/13.4YIPRT.L1.S1, em situação factual com semelhança com a aqui em apreço.

Desta forma, está preenchido o pressuposto de que depende a responsabilização da recorrente, nexo de causalidade e, por isso, tem de improceder a presente revista.

Pelo exposto se nega a revista peticionada.

Custas pela recorrente.

*

Nos termos do art. 663º, nº 7 sumaria-se o acórdão da seguinte forma:

24-04-2018

João Camilo ( Relator )

Fonseca Ramos

Ana Paula Boularot

_____________
[1] Cfr. Ac. do STJ de 27.04.2017, proc. 1523/13.7T2AVR.P1.S1.