Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2926/16.0T8BRG.G1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: REENVIO PREJUDICIAL
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
DIRECTIVA COMUNITÁRIA
CONTRATO DE INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA
INSTITUIÇÃO BANCÁRIA
INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
ACTIVIDADE BANCÁRIA
DEVER DE INFORMAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 04/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO MOBILIÁRIO – INFORMAÇÃO / QUALIDADE DA INFORMAÇÃO / INTERMEDIAÇÃO ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO / INFORMAÇÃO A INVESTIDORES / DEVERES DA INFORMAÇÃO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, 4ª edição, p. 349/350;
- Carlos Ferreira de Almeida, O Código dos Valores Mobiliários e o Sistema Jurídico, Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, 2000, p. 40 e 41;
- José Engrácia Antunes, Deveres e Responsabilidade do Intermediário Financeiro, Alguns Aspetos, Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 56, Abril 2017, p. 32 e ss.;
- Manuel Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida Sobre o Sentido e o Âmbito da Vinculação como Fiador, 2000, p. 104;
- Menezes Leitão, Direito dos Valores Mobiliários, Volume II, p. 147 e 148.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DOS VALORES MOBILIÁRIOS (CVM): - ARTIGOS 7.º, N.º 1 E 312.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.º 1.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA 93/22/CEE, DE 10 DE MAIO DE 1993: - ARTIGOS 10.º E 11.º.
Referências Internacionais:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE): - ARTIGO 267.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 18-09-2018, PROCESSO N.º 20403/16.8T8SLB.L1.S1.
Sumário :
I - De acordo com o art. 267.º do TFUE, qualquer tribunal nacional que, na sua qualidade de aplicador comum do direito europeu, tenha dúvidas quanto à interpretação deste a um determinado caso concreto dispõe da faculdade de colocar ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) a correspondente questão a resolver. Se se tratar de um tribunal nacional que decida em última instância, como é o caso do STJ, aquela faculdade converte-se em obrigação.

II - No caso, não se suscitam quaisquer dúvidas a interpretação das normas em causa – arts. 10.º e 11.º da Directiva 93/22/CEE, de 10 de Maio de 1993 –, não havendo, assim, razão para reenvio prejudicial.

III - A actividade de intermediário financeiro é norteada por elementares deveres de informação a que aludem os arts. 7.º, n.º 1, e 312.º, n.º 1, ambos do CVM. Contudo, e no caso em apreço, não ficou demonstrado qualquer comportamento positivo ou negativo que possa ser considerado violação relevante de normas legais e regulamentares que na altura estavam estabelecidas, o que era ónus da autora demonstrar (art. 342.º, n.º 1 do CC).
Decisão Texto Integral:

            PROC. N.º 2926/16.0T8BRG.G1.S2

            REVISTA EXCEPCIONAL

            REL. 69[1]

                                                                       *

     ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

“AA, S.A.” intentou contra Banco BB, S.A., acção declarativa, sob a forma comum, tendo pedido a condenação do Banco Réu no pagamento da quantia de 1.100.000,00 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde 27.10.2014, no valor de 146.970,55 €, e vincendos até efectivo e integral pagamento, tendo como fundamento um contrato de intermediação financeira de subscrição de 22 obrigações “CC Rendimento Mais 2004”, celebrado em 25 de Outubro de 2004.

            Alegou, em síntese, o seguinte:

- No âmbito de uma operação de financiamento, o Banco Réu (então BB), impôs à Autora a constituição de um depósito a prazo no valor de 1.100.000,00 €, sem o qual não emitiria as garantias por esta pedidas, nos montantes de 4.922.741,00 € e 2.250.000,00 €;

- Na data da formalização do acordo, o Banco Réu apresentou-lhe para assinatura o boletim de subscrição de obrigações CC 2004, no montante do depósito a prazo a constituir;

- O Banco Réu transmitiu-lhe que esse produto era idêntico a um depósito a prazo e que, sem a sua subscrição, não emitiria as garantias;

- A Autora a tanto acedeu, no convencimento de que se tratava dum produto de características idênticas às de um depósito a prazo e de que o Banco Réu garantiria o reembolso do capital aplicado e dos juros, na data do vencimento, o que também foi assegurado por este;

- Em Outubro de 2014, o capital não lhe foi restituído, tendo interpelado o Banco Réu para que lhe devolvesse essa quantia, o que não aconteceu.

 

O Banco Réu foi citado e apresentou contestação, tendo-se defendido por excepção e por impugnação.

Excepcionou a incompetência territorial do Tribunal e a prescrição do direito da Autora.

A Autora respondeu à matéria dessas excepções, sustentando, quanto à prescrição, que o prazo prescricional aplicável é o geral, de 20 anos, por estar em causa responsabilidade contratual.

 

Dispensada a audiência prévia, foi proferido o despacho saneador e de fixação do objeto do litígio e dos temas da prova, a fls. 70 a 71, no qual se afirmou a validade e regularidade da instância, desatendendo-se a excepção de incompetência e relegando-se para ulterior momento processual a apreciação da excepção da prescrição.

Instruída a causa, procedeu-se a realização de audiência final e foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu o Réu do pedido.

A Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, que viria a confirmar essa decisão, sem qualquer voto de vencido.

Ainda inconformada, apresentou a Autora recurso de revista normal para o Supremo e, para o caso de tal não se afigurar possível, revista excepcional.

O Banco Réu respondeu, pronunciando-se no sentido da inadmissibilidade do recurso.

           Negada a revista normal, interposta a título principal, e confirmado o acórdão recorrido no tocante à rejeição da apelação em relação à impugnação da matéria de facto, os autos foram remetidos à Formação em ordem a decidir da admissibilidade da revista excepcional interposta a título subsidiário.

           No acórdão de fls. 628 e seguintes, a Formação admitiu a revista excepcional com base na alínea b) do n.º 2 do artigo 672º, por se considerar que está em causa uma questão com “evidente repercussão pública” e “nítido interesse social”.

           As alegações da revista compreendem 145 páginas e finalizam com 180 (!!!) conclusões.

