Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
181/09.8TBAVV-A.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
FUNDAMENTOS
ENUMERAÇÃO TAXATIVA
DOCUMENTO NOVO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
CASO JULGADO
DIREITO DE PROPRIEDADE
ANIMUS POSSIDENDI
PRESUNÇÕES LEGAIS
Data do Acordão: 10/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / EXCEÇÕES / SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA / RECURSOS /RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO / REVISÃO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS – DIREITO DAS COISAS / POSSE.
Doutrina:
-A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume VI, 376 e 377.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 414.º, 580.º, 581.º, N.º 1, 619.º, N.º 1, 652.º, N.º 3, 679.º, 696.º, ALÍNEA C) E 697.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 363.º, N.º 2, 371.º E 1252.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- PROCESSO N.º 85.204, IN DR N.º 144/96, IIª SÉRIE, DE 24-06-1996;
- DE 26-01-1996, IN BMJ 443/317;
- DE 18-12-2003, PROCESSO N.º 03B2840), IN WWW.DGSI.PT/JSTJ;
- DE 17-09-2009, PROCESSO N.º 09S0318, IN WWW.DGSI.PT/JSTJ;
- DE 19-09-2013, PROCESSO N.º 663/09.1TVLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT/JSTJ.
Sumário :
I - Por princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, não se permita nova discussão do litígio; situações existem, contudo, em que a necessidade de segurança ou de certeza e as exigências da justiça conflituam de tal forma que o princípio da intangibilidade do caso julgado tem de ceder.

II - O meio processual adequado para esse efeito é o recurso extraordinário de revisão, o qual se comporta estruturalmente como uma acção destinada a fazer ressurgir a instância que o caso julgado extinguiu (fase rescindente) e a reabrir a instância anterior (fase rescisória).

III - Tendo a sentença proferida em 1.ª instância sido impugnada e tendo a Relação proferido acórdão confirmatório da mesma, apreciando definitivamente a questão de facto e de direito controvertida, é à Relação que cabe conhecer do recurso extraordinário de revisão por ter proferido a decisão a rever (art. 697.º, n.º 1, do CPC).

IV - São taxativas as situações previstas no art. 696.º do CPC que podem fundamentar o recurso de revisão.

V - O documento a que alude a al. c) do art. 696.º do CPC, para fundamentar a revisão, tem que revestir dois requisitos cumulativos: (i) a novidade (que significa que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão em causa, seja porque ainda não existia, seja porque, existindo, a parte não pôde dele socorrer-se); e (ii) a suficiência (que implica que o documento constitua um meio de prova susceptível de, por si só, demonstrar ou infirmar facto ou factos relevantes por forma a conduzir a decisão mais favorável ao recorrente).

VI - Uma “Declaração” emitida por uma Junta de Freguesia, assinada pelo respectivo Presidente e autenticada com selo branco, da qual apenas resulta que a passagem nela referida “não é de trânsito público, mas apenas privado” – não obstante ser um documento autêntico com o alcance probatório que deriva do art. 371.º do CC – não é, por si só, um documento idóneo para que se possa ter como provada a facticidade susceptível de demonstrar a existência do animus possessório, cuja falta conduziu à improcedência da acção na qual foi proferida a decisão a rever e na qual os recorrentes pediam que fosse declarada que uma parcela de terreno lhes pertencia e fazia parte integrante de um prédio de que são proprietários.

VII - Não cabe no âmbito da decisão proferida na fase rescindente do recurso sindicar a decisão revidenda, nomeadamente o bom ou mau uso de presunção legal, mas apenas averiguar se o documento apresentado, além da novidade, é suficiente para conduzir à alteração da decisão objecto do recurso de revisão em sentido favorável aos recorrentes.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:



  1. No presente recurso extraordinário de revisão, instaurado com fundamento no disposto no artigo 696º al. c) do Código de Processo Civil,  foi proferida pela relatora a seguinte decisão singular:

«I. Relatório:

     AA e BB interpuseram, em 23 de Maio de 2016, no Tribunal da Relação de … recurso extraordinário de revisão, com fundamento no disposto no artigo 696º al. c) do Código de Processo Civil, contra CC, DD e EE, pedindo que fosse proferido novo acórdão, que, na procedência do recurso de apelação, revogasse a sentença proferida na 1ª instância, julgando a acção totalmente procedente.

