Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2884/11.8TBBCL.G1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: TÁVORA VICTOR
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO AUTOMÓVEL
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
DEVER ACESSÓRIO
PRESSUPOSTOS
DIREITO A REPARAÇÃO
OMISSÃO
JUROS DE MORA
MORA
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO.
Doutrina:
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral Almedina, Coimbra, 6.ª Edição, 1989, p. 127 ; Direito das Obrigações, I, 11, p. 568 a 596;
-Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil, Temas especiais, Universidade Católica Portuguesa, p. 60, 66 e ss.;
-Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 4.ª Edição, Almedina, p. 273.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 405.º E 762.º.
CONDIÇÕES GERAIS DO CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA: - ARTIGO 11.º, ALÍNEAS C) E D).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 30-10-2008, PROCESSO N.º 07B2131;
- DE 16-03-2011, PROCESSO N.º 3922/07. TBVCT. G1.S;
- DE 03-05-2011, PROCESSOS N.º 2618/08.06TBOVR.P1;
- DE 09-07-2015, PROCESSO N.º 13804/12.2T2SNT.L1.S1;
- DE 14-12-2016, PROCESSO N.º 2604/13. 2TBBCL.G1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I) No âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel ainda que sem cobertura facultativa e mesmo na ausência de cláusula nesse sentido, pode a seguradora ser responsabilizada pelo “dano da privação do uso” se não proceder de harmonia com o princípio da boa-fé.

II) Para que possa ser efectivada a indemnização com o dito fundamento, não basta a mera privação do uso, antes sendo necessário que se preencham os restantes requisitos da responsabilidade Civil maxime a existência de um prejuízo ressarcível.

III) A responsabilização da seguradora baseia-se na responsabilidade contratual da seguradora pela inobservância dos deveres acessórios do contrato;

IV) Um comportamento culposamente omissivo da Companhia de Seguros ao recusar-se a promover injustificadamente a reparação de uma viatura acidentada, pode dar azo a um dano autónomo de privação do uso cujo ressarcimento não cabe nos estreitos limites dos juros previstos para a mora.

V) A nível indemnizatório não há qualquer duplicação entre a quantia pedida a título de privação do uso e os juros legais. Ambos visam realidades diversas, já que o quantitativo do capital intenta ressarcir o lesado das importâncias despendidas enquanto que os juros intentam penalizar a mora no respectivo pagamento, não sendo aqueles os valores necessariamente coincidentes.

Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO.



Acordam na 7ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça.



AA, residente na Rua Senhora …, n.º …, freguesia de …, concelho de Barcelos, intentou a presente acção, com processo comum sob a forma ordinária, contra “BB Seguros, S.A..”, com sede na Rua …, n.º …, em Lisboa, pedindo que esta seja condenada, com base num contrato de seguro de responsabilidade civil, com a cobertura de danos próprios, a pagar-lhe a quantia de € 56.230,32, a título de indemnização pela perda total do veículo seguro, decorrente de um sinistro em que foi interveniente, e bem assim as seguintes quantias:

- A quantia que for devida pela antecipação do vencimento das rendas no contrato de locação financeira celebrado com a CC, S.A., a remeter para liquidação em execução de sentença;

- O valor das rendas e prémios de seguro suportados desde a data do acidente até à decisão final, a liquidar em execução de sentença;

- Uma indemnização pelo incumprimento atempado do contrato de seguro em função da privação do uso do veículo, à razão diária de 30 €, até que sejam colocadas à sua disposição as quantias reclamadas a título de perda total e rendas;

- O valor referente à resolução do contrato de leasing e o que se venha a apurar em sede de execução de sentença;

- A quantia de € 1.000,00 por danos patrimoniais sofridos aquando do acidente;

- A quantia de € 2.500,00 a título de danos morais;

- Os juros à taxa de 8% ao ano, nos termos do disposto no art.º 43.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, contados desde a data da citação e até efectivo pagamento.


A Ré contestou, reconhecendo a existência e condições do contrato de seguro, mas impugnando a ocorrência do sinistro descrito na petição inicial e as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o mesmo pretensamente ocorreu, defendendo inclusive que os danos que o veículo apresenta são inconciliáveis com as características do local.

Impugnou, também, os danos reclamados e os montantes em que foram avaliados, defendendo que a perda total do veículo é incompatível com o alegado dano emergente da privação de uso do veículo.

Terminou, pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido e requerendo a intervenção principal provocada da locadora “CC, S.A.”, como associada do Autor.

Admitido o chamamento e efectuada a competente citação, a chamada apresentou articulado próprio, formulando um pedido de condenação da Ré a pagar-lhe:

- No caso de se tratar de sinistro com perda parcial, sendo o bem reparável, os custos dessa mesma reparação;

- Se o sinistro tiver inutilizado definitivamente apenas uma parte do bem, podendo manter-se a locação quanto à parte restante, caso o locatário o deseje e o locador o consinta, deverão as rendas vincendas e o valor residual ser recalculados com base na indemnização paga ao locador por essa inutilização que em sede de execução de sentença se liquidará.