           As questões colocadas à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, para além daquelas que se relacionam com a admissibilidade da revista (questão já resolvida) e da decisão sobre a matéria de facto (que infra se verá) são as seguintes:

            - Justifica-se, no caso, o reenvio prejudicial?

           - O Banco Réu assumiu a dívida da entidade emitente das obrigações?

            - O Banco Réu deve ser responsabilizado pelo pagamento das quantias peticionadas?

 
*


II. FUNDAMENTAÇÃO


OS FACTOS

Vêm provados os seguintes factos:
 
1. O Banco Réu dedica-se à atividade bancária.

2. O Banco Réu, com a anterior designação BB, S.A., pelo menos desde 1993 e até à data da nacionalização do seu capital, estava autorizado a exercer a sua actividade pelo Banco de Portugal e estava registada na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários como um intermediário financeiro em instrumentos financeiros.

2.a.      Até à data da publicação daquela Lei, o capital do BB, S.A. era integralmente detido pelo BB SGPS S.A. e este, por sua vez, era detido totalmente pela então denominada CC, S.A. (Participação que deteve de forma permanente até Novembro de 2008, altura em que foi nacionalizada), actualmente DD., S.A.  - (facto aditado pela Relação).

2.b. - Na verdade, e nos anos que antecederam a nacionalização até 2008, quer o referido BB, S.A., quer a referida CC, S.A., actualmente, DD., S.A., tinham o seu conselho de administração presidido pelo Dr. EE– (facto aditado pela Relação).


3. A Autora é cliente do Banco Réu, instituição na qual tem contas de depósito à ordem.

4.        A Autora constitui uma sociedade que se dedica com escopo lucrativo à indústria de construção civil, empreitadas de obras públicas, terraplanagens, transporte rodoviário, nacional e internacional de mercadorias e de passageiros, compra e venda de imóveis, comércio, exportação e importação de materiais, máquinas e equipamentos para a construção civil, fabricação e fornecimento de betão pronto, de argamassas e de massas betuminosas, sua comercialização e transporte, extracção de saibro, areia e pedra britada, exercício de atividades de prestação de serviços de transporte e gestão de exploração de infraestruturas em sistemas de metropolitano ou metropolitano ligeiro de superfície.

5.         Em Setembro de 2004, a Autora outorgou um acordo de subscrição e realização de capital, relativo à subscrição e realização dos fundos próprios da sociedade FF SA, (doravante FF).

6.       Esse acordo de subscrição exigia que cada um dos accionistas principais da FF, para garantia do cumprimento de cada uma das respetivas obrigações de financiamento, apresentasse garantias.

7.        A Autora, a fim de dar cumprimento do aludido acordo de subscrição, pediu ao Banco Réu, a emissão de duas garantias bancárias a favor da FF, uma no valor de 4.922.741,00 € e a outra no valor de 2.250.000,00 €.

8.        O Banco Réu acordou em emitir as solicitadas garantias e a Autora subscreveu, em benefício daquele, um depósito a prazo pelo período de dez anos, no valor mínimo de 1.100,000 € (um milhão e cem mil euros) como uma das contrapartidas da emissão das solicitadas garantias – (alterado pela Relação).

9.        A Autora acedeu à proposta do Banco Réu na constituição do depósito.

10.      A Autora solicitou ao Banco Réu que lhe explicasse e esclarecesse o teor daquele boletim de subscrição de fls. 33 e do tipo de aplicação financeira que estava em causa.

11.       O Banco Réu disse que apresentava um prazo de reembolso a 10 anos e com uma remuneração de juros pagos semestralmente nos primeiros 5 anos a 4,5% e nos restantes anos à taxa Euribor 6 meses acrescida de 1,75%.

12.       Em Setembro de 2004, a Autora efetuou um depósito a prazo de 1.100,000 € (um milhão e cem mil euros) junto do Banco Réu.

 13.      O pagamento do valor dos juros relativo à aludida aplicação financeira foi sempre pago à Autora.

14.       Na data do vencimento da referida aplicação (27.10.2014), a conta da Autora não foi creditada pelo respetivo valor de 1.100.000,00 € (um milhão e cem mil euros).

15.       A Autora interpelou, em Maio de 2016, o Banco Réu ao pagamento dessa quantia.

16.       O Banco Réu cumpriu ordens do seu cliente no sentido da subscrição das obrigações CC 2004.

17.       A Autora conheceu logo que subscreveu obrigações CC.

18.       No dia 25.10.2004, a Autora subscreveu 22 Obrigações CC Rendimento Mais 2004, com o valor nominal de 50.000,00 € cada uma, no valor global de 1.100,000 € (um milhão e cem mil euros), montante este que o Banco Réu retirou da conta de depósitos à ordem da Autora com o número ....

18.a. As Obrigações CC 2004 foram emitidas, como o próprio nome indica, pela CC., SGPS, S.A. – (facto aditado pela Relação).

19.       O gestor do Banco Réu explicou as condições do produto.

20.       A sua remuneração, mais vantajosa que os depósitos a prazo.

21.       O seu prazo, de 10 anos.

22.       E as condições de reembolso.

23.       E de obtenção de liquidez ao longo do prazo de 10 anos, que apenas seria possível por via dum endosso.

24.       O que, à data, era fácil e rápido, porque a procura superava a oferta.

25.       A Autora é uma empresa de construção civil, nomeadamente de obras públicas, com colaboradores com formação económica e financeira, com quem o Banco Réu lidava e com quem tratou desta transacção sobre obrigações, que conhecimento a natureza e condições das emissões obrigacionistas e dos efeitos da subscrição dos referidos títulos.

Por outro lado, as instâncias não deram como provado que:

26.       O aludido em 8. supra foi imposto pelo Banco Réu.

27.       O Banco Réu apenas emitia as mencionadas garantias bancárias se a Autora efectuasse um depósito a prazo junto do BB (actualmente BB).

28.       A Autora acedeu na constituição do depósito a prazo porque ele não comportava nenhum risco económico para a Autora.

