Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1112/15.1T8VCT.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO DE MENOR
OMISSÃO DO DEVER DE VIGILÂNCIA
CONCORRÊNCIA ENTRE CULPA DO LESADO E RISCO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Maria da Graça Trigo, «Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação», 2015, Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, vol. II, 493 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 497.º, N.º 2, E 505.º, 507.º, N.º 2, 570.º, 571.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 17/05/12, PROCESSO N.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1.
Sumário :
I. O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura .

II. Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente.

III. Num caso em que a causa essencialmente determinante do acidente foi um censurável incumprimento do dever de vigilância por parte do familiar a quem o mesmo estava confiado, a sua avó materna, ao permitir que o mesmo (com 20 meses de idade) se escapasse sozinho para via pública, nas circunstâncias de particular perigosidade que resultavam das características da via no local do acidente (sem passeio ou berma e abrindo directamente o portão da casa para a faixa de circulação rodoviária), colocando-se imprevistamente à frente de viatura em estado de marcha – e sendo a pretensão indemnizatória deduzida pela mão da vítima - o regime constante do art. 571º do CC pode ser aplicado sem condicionantes e, em conjugação com o regime do art. 570º, a culpa do vigilante (pessoa inserida no círculo familiar do menor, em comunidade de vida com este e sua mãe), conduzirá à exclusão da indemnização.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA intentou acção de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB e “CC SEGUROS, S.A.", pedindo que as Rés sejam condenadas a pagar-lhe a quantia de € 150 000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, já vencidos e vincendos, a contar da citação e até efectivo pagamento.

Alega, em síntese, que, no dia 3 de Dezembro de 2010, pelas 08h 50m, ocorreu um acidente de viação, na Rua …, junto ao nº ..., em …, concelho de Ponte de Lima, nas seguintes circunstâncias fundamentais: o veículo ligeiro de passageiros de marca e modelo Ford Transit" e matrícula nº ...-GQ-..., objecto de seguro na 2ª Ré, parou no lado oposto da faixa de rodagem para recolher uma criança; a Ré BB, que o conduzia, sem previamente ter verificado se existia alguém, designadamente alguma criança, na frente da viatura que conduzia reiniciou a marcha do veículo, tendo atropelado o seu filho, DD, provocando-lhe lesões que determinaram directa e necessariamente a sua morte - sustentando que a responsabilidade das Rés resulta da violação do dever de cuidado por parte da 1ª Ré, condutora do mesmo.

A 1ª Ré veio contestar, excepcionando a sua ilegitimidade para os termos da acção. Supletivamente, defende que não teve qualquer responsabilidade pelo acidente e impugna a essencialidade dos factos alegados.

Também a 2ª Ré veio contestar, aceitando a ocorrência do acidente e a vigência do contrato de seguro, impugnando a demais factualidade alegada, defendendo não poder ser assacada à condutora do veículo seguro qualquer culpa ou comportamento, activo ou passivo, determinante para a produção do acidente.

No despacho saneador, julgou-se a 1ª Ré parte ilegítima, com a respectiva absolvição da instância.

Realizou-se o julgamento e proferiu-se sentença que, concluindo no sentido da existência de concorrência entre a culpa do lesado e os riscos concretos da circulação do veículo, computada em 70% e 30%, condenou a Ré a pagar à Autora as quantias de €36 000,00 e € 295,50, acrescidas de juros de mora.


2. Inconformadas, apelaram ambas as partes, tendo a Relação começado por definir o seguinte quadro factual subjacente ao litígio:

1.     DD nasceu no dia 27.03.2009, conforme documento de fls. 115 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2.     E era filho da autora AA e de EE, já falecido.

3.     No dia 03.12.2010, pelas 8.50 horas, na Rua da Aldeia, da freguesia de …, do concelho de Ponte de Lima, ocorreu um embate em que foram intervenientes: o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ...-GQ-..., conduzido por BB e o menor, DD.

4.       O aludido veículo, da marca “Ford”, modelo “Transit”, tem a lotação de 9 lugares (incluindo o condutor) e pertence à Junta de Freguesia de Navió, destinando-se ao transporte colectivo de crianças.

5.       A referida via é um arruamento com dois sentidos de circulação, cuja largura da via varia entre os 4,4 metros e os 4,8 metros.

6.      No local do sinistro a estrada tem cerca de 4,75 metros e apresenta-se em recta, em patamar e ladeada de casas.

7.      O pavimento da estrada no referido local é em asfalto e encontrava-se em bom estado de conservação, evoluindo para empedrado na Rua da Igreja.

8.      Aquela via não tem qualquer marcação, quer para delimitar a faixa de rodagem, quer para separar os sentidos de trânsito e não se encontra dotada de passeios ou bermas ou sequer valetas.

9.       O local do sinistro caracteriza-se por uma zona com tráfego reduzido, quer de peões, quer de veículos.

10.     Nas sobreditas circunstâncias de lugar e tempo, o veículo ...-GQ-... circulava por aquela via, no sentido Rua da Aldeia/Rua da Igreja, isto é, no sentido Sul/Norte.

11.      Entretanto, e porque a condutora necessitou de ir recolher uma criança ao nº 16 da aludida artéria, imobilizou a sua viatura perto dessa habitação e a cerca de 1,70m da extremidade esquerda da via, atento o respectivo sentido de marcha.

12.      O portão do nº de polícia … abre directamente para a faixa de circulação rodoviária.

13.      Do lado direito à casa de habitação nº … existe um muro que suporta o arruamento paralelo a esta rua e que se encontra num plano mais elevado.

14.      Depois de imobilizar a viatura, a condutora permaneceu sentada no lugar do condutor e aguardou que a avó da aludida criança a fizesse entrar no dito veículo e que esta colocasse o cinto de segurança.

15.      Entretanto, o menor DD, que também se encontrava aos cuidados da sua avó materna, saiu sozinho do interior da aludida habitação nº … e precipitou-se para a faixa de rodagem, sem que ninguém se apercebesse desse facto, tendo-se colocado na frente do veículo seguro.

16.      Após a outra criança ter entrado no veículo seguro, a respectiva condutora reiniciou a marcha, embatendo no menor DD, provocando-lhe várias lesões que lhe determinaram a morte.

17.       A condutora do veículo não se apercebeu da presença do menor na frente do veículo antes de reiniciar a marcha, nomeadamente, devido à configuração da viatura - frente alta e o volante recuado - e à altura do referido menor.

18.      Depois de percorrer alguns metros após o embate, a condutora imobilizou o veículo seguro, alertada pelos gritos da avó do sinistrado.

19.     O veículo seguro, até ao dia anterior, era habitualmente conduzido por FF, a qual no exercício das suas funções de transporte de crianças, normalmente, saía da viatura, recolhia a criança, acompanhava a mesma até ao interior da viatura onde lhe colocava o sistema de retenção, regressando depois ao seu lugar de condutora e prosseguindo o seu trajecto.

20.     A referida BB não estava habilitada com o certificado de motorista para efectuar o transporte de crianças.

21.      No âmbito do processo crime que correu termos no 1º Juízo, sob o nº de processo 316/10.8GBPTL, foi decidido não pronunciar a condutora, BB, da prática do crime de homicídio por negligência, que lhe tinha sido imputado no requerimento de abertura de instrução apresentado por EE e AA, conforme documento de fls. 66 a 75 dos presentes autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

22.       Após o embate, o menor DD ficou inanimado e foi assistido no local por uma equipa de INEM, tendo permanecido inconsciente até falecer, o que ocorreu por volta das 10 horas desse mesmo dia.

23.      O menor DD era uma criança terna e tinha sido um filho muito querido pela autora e pelo seu marido.

24.      Em consequência da sua morte inesperada e prematura, a autora e o seu marido, ainda vivo à data dos factos, sofreram dor, desgosto e angústia, bem como inconformismo perante as circunstâncias em que o falecimento do seu filho ocorreu.