- No caso de perda total do bem locado, o valor do capital ainda não recuperado, acrescido de todos os débitos vencidos e não pagos, bem como dos juros correspondentes ao período que mediar entre o momento em que o contrato se considerar resolvido e o efectivo pagamento, calculada a taxa do contrato, e ainda eventuais prejuízos resultantes da legislação fiscal e despesas administrativas, que liquidou em € 15.689,59;

- No caso de não se provar a existência de qualquer sinistro, mas provando-se a alegada perda total do bem locado por destruição, o montante equivalente à perda total do bem locado, que liquidou em € 15.689,59.


Notificados, a Ré e o Autor responderam, reiterando o alegado nos respectivos articulados.


Corridos os trâmites legais, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, no início da qual a interveniente declarou que o contrato de locação financeira celebrado com o Autor se encontrava totalmente liquidado desde 09 de Março de 2015, motivo pelo qual desistiu do pedido formulado, desistência essa que foi homologada por sentença, tendo ainda as partes acordado em dar por assente que tais pagamentos foram efectuados.

Foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 71.690,00, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal de 4% ou outra que estiver em vigor, desde a citação até integral pagamento, bem como a quantia que se vier a fixar em decisão ulterior relativa ao dano da privação do uso do veículo do Autor, desde a presente data até ao efectivo pagamento da indemnização arbitrada, no montante diário de € 15,00, e, bem ainda, a quantia que se vier igualmente a fixar em decisão ulterior referente aos prémios de seguro pagos pelo Autor desde a data do sinistro.

Apelou a Ré sendo certo que a Relação de … confirmou a sentença em crise.

De novo inconformada a Ré recorre de revista excepcional. No fim de tudo quanto alegou nesta sede, pediu a Autora que se revogue o decidido proferindo-se decisão de harmonia com a posição que expende no corpo das suas alegações.

Contra-alegou o Autor entendendo que a revista da Ré não é admissível e, de todo o modo, sempre a mesma deverá improceder caso passe pelo crivo da admissibilidade.

A Formação supra-referida admitiu o recurso excepcional sendo certo que tal admissão é definitiva, à luz do estatuído no artigo 672 nº 3 e 4.

No termo da sua alegação a recorrente produziu, no que agora nos interessa considerar, as seguintes,


Conclusões:


Do objecto do recurso:


1) Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal a quo que, negando provimento à apelação deduzida, manteve o decidido na 1ª instância.

2) A Seguradora Apelante não pode concordar com os fundamentos que sustentam o acórdão recorrido.

3) Sendo que o âmbito do presente recurso se cinge à apreciação da problemática seguinte:

"Da inexistência do dever de indemnizar o dano da privação do uso da coisa segura fundado no retardamento, pela Seguradora, da realização da prestação indemnizatória a que se vinculou por força do contrato de seguro de danos, e quando tal cobertura não foi expressamente convencionada".

4) Constitui facto incontornável nos presentes autos que foi entre as partes celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, incluindo a vertente facultativa de seguro de danos (cobertura de "choque, colisão ou capotamento").

5) E que a presente acção se estriba, justamente, na dita vertente facultativa de seguro de danos.

6) Afigura-se igualmente indubitável que o contrato de seguro em causa não abrangia a cobertura facultativa de veículo de substituição ou privação do uso, porquanto não foi expressamente contratada pelo aqui recorrido.

7) Igualmente assente está o facto de que a Seguradora recorrente não procedeu ao pagamento da indemnização devida pela perda total, e pelos fundamentos melhor escalpelizados nos presentes autos.

8) Tendo visto, no entanto, a sua pretensão e versão dos factos ser-lhe negada, fruto da factualidade apurada em sede de audiência de julgamento e ulteriormente confirmada pelo Tribunal da Relação.

9) A questão que importa apurar é a de saber se o facto da Recorrente não ter procedido ao pagamento imediato da indemnização devida pela perda total do veículo seguro (na sequência do evento danoso que se veio a dar como provado), se traduz na violação de deveres acessórios de conduta associados ao princípio da boa fé, plasmado no art. 762° do Cód. Civil, e se tal violação constitui a Seguradora na obrigação de indemnizar o recorrido pelo dano emergente da privação do uso, cujo ressarcimento não foi expressamente convencionado e, portanto, não está abrangido pelo contrato de seguro.

10) Salvo o devido respeito por diversa opinião, cremos que a resposta a conferir a tal questão, ante o concreto circunstancialismo dos autos, há que ser negativa.

11) Desde logo porque não ocorreu qualquer violação, por parte da Seguradora recorrente, dos citados deveres acessórios de condutas determinados pelo principio geral da boa fé na execução dos contratos.

12) A Seguradora recorrente não cumpriu, isso sim, a obrigação principal para si adveniente do contrato, que se subsome à obrigação de pagar a indemnização contratualizada em caso de sinistro coberto pela apólice.

13) Sendo que a consequência jurídica do incumprimento de uma obrigação pecuniária - como a que existe ao abrigo do contrato em causa - é a constituição em mora, e a obrigação de pagamento de juros legais daí adveniente.