     Alegaram, em síntese, resultar da certidão emanada da Junta de Freguesia do …, datada de 14 de Abril de 2016, que sobre a parcela de terreno a que se referem os autos não se processa trânsito público, ao contrário do afirmado no acórdão a rever, no qual ficou provado tal trânsito. O uso desse documento ou outro idêntico não foi feito anteriormente por não ter sido alegado em qualquer peça processual que pela parcela em causa se processava trânsito público.


    O requerimento de interposição do recurso foi remetido à 1ª instância e ali foi indeferido, por decisão proferida em 6 de Julho de 2016, considerando-se que o conteúdo e a natureza probatória do documento em questão são insusceptíveis de provar quaisquer factos decisivos, incompatíveis ou inconciliáveis com os provados na decisão a rever, de modo a evidenciar-se um julgamento errado dos factos relevantes do processo, não sendo ainda dotado da superveniência exigida pelo invocado artigo 696º al. c) do Código de Processo Civil para servir de fundamento à pretendida revisão.


     Desta decisão apelaram os recorrentes, tendo o Tribunal da Relação de … proferido acórdão, em 15 de Dezembro de 2016, transitado em julgado, a «julgar improcedente o recurso de revisão interposto pelos recorrentes AA e BB e, em consequência, confirmar a decisão recorrida».


    Novamente inconformados, interpuseram recurso de revista, formulando na respectiva alegação a seguinte síntese conclusiva:

«A - O recurso de Revisão, foi dirigido ao Venerando Tribunal da Relação de …, por ser, este, que se pronuncia, em última instância, sobre o fundo da questão, e, assim considerando que ficou provado facto que afastava a presunção do '"animus" a favor dos apelantes, confirma a sentença da primeira instância.

B O Tribunal recorrido é competente em razão da matéria, existindo, pois, o Acórdão proferido, sendo o que em última instância, se pronuncia sobre o fundo da questão e contrariamente à sentença da primeira instância, afirma que ficou provado que sobre tal espaço, parcela de terreno em questão, se processava trânsito público.

C - Sendo, até taxativo, na decisão da primeira instância, sobre a Revisão: "indefiro o recurso de revisão interposto (...) do acórdão proferido nos autos principais."

D - Devendo, pois, por tal razão, o Tribunal da Relação de …, ser considerado o competente, para se pronunciar sobre a Revisão, em primeira instância.

E - Independentemente do valor da causa, o recurso com fundamento na violação, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia é sempre admissível (Art.° 629°, n.° 2, al. a)).

Sem prescindir.

F - A sentença da primeira instância proferida nos autos principais, só por si, e em nosso modesto entendimento, encerrando um ''erro judiciário", deveria levar a uma conclusão totalmente oposta que era a procedência da acção e não a sua improcedência, atendendo aos factos dados como provados e à presunção do "animus" da posse que assistia aos AA/recorrentes e, como se diz na fundamentação da sentença, os RR/recorridos não ilidiram tal presunção.

G - O erro do julgador, além da sua construção lógica, está, em considerar que os AA/recorrentes tinham o ónus de prova do "animus" da posse, sendo pacífico, quer atendendo à lei - Art.° 1252°, n.° 2, do Código Civil -, quer à uniformização de jurisprudência, mencionada, do S.T.J., relativamente à presunção do "animus" da posse, para efeitos da aquisição originária da propriedade pela usucapião, aqueles que exercem o poder de facto sobre uma coisa.

H - Tal erro, salvo o devido respeito, é mantido pelo douto Acórdão de que se pretende a revisão, mas com uma contradição, dizendo não poder alterar a matéria de facto, e que sendo "poucos os elementos para se poder afirmar que os AA/recorrentes exercem sobre a parcela em questão o poder de facto conducente à aquisição por usucapião, uma vez que ficou provado que se processava, no mesmo espaço, também, trânsito público, (...)".