25.      Tendo a autora tido necessidade de recorrer a ajuda psiquiátrica.

26.      Ainda em consequência da morte do seu filho, a autora teve gastos com o funeral no valor de € 985,00.

27.       À data do embate, a responsabilidade emergente de acidentes de viação causados a terceiros com o veículo de matrícula ...-GQ-... encontrava-se transferida para a ré seguradora, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 41….


3. Passando a apreciar as questões jurídicas que constituíam objecto dos recursos, considerou a Relação no acórdão recorrido:

A Autora recorrente advoga que o desconhecimento da condutora do veículo das regras de segurança e dos procedimentos habituais do transporte escolar, foram determinantes para a produção do efeito. Conclui que o acidente se deveu a culpa exclusiva da lesante, “condição sine qua non” da morte.

A única disposição legal passível de ser violada pela mesma seria a do art. 12.º, n.º 1, do Código da Estrada, do seguinte teor "Os condutores não podem iniciar a marcha ou retomar a marcha sem assinalarem com a necessária antecedência e sua intenção e sem adoptarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente."

Por outro lado, é manifesto que, tal como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 12/02/1987 , “sendo a condução de veículos uma actividade perigosa, ponto em risco valores elevados como a vida humana, é razoável ter uma especial exigência de comportamento para quem exerce essa actividade.”

Apesar deste especial dever de cuidado, não se vislumbra, do conjunto dos factos provados, que a condutora da carrinha tivesse praticado qualquer violação às regras estradais ou sequer omitido qualquer dever de cuidado específico no sentido de tentar evitar o acidente. 

Com efeito, resulta dos factos provados que, nos momentos que antecederam o embate, esta condutora se encontrava sentada ao volante e a olhar para o lado oposto ao da porta por onde saiu a criança, por estar a acompanhar a entrada da passageira que entrava e se acondicionava no interior da mesma. Assim, é seguro que a mesma não se apercebeu da movimentação do menor em direcção da frente do veículo. Por outro lado, no momento de iniciar a marcha, esta não tinha visibilidade sobre a criança, atentas as dimensões e as características do veículo que tripulava.

Ora, para que fosse exigível à condutora do veículo ter saído do veículo antes de retomar a marcha teria, por qualquer forma, que ser previsível que o início da marcha seria um especial perigo para os utentes da via em geral ou para o menor em causa em especial.

Uma vez que esta não estava minimamente consciente dos perigos que poderiam advir da circulação do veículo naquelas circunstâncias, não se lhe pode ser assacada qualquer actuação culposa.

A Autora recorrente invoca ainda que a circunstância de tal condutora não ter a devida formação para a condução de veículos afectos ao transporte de crianças e não possuir os conhecimentos específicos para tanto revela e explica, só por si, a falta de cuidados na sua actuação.

É certo que, nos termos do disposto no art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 13/2006, de 17 de Abril, "A condução de automóveis afectos ao transporte de crianças só pode ser efectuada por motoristas que possuam um certificado emitido pelo IMTT, válido por cinco anos, cujas condições são definidos por portaria do membro do governo que tutela os transportes (...)."

Bem como que a respectiva condutora se encontrava habilitada para a condução de veículos de categoria B (ligeiros), desde 23/12/1993, mas não possuía o certificado de motorista exigido para a condução de automóveis afectos ao transporte de crianças.

Mas, tal como é realçado na sentença em recurso, tal condutora não estava adstrita à obrigatoriedade da posse de tal certificado de motorista, em face da disposição legal do art. 26.º da mesma Lei n.º 13/2006, de 17/04, de onde decorre que ao transporte de crianças, a título acessório, pelas pessoas colectivas sem fins lucrativos, não é aplicável a invocada estatuição do art. 6.º, n.º 1, excepto a alínea b) do n.º 1, 8º e 13º, desde que o automóvel não tenha uma lotação superior a 09 lugares.

Independentemente disso, esta falta de certificado de motorista nunca teria qualquer repercussão na dinâmica do acidente dos autos, já que - como é clarividente - este certificado apenas releva, tal como foi confirmado pela testemunha FF, para a execução do serviço de transporte das crianças propriamente dito.

Uma vez que a criança atropelada não era uma das crianças transportadas no veículo, mas sim um terceiro, esses ensinamentos específicos de nada relevariam.

Tal como refere a Ré recorrente nas suas alegações "As características do veículo, o facto de ser um veículo de transporte de crianças e o facto da condutora não estar experimentada na condução daquele veículo - facto que, aliás, não resulta sequer da matéria de facto provada – não entroncam qualquer nexo causal com a ocorrência do evento que, infelizmente, sempre ocorreria ainda que o veículo tivesse diferentes características, não transportasse crianças e a condutora fosse a pessoa mais experiente do mundo."

Conclui-se, portanto, que não pode ser assacada qualquer responsabilidade à condutora do veículo.


Diversamente, a culpa na produção do acidente é imputável em exclusivo ao próprio menor, ou melhor e atendendo à sua inimputabilidade legal, à adulta a quem este estava confiado.

Aliás, é isso mesmo que vem defendido na sentença em recurso: "A culpa do evento impende, assim, e em exclusivo sobre a avó do menor, na medida em que a guarda deste estava a seu cargo e não foram por ela tomados os cuidados necessários e suficientes para que o acidente fosse evitado.

Na verdade, resulta dos autos que o menor em causa estava confiado aos cuidados da sua avó, para que tomasse conta deste. Por inerência, esta tinha a obrigação de providenciar pelas medidas de cuidado e segurança tendentes designadamente a evitar que o seu neto saísse para o exterior da habitação sozinho.

No entanto, a avó saiu para o exterior da habitação com a neta de seis anos, sem ter tido previamente o cuidado de providenciar pelo fecho da porta de acesso à rua, de modo que o outro neto não conseguisse vir sozinho para o exterior, colocando-se na frente do veículo, sem que nem a condutora, nem a sua avó disso se tivessem apercebido.

Esta sua actuação configura uma situação de negligência grosseira, tendo sido este comportamento do menor imputável à sua avó que, à luz da teoria da causalidade adequada, foi causal do acidente.

A disposição legal directamente aplicável é a do art. 491.º do C. Civil, nos termos da qual "As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido."

Tal como explica Almeida Costa , na «incapacidade natural» inclui-se a menoridade. A diligência e o cuidado exigíveis às pessoas obrigadas a vigilância começam antes da verificação do resultado. Haverá que apreciar as circunstâncias de cada caso, tendo-se em vista as concepções dominantes e os costumes.

A Ré recorrente cita o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2012, tendo como Relator Abrantes Geraldes e proferido num caso paralelo ao destes autos: "O atropelamento de um peão - menor de 4 anos de idade - que inopinadamente se atravessou à frente de um veículo que, numa localidade, seguia na sua faixa de rodagem, a uma velocidade não superior a 20 km/h, sem que o condutor o pudesse prever, é de imputar em exclusivo ao lesado, tornando irrelevante o risco genérico decorrente do facto de o veículo se encontrar a circular numa via pública."

Com esta apreciação, entramos já na questão jurídica seguinte que a Ré recorrente coloca à nossa apreciação: a admissibilidade de concorrência entre a culpa do lesado e a responsabilidade objectiva pelo risco de circulação do veículo.

Na sentença recorrida, apesar de se ter concluído pela culpa exclusiva do lesado na produção do acidente (nos termos acima expostos), defende-se que foi produzida prova da intervenção no processo causal do acidente de um concretizado risco próprio do veículo (art. 503.º, n.º 1, do C.Civil).

A justificação apresentada é a seguinte: "Ora, ponderando tudo isto e no contexto da visualização dinâmica do que sucedeu (todo o processo causal), cremos que a actuação do menor foi, sem dúvida e predominantemente, determinante para a eclosão do sinistro, mas ao mesmo ou, pelo menos, às suas consequências não foram estranhas o risco próprio da condução da viatura segurada naquela concreta situação." E, mais à frente, "Destes considerandos concluímos pela afirmação inequívoca de uma concorrência entre a culpa do lesado e os riscos concretos da circulação do veículo, concorrência esse que, contudo, deverá ser repartida de molde a não olvidar que a actuação do menor directamente resultante da omissão do dever de vigilância da sua avó foi fortemente predominante para o resultado. Assim, reputa-se uma repartição de responsabilidades - culpa/risco - em 70% e 30%, respectivamente."