14) A este propósito e por facilidade, permitimo-nos recordar o raciocínio expendido no acórdão-fundamento, e que tão bem espelha a tese por nós propugnada, e de onde se destaca o seguinte trecho: "Simplesmente, não parece que no caso haja espaço para debater o problema da violação, pela apelante, de um qualquer dever acessório, dado que - segundo a alegação mesma do recorrente - não está em causa a ofensa de um dever daquela espécie - mas a violação do dever principal ou primário de prestar, ele mesmo. Dever que outro não é senão o de satisfazer, com pontualidade, no tempo devido, a prestação a que ficou adstrita por força do contrato de seguro (arts.º 406° n.° 1, 1ª parte, 762° n.° 1 do Cód. Civil). Prestação que consiste, por se tratar de seguro de danos, no pagamento de harmonia com o princípio indemnizatório num quantum de indemnização correspondente aos danos sofridos pelo segurado - prestação indemnizatória. Prestação indemnizatória que, no caso, é uma pura obrigação pecuniária de prestação única: o de pagamento da quantia de € 13.325,00 equivalente ao valor do capital seguro convencionado, deduzido do valor do salvado.

Portanto, a recorrida ficou adstrita a uma pura obrigação pecuniária, sendo certo que não se convencionou, no contrato de seguro, a vinculação do segurador ao dever de indemnizar o dano resultante da privação do uso do bem seguro. Há mora do devedor quando, por acto ilícito e culposo deste se verifique um cumprimento retardado (art. 804° n.° 2 do Código Civil). A mora é, portanto, o atraso ilícito e culposo no cumprimento da obrigação; existe mora do devedor quando, continuando a prestação a ser possível, este não a realiza no tempo devido. Para se concluir que há mora do devedor, não basta, portanto, dizer que, no momento do cumprimento, aquele não efectuou a prestação devida; é ainda necessário que sobre ele recaia um juízo de censura ou de reprovação. Exige-se, portanto, a ilicitude e a culpa do devedor, embora tratando-se de responsabilidade obrigacional, qualquer retardamento na efectivação da prestação seja, por presunção, atribuído a ilícito cometido com culpa pelo devedor (799° n.° 1 do Código Civil). Da mora do devedor emerge, como primeira consequência, uma imputação dos danos, constituindo-se aquele no dever na obrigação de reparar todos os prejuízos que, com o atraso, terá causado ao credor (804° n.° 1 do Código Civil).

Temos, assim, que a recorrida se constitui em mora no tocante à sua obrigação de pagar ao recorrente a quantia de € 13.325,00. Simplesmente, dado que a mora se refere a uma obrigação pecuniária, de origem puramente contratual, a única indemnização devida ao recorrente é a correspondente aos juros legais contados desde o dia em que o devedor se constitui nessa mora, não sendo aquele admitido sequer a provar que a mora lhe causou dano superior aos juros referidos (art.º 806° ns.° 1 e 2 do Código Civil). Solução que, corresponde, em pleno, a uma opção deliberada do legislador, dado que no projecto da autoria do Prof. MENEZES CORDEIRO, se estabelecia, no art. 80° - avisadamente que para além de a mora do segurador não depender de interpelação, o segurador responde por juros moratórios à taxa legal acrescida de 3%, podendo o beneficiário provar que, por via dela, sofreu danos superiores (n.° 2). Neste ponto, como aliás, em muitos outros, é clara a orientação - discutível - da LCS por uma tutela maximalista dos interesses do segurador em detrimento, designadamente, dos do segurado. Como quer que seja, desde que não se convencionou que o segurador responderia também, em caso de verificação do sinistro, pelo dano emergente, decorrente da privação do uso da coisa e que a prestação a que o segurador se vinculou é uma pura obrigação contratual pecuniária, tem-se por certo que ao recorrente não assiste o direito a exigir qualquer prestação indemnizatória dirigida para a supressão do dano da privação do uso da coisa sinistrada. (…)

15) Ainda em abono desta tese, permitimo-nos citar o entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23/06/2015. proferido no âmbito do Processo n.° 4393/13.1TBMALP1. com o seguinte sumário: "I - Nos contratos de seguro facultativo, por danos próprios, não existe uma obrigação de indemnizar em sentido próprio, isto é, de reparar um dano reconstituindo a situação que existiria se o mesmo não tivesse ocorrido, mas uma obrigação de entregar uma prestação em dinheiro, que visa proporcionar ao credor o valor que as respectivas espécies possuam como tais, até ao limite do capital seguro. II - Porque assim é, estamos perante uma obrigação pecuniária, e não diante de uma obrigação de indemnização, em que a mora deve ser ressarcida mediante o pagamento de juros à taxa legal a contar do dia da constituição em mora, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal, e não mediante uma prestação diversa."

16) É pois forçoso concluir que o Meritíssimo Tribunal a quo, ao condenar a recorrente ao pagamento de uma indemnização pela privação do uso na concreta situação dos autos, não atentou devidamente à efectiva natureza das prestações em causa.

17) Concretamente, não atendeu a que, tal como dimana da tese defendida nos arestos supracitados, no contrato de seguro de danos, a obrigação que impende sobre a seguradora não configura uma verdadeira obrigação de indemnização, no sentido de restabelecer o status quo ante.