29.       No dia agendado para a outorga da documentação necessária para a subscrição do aludido depósito a prazo, o Banco Réu, na pessoa dos seus interlocutores, apresentou à Autora um documento intitulado “CC RENDIMENTO MAIS 2004 – boletim de subscrição e que apresentava uma ordem de subscrição por parte da Autora de 22 obrigações com o valor nominal de 50.000,00 € cada uma, no valor global de 1.100,000 € (um milhão e cem mil euros).

30.       A Autora estranhou o documento apresentado.

31.      A Ré imediatamente assegurou e garantiu à Autora que o produto em causa era um produto do próprio Banco (Ré) e que era igual a um depósito a prazo.

32.       Mais garantiu à Autora que os juros seriam pagos pela própria Ré por depósito na conta de depósitos à ordem da Autora, e que o próprio Banco se responsabilizava pelo retorno do capital aplicado no prazo do vencimento (dez anos), garantindo o reembolso do mesmo na data do respectivo vencimento (27.10.2014).

33.       A Ré assegurou à Autora de que o capital do investimento estava garantido pelo próprio Banco Réu, não comportando, por isso, a aplicação de qualquer risco.

34.       A Ré assumiu perante a Autora um compromisso/garantia de cumprimento da devolução do capital investido e pagamento de juros no prazo de vencimento da aplicação.

35.       Informou ainda que só emitia as solicitadas garantias bancárias se a Autora subscrevesse esse produto.

 36.      A única informação que o Banco Réu prestou à Autora foi a de que se tratava de uma aplicação igual a um depósito a prazo, sem qualquer risco de retorno.

37.       O Banco Réu não informou a Autora dos riscos que este tipo de aplicação financeira apresentava, nomeadamente, da hipótese do capital investido não ser reembolsado.

38.      O Banco Réu não informou a Autora, nem aquando da subscrição das referidas obrigações, nem posteriormente, quais eram os elementos caracterizadores do produto que estava a subscrever, dos riscos especiais envolvidos nesse tipo de operação, nomeadamente, não ofereceu qualquer explicação sobre o risco de perda da totalidade do investimento.

39.       A única informação que o Banco Réu prestou à Autora sobre o produto que esta estava a subscrever foi a de que “É IGUAL A UM DEPÓSITO A PRAZO”.

40.      E por ter ficado convencida de que estava perante uma modalidade de aplicação do seu dinheiro cuja substância não diferia dos depósitos a prazo e apenas devido à garantia que lhe foi dada pelo Banco Réu de que se tratava de uma aplicação igual a depósitos a prazo e que o reembolso estava garantido pelo próprio Réu, a Autora aceitou subscrever as mencionadas obrigações.

41.       Sem tais garantias, a Autora nunca aceitaria o negócio, o que o Banco Réu bem sabia.

42.       A Autora apenas se limitou a assinar a ordem de subscrição das Obrigações que lhe foi apresentada pelos interlocutores do Banco Réu neste processo.

43.       E por instrução daqueles.

44.       Sempre com a garantia de que se tratavam de aplicações iguais a um depósito a prazo, que não tinha qualquer risco de retorno, e com conhecimento do Banco Réu de que tal era uma condição essencial da subscrição para a Autora.

45.       Sempre com prazo fixo de vigência.

46.       E sempre com garantia de remuneração por parte do próprio Banco Réu e com efectivo pagamento de uma taxa de juros líquida fixa sobre o capital aplicado.

47.       O Banco Réu assegurou à Autora que o retorno dos valores estava garantido pelo próprio BB.

48.       Mais assegurou que os valores lhe seriam retornados por depósito na conta da Autora, no prazo de 10 anos, ou seja no dia 27.10.2014.

49.       A Autora aceitou especificamente formalizar um depósito a prazo, não comportando qualquer risco e jamais desejou adquirir qualquer obrigação ou qualquer outro produto financeiro.

50.       A disponibilidade e vontade da Autora era apenas e só efectuar um depósito a prazo, sem qualquer risco.

51.       O Banco Réu assegurou à Autora que o retorno dos valores estava garantido pelo próprio BB (Ré).

52.       A Autora nunca tinha comprado ou vendido obrigações, nem nunca adquiriu a nenhuma Instituição Bancária qualquer produto diverso de depósitos a prazo e sempre aplicou as suas economias em depósitos a prazo, como o Réu bem sabia.

53.       A Autora nunca teve intenção ou pretendeu adquirir obrigações da CC …, S.A. ou de qualquer outra entidade.

54.       Se a Autora tivesse previsto a hipótese de o investimento não constituir um verdadeiro depósito a prazo, nunca aceitaria formaliza-lo, e teria exigido que fosse formalizado como depósito a prazo, ou então teria mesmo recorrido a outra Instituição Bancária a fim de obter as faladas garantias bancárias de que precisava.

55.       A Autora apenas subscreveu as obrigações em causa na convicção de que se tratava de verdadeiros depósitos a prazo, com a garantia de reembolso pelo próprio Banco Réu na respetiva data de vencimento.

            O DIREITO

           Nas conclusões I. a XXXII. das alegações da revista, a Autora recorrente procura justificar a admissibilidade da revista excepcional, questão que já se encontra ultrapassada, em sentido favorável à recorrente, pelo acórdão da Formação de fls. 628 a 630.

           

           Nas conclusões XXXIII. a XCVII, a recorrente insurge-se contra o modo como, no acórdão recorrido, foi tratada a impugnação que fizera sobre a decisão da matéria de facto. Relembre-se que aí se decidiu: rejeitar liminarmente o recurso de apelação quanto aos factos contidos nos pontos 8. e 9. da matéria de facto provada e quanto aos factos dos pontos 26., 27. e 28. da matéria de facto não provada, por se considerar que se tratava de matéria nova, nunca antes tida em consideração pelo tribunal da 1ª instância; rejeitar liminarmente o recurso de apelação quanto à impugnação da matéria de facto contida no ponto 25. da matéria de facto provada, nos pontos 29., 31. a 51., 52., 54. e 55. da matéria de facto não provada e, a propósito da mesma questão, quanto aos pontos 16., 17., 19., 20., 22., 23. e 24. dos factos provados, com fundamento no incumprimento do disposto nos artigos 639º e 640º do CPC; rejeitar liminarmente o recurso de apelação quanto à matéria que o recorrente quer ver inscrita nos factos provados, enquanto factos concretizadores e/ou instrumentais resultantes da instrução da causa.