Este tese argumentativa, tal como aí se refere, assenta essencialmente nas teses argumentativas defendidas por Calvão da Silva, em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o qual defende uma interpretação actualizada do art. 505.º do C. Civil, nos seguintes termos: "Sem prejuízo do disposto no art. 570.º (leia-se sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, a fortiori, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo."

Por seu turno, o Acórdão em anotação trata-se do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, tendo como Relator Santos Bernardino e em que, no mesmo sentido, se decidiu - ainda que três Declarações de Voto - que "O texto do art. 505.º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Ao concurso é aplicável o disposto no art. 570.º do CC. A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça. Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas."

Efectivamente, esta “nova tese interpretativa” teve a sua origem em directivas comunitárias no domínio do seguro automóvel, designadamente a s directivas 72/166/CEE, de 24 de Abril (primeira directiva), 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda directiva), 90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990 (terceira directiva), 2000/26/CE, de 16 de Maio de 2000 (quarta directiva) e 2005/14/CE, de 11 de Maio (quinta directiva) .

Efectivamente, resulta do teor das mesmas que “(…) os montantes até cujo limite o seguro é obrigatório devem permitir, em toda e qualquer circunstância, que seja garantida às vítimas uma indemnização suficiente, seja qual for o Estado-membro onde o sinistro ocorra (…) (5º Considerando da Segunda Directiva) e que e deve ter por base ”um nível elevado de protecção do consumidor” (16º Considerando da Terceira Directiva).

No entanto, tal como defende Moitinho de Almeida, “(…) a jurisprudência comunitária deve ser precisada. Por um lado, não é claro que ela se aplica aos condutores de veículos motorizados. Quanto a estes pode entender-se que por terem criado o risco da circulação automóvel e dele serem beneficiários devem usufruir de um regime menos favorável do que gozam os restantes utentes não motorizados das vias públicas. (…) Por outro lado, não é de excluir que, excepcionalmente, o Tribunal de Justiça mostre uma abertura a razões de prevenção e admita, em casos limite, em que o comportamento imprevisível do lesado torne o dano inevitável, a indemnização possa ser excluída.”

Além disso, ainda em sede de direito comunitário, deve atender-se a que resulta também expressamente da Quinta Directiva que é da competência dos Estados-Membros a definição dos pressupostos da responsabilidade civil. Igualmente que, em complemento com as citadas Directivas, a Convenção de Estraburgo, de 14 de Abril de 1973 (do Conselho da Europa), relativa à responsabilidade civil em caso de danos causados por veículos automóveis, estabelece, no art. 5.º, n.º 1, que, tidas em conta as circunstâncias, a indemnização possa ser reduzida ou mesmo excluída quando o lesado tenha culposamente contribuído para a produção do dano.

Aliás, nesse sentido, e tal como se dá conta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2012 acima citado, o Tribunal de Justiça decidiu, no Acórdão de 09/06/11, no âmbito do processo de reenvio prejudicial nº C-409/09, que tais Directivas "devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano." Acrescenta-se inclusivamente no mesmo Acórdão, por referência a uma situação paralela a esta aqui em apreciação nos presentes autos, que "A legislação nacional (portuguesa) aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente, num contexto como o do presente processo (morte de um menor de tenra idade que tripulava uma bicicleta e que circulava em contramão, tendo embatido num veículo automóvel sem qualquer culpa do respectivo condutor), quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vitima."

Em sede de direito nacional, é inquestionável que a posição clássica quer da doutrina, quer da jurisprudência, vai no sentido da inadmissibilidade da concorrência entre a culpa e o risco, interpretando-se a disposição legal do art. 505.º do C. Civil em termos de causalidade adequado: a responsabilidade decorrente dos riscos próprios do veículo somente se justifica quando não haja prova da imputabilidade do acidente, em sede de culpa, ao lesado ou a terceiro.

A favor desta tese milita, desde logo, o próprio elemento literal, já que é inquestionável que o art. 505.º do C. Civil dispõe expressamente que a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo é excluída quando o acidente foi imputável, leia-se a título de culpa, ao lesado ou a terceiro.

Depois, esta mesma interpretação é justificada com a teleologia da definição das situação de responsabilidade pelo risco e, em especial, das decorrente do risco de circulação dos veículos.

Seguindo de perto as explicações de Menezes Cordeiro, a imputação delitual, traduzida na "imputação, a uma pessoa, de determinado dano que se verificou em esfera alheia", é a forma de responsabilidade central, quer do ponto de vista histórico, quer do ponto de vista científico, encontrando-se consagrada no art. 483.º do C. Civil em termos gerais.

A responsabilidade pelo risco é já uma evolução juscientífica recente, permitindo, em casos excepcionalmente tipificados na lei, a imputação de responsabilidade, através de um mecanismo de transferência do risco e independentemente de culpa.

Esta dicotomia presença/ausência de culpa releva-se no plano da imputação do facto ao agente: "(...) na imputação delitual, a precisa delimitação da extensão do dano a imputar ao agente é derivada duma valorização jurídica; na imputação objectiva consegue-se o mesmo efeito não com o recurso a níveis axiológicos mas tão só a níveis ontológicos, delimitados em função de critérios de normalidade social." 

Especificamente no campo do risco de circulação dos veículos, a fixação deste tipo de responsabilidade excepcional justifica-se pela circunstância de a utilização de veículos, pela sua própria natureza, ser susceptível de produzir danos, mesmo independentemente da existência de culpa delitual.

Face a estas construção e delimitação jurídicas, entendemos existirem inultrapassáveis dificuldades em compatibilizar no mesmo evento concreto a imputação delitual com a imputação pelo risco.

Com efeito, a responsabilidade pelo risco sempre estaria presente, já que sempre relevarão os riscos decorrentes da mera circulação do veículo, decorrentes das suas dimensões, peso e dinâmica de circulação. Assim, a admitir-se esta construção jurídica, não compreendemos como se poderá afirmar - como faz Calvão da Silva nos termos acima citados - que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo possa ser excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro.

Noutra perspectiva, vemos também sérias dificuldades conceptuais em hipoteticamente graduar a responsabilidade culposa e a responsabilidade com base no risco para a produção de um mesmo e único resultado: é que os respectivos pressupostos e critérios aplicativos são diversos e, em nosso entendimento, incompatíveis entre si.

Em face destas considerações, entendemos ser de manter a tese clássica de interpretação do art. 505.º do C. Civil, defendendo - tal como se faz no Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 14/01/2014 e tendo como Relatora Ana Paulo Boularot - que "A lei civil concebe situações de concorrência de culpa, cf. art. 570.º do C. Civil e não quaisquer outras, como a de culpa e risco." e se explica "Nem se compreenderia que fosse de outra forma, uma vez que uma situação concomitante de risco e culpa, é de todo em todo inadmissível já que sendo aquela uma zona de excepção nos quadros da responsabilidade civil, de tal sorte que os danos só são indemnizáveis se estiverem no circulo dos riscos inerentes ao funcionamento da viatura, uma situação de culpa exclusiva não permite qualquer tipo de harmonização com estoutra, sempre se dizendo que a própria Lei civil apenas concebe situações de concorrência de culpa, cf. artigo 570º e não quaisquer outras, como a de culpa e risco alvitrada pelo Autor, embora indirectamente, nas suas conclusões de recurso, cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª edição, 449/451; Dário Martins de Almeida, ibidem, 154/155; Ac STJ de 7 de Novembro de 1978 (Relator Aquilino Ribeiro), BMJ 281/291 e de 10 de Janeiro de 2012 (Relator Alves Velho), in www.dgsi.pt."