18) Configura, outrossim, uma pura obrigação de proceder a uma prestação pecuniária - entrega do montante previamente convencionado - que no caso corresponde ao capital seguro deduzido do valor do salvado.

19) Do mesmo modo, andou mal o acórdão recorrido pois, para além de ter atribuído ao recorrido (erradamente, como vimos) esta indemnização pela privação do uso do veículo, concedeu-lhe, em simultâneo, o direito a ser indemnizado pela mora em que incorreu a seguradora, mediante a fixação dos respectivos juros moratórios.

20) O que acaba por entroncar numa duplicidade ressarcitória.

21) Acresce ainda que, não podemos deixar de salientar que da factualidade provada não emerge qualquer comportamento da seguradora recorrente que possa ter-se por "desprovido de fundamento", de tal sorte que seja susceptível de fundar o direito a uma autónoma indemnização por violação dos ditos deveres acessórios de conduta, estribados no principio geral da boa-fé.

22) A este propósito, e numa situação muito semelhante à dos presentes autos, pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão proferido em 14/03/2016, no âmbito do processo n.° 4876/12.0TBSTS.P1, disponível na íntegra em www.dqsi.pt, e onde se pode ler: "A recusa de pagamento de indemnização por parte da seguradora, por divergir do segurado (ou do beneficiário do seguro) não se reconduz inevitavelmente à conduta de má-fé, ainda que o tribunal venha a reconhecer que não lhe assiste razão e a condená-lo no pagamento dos valores peticionados (…)”

Ressalvado sempre o devido respeito, levada às últimas consequências, a tese da recorrente assumiria contornos fundamentalistas, traduzidos na seguinte asserção: sempre que um contraente recusasse o incumprimento vindo a ser condenado em acção intentada com esse fim, estaria a violar deveres acessórios de conduta".

37) Temos por demais evidente que no caso sub índice, a condenação da seguradora recorrente a indemnizar o recorrido pelo dano emergente da privação do uso, é uma decisão que não encontra arrimo no contrato de seguro celebrado entre as partes, nas concretas normas aplicáveis do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (designadamente o art. 128° e 130° n.° 2 e 3), nem nos arts.º 806° e 762° do Cód. Civil.

38) São, pois, estas, entre outras, as normas violadas pela decisão aqui posta em causa.

39) O que se deixa alegado, para todos os devidos efeitos legais, nomeadamente para revogação, nesta parte, do acórdão recorrido, nos termos supra expostos.


Contra-alegou o recorrido Autor, pugnando pela improcedência das razões aduzidas pela recorrente BB.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


*


2. FUNDAMENTOS.


O Tribunal da Relação deu como provados os seguintes,


2.1. Factos.


2.1.1. No dia 24 de Setembro de 2010, cerca das 23 horas, na E.N. 308, Km 19,7, na freguesia de …, concelho e comarca de Ponte de Lima, ocorreu o despiste do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ...-EJ-..., que na altura era conduzido pelo Autor;

2.1.2. O EJ circulava no sentido Barcelos – Ponte de Lima e, quando se preparava para fazer uma curva à direita, no final de uma recta, o Autor perdeu o controlo do veículo;

2.1.3. O EJ invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha;

2.1.4. Nesse momento circulava pela mesma estrada o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ...-...-VM, propriedade de DD, no sentido Ponte de Lima – Barcelos, tendo o EJ embatido com a sua parte frontal esquerda, na parte frontal esquerda do VM;

2.1.5. A dada altura o EJ capotou;

2.1.6. A faixa de rodagem da EN 308 era, no local, dividida por uma linha longitudinal descontínua, sendo delimitada, pelo lado direito, atento o sentido de marcha do EJ, por uma berma;

2.1.7. Por contrato de locação financeira datado de 31-12-2007, a interveniente declarou locar ao Autor um veículo automóvel de marca Alfa Romeu, modelo 159, Sport Wagon D 159 SW 1.9 JTDM 16 v 280, adquirido por aquela no estado de novo, pelo preço de 44.380,00€, mediante prévia escolha deste último;

2.1.8. O prazo da locação foi estipulado em 85 meses e a renda variável, com periodicidade antecipada mensal, à taxa de juro nominal de 7,50%, acrescida de spread de 2,85% tendo as mesmas variáveis em função de alterações da taxa de referência Euribor a 3 meses, sempre que a variação seja superior a 0,25%, sendo arredondada para 1/8 do ponto superior;

2.1.9. A 1.ª renda foi fixada no valor de 8.876,00 €, que se venceu no dia 27/12/2007 e as restantes no valor de 444.36 €, vencendo-se em igual dia dos meses subsequentes;

2.1.10. Caso o Autor pretendesse, no final do contrato de locação financeira, adquirir para si a referida viatura, aquele teria que pagar à locadora a quantia de 11.095 € referente ao valor residual do contrato;