I - Devido a tal dado, que os Venerandos Desembargadores entendem, não conceder "o animus" presumido da posse, aos AA/recorrentes, e não sendo admitido recurso de Revista, com tal motivo, é que, os recorrentes solicitaram à Junta de Freguesia, através do seu Presidente, para informar se há domínio público de passagem por tal parcela de terreno, em questão nos autos.

J - Assim, é que nesta fase, com tal documento, que consideramos autêntico, se recorre à revisão do douto Acórdão, sendo, por isso, oportuno e não extemporâneo, como se pretende fazer crer, pelo Acórdão recorrido.

L - Tal documento não encerra uma opinião, ou parecer, ou, até, juízo de valor, mas atesta um facto incompatível ou inconciliável, com o dado como provado no douto Acórdão, de que, por tal parcela de terreno, se processava trânsito público.

 M - A força probatória de tal documento é superior ao de qualquer testemunha, pois provém de autoridade competente, o Presidente da Junta de Freguesia, que tem conhecimento do que é do domínio público na Freguesia de ….

N - A apresentação de tal documento só se tornou exigível no processo, após o douto Acórdão de que se pede a revisão, o que, havendo o recurso de Revista, não foi apresentado; pois, nunca os recorrentes pensaram na inadmissibilidade, da mesma, pelo S.T.J., como o foi e pode ser apreciado nos autos.

O - Quanto à taxatividade do Art.° 696° do C.P.C., não se discute, porém, para que este caso se julgue por jurisdição nacional, tendo em conta a justiça e outros princípios de direito, não se poderá ver tal taxatividade, no sentido de uma interpretação restritiva dos seus preceitos -vide Acórdão do TRC, de 25-01-2015, em que é relator o Venerando Desembargador Coelho de Matos, in www.dtisi.pt.

P - O douto Acórdão de que se recorre violou, entre outros, os dispositivos legais insertos nos artigos 697°, 96° e segs.. e 696°, al. c), do C.P.C., e, ainda, Art.s 362° e segs. do Código Civil.

Termos em que:

1. Deve ser considerado o Tribunal recorrido competente em razão da matéria e os autos serem devolvidos ao tribunal competente Venerando Tribunal da Relação de Guimarães -, para se pronunciar sobre o fundo da questão;

Sem prescindir.

2. Deve ser dado provimento ao recurso, e consequentemente, revogado o douto Acórdão recorrido, com todas as consequências legais, ou seja, pronunciar-se definitivamente sobre a revisão e fundo da questão».

        Não houve contra-alegação.


II. Fundamentos:

     Em face das conclusões da alegação dos recorrentes, as quais delimitam o objecto do recurso, salvo questão de conhecimento oficioso, são duas as questões a dilucidar:

- se a competência para o presente recurso extraordinário de revisão deve ser atribuída ao Tribunal da Relação, que proferiu acórdão confirmatório da sentença da 1ª instância;

- se o recurso de revisão deve ser admitido.

A decisão do objecto do recurso é tomada pela relatora de harmonia com o disposto nos artigos 656º e 679º do Código do Processo Civil.

1. Para apreciação da primeira questão enunciada releva a dinâmica processual descrita supra no relatório.

Por princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, não se permita nova discussão do litígio. Assim, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decidam do mérito da causa, ficam aqueles dotados de força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º nº 1, como resulta do disposto no artigo 619º nº 1, todos do Código de Processo Civil, ao qual se referirão todos os preceitos legais doravante citados sem outra menção.

Situações existem, contudo, em que a necessidade de segurança ou de certeza e as exigências da justiça conflituam de tal forma que o princípio da intangibilidade do caso julgado tem de ceder. É o que acontece quando a sentença ou acórdão transitados em julgado assentam em vícios tão anómalos e graves que ferem o mais elementar princípio da justiça e impõem a sua revisão.