Fixa-se, então, o entendimento de que razões de literaridade, teleológicas e conceptuais levam a que se considere actualmente válida a tese clássica interpretativa do art. 505.º do Código Civil, no sentido da inadmissibilidade da concorrência entre a culpa do lesado e a responsabilidade objectiva pelo risco de circulação do veículo, por não ter consagração legal.

É certo que, no futuro, a evolução da legislação comunitária poderá justificar alterações à legislação nacional neste ramo do direito mas, até lá, teremos que aplicar o Código Civil com as suas disposições legais e princípios estruturais vigentes. 

Por inerência, tendo sido o próprio menor, por força da actuação omissiva da sua avó, quem deu causa directa e exclusiva ao acidente dos autos, conclui-se, consequentemente, não ser a Ré obrigada a indemnizar a Autora dos danos apurados nos autos, com a sua consequente absolvição.

Esta conclusão prejudica a apreciação dos demais fundamentos de recurso, designadamente atinentes à quantificação dos danos não patrimoniais.

A conclusão final é, portanto, a da parcial procedência do recurso interposto pela Autora, no que respeita à reapreciação parcial da matéria de facto, e da total procedência do recurso interposto pela Ré, no que respeita à sua responsabilização pela indemnização dos danos decorrentes do acidente de viação dos autos.

E, perante estes pressupostos, conclui-se na parte decisória do acórdão em julgar parcialmente procedente o recurso da Autora, no que respeita à parcial modificação da matéria de facto provada, e em julgar totalmente procedente o recurso da Ré e, em consequência, altera-se parcialmente a matéria de facto provada (nos termos acima consignados) e a sentença, absolvendo a Ré "CC SEGUROS, S.A." dos pedidos contra si formulados nos autos.


O acórdão recorrido foi lavrado com voto de vencido do seguinte teor:

Aceitando que o acidente sub judice se deve a culpa grave do próprio lesado, menor de 20 meses, por força da atuação omissiva da pessoa que estava obrigada à sua vigilância, sem que se verifique concorrência de culpa com a condutora da viatura por da factualidade apurada nenhuma responsabilidade lhe poder ser assacada, perfilhamos todavia a posição doutrinal e jurisprudencial aludida (mas não seguida) neste mesmo Acórdão que defende a possibilidade de concorrência entre a culpa do lesado e o risco da utilização do veículo. Na medida em que o risco próprio do veículo automóvel para aquele tenha contribuído.

Em causa está a interpretação do artigo 505º do CC por referência ao artigo 503º do CC e em especial do seu segmento inicial “Sem prejuízo do disposto no artigo 570º (…)” que numa interpretação atualista consentânea com o alargamento da proteção dos lesados no âmbito da responsabilidade pelo risco que as diretivas comunitárias têm vindo em sede de seguro obrigatório automóvel  a fomentar, se entende significar, tal como o defende Calvão da Silva (vide Anotação ao Ac. STJ de 04/10/2007 in RLJ , ano 137º, p. 49 e segs.) «Sem prejuízo do disposto no artigo 570º (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, “a fortiori”, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado) a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.»

Aceita-se assim a concorrência entre a culpa e o risco do próprio veículo quando ambos contribuam causalmente para a produção do acidente.

A responsabilidade objetiva terá de ser pois excluída apenas quando inexista nexo causal entre o evento danoso e os riscos próprios do veículo, por para a produção do acidente serem indiferentes (vide sobre esta questão, para além da doutrina e jurisprudência já citada neste Acórdão, ainda o Ac. do STJ de 05/11/2013 in CJACSTJ Ano XXI, TIII p. 123 e segs.).

Ora analisada a factualidade dada como provada nestes autos, consta em 17) dos factos provados que a condutora do veículo não se apercebeu da presença do menor na frente do veículo antes de reiniciar a marcha, nomeadamente, devido à configuração da viatura – frente alta e o volante recuado – e à altura do referido menor.

A nosso ver esta factualidade impõe a conclusão de que as dimensões da viatura em questão não foram indiferentes à produção do acidente, antes entre estas e o mesmo se verificando nexo causal na produção do acidente.

Nesta medida – e ressalvada a muita consideração pelo entendimento contrário – confirmaria a decisão da primeira instância no que à concorrência da culpa e risco concerne, com as demais consequências daí advenientes em sede de recurso.


4. Inconformada, interpôs a A. a presente revista, que encerrou com as seguintes conclusões:

1. Entende-se haver uma errada interpretação e aplicação do normativo dos artigos 503º, 505º e 570º do CC no douto acórdão recorrido, por tradicionalista e desactualizada, defendendo-se a perspetiva actualista e perfilhada pelos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça supra mencionados, referentes à

possibilidade de concorrência entre a culpa do lesado e o risco da utilização do veículo, na medida em que o risco próprio do veículo automóvel tenha contribuído para o desfecho do acidente.

2. Aplicando-se o art. 505º à responsabilidade objetiva do art.503º, nº 1, esta ressalva só poderá ser entendida como relativa a esta responsabilidade pelo risco de utilização do veículo, porquanto a concorrência da culpa do lesado e da culpa do lesante já resulta diretamente do próprio art.570º, não havendo qualquer justificação lógica para a consagração do concurso de responsabilidades do domínio da culpa no âmbito de  uma  norma  respeitante à  responsabilidade  pelo risco, principalmente quando já existe o art.570º.

3. De facto, a responsabilidade civil foi estatuída no nosso Código Civil pelo prisma da responsabilidade patrimonial do devedor/lesante. No entanto, as diretivas comunitárias passaram a ver os acidentes de viação através da perspetiva dos lesados, o que se refletiu ao nível do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. E terá de ser feita uma interpretação das normas do Código Civil sensível à crescente evolução que se tem feito sentir com vista à proteção dos sujeitos mais frágeis que participam na circulação rodoviária, desviando-nos de um sistema rígido, assente numa lógica de tudo ou nada, neste sentido vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-06-2007 Revista n.º 1730/07- 6.ª Secção.

4. Para CALVÃO DA SILVA, o art.505º deve ser lido da seguinte forma: «Sem prejuízo do disposto no art.570º (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, "a fortiori", sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo».

5. Perfilhamos pois o entendimento de CALVÃO DA SILVA pelas razões enunciadas e porque assim se conseguirá alcançar uma harmonização entre a legislação nacional em matéria de acidentes de viação e as várias diretivas sobre o seguro obrigatório automóvel, na medida em que não se deve olvidar que uma tal conciliação não poderá passar pela eliminação do efeito útil das diretiva e da lógica indemnizatória daquele seguro, principalmente quando o mesmo sentido se retira da própria norma do art.505º.

6. Impõe-se a necessidade de uma reformulação da interpretação que tradicionalmente é dada ao art.505º por forma a englobar somente aquelas condutas dos lesados que, pela sua exclusividade na verificação do acidente, justifiquem a denegação da responsabilidade do lesante, o que "exige a adopção de um critério valorativo que considere a fragilidade dos menores no tráfego, que secundarize as noções clássicas ligadas à responsabilidade individual, que acompanhe os modelos mais protectores presentes noutros ordenamentos, que confira protagonismo ao seguro e ao Fundo de Garantia e que circunscreva a exoneração do detentor às condutas conscientes do lesado, reveladoras de um desleixo com a sua própria protecção".

7. Em suma, no que concerne à admissão de um concurso entre o risco do lesante e a culpa (ou facto) do lesado, a exposição efetuada remete-nos para a necessidade de uma interpretação atualista do art.505º por forma a garantir uma harmonia com o diploma do seguro obrigatório que permita viabilizar o seu efeito útil de proteção dos lesados e alcançar uma maior justiça através de um sistema de repartição do dano mais rigoroso.

8. A responsabilidade objectiva afigura-se latente, não sendo possível afastar o evidente nexo causal entre o evento danoso e os riscos próprios do veículo que em tanto contribuíram para a produção do acidente. Para o efeito bastaria apenas a factualidade provada quanto às características da viatura para se inferir o risco do veículo, aliás, e conforme o voto de vencido do douto acórdão recorrido, consta em 17 dos factos provados que a condutora do veículo não se apercebeu da presença do menor devido à configuração da viatura - frente alta e volante recuado - e à altura do menor.