2.1.11. Nos termos do disposto na cláusula 11.ª das Cláusulas Gerais do Contrato de Locação Financeira, “No caso de Sinistro sofrido pelo Bem locado o Locatário deve nas vinte e quatro horas seguintes informar o Locador e notificar a Companhia de Seguros – por carta registada com aviso de recepção para a respectiva sede social, delegação ou morada constante da respectiva apólice – precisando a data, hora, local, e circunstâncias do sinistro, bem como a natureza e extensão dos danos, solicitando desde logo, uma peritagem do bem”;

2.1.12. De acordo com a alínea c) da cláusula 11.ª das Condições Gerais do Contrato de Locação Financeira, o sinistro tiver definitivamente inutilizado apenas uma parte do Bem, podendo manter-se a Locação quanto à parte do Bem restante, caso o Locatário o deseje e o Locador o consinta, deverão as rendas vincendas e o valor residual ser recalculados com base na indemnização paga ao Locador”;

2.1.13. De acordo com a alínea d) da cláusula 11.ª das Condições Gerais do Contrato de Locação Financeira, com a perda total do Bem, o contrato considera-se “automaticamente resolvido para todos os efeitos, devendo o locatário pagar na mesma data ao locador o valor do capital ainda não recuperado, acrescido de todos os débitos vencidos e não pagos, bem como dos juros correspondentes ao período que mediar entre o momento em que o contrato se considerar resolvido e o efectivo pagamento calculada a taxa do contrato e ainda eventuais prejuízos resultantes da legislação fiscal e despesas administrativas. O Locador devolverá ao locatário o valor da indemnização paga pela Companhia de Seguros, logo após ter recebido do Locatário as importâncias anteriormente recebidas”;

2.1.14. O Autor procedeu ao pagamento de todas as rendas e do referido valor residual, tendo adquirido o veículo em 09-03-2015;

2.1.15. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 41…1/3, em vigor à data referida em 1º, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ...-EJ-... encontrava-se transferida para a Ré, com a cobertura de danos causados a terceiros e de danos sofridos pelo próprio veículo em consequência de choque, colisão ou capotamento, com franquia de 2% sobre o capital seguro;

2.1.16. Em conformidade com o previsto na referida apólice do contrato de seguro outorgado com a Ré, entre outras coberturas, esta assumiu a obrigação de garantia do valor do veículo em novo, por perda total, como consequência de sinistro garantido, até 36 meses, uma vez que se tratava de um veículo ligeiro novo;

2.1.17. No contrato de seguro, salvaguardou-se expressamente que a interveniente tinha interesse no seguro;

2.1.18. Após a ocorrência do evento, o Autor pagou, nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2010, a quantia mensal de 74,57 € e desde Janeiro de 2011 a quantia mensal de 74,68 € a título de prémio de seguro;

2.1.19. A 27 de Setembro de 2010, o Autor efectuou a participação do sinistro junto dos serviços da Ré;

2.1.20. Em consequência do evento descrito, o EJ ficou destruído, com o pára-choques, capot, pára-brisas, frisos, dobradiças, portas, escovas, jantes, vidros, borrachas, amortecedores, suportes, correia, entre outras peças, inutilizados e impossibilitado de continuar a circular;

2.1.21. Após peritagem efectuada pelos serviços da Ré em 29/09/2010, esta comunicou ao Autor, por carta de 12 de Outubro de 2010, que considerava o EJ em situação de perda total, tendo avaliado o respectivo salvado em € 2.000,00 e declarado que o valor de seguro era de € 44.000,00 e a franquia de € 880,00;

2.1.22. Por carta registada datada de 12 de Novembro de 2010, a Ré comunicou ao Autor que não iria proceder à “regularização do sinistro participado” pelo facto de os seus serviços técnicos terem concluído que “o sinistro não ocorre de acordo com os termos e circunstâncias participadas”;

2.1.23. A Ré não disponibilizou qualquer viatura ao Autor em substituição do EJ;

2.1.24. O Autor e a sua família necessitavam da viatura para se fazerem transportar para o trabalho, nas deslocações do seu quotidiano como seja para fazer compras, visitar os familiares e amigos, dirigirem-se a repartições públicas ou até aos serviços da Ré para a resolução do litígio;

2.1.25. O Autor e o seu agregado familiar não dispõem de outro veículo, nem de meios financeiros que lhes permitam a aquisição de um novo veículo.


Inversamente, foi dada como não provada a seguinte factualidade:

a) O EJ seguia à velocidade de 70 Km/hora;

b) O Autor deixou descair o EJ para a berma direita, atento o seu sentido de marcha e guinou o veículo para esquerda, tentando levá-lo de volta para a plataforma da estrada;

c) A EN 308, no local do evento, dispunha de uma faixa de rodagem com 5,70 metros de largura em cada metade e o piso era em betuminoso flexível, encontrando-se em razoável estado de conservação;

d) Como consequência directa e imediata do acidente, o Autor danificou uma camisa, um casaco em pele, umas calças e um par de sapatos, no valor total de € 1.000,00;

e) O Autor sentiu-se e sente-se transtornado, frustrado e angustiado por não obter uma razão para o incumprimento do contrato de seguro pela Ré, assim como pelo facto de se ver impedido de utilizar um veículo automóvel seu;


+


-  No cerne da resolução da problemática em análise.