Trata-se, como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 26 de Janeiro de 1996 (BMJ 443/317), de “... um compromisso entre a estabilidade que deve oferecer uma decisão com trânsito e a necessidade de se prever a rescisão de sentença cuja base está ferida de erro grave de facto posteriormente conhecido”

A correcção de erros, ainda que protegidos pela força do caso julgado, deve admitir-se, com sacrifício da segurança que advém do caso julgado, sob pena de a sua irrevogabilidade implicar um dano social mais elevado e pesado do que o decorrente da limitação ao princípio da intangibilidade do julgado. O meio processual adequado para o efeito é o recurso extraordinário de revisão, o qual se comporta estruturalmente como uma acção destinada a fazer ressurgir a instância que o caso julgado extinguiu (fase rescindente) e a reabrir essa instância anterior (fase rescisória), cfr. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, págs. 376/377.

No caso vertente, a sentença proferida pela 1ª instância julgou improcedente a acção movida pelos ora recorrentes contra os recorridos, na qual aqueles pediam que fosse declarado que a parcela de terreno que identificaram lhes pertencia e fazia parte integrante do prédio, também por si identificado, de que são proprietários, condenando-se os recorridos a demolirem todas as obras que construíram em tal parcela de terreno.

O Tribunal da Relação de …, julgou improcedente o recurso de apelação então interposto pelos aqui recorrentes, tendo o respectivo acórdão transitado em julgado.

Na ponderação destes elementos, o acórdão recorrido considerou que, tendo a Relação confirmado a sentença proferida naquela acção, a competência para conhecer do presente recurso extraordinário de revisão deve ser deferida ao tribunal de 1ª instância. Sustentam, no entanto, os recorrentes entendimento contrário, defendendo que tal competência deverá ser atribuída ao tribunal de recurso por ter sido este a pronunciar-se em último lugar e em definitivo sobre a decisão do litígio.

De acordo com a previsão do nº 1 do artigo 697º, «O recurso é interposto no tribunal que proferiu a decisão a rever», o que significa que a competência material para dele conhecer tanto pode caber ao tribunal de 1ª instância, como ao Tribunal da Relação ou ao Supremo Tribunal de Justiça, consoante o órgão jurisdicional que proferiu a decisão transitada em julgado.

A atribuição de competência, de harmonia com o referido comando legal, depende, por conseguinte, da instância que proferiu a decisão transitada em julgado, ou seja, a decisão que já não é passível de recurso ordinário ou de reclamação. Assim, tendo havido recurso ordinário, o qual obsta à formação de caso julgado, a decisão proferida pelo tribunal superior é a transita em julgado, sendo a que define em última instância o litígio, ainda que confirme a decisão impugnada. É indiferente ao caso que o acórdão do tribunal superior seja revogatório ou confirmatório da decisão impugnada. 

Esta tem sido a doutrina deste Supremo Tribunal de Justiça, destacando-se os Acórdão de 18.12.2003 (proc. nº 03B2840), e de 19.09.2013 (proc. nº 663/09.1TVLSB.S1), acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.

No caso em análise, a sentença proferida em 1ª instância foi impugnada pelos autores, ora recorrentes, tendo o Tribunal da Relação tomado conhecimento do recurso e proferido acórdão confirmatório daquele sentença. Foi este acórdão, do qual não coube recurso, que apreciou em definitivo a questão de facto e de direito controvertida e transitou em julgado.

Logo, cabia à Relação conhecer ab initio do recurso extraordinário de revisão por ter proferido a decisão a rever, procedendo, neste particular, as conclusões da alegação dos recorrentes.


2. Não obstante, o Tribunal da Relação emitiu já pronúncia sobre a questão de mérito, embora em sede de recurso de apelação, decidindo, tal como se entendera na 1ª instância, que o presente recurso extraordinário de revisão não deve ser admitido.

Por tal razão, a devolução dos autos àquele Tribunal careceria, nesta fase, de qualquer efeito útil e redundaria na violação do princípio da limitação dos actos consagrado no artigo 130º, enquanto manifestação do princípio da economia processual, traduzindo-se na prática de um acto inútil, e, por isso, não consentido.