Em sede de revista normal, este tribunal já apreciou estas questões e confirmou o decidido pela Relação, não cabendo emitir nova decisão sobre a matéria.

Nas conclusões XCVIII. a CIX. e CXVIII. a CXXIII, a recorrente procura encontrar nas alterações produzidas no acórdão da Relação (através da introdução dos factos dos pontos 2.a., 2.b. e 18.a. à matéria de facto), razão para a reformulação da decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente quanto à manutenção, ou não, do juízo probatório respeitante aos pontos 37., 38. e 39. da matéria de facto não provada e do ponto 19. da matéria de facto provada.

Também com base nessa alteração, defende a recorrente que deveria ter sido outra a decisão de Direito.

Deve dizer-se, a este respeito, que o aditamento desses pontos de facto foi requerido pela própria recorrente no recurso de apelação, conforme consta do acórdão recorrido (fls. 295, 296, 288, 290 e 298).

E importa também dizer que o acórdão deste STJ, anterior à aceitação da revista excepcional (fls. 605), estabilizou, em definitivo, a decisão das instâncias quanto à matéria de facto. Por outro lado, como aí se disse, “a alteração factual feita pela Relação, aditando os pontos 2.a., 2.b. e 18.a ao elenco factual provado e modificando o ponto 8. do mesmo elenco, não interferiu absolutamente nada (foi até desconsiderada) na apreciação da decisão de direito que, a seguir, a Relação realizou, secundando o trilho da sentença sobre o não enquadramento da situação envolvente à subscrição das obrigações como assunção de dívida (artigo 595º do Cód. Civil) e refutando o invocado erro da recorrente nessa subscrição bem como a responsabilização do Banco Réu, a título de responsabilidade aquiliana, pré-contratual e contratual, mormente pela violação de deveres de informação e de lealdade decorrentes não só do Cód. Civil, mas ainda do Cód. dos Valores Mobiliários (cfr. fls. 307 a 330), e sufragando, do mesmo modo, a absolvição do Banco Réu do pedido (…)”.

Improcedem, assim, as referidas conclusões.

Nas conclusões CX. a CXVII., a recorrente defende que as alterações produzidas na matéria de facto (que, como se disse, ela própria suscitou na apelação), implicam uma situação de conflito de interesses à luz da norma do artigo 11º da Directiva 93/22/CEE, de 10 de Maio de 1993. E acrescenta que a decisão recorrida viola essa norma, ao não considerar que a relação de domínio total entre a emitente dos títulos e o Banco recorrido (intermediário financeiro que vende esses títulos ao seu cliente) consubstancia esse conflito de interesses.

Nessa medida, sustenta que deveria ser suscitado, porque obrigatório, o reenvio dessa questão prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

           Vejamos o que dispõem os artigos 10º e 11º da referida Directiva, relativa aos serviços de investimento no domínio dos valores mobiliários:

Artigo 10º

O Estado-membro de origem estabelecerá regras prudenciais que devem ser observadas de forma contínua pela empresa de investimento. Essas regras exigirão, nomeadamente, que a empresa de investimento:

- possua uma boa organização administrativa e contabilística, mecanismos de controlo e segurança no domínio informático, bem como processos de controlo interno adequados, incluindo, nomeadamente, um regime das operações pessoais dos assalariados da empresa,

- tome disposições adequadas em relação aos valores pertencentes aos investidores, por forma a salvaguardar os direitos de propriedade destes, nomeadamente em caso de insolvabilidade da empresa, e a evitar que a empresa de investimento utilize os valores dos investidores por conta própria sem o consentimento explícito destes últimos,

- tome disposições adequadas em relação aos fundos pertencentes aos investidores, por forma a salvaguardar os direitos destes e a evitar, excepto no caso das instituições de crédito, que a empresa de investimento utilize por conta própria os fundos dos investidores,

- assegure que o registo das operações efectuadas seja pelo menos suficiente para permitir às autoridades do Estado-membro de origem verificar o cumprimento das regras prudenciais por cuja aplicação são responsáveis; esses registos devem ser conservados por um período a determinar pelas autoridades competentes,

- esteja estruturada e organizada de modo a reduzir ao mínimo o risco de os interesses dos clientes serem lesados por conflitos de interesses entre a empresa e os seus clientes ou entre os próprios clientes. No entanto, caso seja criada uma sucursal, as respectivas regras de organização não poderão estar em contradição com as normas de conduta estabelecidas pelo Estado-membro de acolhimento em matéria de conflitos de interesses.

                                                                             Artigo 11º


1. Os Estados-membros estabelecerão normas de conduta que as empresas de investimento serão obrigadas a cumprir em qualquer momento. Essas normas devem traduzir pelo menos os princípios enunciados nos travessões do presente número e devem ser aplicadas tendo em consideração a condição profissional da pessoa a quem é prestado o serviço. Os Estados-membros aplicarão igualmente essas normas, sempre que o julgarem conveniente, aos serviços auxiliares referidos na secção C do anexo. Estes princípios obrigarão a empresa de investimento a:

-  no exercício da sua actividade, actuar com lealdade e equidade na defesa dos interesses dos seus clientes e da integridade do mercado,

- actuar com a competência, o cuidado e a diligência que se impõem, no interesse dos seus clientes e da integridade do mercado,

- possuir e utilizar eficazmente os recursos e os processos necessários para levar a bom termo as suas actividades,

- informar-se sobre a situação financeira dos seus clientes, a sua experiência em matéria de investimentos e os seus objectivos em relação aos serviços pedidos,

- comunicar de modo apropriado as informações úteis no âmbito das negociações com os seus clientes,

- esforçar-se por suprimir os conflitos de interesses e, quando estes não possam ser evitados, assegurar que os clientes sejam tratados equitativamente,

- cumprir todas as regulamentações aplicáveis ao exercício das suas actividades, de modo a promover o melhor possível os interesses dos seus clientes e a integridade do mercado.
2. Sem prejuízo das decisões a tomar no âmbito de uma harmonização das normas de conduta, a aplicação e o controlo da sua observância continuam a ser da compe­tência do Estado-membro em que é prestado o serviço.
3. Sempre que uma empresa de investimento executar uma ordem, o critério da condição profissional do investidor, para efeitos da aplicação das normas referidas no n.º 1, será apreciado em relação ao investidor que está na origem da ordem, quer esta tenha sido colocada directamente pelo próprio investidor ou indirectamente por intermédio de uma empresa de investimento que preste o serviço referido no ponto 1. a) da secção A do anexo.