  Cabimento da indemnização ao Autor pela privação do uso. Deveres acessórios a nível dos contratos e responsabilidade contratual pela sua inobservância.


- Deveres contratuais acessórios ao nível dos contratos.


+


2.2.1. No cerne da resolução da problemática em análise.  Responsabilidade contratual.

Cabimento da indemnização ao Autor pela privação do uso. Deveres acessórios a nível dos contratos e responsabilidade contratual pela sua inobservância.


Cabe preliminarmente identificar a questão fulcral em jogo nesta revista. Como bem salienta a recorrente está em causa a apreciação da seguinte temática, a saber:

“Da inexistência do dever de indemnizar o dano da privação de uso de coisa segura fundada no retardamento pela seguradora da realização da prestação indemnizatória a que se vinculou, por força do contrato de seguro de danos e quando tal cobertura não foi expressamente convencionada”.

Subjacente à presente acção está um contrato de seguro na modalidade de responsabilidade civil automóvel.

A Ré BB, inconformada com o decidido pela Relação quando confirmou a sentença de 1ª instância que arbitrou uma indemnização ao Autor pela privação do uso da viatura, pede que lhe seja concedida a revista que ora analisamos.

Neste tipo de seguros, para além da cobertura obrigatória de determinados prejuízos, poderá estar-lhe ligada uma cobertura facultativa nos termos do artigo 130º do regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo DL 72/2008 de 16 de Abril. Tal contrato é permitido na base do princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime (…). Cfr. artigo 11º da LCS e 405º do Código Civil.

A obrigação de indemnização pelos prejuízos resultantes da privação da viatura, enquanto o mesmo não for reparado, não estão acautelados ao nível do contrato de seguro que analisamos, não estando também a indemnização pela privação do uso acautelada por uma cobertura contratual facultativa, reconhecidamente inexistente; consequentemente tal impediria, também, à partida, o ressarcimento do Autor por via do contrato de seguro celebrado com a Ré.

No entanto o cumprimento de um contrato pode não se bastar com o mero alcance do seu escopo fundamental. Nomeadamente pode suceder que se verifique um cumprimento defeituoso da obrigação que seja causador de danos ao credor e como tal, gerador de responsabilidade civil por violação de dever acessório de conduta; é desde logo o caso da seguradora, que, devendo pagar as indemnizações a que estava obrigado perante o beneficiário do seguro, não o fez e com a prontidão que devia, causando assim prejuízos a este último com tal comportamento, de que são exemplo os danos emergentes da “privação do uso”, uma figura que tem de considerar-se um dado adquirido como fonte de responsabilidade civil como postulado do estatuído no artigo 762.º do Código Civil onde pode ler-se que “1 – O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.

2 – No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”.


Ponderadas as provas e o direito aplicável cabe-nos, como vimos, unicamente indagar da verificação dos requisitos da privação do uso da viatura e respectivas consequências no cômputo da indemnização com vista ao ressarcimento do Autor, que em nossa óptica cabe no âmbito da inobservância dos deveres acessórios de conduta no cumprimento do contrato que acabou por traduzir-se em prejuízos para o Autor.

Diremos, desde já, que a nossa posição insere-se na linha de orientação já trilhada pelas instâncias

No caso em análise foi celebrado um contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela Apólice 41…1/3, por via do qual a Ré BB assumiu a responsabilidade pelos danos causados pelo veículo de matrícula ...-EJ-... e, bem assim, os danos próprios, estando destarte cobertos os riscos de choque, colisão ou capotamento com uma franquia de capital seguro. 

A obrigação de indemnização pelos prejuízos resultantes da privação do uso da viatura enquanto o mesmo não foi reparado, não estão especificamente acautelados ao nível do contrato de seguro. Só que e na decorrência do que expusemos, a BB tinha o dever de cumprir com lisura a sua parte no contrato e desde logo não protelando indefinida e infundadamente o cumprimento do contrato de seguro celebrado acabando por gerar ao Autor uma privação do uso da viatura, gerador do dever de indemnizar. Efectivamente atenta a perda total da viatura, que aliás o Autor comunicou à Ré atempadamente, deu-se como provado que o Autor e família necessitavam da viatura para o trabalho e lazer, não possuindo outro carro para tanto, nem para a respectiva aquisição de meios financeiros, a Ré, em 12 de Novembro de 2010, comunicou ao Autor que não iria proceder à regularização do sinistro participado pelo facto de os seus serviços técnicos terem concluído que aquele não ocorreu de acordo com as circunstâncias participadas.

Entendemos assim que o Autor alegou e provou que teve prejuízos que se inserem desde logo no âmbito dos danos patrimoniais, já que aquele e a sua família necessitavam da viatura para se fazerem transportar para o trabalho nas deslocações do seu quotidiano como seja para fazerem compras, visitar os amigos e familiares, dirigirem-se a repartições públicas ou até aos serviços da Ré para a resolução do litígio. Não dispunha o Autor de qualquer meio de transporte alternativo, nomeadamente de outra viatura, nem meios para adquiri-la. Provado está igualmente que a seguradora BB nunca chegou a indemnizar o Autor, mau grado tenha sido devidamente interpelado para tanto.