Pelo exposto entendemos pois que acórdão recorrido violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 503.º, 505.º e 570.º do CC, devendo ser o presente recurso julgado procedente, revogando-se o douto acórdão "a quo" substituindo-se por outro que, de acordo com a interpretação atualista do preceituado no artigo 505.º do CC admita a subsunção desta situação concursal de causas de dano à norma da repartição do dano que é o artigo 570.º do CC, repartição que deve ser efetuada em igual proporção de 50% para o lesado e 50% para o risco do veículo.

ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!


A R. contra alegou, concluindo, poer sua vez, nos termos seguintes:

I  -  DA   INADMISSIBILIDADE  DA  CONCORRÊNCIA  ENTRE  A  CULPA  DO   LESADO E  A RESPONSABILIDADE OBJECTIVA PELO RISCO DA CIRCULAÇÃO DO VEÍCULO AUTOMÓVEL:

1) O Acórdão recorrido mostra-se absolutamente carecido de qualquer reparo.

2) É revelador de elevada censurabilidade, o comportamento que se consubstancia no facto de um menor de 20 meses que, estando à guarda da avó que o deixou sozinho e veio trazer o irmão à carrinha do infantário, sai da habitação desta directamente para a via, sem ser visto, interpondo-se à frente do veiculo seguro, de forma absolutamente imperceptível para o respectivo condutor que se encontrava dentro do mesmo, e que ao arrancar a velocidade muito reduzida, atinge o menor.

3) Face à factualidade dada como provada e à teoria da causalidade adequada, urge concluir, sem margem para dúvidas, que a circunstância exclusivamente causal do evento danoso, foi o comportamento do menor potenciado pela conduta omissiva da sua avó que não se rodeou de todos os cuidados que se lhe impunham, de forma a evitar que este ficasse sozinho e se precipitasse para a via pública.

4) Face à situação fáctica sub judice e à luz das disposições legais aplicáveis, não é de todo admissível fazer aplicar o regime da culpa efectiva do lesado em concurso com a responsabilidade objectiva pelo risco de circulação do veículo automóvel, e tal como muito bem se ajuizou no douto acórdão recorrido.

5) Existe, pois, culpa exclusiva e efectiva do lesado na produção do acidente, a qual afasta a responsabilização do condutor do veículo seguro a título de responsabilidade objectiva pelo risco de circulação do veiculo, nos termos da aplicação do regime decorrente dos arts. 503º, 505º e 570º do Cód. Civil.

6) Tese essa vertida no douto acórdão recorrido e ainda Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/07/2013, Processo 97/05.7TBPVLG2.S1, a qual corroboramos.

7) Temos que, e sempre com o máximo respeito por diversa opinião, o douto acórdão recorrido ao pugnar pela inadmissibilidade de fazer funcionar no caso sub judice a concorrência entre a culpa efectiva do lesado e a responsabilidade objectiva decorrente do risco de circulação do veiculo automóvel, se mostra perfeitamente conforme os arts. 503º, 505º e 570º do Cód. Civil, e bem assim com a orientação emanada das Directivas da União Europeia a propósito de seguro de responsabilidade civil automóvel.

8) Por esse motivo, deverá ser integralmente confirmada a decisão recorrida, negando-se provimento ao recurso.

A TÍTULO SUBSIDIÁRIO

DA AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO

9) Na eventualidade de assim não ser doutamente entendido - o que por mero dever de patrocínio se equaciona - e de se considerar viável e aplicável in casu a tese propugnada pela recorrente, suscita-se, a título subsidiário, a apreciação da parte do recurso de apelação atinente à impugnação dos danos não patrimoniais fixados, questão essa cuja apreciação pelo Venerando Tribunal da Relação, face à absolvição da ora recorrida, ficou prejudicada.

10) Assim, e prevenindo a necessidade da sua apreciação, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 636º n.º 1 do Cód. Proc. Civil, desde já se requer a ampliação do âmbito do recurso relativamente à apreciação da questão atinente ao critério e fixação do valor dos danos não patrimoniais (questão essa que contende unicamente com matéria e direito e, nessa medida, cabe no âmbito das competências deste Supremo Tribunal de Justiça).

DOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS FIXADOS A TÍTULO DE DANO PELA PERDA DO DIREITO À VIDA:

11) O Meritíssimo Tribunal de 1ª instância e considerou justa e adequada a fixação e atribuição à A.; a título de compensação pela perda do direito à vida do seu filho, a quantia de Euro 80.000,00.

12) A Seguradora Recorrida não se pode conformar com o valor compensatório a este título arbitrado, e que se afigura excessivo face aos critérios jurisprudenciais vigentes.

13) E, sobretudo, não contempla a total ausência de culpa da condutora do veículo seguro para a ocorrência do evento danoso.

14) Tendo em consideração o critério e entendimento sufragados pela nossa ilustre jurisprudência em situações análogas à dos presentes autos, o montante fixado pela douta sentença recorrida como compensação pelo dano da morte peca por excessivo sendo, outrossim, adequado o arbitramento, a este título de uma compensação nunca superior a Euro 60.000,00.

15) À qual se aplicará a redução atinente ao grau de culpa e contribuição do lesado para a produção do acidente.

16) O douto acórdão ora posto em crise ao decidir diferentemente incorreu em violação do disposto nos arts. 496º n.º 1 e 3 do Cód. Civil, entre outros.


DOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS PRÓPRIOS FIXADOS À A. PELO SOFRIMENTO CAUSADO PELO DECESSO DO SEU FILHO:

17) Não se conforma ainda a recorrida com o critério seguido na douta sentença proferida para a fixação do quantum compensatório a título de dano não patrimonial próprio da A (dano dos familiares das vitimas pelo sofrimento e angustia causados pelo decesso dos seus ente queridos) que, recorde-se, ascendeu a Euro 40.000,00.

18) Estamos perfeitamente cientes de que não existe dor nem sofrimento maiores que os decorrentes da irreparável perda de um filho.

19) Ora, sempre com o máximo respeito, considera-se, uma vez mais, que a douta decisão proferida se orientou por critérios que embora fundados na equidade, se mostram desfasados da actual realidade e, portanto, desconformes às orientações jurisprudenciais.

20) Salvo o devido respeito por distinta opinião, afigura-se justa e adequada a fixação das compensações a título de danos não patrimoniais próprios de Euro 20.000,00 para a A.

21) Quantia essa à qual será, posteriormente, aplicada a respectiva redução por força da concorrência da culpa do lesado para a produção do evento danoso.

22) Ao contemplar diverso entendimento, o douto acórdão recorrido incorreu em séria violação do disposto no art. 496º n.º 1 e 3 e 494º do Cód. Civil, entre outros., impondo-se a sua alteração.

23) O que se deixa alegado, para todos os devidos efeitos e legais consequências.


TERMOS EM QUE DEVERÁ SER NEGADO PROVIMENTO AO DOUTO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO, E MANTIDO O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO NOS TERMOS SUPRA EXPOSTOS.

SUBSIDIARIAMENTE.


DEVERÁ SER CONHECIDA A REQUERIDA AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, ALTERADA A DECISÃO PROFERIDA NA 1ª INSTÂNCIA NOS TERMOS SUPRA EXPENDIDOS, ASSIM SE FAZENDO, TÃO SOMENTE, A HABITUAL E SÃ

JUSTIÇA.


5. Excluída qualquer culpa da condutora do veículo na produção do acidente, a dirimição do objecto do recurso implica a abordagem da controversa questão da possível concorrência, perante o nosso CC, da culpa do lesado e dos riscos próprios do veículo na produção do evento danoso.