Esta Directiva viria a ser revogada (substituída) pela Directiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21.04.2004[2], mas apenas com efeitos a partir de 01.11.2007 (cfr. artigo 69º), o que significa que, à data dos factos dos presentes autos (Outubro de 2004), ainda vigorava.

De acordo com o artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), qualquer tribunal nacional que, na sua qualidade de aplicador comum do direito europeu, tenha dúvidas quanto à interpretação deste a um determinado caso concreto dispõe da faculdade de colocar ao Tribunal de Justiça da União Europeia a correspondente questão antes de resolver o caso. Se se tratar de um tribunal nacional que decida em última instância, como é o caso do STJ, aquela faculdade converte-se em obrigação. É nisto que se traduz o reenvio prejudicial.

Ora, a verdade é que não se suscitam quaisquer dúvidas na interpretação das normas em causa e muito menos se compreende a relevância que pode ter para os interesses da Autora a relação de domínio de grupo e domínio total do emitente dos títulos sobre o intermediário financeiro, geradora de potencial conflito de interesses[3], quando o que importa, ao cabo e ao resto, é averiguar se este cumpriu as regras prudenciais e de conduta a que estava (e está) obrigado e que encontram reflexo, na ordem jurídica interna, nas disposições dos artigos 7º e 304º e seguintes, entre outras, do Código dos Valores Mobiliários.

Não se vê, por conseguinte, razão para reenvio prejudicial.

Vamos de seguida apreciar cada uma das razões jurídicas em que a recorrente fundamenta o pedido de condenação do Banco Réu no pagamento do montante que reclama.

Antes, porém, será útil definir o quadro em que actuaram a Autora e o Banco Réu.

Face aos factos provados nos pontos 1. a 3. e 16. a 18.a., tem de concluir-se que o Banco Réu (na realidade, o BB - BB, S.A., que entretanto se fundiu com o BB, …, S.A.) actuou no âmbito de uma actividade de intermediação financeira, que tinha por objecto a negociação de valores mobiliários (obrigações denominadas CC 2004) – cfr. artigos 1.º, alínea b), 289º, n.º 1, alínea a), 290º, n.º 1, alínea b) e 293º, n.º 1, alínea a), do Código de Valores Mobiliários (CVM), e artigo 4º, n.º 1, alínea f) do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras (RGICSF).

As obrigações subscritas pela Autora foram emitidas pela ordenante “CC, SGPS, S.A.”, que detinha a totalidade do “BB SGPS S.A.”, que por sua vez, detinha integralmente o capital social do “BB – BB, S.A.” – cfr. ponto 2.a. dos factos provados.


a) A assunção cumulativa de dívida (conclusões CLIII. A CLXIX).

Na conclusão CLXIII, a recorrente condensa a argumentação que, em seu entender, deve levar o tribunal a considerar que estamos na presença de uma situação de assunção cumulativa de dívida.

Diz a recorrente:

“Ora, atenta a relação de grupo existente entre o Banco recorrido e a emitente dos títulos e as especificidades que determinaram a constituição do depósito a prazo de Esc. 1.100.000$00, logo a entrega deste montante pela recorrente ao Banco recorrido e a normal expectativa de vir a receber esse montante dez anos depois, no âmbito daquele contrato de emissão de garantias, demonstra que ocorreu uma transmissão singular de dívida sem exoneração do devedor originário, ou seja, sem exoneração do Banco recorrido, o que equivale a dizer que se tratou de uma assunção cumulativa de dívida que obriga, solidariamente com a nova devedora, o Banco recorrido na qualidade de devedor originário”.

Quanto a esta matéria o acórdão recorrido remeteu para o decidido na 1ª instância (fls. 328 e 329), sendo que aí se havia dito, após se fazer referência aos enunciados dos nºs 1 e 2 do artigo 595º do CC, que “a matéria factual provada não permite a integração nas hipóteses vindas de aludir, pois que não se demonstrou que o Banco Réu tenha assumido o dever de reembolso do capital aplicado nas obrigações e dos juros, em substituição da sociedade emitente de obrigações ou a par desta” (fls. 99, verso, e 100).

É também este o nosso entendimento, como exporemos.

A assunção de dívida é a operação pela qual um terceiro (assuntor) se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem.

A assunção opera uma mudança na pessoa do devedor, mas sem que haja uma alteração do conteúdo, nem da identidade da obrigação.

A substituição do devedor pode alcançar-se por uma das duas vias descritas no n.º 1 do artigo 595º: ou por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor; ou por contratação directa entre o novo devedor (assuntor) e o credor, independentemente de consentimento do primitivo obrigado.

Em qualquer dos casos, conforme referido no n.º 2 do mesmo artigo, a transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor, pois, de contrário, o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado, podendo o credor exigir de qualquer deles o cumprimento da obrigação.

Compreende-se o cuidado do legislador em fazer depender a eficácia da assunção da dívida, por terceiro, da necessidade do consentimento expresso do credor, porquanto, para este, não é indiferente a pessoa sobre quem recai a obrigação de cumprir.

Ao tratar desta última norma, Antunes Varela[4] declara que a mesma se reporta a uma situação com fisionomia diferente da do n.º 1, na medida em que nela o assuntor fica colocado ao lado do primitivo devedor, sem exonerar este, dando assim ao credor, não o direito a uma dupla prestação, mas o direito de obter a prestação devida através de dois vínculos, à semelhança das obrigações com os devedores solidários.

“Aos casos em que o compromisso assumido pelo novo devedor envolve a exoneração do primitivo obrigado dá-se o nome de assunção liberatória, exclusiva ou primitiva de dívida (...). Àqueles em que o terceiro faz sua a obrigação do primitivo devedor, mas este continua vinculado ao lado dele, dão os autores a designação de assunção cumulativa de dívida, co-assunção de dívida, acessão ou adjunção à dívida, asssunção multiplicadora ou reforçativa da dívida (…)”.

Manuel Januário da Costa Gomes[5] refere a este propósito:

“Outra figura a destacar, cuja aproximação à solidariedade passiva é evidente, atento o estabelecido no art. 595/2, é a assunção cumulativa de dívida. Diversamente do que ocorre com a solidariedade passiva em geral, a assunção cumulativa desempenha, em regra, funções de garantia: um novo devedor vai reforçar as perspectivas de o credor satisfazer o seu crédito, passando a haver uma nova responsabilidade pessoal e patrimonial ao lado da originária. Na regulamentação da assunção de dívida, o legislador teve fundamentalmente presente a situação típica, reverso da cessão de créditos –a assunção liberatória– só se encontrando no citado art. 595/2 uma referência à assunção cumulativa que tem sido entendida como uma remissão para a regulamentação das obrigações solidárias”.

Havia a recorrente alegado que o Banco Réu se responsabilizara perante aquela “pelo retorno do valor aplicado no prazo de vencimento (dez anos), garantindo o reembolso do mesmo na data do respectivo vencimento”, bem como o pagamento dos juros, e que assegurara que “o capital do investimento estava garantido pelo próprio Banco, não comportando, por isso, a aplicação de qualquer risco” – cfr. artigos 25º a 27º da petição inicial. No fundo, o que esta alegação queria significar é que o Banco Réu assumia perante a Autora a responsabilidade pelo pagamento do capital e juros resultantes da aplicação financeira, sem exoneração da primitiva devedora (sociedade emitente dos títulos).

No entanto, esta alegação não obteve a correspondente e indispensável prova, como resulta dos nºs 32. a 34. do elenco dos factos não provados, o que afasta, inexoravelmente, a possibilidade de se condenar o Banco Réu com base neste instituto jurídico.


b) A responsabilidade civil

Passemos, então, à análise do que vem vertido nas conclusões CXXIV a CLXXX que tocam, porventura, no ponto mais sensível da discussão dos autos: a eventual responsabilidade civil do Banco recorrido.

Afirma a recorrente que a transacção dos valores mobiliários, concretizada no último quadrimestre do ano de 2004, em que o Banco recorrido actuou como intermediário financeiro, não foi precedida de informação completa e exacta sobre as características do produto comercializado, nomeadamente a concernente à natureza das obrigações transacionadas, e que essa actuação lhe provocou danos patrimoniais.

A partir desta alegação, a recorrente pretende que o Banco Réu seja condenando a indemnizá-la no valor peticionado, quer com recurso à responsabilidade civil pré-contratual e contratual, quer com recurso à responsabilidade civil delitual.

Nos termos do artigo 7º, n.º 1, do CVM, a informação respeitante a valores mobiliários, a ofertas públicas, a mercados de valores mobiliários, a actividades de intermediação e a emitentes deve ser completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita.

Dispondo sobre os princípios aplicáveis à organização e exercício de actividade dos intermediários financeiros, o artigo 304º determina que estes devem orientar a sua actividade no sentido da protecção dos legítimos interesses dos seus clientes[6] e da eficiência do mercado (n.º 1), observando, nas relações com todos os intervenientes no mercado, os ditames da boa fé, de acordo com elevados padrões de diligência, lealdade e transparência (n.º 2), e, na medida do que for necessário para o cumprimento dos seus deveres, cabendo-lhes recolher informações sobre a situação financeira dos clientes, a sua experiência em matéria de investimentos e os objectivos que prosseguem através dos serviços a prestar (n.º 3).

Em particular, o artigo 312º, n.º 1, alíneas a) a d), impõe aos intermediários financeiros a prestação de todas as informações necessárias para uma tomada de decisão esclarecida e fundamentada (deveres de informação pré-contratual), nomeadamente quanto aos riscos especiais das operações, a conflitos de interesses, à cobertura, ou não, dos serviços a prestar por qualquer fundo de garantia ou de protecção equivalente e aos custos daqueles serviços.

O n.º 2 do mesmo preceito garante, por outro lado, que a extensão e a profundidade da informação devem ser adequadas ao cliente, sendo tanto maiores quanto menor for o seu grau de conhecimento e de experiência.

A preocupação do legislador no cumprimento do dever de informação centra-se, pois, em duas vertentes: no dever de prestar informação, não só sobre os riscos envolvidos nas operações, mas também sobre todos os aspectos relacionados com a execução do contrato e, nomeadamente, sobre os resultados, dificuldades ou inviabilização da execução do contrato; e no dever de recolher informação sobre o cliente, mormente acerca da sua situação financeira, experiência em matéria de investimentos e objectivos prosseguidos com a intervenção do intermediário.

Temos assim que a actuação do Banco, enquanto instituição financeira que também pratica actos de intermediação financeira, deve nortear-se pela boa-fé, assumindo particular destaque o dever de actuar de modo diligente e o dever de assegurar aos clientes um tratamento transparente. O dever de actuação transparente corresponde ao cumprimento do dever de prestação de informação, sendo que esta deve ser, como se referiu, completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita.

Sob a epígrafe “Responsabilidade Civil”, o artigo 314º[7] previa que:
1. Os intermediários financeiros são obrigados a indemnizar os danos causados a qualquer pessoa em consequência da violação de deveres respeitantes ao exercício da sua actividade, que lhes sejam impostos por lei ou por regulamento emanado de autoridade pública.
2. A culpa do intermediário financeiro presume-se quando o dano seja causado no âmbito de relações contratuais ou pré-contratuais e, em qualquer caso, quando seja originado pela violação de deveres de informação.