Por outro lado, não se argumente que estes prejuízos cujo apuramento as instâncias remeteram para liquidação em execução, sempre estariam cobertos pelos juros de mora nos termos do preceituado no artigo 806º nº 1 do Código Civil – Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora. No entanto, o n.º 3 do preceito supracitado dá ao lesado a possibilidade de o credor provar que a mora lhe causou um dano superior aos juros referidos no número anterior (juros de mora) e exigir a indemnização suplementar correspondente quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco”. Não sofre a nosso ver qualquer dúvida que a privação do uso da viatura pode assumir a natureza de um dano autónomo indemnizável, cujo conhecimento e reparação não necessita sequer de ser previsto em cláusula especial do seguro, já que o mesmo se liga por nexo de causalidade adequada ao comportamento negligente omissivo da Ré BB[1] . “Ao montante a entregar a título de indemnização pela perda total acrescerá a indemnização pelos danos resultantes da privação do uso da viatura correspondentes ao período que gerou o facto que gerou a privação e o momento em que o tomador entregou ao lesado um veículo de substituição, ou, se esta obrigação não foi cumprida, o momento em que entregou o montante pecuniário (…). Fruto do mecanismo indemnizatório especial, em relação ao regime de cálculo da indemnização nos termos do Código Civil a questão do dano da privação do uso pode colocar-se em todos os casos em que tenham resultado danos numa viatura envolvida num acidente de viação, haja mera privação temporária do uso ou privação definitiva da viatura”[2] .

A privação do uso como fonte da obrigação de indemnizar o lesado, tem sido de um modo geral reconhecida na Jurisprudência e Doutrina. Todavia não existe unanimidade, desde logo, ao nível desta última, quanto ao preenchimento dos requisitos para tanto; Menezes Leitão defende a ressarcibilidade da simples privação do uso tout court[3] . Já Paulo Mota Pinto, não se quedando na mera privação do uso, vai mais longe e exige a verificação causal de um dano para que surja a obrigação de indemnizar, já que a responsabilidade civil supõe o preenchimento de vários requisitos para tanto, não podendo bastar-se com a ilicitude do responsável.

Consciente das dificuldades que a questão apresenta, surgiu na Jurisprudência uma orientação ecléctica que mau grado exija a presença da alegação e prova de um dano ou frustração de um projecto real e efectivo para que possa operar a obrigação de indemnização, não vai ao ponto de exigir uma contabilidade rigorosa de gastos ligados à privação do uso do veículo antes se bastando com a prova genérica que o lesado utilizava a viatura para os fins de lazer/trabalho e consequentemente por via daquela privação deixou de poder fazê-lo. A perda do veículo autonomiza-se assim como um dano, sendo por isso susceptível de indemnização[4] .

Flui dos factos provados que existe culpa da Ré Seguradora – artigo 483º CC - ao atrasar a indemnização, a qual atenta a forma como o acidente ocorreu, nunca poderia justificar de forma exclusivamente afirmativa/conclusiva as suas reticências em proceder ao pagamento cuja omissão esteve na origem dos danos causados ao Autor.


Em suma poderá dizer-se que se encararmos o contrato de seguro a que se alude no ponto 2.1.15. dos factos provados, concluímos que os “deveres acessórios” do contrato não foram cumpridos pela Ré Seguradora BB; a esta cabia não apenas cumprir a essência do contrato, como de igual forma lhe era exigido que não protelasse injustificadamente o ressarcimento esforçando-se por evitar ao lesado os incómodos que o acidente lhe trouxe com as privações provocadas pelo seu atraso e os reflexos que teve na vida do Autor como vem acima dito na fundamentação jurídica. Isto é tanto mais verdade quando é certo que o procedimento da Ré actuando no ramo de seguros, tem necessariamente que ter uma equipa de peritos habilitados em ordem a indagar das causas do acidente e respectivas consequências, tendo o dever de as eliminar ou minorar o que, como vimos, não sucedeu in casu; as consequências da omissão da BB radicaram também na privação do uso da viatura, essencialmente sob a óptica da responsabilidade civil contratual, traduzir-se na violação de um dever acessório do cumprimento do contrato de seguro, que à Companhia de Seguros cabe ressarcir nos montantes acima encontrados.


Nessa conformidade, não nos merecem qualquer censura as decisões das instâncias quando condenaram a Ré a pagar a quantia que vier a ser fixada ulteriormente relativa à privação do uso do veículo do Autora desde a data da sentença até ao pagamento efectivo da indemnização arbitrada no montante diária do € 15,00 a liquidar e execução de sentença.     Adiante-se aliás que não há qualquer duplicação entre a quantia pedida e os juros legais. Consubstanciando o caso em análise um dano pela privação do uso fica claro que os juros nunca poderiam operar no mesmo período de tempo excluindo-se mutuamente, sob pena de duplicação de quantitativos[5].