Importa começar por definir claramente a tipologia da situação litigiosa controvertida nos presentes autos, de modo a permitir a comparação com outros casos, objecto de análise na jurisprudência recente dos Tribunais sobre este controverso e complexo tema. Assim:

- em primeiro lugar, o lesado é um menor manifestamente inimputável, que foi atingido na qualidade de peão ( e não enquanto condutor de outros veículos ou velocípedes), o que nos afasta decididamente de outras situações jurisprudencialmente dirimidas, em que os lesados são pessoas imputáveis ou importa, nomeadamente , ponderar o estatuto dos ciclistas e a sua repercussão na possível articulação entre culpa do ciclista/lesado e risco de circulação próprio de veículos motorizados;

- depois, está perfeitamente sedimentado que, na hipótese que ora nos ocupa, o acidente se deveu a incumprimento do dever de vigilância do menor por parte da pessoa a cuja guarda estava confiado (pessoa inserida no círculo familiar restrito, a sua avó materna), que permitiu que o mesmo se dirigisse sozinho para a via rodoviária, nas perigosas condições existentes no local, caracterizadas pela inexistência de passeio ou berma, o que levou o dito menor a colocar-se , em termos de total invisibilidade para o condutor, na frente da viatura que havia parado momentaneamente no local -  omitindo assim  manifesta e grosseiramente o dever de cuidado a que estava vinculada;

- em terceiro lugar, ao ponderar o âmbito e a intensidade dos riscos de circulação do veículo automóvel, importa notar que o acidente se verificou no preciso momento em que este reiniciou a marcha, colhendo de imediato o menor que imprevistamente se havia colocado exactamente à sua frente , inviabilizando de todo a sua visibilidade pelo condutor que permanecia no posto de condução;

- finalmente, o acidente dos autos foi mortal, surgindo como A. na presente acção  a mãe da vítima, pretendendo ser ressarcida dos danos decorrentes do óbito do seu filho .

Tendo em conta estas circunstâncias essenciais, é manifesta a semelhança do caso dos autos com o dirimido por este STJ no Ac. de 17/5/12, proferido no P. 1272/04.7TBGDM.P1.S1, em que lesado, de 4 anos de idade, sofreu danos corporais na sequência de um acidente de viação em que interveio um veículo automóvel abarcado por contrato de seguro celebrado com a R., acidente que se traduziu no seu atropelamento quando, inopinadamente, atravessava uma rua de uma localidade no preciso momento em que o aludido veículo circulava pela mesma via a uma velocidade que não excedia 20 km/h.

A baixa estatura do menor não permitiu ao condutor do veículo o seu avistamento a tempo de evitar o embate, sendo colhido quando, surgindo inesperadamente por entre dois veículos estacionados, cruzava a faixa de rodagem, sem olhar para qualquer dos lados da via pública.

O menor acompanhara uma tia a um estabelecimento comercial, saindo do seu alcance seu que a mesma disso se tivesse apercebido

Perante tal semelhança factual, iremos partir da análise da linha argumentativa seguida neste aresto, em que se passa em revista a evolução seguida na abordagem deste tema, do seguinte teor:

4. Segundo a tese que podemos qualificar de “clássica”, assumida pela doutrina e jurisprudência maioritárias, o art. 505º do CC coloca um mero problema de causalidade.

Tendo como pano de fundo situações de responsabilidade objectiva inerente à direcção efectiva de veículos automóveis, nos termos do nº 1 do art. 503º do CC, resulta da letra daquele normativo que essa responsabilidade é afastada sempre que o acidente seja “imputável” (no sentido de “devido”) ao próprio lesado ou a terceiro ou a caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Conforme aquela tese, basta que seja quebrado o nexo de causalidade entre o sinistro e os riscos próprios do veículo por qualquer comportamento (ainda que não culposo) do lesado ou de terceiro, ou devido a caso de força maior, para que fique liminarmente afastada a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo eventualmente transferida para a Seguradora.

Trata-se da solução que obtém uma impressiva adesão na jurisprudência deste Supremo, bastando referir, a título meramente exemplificativo e com prevalência de arestos mais recentes, os Acs. do STJ, de 21-1-06 (Revista nº 3941/05 - AFONSO CORREIA), de 31-1-06 (www.dgsi.pt - AZEVEDO RAMOS), de 18-4-06 (www.dgsi.pt - SEBASTIÃO PÓVOAS), de 6-11-08 (www.dgsi.pt - SALVADOR da COSTA) ou de 25-11-10 (Revista nº 12175/09 - GONÇALO SILVANO).

A leitura destes e de outros arestos, assim como a análise da doutrina maioritária, revela a multiplicidade de argumentos que têm sido empregues na defesa desta solução.

Para além do relevo atribuído ao elemento literal, assume particular significado a ponderação da necessidade de não agravar excessivamente a posição do proprietário ou do detentor do veículo em situações em que este não foi mais do que um elemento acidental, mas sem efectiva contribuição para a ocorrência do sinistro causado por factores estranhos ao seu funcionamento.

5. Esta solução tem sido posta em crise por uma parte da doutrina mais recente.

Com argumentação diversa, passou a defender-se uma solução alternativa que se traduz na admissibilidade daquela concorrência, desde que o sinistro ainda tenha uma conexão relevante com os riscos próprios do veículo, isto é, desde que o acidente não seja de imputar exclusivamente a factores externos integrados na órbita do lesado, de terceiro ou de casos de força maior estranhos ao veículo.

Entre os defensores desta tese destacam-se BRANDÃO PROENÇA, em A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, págs. 814 e segs.,[2] e CALVÃO da SILVA, RLJ 134º, págs. 115 e segs.

Para o efeito, defendem a extracção do art. 505º do CC de um sentido que o torne compatível com o art. 570º, com o argumento de que só assim fará sentido a alusão que naquele preceito é feita ao disposto no nº 1 do art. 503º, norma que regula inequivocamente uma situação de responsabilidade objectiva do proprietário do veículo.

É também feito apelo à necessidade de ajustamento das soluções legais às circunstâncias actuais, designadamente ao risco rodoviário, bem diverso daquele que era perceptível aquando da aprovação do Código Civil, de modo a implicar a concessão de maior protecção aos lesados que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade, como ocorre com os peões ou com os ciclistas.

Ajustamento que também decorreria do facto de se ter generalizado o sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que vem assumindo cada vez mais uma função ressarcitiva de danos, com subvalorização de outros aspectos em que inclui a contribuição do lesado ou de terceiros para a sua ocorrência.

Pressupõe-se ainda que o direito interno deve ser interpretado por forma a não colocar em causa o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel, considerando que estas implicam uma efectiva tutela dos interessados em situação mais desprotegida, o que colidiria com uma interpretação do regime da responsabilidade civil que desconsidere os riscos próprios do veículo que também tenham interferido na ocorrência do sinistro.

Atalhando caminho, CALVÃO da SILVA conclui, a este respeito, que “a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …” (RLJ 134º/115). E ainda que em comentário posterior ao Ac. do STJ, de 4-10-07, tenha tecido considerações que o levam a admitir a responsabilização do detentor do veículo noutras situações, “na base de uma apreciação individual no caso específico pelo julgador” (RLJ 137º/60), assevera que “só havendo prova certa e segura do facto da vítima ou de terceiro (ou de força maior) como causa única e exclusiva do acidente é que não haverá lugar a concurso do risco próprio do veículo como facto do lesado” (pág. 62).

Ao nível jurisprudencial, esta foi a solução admitida no Ac. do STJ, de 4-10-07 (www.dgsi.pt - SANTOS BERNARDINO), publicado e comentado na RLJ 137º, págs. 35 e segs., no qual se assumiu, de forma precursora em termos jurisprudenciais, que “o texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …”.

Entendimento também expresso, ainda que de modo condicionado, nos Acs. do STJ, de 3-12-09 (www.dgsi.pt - BETTENCOURT FARIA),[3] ou de 12-11-09 (Revista nº 3660/04 - CARDOSO ALBUQUERQUE).

Porém, mesmo em face desta tese, não se modificaria o resultado da presente acção.

Na verdade, constituindo pressuposto da mesma a existência de uma contribuição do risco do veículo para a ocorrência do sinistro, verifica-se que esta não existiu no caso concreto, uma vez que o veículo circulava a uma reduzidíssima velocidade, sem que o seu condutor de modo algum pudesse ou devesse contar com a presença do menor que, de modo totalmente imprevisto e imprevisível, se atravessou à sua frente.

Foi este acto irreflectido, ainda que vindo de um sujeito inimputável em função da idade, a causa única das lesões que sofreu, sem qualquer contribuição relevante dos riscos próprios do veículo.

O mero facto naturalístico de o acidente ter envolvido um veículo automóvel, como corpo em movimento, com determinado peso e dimensões, dotado de inércia, não pode ser considerado determinante de um risco causalmente adequado ao acidente, perdendo todo o relevo, quer em termos absolutos, quer em termos relativos.

6. Mas para além das referidas teses, ainda se encontra espaço para a discussão de uma terceira via no sentido da responsabilização da seguradora independentemente da exclusividade da imputação do acidente ao lesado.


Sendo colocada de lege ferenda por BRANDÃO PROENÇA, o maior relevo da sua discussão advém do facto de ter servido de mote à apresentação ao Tribunal de Justiça de processos de reenvio prejudicial cujo resultado poderia interferir na resposta.

Aquela solução pressupunha a verificação de uma situação de desconformidade entre o direito nacional regulador da responsabilidade civil automóvel e o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel.

A correspondente interrogação foi formulada ao Tribunal de Justiça por alguns Tribunais nacionais, dando origem aos processos de reenvio prejudicial “C-409/09”, “C-229/10” (J.O. de 17-7-10) e “C-13/11” (J.O. de 26-3-11), nos quais se inquiria se a necessidade de tutelar as vítimas de acidentes de viação prosseguida pelas referidas Directivas Europeias deveria levar à desconsideração da sua contribuição para os danos, à semelhança do que, relativamente a passageiros transportados em veículos, já fora declarado nos acórdãos “Candolin” e “Farrell”.

A resposta que foi dada resolve liminarmente a questão.

O Tribunal de Justiça, no âmbito do “Proc. C-409/09”, proferiu o Acórdão datado de 9-6-11, no qual concluiu que as Directivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel “devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano” (http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ).

Para chegar a uma tal conclusão asseverou que “a legislação nacional (portuguesa) aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente, num contexto como o do presente processo (morte de um menor de tenra idade que tripulava uma bicicleta e que circulava em contramão, tendo embatido num veículo automóvel sem qualquer culpa do respectivo condutor), quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima”.

Ou seja, partindo do pressuposto de que o direito nacional contém uma solução que admite a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do condutor (solução que, como se disse, apenas é sustentada ao abrigo da segunda tese anteriormente enunciada), o Tribunal de Justiça afirmou ser compatível com o Direito Comunitário uma solução em que a responsabilidade da seguradora seja excluída quando o sinistro seja exclusivamente imputável à vítima, o que, como já dissemos, se verifica no caso presente.

Na verdade, embora o art. 1º-A da 4ª Directiva sobre seguro de responsabilidade civil automóvel imponha a adopção de legislação que, no âmbito do seguro obrigatório, assegure “a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor”, acrescenta que a regulação do direito de indemnização é feita “de acordo com o direito civil nacional ”.

Por outro lado, não foi reflectida na redacção final da Directiva Europeia uma proposta mais arrojada que existia no sentido da defesa dos indivíduos mais vulneráveis, como os peões e ciclistas, que implicava a cobertura do seguro obrigatório dos respectivos danos não patrimoniais suportados por esses lesados independentemente da responsabilidade do condutor do veículo.

A propósito do desfecho do referido reenvio prejudicial, ALESSANDRA SILVEIRA e SOPHIE PEREZ FERNANDES, nos Cadernos de Direito Privado, nº 34, págs. 3 e segs., em artigo intitulado “O seguro automóvel. Considerações sobre a posição do TJUE em sede de reenvio prejudicial”, referem que “estávamos à espera de uma resposta mais contundente do Tribunal de Justiça da União Europeia que censurasse, sem recuos e nitidamente, a hipótese de exclusão de indemnização em casos semelhantes ao do processo principal, a fim de esclarecer as dúvidas do juiz nacional que lhe pediu ajuda e proteger peões e ciclistas vítimas de acidentes, sobretudo menores de tenra idade, sem discernimento suficiente para a percepção do risco” (pág. 17).

Esta terceira via pressupunha, pois, a existência de normas da União Europeia que directamente se sobrepusessem ao direito interno (emergente de Regulamento ou impostas por efeito directo de Directivas) ou que determinassem uma interpretação conforme com solução ditada pelo direito comunitário, o que não ocorre com a questão sub judice.

Por conseguinte, posto que de lege ferenda se possa justificar uma solução que amplie a protecção conferida aos lesados em situação de maior vulnerabilidade (à semelhança do que já se operou noutros ordenamentos jurídicos), o certo é que, no plano do direito constituído, não se mostra viável uma solução que admita a concorrência entre a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo (e respectiva seguradora) e a contribuição exclusiva do lesado para a ocorrência do dano.

7. Independentemente da perspectiva com que seja encarada a questão da concorrência entre a responsabilidade objectiva do art. 503º, nº 1, do CC, e a culpa ou imputação do acidente ao lesado, nos termos do art. 570º, a resposta desemboca sempre na improcedência da acção.

Como se disse anteriormente, tal resultado decorre directamente da adopção da tese “clássica”, tendo em conta a total ausência de culpa do condutor do veículo, em contraposição com a clara violação objectiva das regras estradais por parte do menor, conclusão que não se modifica pelo facto de se tratar de um menor de 4 anos, inimputável, confiado à sua tia na ocasião em que ocorreu o acidente.

Também não passaria o filtro colocado pela segunda tese, na medida em que o embate é de imputar exclusivamente ao comportamento imprevisto e imprevisível do menor, sem qualquer interferência para o mesmo dos riscos próprios do veículo. Resultado que não poderia ser contrariada com o argumento invocado na sentença de 1ª instância de atribuição automática de um nexo de causalidade entre o acidente e a perigosidade de qualquer veículo, tendo em conta as suas dimensões, peso e velocidade. Com efeito, por mais que se pretendesse avançar por esta via alternativa, as circunstâncias do caso sempre levariam a contrariar o resultado procurado pelos AA., tendo em consideração que o acidente ficou a dever-se exclusivamente ao facto de o menor, com 4 anos, de baixa estatura, ter surgido de modo repentino de entre dois veículos estacionados e que ocultavam a sua visibilidade, não permitindo que o condutor do veículo efectuasse qualquer manobra de recurso, apesar de circular a uma reduzida velocidade.

Finalmente, uma terceira via que ainda pudesse ser projectada dependia de uma resposta afirmativa do Tribunal de Justiça à questão que integrou o reenvio prejudicial que impusesse uma interpretação do direito nacional determinante da responsabilidade da seguradora, ainda que em proporção a avaliar casuisticamente, mesmo em casos de ausência de culpa do condutor do veículo e da imputação do acidente exclusivamente ao comportamento do lesado, resultado gorado pelo teor do acórdão que foi proferido por essa instância jurisdicional.


6. No nosso entendimento, o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional : ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto, para o resultado danoso.

Esta conclusão é, em última análise, imposta pelo princípio fundamental da adequação e da proporcionalidade – que naturalmente tenderá a inviabilizar a total e sistemática desresponsabilização do detentor do veículo causador do acidente, nos casos em que foi muito intensa a contribuição para o resultado danoso de riscos agravados da circulação do veículo e diminuta a relevância da falta imputável ao lesado, cometida com culpa leve ou com escassa relevância causal para a produção ou agravamento das lesões por ele próprio sofridas.

E, por outro lado, afigura-se que esta posição é a que melhor se adequa à jurisprudência definida pelo TJUE, na sequência dos pedidos de reenvio atrás referidos, ao permitir que o regime de Direito interno em vigor suportasse o confronto com as normas e princípios de Direito Comunitário, por entender que a legislação em vigor não tem por efeito, no caso de a vítima ter contribuído para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito .

É, pois, este juízo de adequação e proporcionalidade que os Tribunais devem formular, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável a comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um relevante risco da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente…

Importa ainda ponderar quais as consequências que decorrem de – perante a matéria de facto processualmente adquirida, no caso dos autos - estar perfeitamente sedimentado e assente que - como facto manifestamente determinante do atropelamento do menor – se situou um censurável incumprimento do dever de vigilância por parte do familiar a quem o mesmo estava confiado, a sua avó materna, ao permitir que o mesmo se escapasse sozinho para via pública, nas circunstâncias de particular perigosidade que resultavam das características da via no local do acidente (sem passeio ou berma, abrindo directamente o portão da casa para a faixa de circulação rodoviária), colocando-se imprevistamente à frente de viatura em estado de marcha – o que naturalmente obriga ainda a ter em consideração as decorrências da aplicação da norma contida no art. 571º do CC.

No caso dos autos – e à semelhança do que se decidiu no Ac. de 17/5/12, atrás citado – era mínimo o risco de circulação do veículo, uma vez que o atropelamento ocorreu no exacto momento em que este, após imobilização pontual, reiniciou a sua marcha, em velocidade necessariamente reduzida (que permitiu à condutora a sua imediata imobilização, poucos metros adiante), sendo absolutamente imprevisível a súbita presença do menor e totalmente invisível a sua colocação precisamente na frente da viatura.

Saliente-se que não é possível atribuir às características do veículo de transporte (frente elevada e volante recuado) a virtualidade de potenciarem um risco acrescido de circulação : na verdade, a configuração da carrinha de transporte não apresenta nenhuma particularidade específica, relativamente a veículos semelhantes, radicando causalmente a invisibilidade da vítima, do lugar do condutor, não propriamente em quaisquer características peculiares ou anómalas do veículo, mas decisivamente ao local em que o menor desacompanhado se colocou e à sua reduzida estatura.

Assim, tem de considerar-se que a causa operativa e determinante do atropelamento e consequentes lesões mortais, nas concretas circunstâncias em que ocorreu, foi a omissão culposa do dever de vigilância sobre o menor, por parte da ascendente a quem, no momento, estava confiado: ora, quais as consequências a atribuir a esta culpa do vigilante, face ao disposto no art. 571º do CC – e num caso em que o menor faleceu logo após o acidente, sendo o pedido indemnizatório pelos danos não patrimoniais decorrentes da morte formulado pela sua mãe ?

Esta questão é certeiramente abordada por Maria da Graça Trigo (Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação, 2015, Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, vol. II, pag. 493 e segs.) ao escrever:

Dispõe o art. 571º que “ao facto culposo do lesado é equiparado o facto culposo dos seus representantes e das pessoas de quem ele se tenha utilizado.” A aplicação, sem mais, desta norma levaria a que, na maior parte das vezes, a indemnização pudesse ser reduzida ou fortemente excluída. Não é, porém, este o caminho correcto. Seguindo aqui a lição de BRANDÃO PROENÇA, “duvidoso é o saber-se, nos casos de culpa extracontratual do lesante, se a omissão do vigilante conduz à aplicação do regime do artigo 570º ou é apenas fonte constitutiva de uma solidariedade passiva. Preferimos a defesa desta última unidade...”. Afigura-se ser a solução adequada para as hipóteses em que o vigilante consiste numa pessoa singular ou colectiva distinta dos pais (ou de outros vigilantes que com ela têm uma comunidade de vida). Se, por exemplo, uma criança que brinca no pátio da escola foge para a rua onde é atropelada por um condutor que actua sem culpa, serão solidariamente responsáveis o detentor do veículo e a pessoa responsável pela vigilância, bem como a própria escola, se se verificarem os pressupostos do art. 500º, mas o primeiro terá direito de regresso contra os segundos. Visto de um prisma complementar, quer dizer que a responsabilidade do detentor do veículo não pode ser afastada, convocando-se o art. 505º, por facto do terceiro, que seria precisamente o vigilante.

Contudo, esta solução não será adequada se o vigilante ou vigilantes são os pais da criança (ou outros vigilantes que com ela têm uma comunidade de vida), como sucederá na maior parte dos casos. Cabendo-lhes a obrigação de sustento do filho, obrigá-los a reembolsar a seguradora do detentor do veículo poderá traduzir-se, em última análise, em prejuízo para a criança, para além de tornar a lide inútil porque, em regra, são os pais quem acciona o segurador. Temos para nós que o art. 571º não pode ele mesmo deixar ser interpretado em conformidade com as exigências do direito comunitário dos seguros, isto é, de forma a assegurar a protecção das vítimas ditas mais frágeis. A culpa dos pais obrigados à vigilância não pode, por isso, conduzir a qualquer redução da indemnização a pagar pelo detentor do veículo, nem permitirá que este exerça o direito de regresso contra os pais, salvo se não existir ou quando tiver cessado a comunidade de vida entre eles e a vítima.

A situação será inteiramente distinta nos casos de morte do menor. Nestas hipóteses, ao apreciar-se o pedido de indemnização interposto pelos pais (ou outros vigilantes que sejam simultaneamente titulares de direito de indemnização por morte da vítima), quase sempre por danos não patrimoniais, não pode esquecer-se que, por definição, não será o lesado a aproveitar da quantia indemnizatória mas os próprios vigilantes, que contribuíram, em maior ou menor grau, para o dano morte. Como se sabe, a reparação dos danos não patrimoniais em caso de morte engloba três componentes: a perda da vida, os danos não patrimoniais sofridos pelos parentes sobrevivos e os danos não patrimoniais da vítima sofridos entre o facto lesivo e a morte.

Quer se defenda que a reparação da perda da vida constitui um direito transmissível por via sucessória, quer se defenda que é um direito próprio dos parentes elencados no art. 496º, nº 2, certo é que a dita reparação não é nunca inteiramente autónoma em relação aos danos não patrimoniais sofridos pelos parentes.

Assim sendo, na hipótese de morte da vítima, o art. 571º pode ser aplicado sem condicionantes e, em conjugação com o regime do art. 570º, a culpa do vigilante conduzirá à redução ou exclusão da indemnização. Por outro prisma mais favorável ao detentor do veículo, o facto do terceiro vigilante permitirá excluir a sua responsabilidade, convocando-se para tal o art. 505º.


Ora, no caso dos autos, o facto de o menor ter falecido logo após o atropelamento,- estando à guarda da sua avó materna, que omitiu, de forma grave, o dever de guarda e vigilância que sobre ela incidia, sendo esta a causa essencialmente determinante do acidente e figurando como titular da pretensão indemnizatória pelos danos não patrimoniais decorrentes do óbito precisamente  a mãe do menor falecido - constitui circunstância que reforça a conclusão de que deve ter-se por afastada a responsabilidade objectiva, decorrente do risco de circulação da viatura: na verdade, sendo o vigilante pessoa manifestamente situada no círculo restrito da família da vítima, tendo com ela uma verdadeira comunidade de vida, no sentido atrás referido, não teria qualquer sentido julgar procedente o pedido indemnizatório da mãe contra a seguradora, permitindo ulteriormente a esta ressarcir-se à custa da avó materna do menor, exercendo contra esta o direito de regresso, com base na culpa efectiva e grave na produção do evento lesivo, nos termos dos arts. 497º, nº2, e 507º, nº2, do CC.


Note-se que tal resultado prático, conducente a fazer suportar pela avó materna do menor o sacrifício patrimonial definitivo pelo ressarcimento dos danos peticionados pela mãe da vítima nesta acção, não parece ser sequer plausivelmente desejado pela A., que apenas demandou a condutora do veículo e a respectiva seguradora, omitindo a formulação de qualquer pedido indemnizatório contra a avó materna da criança, apesar da evidente omissão do dever de vigilância que lhe estava imposto…


7. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista, confirmando, embora por fundamentação não coincidente, o decidido no acórdão recorrido.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


Lisboa, 01 de Junho de 2017


Lopes do Rego (Relator)

Távora Victor

António Piçarra