São taxativas as situações que podem fundamentar o recurso de revisão. Estão previstas no artigo 696º, das quais importa aqui considerar a prevista na alínea c), nos termos da qual é possível haver revisão “Quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”.

Concretizando os requisitos da novidade e da suficiência, necessários e de verificação cumulativa para poder atender-se ao documento novo, escreveu-se no Acórdão deste Supremo Tribunal de 17.09.2009 (proc. nº 09S0318, disponível em www.dgsi.pt/jstj):

«A “novidade” significa que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão em causa, seja porque ainda não existia, seja porque, existindo, a parte não pôde socorrer-se dele.

Quanto à suficiência, o Código de 1939 exigia que o documento tivesse a virtualidade de “destruir” a prova em que a decisão revidenda se havia fundado.

O Código de 1961, e as alterações ulteriores, vieram “aligeirar” esse requisito: - não se exige já que o documento altere radicalmente a situação de facto em que assentou a sentença [acórdão] revidenda, basta que lhe implique uma modificação dessa decisão em sentido mais favorável à parte vencida».

O documento há-de constituir um meio de prova susceptível de, por si só, demonstrar ou infirmar facto ou factos relevantes por forma a conduzir a decisão mais favorável ao recorrente.

Vejamos se, no caso em análise, o documento em que se baseia o pedido de revisão cumpre os aludidos requisitos.

Trata-se de uma “Declaração” emitida pela Junta de Freguesia de ..., datada de 14 de Abril de 2016, assinada pelo respectivo Presidente e autenticada com o selo branco em uso nessa Junta, sendo o seu teor o seguinte:

“A Junta de Freguesia de …, concelho de ..., declara que na localidade chamada vale do ninho desta freguesia de …, existe uma servidão de passagem de águas de regadio e seus acompanhantes, herdeiros da mesma água. Contudo é de salientar que essa passagem não é de trânsito público, mas apenas privado”.

Esta declaração tem a natureza de documento autêntico, de acordo com o disposto no artigo 363º nº 2 do Código Civil e tem a força probatória que lhe confere o artigo 371º do mesmo código, ou seja, os documentos autênticos fazem prova plena “dos factos que referem como praticados pela autoridade oficial” ou “dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora”.


 Ora, da declaração em causa apenas resulta de útil que a passagem a que a mesma se refere “não é de trânsito público, mas apenas privado”. Tal não é suficiente para que possa ter-se como provada, com base em tal documento, a facticidade susceptível de demonstrar a existência do animus possessório, cuja falta conduziu à improcedência da acção.

Note-se que o Tribunal da Relação, que proferiu a decisão revidenda, ao pronunciar-se sobre a impugnação da decisão fáctica deduzida pelos ora recorrentes no âmbito do recurso de apelação por si interposto referiu o seguinte:

“No caso dos autos, a prova não foi gravada e dos autos não constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão, uma vez que, para além da prova documental existente, o julgador serviu-se da prova testemunhal (não gravada) e da inspecção ao local que, oportunamente realizou.”

E mais à frente observou:

“Acontece, como supra já se referiu, que dos autos não constam todos os elementos de prova que nos permitam alterar esta decisão de facto e conferir se a presunção de posse foi ou não ilidida pelos réus”.

Foi com base nesta razão – falta de acesso a todos os meios de prova produzidos –, inviabilizadora da apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que se manteve inalterada a facticidade provada na 1ª instância, julgada insuficiente para a pretensão dos ali autores, aqui recorrentes, triunfar.

A referência feita no mesmo acórdão à circunstância de ter resultado “provado que se processava, no mesmo espaço, também, trânsito público”, não foi determinante para o sentido decisório do mesmo, porquanto, como já afirmado anteriormente, sem o acesso a todos os meios de prova que estiveram à disposição da 1ª instância para o julgamento da matéria de facto, o Tribunal da 2ª instância não estava habilitado a exercer os poderes de modificação da decisão relativa à matéria de facto. Com efeito, no contexto em que foi produzida, tal afirmação surge como um obiter dictum em reforço do antes afirmado.