Conforme avisa Carlos Ferreira de Almeida[8], o facto de a responsabilidade civil do intermediário financeiro se encontrar consagrada em lei especial não invalida – ao invés, requer – a articulação com os quadros gerais da responsabilidade civil.

Mas, dada a forma bastante fluída e ampla como está redigida a norma do artigo 314º, não existe consenso quanto à natureza jurídica da responsabilidade civil aí prevista, circunstância que torna mais difícil a sua interpenetração com os referidos quadros gerais (artigos 483º e seguintes, e 798º e seguintes do CC).

Escrevendo sobre a responsabilidade civil do intermediário financeiro constante do actual artigo 304º-A, José Engrácia Antunes[9] refere: “(…) é possível encontrar um sortido de posições para todos os gostos: se há quem a qualifique como uma responsabilidade extracontratual ou delitual – fundada em normas gerais de proteção (deveres genéricos legais e regulamentares) destinadas a proteger os interesses dos terceiros investidores em geral (incluindo os clientes), cuja violação obriga o intermediário financeiro ao ressarcimento dos danos patrimoniais sofridos por estes (art. 483.º do Código Civil) – ou, opostamente, quem a considere como uma responsabilidade contratual – fundada numa relação contratual ou obrigacional existente entre intermediário financeiro e cliente-investidor, que vincula aquele perante este a um conjunto de deveres específicos de conduta profissional (de fonte legal, regulamentar, convencional ou deontológica) no cumprimento da respetiva prestação debitória (art. 397.º do Código Civil) e cuja violação poderá dar azo à inerente obrigação de indemnização com fundamento em responsabilidade por incumprimento contratual (arts. 798.º e 799.º do Código Civil) –, não falta ainda quem veja nela uma espécie de responsabilidade mista ou dupla – funcionando o art. 304.º-A como uma cláusula de imputação simultaneamente delitual e contratual, objetiva e subjetiva –, ou até uma responsabilidade intermédia ou de “terceira via” situada entre a responsabilidade contratual e extracontratual – mormente, fundada em responsabilidade pré-contratual ou em relação corrente de negócios”.

Considerando, sobretudo, o elemento histórico da norma do n.º 1 do artigo 314º, que tem como fundamento o artigo 651º do Código do Mercado de Valores Mobiliários de 1991[10], poderia parecer que o seu enunciado se reporta exclusivamente à responsabilidade civil extracontratual. No entanto, como defende Gonçalo Castilho dos Santos[11], a cláusula constante do artigo 304º-A, n.º 1, não circunscreve a disciplina da imputação dos danos à responsabilidade delitual, consagrando simultaneamente uma cláusula de imputação obrigacional dos danos sofridos pelos clientes do intermediário financeiro inadimplente no que respeita às obrigações a que estava adstrito e que surgem expressas no rol de deveres que a lei estabeleceu.

Isto é assim porque, tendo a relação do intermediário financeiro com o cliente natureza obrigacional, a determinação das obrigações assumidas e as consequentes responsabilidades pelo respectivo incumprimento assentam, essencialmente, no contrato específico de intermediação financeira.

Por sua vez, o n.º 2 estabelece que a culpa se presume se o dano for causado no âmbito de relações contratuais ou pré-contratuais e, em qualquer caso, quando seja causado pela violação dos deveres de informação. Por isso, é ao intermediário financeiro, e não ao cliente, que incumbe provar que uma eventual conduta ilícita e danosa não lhe é subjetivamente imputável a título de dolo ou negligência.

Também aqui a leitura terá de assumir um carácter mais amplo do que aquele que, por repetição, derivaria do artigo 799º do CC, mas não tão amplo como o sustentado por alguma doutrina e jurisprudência.

O que queremos com isto dizer é que a presunção de culpa (e só deste pressuposto) se estende à responsabilidade pré-contratual e à responsabilidade civil extracontratual (invertendo, quanto a esta última, o ónus da prova a cargo do lesado – artigo 487º do CC[12]), mas não abrange a ilicitude[13] do facto nem o nexo de causalidade[14] entre o facto e o dano[15].

Tendo em consideração os particulares aspectos do caso concreto, não necessitamos de aprofundar a análise que vínhamos fazendo, pelo que, traçado o quadro legal em que se move a responsabilidade civil do intermediário financeiro, cuidaremos agora de verificar se concorrem os necessários pressupostos, uma vez que não existe a menor dúvida de que entre a Autora e o Banco Réu se firmou um contrato de intermediação financeira[16].

O primeiro desses pressupostos, comum às variadas espécies de responsabilidade civil (pré-contratual, contratual e extracontratual) é a ilicitude, que, como se sabe, resulta da desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado. No caso, essa ilicitude teria de reconduzir-se à omissão da prestação dos deveres de informação ou à prestação de informações não condizentes com a realidade.

Ora, conforme se sublinha no acórdão recorrido, “a Autora foi informada pela Ré nos termos registados em 11., 19. a 24.. Tal como resulta da motivação da decisão, o funcionário da Autora que protagonizou as negociações em causa admitiu que se inteirou do teor do boletim de subscrição junto a fls. 33 e da natureza do produto financeiro em causa, mencionado nos factos provados, v.g., nos seus itens 17. e 18., tendo ficado assente que aquela se apercebeu do seu conteúdo e da identidade do emitente, sem que tenha sido demonstrado qualquer conflito de interesses que  viciasse o negócio em apreço.

A Autora, como se evidenciou, na decisão impugnada, nos factos provados e nos instrumentais que resultam da sua motivação, é uma pessoa coletiva de dimensão considerável, nacional e internacional, composta de pessoas devidamente formadas (item 25. dos factos provados), capazes de a elucidarem devidamente, como foi o caso da testemunha Leonel, pessoa devidamente habilitada, presumimos (cf. art. 349º, do Código de Processo Civil), a identificar os fatores de risco que este tipo de investimento pressupunha, por comparação com o consensualmente extinto depósito, cujo capital foi investido conscientemente”.

Resulta, efectivamente, do elenco dos factos provados que a Autora solicitou ao Banco Réu que lhe explicasse e esclarecesse o teor do boletim de subscrição de fls. 33 e do tipo de aplicação financeira que estava em causa, tendo o gestor do Banco Réu explicado as condições de subscrição das 22 Obrigações CC Rendimento Mais 2004, bem como a sua remuneração (mais vantajosa que os depósitos a prazo), o prazo de 10 anos e as condições de reembolso e de obtenção de liquidez ao longo desse prazo – cfr. pontos 10. e 18. a 23. Ficou também provado que a Autora é uma empresa de construção civil, nomeadamente de obras públicas, com colaboradores com formação económica e financeira, com quem o Banco Réu lidava e com quem tratou desta transacção sobre obrigações, que conhecem a natureza e condições das emissões obrigacionistas e dos efeitos da subscrição dos referidos títulos – cfr. ponto 25.

Ao invés, não ficou provado: que a única informação que o Banco Réu prestou à Autora tivesse sido a de que se tratava de uma aplicação igual a um depósito a prazo, sem qualquer risco de retorno; que o Banco Réu não informasse a Autora dos riscos que este tipo de aplicação financeira apresentava, nomeadamente, da hipótese do capital investido não ser reembolsado; que o Banco Réu não informasse a Autora, nem aquando da subscrição das referidas obrigações, nem posteriormente, de quais eram os elementos caracterizadores do produto que estava a subscrever e dos riscos especiais envolvidos nesse tipo de operação, não oferecendo, nomeadamente, qualquer explicação sobre o risco de perda da totalidade do investimento – cfr. pontos 36. a 39. dos factos não provados. E, como afirmado mais acima, também não ficou provado que o Banco Réu tivesse assegurado à Autora que o capital do investimento estava garantido pelo próprio Réu, não comportando, por isso, a aplicação de qualquer risco, nem que tivesse assumido perante a Autora um compromisso/garantia de cumprimento da devolução do capital investido e pagamento de juros no prazo de vencimento da aplicação – cfr. pontos 33. e 34 dos factos não provados.

           Daqui resulta não se ter por demonstrado o incumprimento pelo Banco Réu dos deveres de informação a que estava adstrito, pois que, como se diz no acórdão recorrido, “não encontramos nos factos provados qualquer comportamento positivo ou negativo que possa ser considerado violação relevante das normas legais e regulamentares que na altura estavam estabelecidas (…) o que era ónus da Autora demonstrar (art. 342º, n.º 1, do Código Civil)”.

            Falhando este pressuposto essencial, torna-se inútil prosseguir a análise dos demais.

                                                                       *


III. DECISÃO


Nesta conformidade, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

                                                                       *

Custas pela recorrente.

                                                                       *


           LISBOA, 9 de Abril de 2019

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Raimundo Manuel da Silva Queirós

________________________
[1] Relator:         Henrique Araújo
  Adjuntos:      Maria Olinda Garcia
                          Raimundo Queirós
[2] Que foi objecto de sucessivas alterações: Diretiva 2006/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (JO L 114 de 27.4.2006, p. 60); Diretiva 2007/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (JO L 247 de 21.9.2007, p. 1); Diretiva 2008/10/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (JO L 76 de 19.3.2008, p. 33; .Diretiva 2010/78/UE do Parlamento Europeu e do Conselho (JO L 331 de 15.12.2010, p. 120), e Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Maio de 2014.
[3] À data, o artigo 309º do CVM, sob a epígrafe, “Conflito de interesses”, regia do seguinte modo:

1 - O intermediário financeiro deve organizar-se e actuar de modo a evitar ou a reduzir ao mínimo o risco de conflito de interesses.

2 - Em situação de conflito de interesses, o intermediário financeiro deve agir por forma a assegurar aos seus clientes um tratamento transparente e equitativo.

3 - O intermediário financeiro deve dar prevalência aos interesses dos clientes, tanto em relação aos seus próprios interesses ou de empresas com as quais se encontra em relação de domínio ou de grupo, como em relação aos interesses dos titulares dos seus órgãos sociais e dos seus trabalhadores.

4 - Sempre que o intermediário financeiro realize operações para satisfazer ordens de clientes, deve pôr à disposição destes os valores mobiliários pelo mesmo preço por que os adquiriu.
[4] “Das Obrigações em Geral”, Volume II, 4ª edição, páginas 349/350.[5] “Assunção Fidejussória de Dívida Sobre o Sentido e o Âmbito da Vinculação como Fiador”, 2000, página 104.
[6] O que confere à relação de intermediação um carácter fiduciário.
[7] Que corresponde, praticamente, ao actual artigo 304º-A.
[8] “O Código dos Valores Mobiliários e o Sistema Jurídico”, em Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7,  (2000), páginas 40/41.
[9] “Deveres e Responsabilidade do Intermediário Financeiro – Alguns Aspetos”, em Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 56, Abril 2017, páginas 32 e seguintes.
[10] Aprovado pelo DL 142-A/91, de 10 de Abril.
[11] “A Responsabilidade Civil do Intermediário Financeiro perante o Cliente”, páginas 191.
[12] Menezes Leitão (“Direito dos Valores Mobiliários”, Volume II, páginas 147/148) entende, contudo, que o regime do n.º 1 do artigo 314º se reporta à responsabilidade delitual, sem presunção de culpa, cabendo, por conseguinte, ao lesado a correspondente prova.
[13] Ao contrário do que sustenta Meneses Cordeiro, em “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, 2009, página 266.
[14] No sentido de que a referida presunção engloba o nexo de causalidade, Gonçalo Castilho dos Santos, ob. cit., página 237.
[15] Conforme se decidiu no acórdão deste STJ de 18.09.2018, no processo n.º 20403/16.8T8SLB.L1.S1 (Conselheira Maria Olinda Garcia), a única presunção que expressamente se prevê no domínio do artigo 304º-A, n.º 2, do CVM, é a presunção de culpa do intermediário financeiro.
[16] Define-se tal contrato como sendo aquele em que um intermediário financeiro se obriga à prestação de um serviço de intermediação financeira (compreendendo serviços de investimento em valores mobiliários, serviços auxiliares de investimento, gestão de instituições de investimento colectivo e funções de depositário de valores mobiliários que integram essas instituições) para com um seu cliente.