Ambos visam realidades diversas já que o quantitativo do capital visa ressarcir o lesado das importâncias despendidas enquanto que os juros intentam ressarcir a mora no respectivo pagamento, sendo certo que a indemnização a atribuir ao lesado àquele título não tem obrigatoriamente de quedar-se no montante dos juros de mora como parece defender a Ré, sendo certo que podem os prejuízos causados superar em muito tais juros.

De qualquer modo e analisando os arestos constantes dos autos, vemos que o acórdão da Relação confirmou desde logo neste particular que analisamos a sentença de 1ª instância que não faz qualquer referência a juros de mora limitando-se a atribuir ao Autor uma indemnização de € 15,00 pela privação do uso da viatura, a título de violação dos deveres acessórios ao cumprimento do contrato de seguro.

Cabe uma palavra no que toca à impossível de coexistência da indemnização por perda total do veículo e a indemnização por privação do uso. Não há obviamente qualquer impedimento a que tal se verifique, tendo em linha de conta que ambas se destinam como é óbvio a cobrir danos diversos.

A revista da Ré está, pois votada à improcedência.


Poderá à guisa de sumário e conclusões assentar-se no seguinte:

1) No âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel ainda que sem cobertura facultativa e mesmo na ausência de cláusula nesse sentido, pode a seguradora ser responsabilizada pelo “dano da privação do uso” se não proceder de harmonia com o princípio da boa-fé.

2) Para que possa ser efectivada a indemnização com o dito fundamento, não basta a mera privação do uso, antes sendo necessário que se preencham os restantes requisitos da responsabilidade Civil maxime a existência de um prejuízo ressarcível.

3) A responsabilização da seguradora baseia-se na responsabilidade contratual da seguradora pela inobservância dos deveres acessórios do contrato;

4) Um comportamento culposamente omissivo da Companhia de Seguros ao recusar-se a promover injustificadamente a reparação de uma viatura acidentada, pode dar azo a um dano autónomo de privação do uso cujo ressarcimento não cabe nos estreitos limites dos juros previstos para a mora.

4) A nível indemnizatório não há qualquer duplicação entre a quantia pedida a título de privação do uso e os juros legais. Ambos visam realidades diversas, já que o quantitativo do capital intenta ressarcir o lesado das importâncias despendidas enquanto que os juros intentam penalizar a mora no respectivo pagamento, não sendo aqueles os valores necessariamente coincidentes.


*


3. DECISÃO.


Pelo exposto acorda-se em negar a revista.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 23 de Novembro de 2017


Távora Victor (Relator)

António Joaquim Piçarra

Fernanda Isabel Pereira

___________

[1] Como se refere no douto acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 9-7-2015 (P. 13804/12.2T2SNT.L1.S1) Relatado pela Cons. Fernanda Isabel Pereira, ora também interveniente como Adjunta “A privação do uso de um veículo automóvel, em resultado de danos sofridos na sequência de um acidente de viação, constitui um dano autónomo, indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor, inerente à propriedade que o art. 1305.º do CC lhe confere, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava” No mesmo sentido pela mesma Relatora Ac. STJ de 14-12-2016 (P. 2604/13. 2TBBCL.G1.S1), ambos das Bases da DGSI.

[2] Cfr. Maria da Graça Trigo “Responsabilidade Civil – Temas especiais, Universidade Católica Portuguesa”, pags. 66 ss. Antunes Varela “Das Obrigações em Geral Almedina, Coimbra, 6ª Edição 1989, pags. 127 e Menezes Leitão “Direito das Obrigações” II, 4ª Edição Almedina, págs. 273.

[3] Cfr. Antunes Varela, o citado, “Direito das Obrigações” I, 11, pags. 568-596, apud Cons. Maria da Graça Trigo, Ob. Cit. pag. 60.

[4] No Ac. STJ de 16/3/2011 (proc. 3922/07. TBVCT. G1.S1 “Se se provar que o proprietário lesado utilizava na sua vida corrente e normal o veículo sinistrado, ficando privado desse uso ordinário em consequência dos danos sofridos pela viatura no acidente, provado está o prejuízo indemnizável durante o período da privação, ou, tratando-se de inutilização total, enquanto não for indemnizado da sua perda nos termos gerais. É neste contexto que a privação do uso constitui, por si só, um prejuízo indemnizável”. Segue o acórdão supracitado na esteira da tese já defendida antes pela Cons. Maria dos Prazeres Beleza no voto de vencido exarado no Ac. deste STJ de 30/10/2008, 07B2131 onde além do mais se aceita expressamente o recurso à equidade para fixar o montante indemnizatório a título de privação do uso. Cfr. igualmente com interesse Ac deste STJ 3-5-2011 (2618/08.06TBOVR.P1) – todos nas bases da DGSI.

[5] Constitui jurisprudência corrente deste STJ que “Quando, em prejuízo da pretensão da parte apoiada no art.º 805º, nº 3, C.Civ., se confere, ao decidir, prevalência ao art.º 566º, nº 2º, dessa mesma lei, fixando valores que quem decide considera actualizados, não podem, sob pena de duplicação e locupletamento, conceder-se os pretendidos juros a contar da citação”.