Logo, ainda que se considerasse que a declaração obtida e apresentada como fundamento do recurso de revisão corresponde à exigência de “novidade”, consideramos que não tem, por si só, a virtualidade de alterar a decisão revidenda em sentido mais favorável aos recorrentes, faltando-lhe o indispensável requisito da suficiência.

Termos em que, procedendo, embora, as conclusões da alegação dos recorrentes no tocante à questão da competência em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso extraordinário de revisão, não pode conceder-se a revista.


III. Decisão:

Nesta conformidade, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes».


2. Vêm agora os recorrentes AA e BB pedir que sobre esta decisão recaia acórdão, em conformidade com o disposto nos artigos 652º nº 3 e 679º do Código de Processo Civil.

Alegam que, tendo os recorridos afastado a presunção do animus possessório, “a acção terá que proceder de acordo com o que foi dado como provado em primeira instância, ou seja, a propriedade constituída pela usucapião dos recorrentes sobre a parcela de terreno em causa e a condenação dos recorridos na demolição das obras que edificaram em tal parcela e que invadem a mesma, na área e invasão da mesma, que foi dada como provada”.

Concluem que a decisão sob reclamação enferma de erro de qualificação jurídica, infringindo os dispositivos legais dos artigos 414º do Código de Processo Civil e 1252º nº 2 do Código Civil, contrariando ainda jurisprudência uniformizada do Supremo tribunal de Justiça (Acórdão proferido no processo nº 85.204, publicado no DR nº 144/96, IIª Série, de 24.06.1996).

Não houve resposta.

3. Começaremos por salientar que correu termos uma acção declarativa movida pelos ora recorrentes contra os aqui recorridos, na qual os primeiros pediam que fosse declarado que a parcela de terreno que identificaram lhes pertencia e fazia parte integrante do prédio, também por si identificado, de que são proprietários, condenando-se os segundos a demolirem todas as obras que construíram em tal parcela de terreno.

A sentença proferida pela 1ª instância julgou improcedente essa acção, tendo sido confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, transitado em julgado.

Nessa sequência vieram os ali autores interpor recurso extraordinário de revisão ao abrigo do disposto no artigo 696º alínea c) do Código de Processo Civil, com fundamento em que dispunham de um documento novo susceptível de, por si só, modificar a decisão revidenda em sentido mais favorável.

Para tanto, juntaram uma “Declaração” emitida pela Junta de Freguesia de …, datada de 14 de Abril de 2016, assinada pelo respectivo Presidente e autenticada com o selo branco em uso nessa Junta, da qual constava o seguinte:

“A Junta de Freguesia de …, concelho de ..., declara que na localidade chamada vale do ninho desta freguesia de …, existe uma servidão de passagem de águas de regadio e seus acompanhantes, herdeiros da mesma água. Contudo é de salientar que essa passagem não é de trânsito público, mas apenas privado”.

Não obstante tratar-se de documento autêntico, com o alcance probatório que deriva do disposto no 371º do Código Civil, acolheu-se o decidido no acórdão recorrido, na consideração de que do documento em causa – declaração – apenas resulta de útil que a passagem nele referida “não é de trânsito público, mas apenas privado”, não sendo, só por si, idóneo para abalar o decidido no acórdão objecto da pretensão de revisão, que, confirmando a sentença da 1ª instância proferida na acção declarativa movida pelos recorrentes contra os recorridos, julgou improcedente o recurso de apelação nela interposto.

Acresce que não cabe no âmbito da decisão proferida na fase rescindente sindicar a decisão revidenda, nomeadamente, o bom ou mau uso de presunção legal, mas apenas averiguar se o documento apresentado, além da novidade, é suficiente para conduzir à alteração da decisão (acórdão) objecto do recurso extraordinário de revisão em sentido favorável aos recorrentes, sendo claro, pelas razões expendidas na decisão de que se reclama, que não é.

Indefere-se, por conseguinte, a reclamação.

Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.


Lisboa, 19 de Outubro de 2017


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado