Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
628/08.0PAPVZ-B.P1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: M. CARMO SILVA DIAS
Descritores: HABEAS CORPUS
INTERNAMENTO
INIMPUTÁVEL
MEDIDAS DE SEGURANÇA
PRAZO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O requerimento de habeas corpus em virtude de alegada privação da liberdade ilegal, apresentado ao abrigo do art. 31.º da LSM, deve de ser decidido pelo tribunal da 1.ª instância (art. 30.º da LSM), sendo passível de recurso para o tribunal da Relação competente (art. 32.º da LSM).
II - Como sabido são distintos, por um lado, os procedimentos no âmbito do internamento compulsivo (e decisões que aí são proferidas, nomeadamente, quando se trata ou não de processo relativo a confirmação judicial de internamento de urgência) e, por outro lado, os procedimentos no âmbito de um processo-crime em que se aplica e executa uma medida de segurança de internamento (e decisões aí proferidas).
III - A matéria que o requerente do habeas corpus coloca ao abrigo do art. 31.º da LSM no respetivo requerimento e depois, face ao indeferimento, no recurso terá de ser apreciada pelo Tribunal da Relação do Porto oportunamente, uma vez que a Relação para já ainda não se pronunciou, como lhe competia, sobre o mesmo recurso.
IV - Apesar de na petição do habeas ter sido invocado o disposto no art. 31.º da LSM (para o qual, neste caso concreto falece competência ao STJ para dele conhecer, não nos vinculando interpretações diversas feitas por outros sujeitos do processo, tanto mais que o requerente não foi detido no âmbito de um processo de internamento compulsivo, nem está em causa decisão judicial de confirmação judicial de internamento proferida v.g. ao abrigo dos art. 26.º e 27.º da LSM), tendo em atenção o princípio do aproveitamento dos atos (art. 193.º do CPC aplicável ex vi do art. 4.º do CPP), podemos prosseguir e analisar se ocorre qualquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
V - Visto porque a providência do habeas corpus prevista no art. 222.º do CPP pode também ser aplicada, por interpretação extensiva ou por analogia (art. 4.º do CPP), à medida de segurança de internamento aplicada em processo-crime, como sucede neste caso.
VI - O que sucede neste caso é que, ao contrário do que alega o requerente do habeas corpus, o mesmo está em cumprimento de uma medida de segurança de internamento aplicada em processo-crime, cujo período máximo ainda não findou, determinada por entidade competente e por facto que a lei permite. Assim, não ocorre qualquer fundamento para o deferimento do habeas corpus ao abrigo do art. 222.º, n.º 2, do CPP.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 628/08.0PAPVZ-B.P1.S1

Habeas corpus

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório

 1. No âmbito do processo comum singular n.º 628/08...., que corre termos no JL Criminal ..., da comarca ..., o requerente AA, através do seu Advogado, alegando encontrar-se detido no Estabelecimento Prisional ..., ala psiquiátrica, destinada a inimputáveis, requereu providência de habeas corpus por, na sua perspetiva, estar em situação de privação da liberdade ilegal, pedindo que seja ordenada a sua libertação imediata.
Para tanto e em síntese:
a)- na parte I da sua petição, que designou “Dos factos”, fez constar o seguinte:

“1.º O requerente foi arguido no processo n.º 628/08..., que correu termos no Tribunal Judicial da comarca ..., Juízo Local Criminal ....

2.º Em 21 de outubro de 2011, foi proferida sentença que declarou o requerente inimputável, e em consequência foi-lhe aplicada a medida de internamento, por um período não superior a oito anos, suspensa na sua execução (Cf. Doc. 1, que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais, sem prejuízo de se pedir certidão da mesma caso o MM Juiz assim o entenda).

3.º Tal decisão transitou em julgado em 21 de novembro de 2011.

4.º O prazo de suspensão findou no dia seguinte ao se ter completado oito anos da sua suspensão, ou seja, 22 de novembro de 2019.

5.º Não obstante, já decorrido, integralmente, o período de suspensão, que foi fixado em sentença transitada em julgado, em 21 de novembro de 2011.

6.º O requerente foi sujeito a um último exame médico-psiquiátrico (Cf. Doc. 2, que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais).

7.º Nesta sequência, tendo em conta o relatório médico acima mencionado, em 16 de novembro de 2020, foi proferida sentença.

8.º O tribunal entendeu que, não obstante os problemas mentais do requerente, é manifestamente desproporcional decretar, um internamento privativo da liberdade do requerente.

9.º Deste modo, declarou extinta a medida de segurança aplicada ao arguido.

10.º Por sua vez, em 27 de janeiro de 2021, o Ministério Público interpôs recurso para Tribunal da Relação ..., pedindo a revogação da suspensão da execução da medida de 8 anos de período máximo de internamento aplicada nestes autos ao arguido, impondo, por esse motivo, o cumprimento da medida de segurança com o efetivo internamento do requerente. (Cf. Doc. 3, que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais).

11.º Em 28 de outubro de 2021, foi proferido o acórdão do Tribunal da Relação ... que decidiu, “dar provimento ao recurso e em revogar a decisão recorrida, determinando-se a revogação da suspensão da execução da medida de segurança de internamento, o qual deverá agora ser executado, competindo ao tribunal recorrido proceder à respectiva tramitação”. (Cf. Doc. 4, que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais).

12.º Posteriormente, em 13 de dezembro de 2021, foram emitidos os competentes mandados para a detenção e condução do requerente, tendo em vista a sua colocação, imediata, no Estabelecimento Prisional ....

13.º Foi dado cumprimento ao mandado supra mencionado, em 22 de dezembro de 2021.

14.º Nestas circunstâncias, o requerente foi levado, in extremis, para o Estabelecimento Prisional ..., na ala psiquiátrica destinada a inimputáveis, em virtude de lhe ter sido aplicada a medida de segurança de internamento, por um período não superior a 8 anos.

15.º Na nossa modesta opinião, nunca seria no âmbito deste processo que se poderia decretar o internamento.

16.º Outrossim, deveria por rigor processual, ser instaurado novo processo onde se apurasse a efetiva perigosidade do arguido.

17.º Dito isto, o requerente tem 37 anos, e conforme resulta do seu historial clínico, padece de uma anomalia psíquica.

18.º O requerente está há 7 dias, privado da sua liberdade sem fundamento.

19.º Desde já se destaca que o internado se apresenta muito assustado e com agravamento acentuado do seu estado de saúde, por estar afastado da sua área de residência e fora do seu núcleo familiar.

20.º Acresce que, o requerente reconhece a existência da doença que padece, razão pela qual se tem submetido, voluntariamente, aos tratamentos médicos prescritos. (Doc. 5 que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais).

21.º A restrição do direito à liberdade é desproporcional e inadmissível, razão pela qual, se apresenta o competente habeas corpus em virtude de privação da liberdade ilegal.

22.º Como demonstraremos, com o procedimento judicial acima descrito, está-se a cometer grosseiro abuso de poder e a ordenar execução ilegal de uma pena.”


b)- E, na parte II da sua petição, que designou “Do Direito”, fez o enquadramento jurídico-penal que entendeu adequado ao caso, sustentando ser aplicável ao habeas corpus que apresentou o art. 31.º da Lei de Saúde Mental (LSM), concluindo:
“- [encontrar-se] ilegalmente detido nos termos da alínea a) e c), do n.º 1, do artigo 31.º da LSM;
- [dever] ser declarada ilegal a detenção e ordenada a sua imediata libertação, nos termos do disposto no artigo 31.º da CRP e do artigo 31.º da LSM;
- e, [dever] ser solicitada a informação urgente, junto dos presentes autos, referente à decisão de manutenção ou não do internamento, bem como todos os elementos que a fundamentam.”

2. Tendo o TR... remetido a este STJ o apenso do habeas corpus, após a sua distribuição, foi solicitada (pela ora Relatora) à 1ª instância a informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1, do CPP, a qual foi prestada, nos seguintes termos, no que aqui interessa (conforme promoção[1], com a qual o Sr. Juiz concordou):

“a) – O arguido AA foi nos autos principais deste processo declarado inimputável em relação aos factos dados como provados na sentença condenatória, os quais são integradores de um crime de furto qualificado. O arguido foi, então, outrossim considerado um inimputável perigoso tendo, por isso, sido sujeito à medida de segurança de internamento por um período não superior a 8 anos, embora suspensa na sua execução por igual período sob a condição do arguido de se sujeitar à observação, ao acompanhamento e ao tratamento considerado medicamente necessário à sua condição, em regime ambulatório, com o apoio e sob a fiscalização da competente equipa da D.G.R.S..

b) – A sentença transitou em julgado a 21 de Novembro de 2011, tendo depois sido elaborado pela D.G.R.S. um plano de conduta em concretização do decidido pelo Tribunal para que o arguido cumprisse os deveres fixados como condição da manutenção da suspensão da execução do internamento [cfr. fls. 580 a 584 dos autos principais].

c) – Perante o incumprimento dos deveres fixados como condição da manutenção da suspensão da execução do internamento e a demonstração de que o internamento se revelava indispensável perante o comportamento do arguido, o Ministério Público formulou, a fls. 1061 e seguintes destes autos, um parecer segundo o qual defendeu dever ser revogada a suspensão internamento atrás referido e que não mereceu qualquer contestação por parte do arguido.

d) - O Tribunal A Quo, por sua vez, proferiu, a fls. 1075 e seguintes, despacho de não revogação da suspensão da execução do internamento e decretou a extinção da medida de segurança de internamento suspenso que fora decidida na sentença.

e) - Todavia, tal despacho foi impugnado com a interposição de um recurso apresentado pelo Ministério Público.

f) - Tal recurso, após não ter merecido contestação por parte do arguido, foi declarado procedente pelo Tribunal da Relação ... que, em conformidade com o pedido formulado nas alegações recursivas, determinou, por Acórdão transitado em julgado a 12 de Novembro de 2021, a revogação da suspensão da execução da medida de segurança de internamento aplicada ao arguido nos autos principais ordenando, assim, o cumprimento efectivo dessa medida de segurança de internamento, pelo período máximo de 8 anos, sem prejuízo da eventual cessação anterior da perigosidade do arguido e sua consequente libertação por via desse facto [cfr. teor do APENSO A dos presentes autos referente ao antedito recurso que subiu em separado e onde consta, a fls. 235 e seguintes, o teor integral do Acórdão atrás mencionado].

g) - Em execução do decidido pelo Venerando Tribunal da Relação ... foram emitidos a 17 de Dezembro de 2021 os competentes mandados de condução do arguido para cumprimento da sobredita medida de segurança que lhe foi aplicada nos autos principais [cfr. fls. 1111 a 1114 dos autos principais].

h) - Os mandados em causa foram cumpridos a 22 de Dezembro de 2021, tendo, então, o arguido sido internado à ordem dos presentes autos, ao que se seguiu a imediata liquidação de tal medida de segurança com duração máxima até 22 de Dezembro de 2029 e revisão obrigatória para apreciação sobre a manutenção da perigosidade do internado e eventual libertação (caso se verifique nessa sede ausência de perigosidade) marcada para 22 de Dezembro de 2023 [cfr. fls. 1121 e 1122 dos autos principais].

i) - Na sequência desta privação de liberdade por execução da medida de segurança de internamento aplicada o arguido veio deduzir, nos presentes autos, e por apenso aos autos principais, um incidente de habeas corpus nos termos do disposto no art. 31º da Lei de Saúde Mental, defendendo a ilegalidade da sua detenção e pugnando pela sua libertação imediata [cfr. fls. 01 a 08 do apenso B].

j) - Por despacho proferido a fls. 42 e seguintes do apenso B, datado de 30 de Dezembro de 2021, foi negada a libertação do arguido, sendo por isso indeferida a antedita pretensão de habeas corpus por ele formulada, porquanto, segundo tal decisão, tendo o habeas corpus em apreço sido deduzido no âmbito do disposto no art. 31º da Lei de Saúde Mental, não se verificam os pressupostos legais previstos nessa figura.

k) - No entanto, inconformado com a referida decisão, veio o arguido dela interpor recurso, pedindo a sua revogação e substituição por outra que determine a sua libertação com a inerente revogação da decisão de internamento compulsivo do visado [cfr. fls. 46 e seguintes do apenso B].

l) - De acordo com a informação ora junta aos autos principais, naquele apenso B o Tribunal da Relação ... declarou, por decisão preliminar, a sua incompetência material para decidir o habeas corpus e remeteu o processo ao Supremo Tribunal de Justiça [cfr. fls. 1163 a 1166].

m) - Actualmente o arguido cumpre à ordem dos presentes autos a medida de segurança de internamento privativa da sua liberdade nos termos descritos no ponto h).”

3. Realizada a audiência aludida no art. 223.º, n.º 3, do CPP, cumpre conhecer e decidir.

II Fundamentação
1. Factos
 1.1. Extrai-se dos elementos constantes da petição, da informação prestada nos termos do art. 223.º, n.º 1, do CPP, bem como da certidão e demais prova documental junta aos autos, o seguinte:
- No âmbito do processo comum singular n.º 628/08...., que inicialmente correu termos no ... juízo de competência criminal do TJ da ... e, após a reorganização do sistema judiciário (decorrente da entrada em vigor da L 62/2013, de 26.08 e respetiva regulamentação pelo DL 49/2014, de 27.03) ocorrida em 1.09.2014, passou a ser tramitado no JL Criminal ..., comarca ..., por sentença de 21.10.2011, que transitou em julgado em 21.11.2011, o arguido AA foi declarado “inimputável em relação aos factos que ficaram provados, integrantes dos elementos objectivos da co-autoria de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos arts 203°, n° 1, e 204°, n° 2, al. e), do Código Penal, e perigoso”, sendo-lhe aplicada “a medida de segurança de internamento, por um período não superior a oito anos, sem prejuízo de findar assim que se verificar a cessação do seu estado de perigosidade criminal, medida de segurança essa” que foi suspensa “por igual período e com a mesma ressalva, com a condição de o arguido se sujeitar à observação, ao acompanhamento e ao tratamento considerado medicamente necessário, em regime ambulatório, com o apoio e sob a fiscalização da competente Equipa da Direcção-Geral de Reinserção Social.”;

- Entretanto (conforme consta do ac. do TR... de 28.10.2021, transitado em julgado em 12.11.2021), “Em 20NOV2012, o Hospital ... informou que o arguido era ali acompanhado regularmente, tendo comparecido às consultas agendadas, que a sua medicação injectável era monitorizada mensalmente pela equipa de enfermagem e que a articulação próxima com a equipa de enfermagem permitia um acompanhamento adequado à sua patologia.
- Em 11ABR2014, o Hospital ... informou que o arguido era acompanhado naquele hospital, que tinha estado entretanto em internamento compulsivo e que, apesar de não ter crítica relativa ao seu estado, vinha aceitando o tratamento injectável, de periodicidade mensal, e comparecido às consultas agendadas.
- Em 21ABR2016, a médica BB informou que o arguido tinha sido de novo internado compulsivamente por descompensação da psicose esquizofrénica.
- No relatório periódico de execução elaborado pela DGRSP, de 1JUN2016, concluiu-se que o arguido manteve estabilidade e adequação na inserção e relacionamento sociofamiliar, sem sinalização de episódios de conflito ou transgressão, que vinha cumprindo a obrigação de tratamento psiquiátrico e que se encontrava clinicamente estabilizado.
- O processo 31/16.... informou, em 6OUT2016, que o arguido foi internado compulsivamente em 5JAN2016 no Hospital ..., por ter sido observado com sintomas da psicose esquizofrénica, recusando alimentação e medicação, alegando receio de ser envenenado pela mãe e ameaçando o suicídio. No relatório de avaliação clínico-psiquiátrica que esteve na base deste internamento consta que o arguido andava de novo a consumir substâncias estupefacientes e que tinha ficado com actividade delirante de teor paranóide, tendo passado a regime ambulatório compulsivo depois de ficar estável.
- No relatório de perícia médico-legal - exame de psiquiatria, datado de 6MAI2017, concluiu-se que o arguido mantinha ausência de crítica mórbida, quer para a doença quer para a necessidade de tratamento, mas que vinha mantendo a toma regular da medicação injectável instituída, em regime ambulatório, mantendo o estado de perigosidade potencial, pelo risco elevado de suspender o tratamento e entrar em descompensação psicótica, com emergência das características de agressividade, recomendando a observância das medidas de tratamento compulsivo e vigilância psicossocial, para manter a perigosidade controlada e também o reforço das medidas terapêuticas e sociais, dirigidas ao controlo dos consumos de substâncias ilícitas promotoras da descompensação.
- Em 23JAN2018, no âmbito do processo 31/16...., o Hospital ... informou que o arguido vinha cumprindo o esquema terapêutico fixado (medicação injectável) e que, dado os seus antecedentes e ter apenas crítica parcial para o seu estado mórbido, o que o levava a solicitar a suspensão do tratamento em cada consulta, se mantinham os pressupostos do regime de tratamento compulsivo ambulatório ali fixado.
- No relatório de perícia médico-legal - exame de psiquiatria, datado de 8MAR2018, concluiu-se, de novo, que o arguido mantinha ausência de crítica mórbida, quer para a doença quer para a necessidade de tratamento, mas que vinha mantendo a toma regular da medicação injectável instituída, sob regime compulsivo e que persistia o estado de perigosidade potencial, pelo risco elevado de suspender o tratamento e entrar em descompensação psicótica, com emergência das características de agressividade. Mais se informou que o arguido manteve o tratamento, se bem que compulsivo, e que não existiam registos de incidentes ligados a ilícitos por descompensação psiquiátrica nos 2 anos anteriores. Reafirmaram-se as recomendações do relatório anterior.
- Em 18JUN2018, ainda no âmbito do processo 31/16...., o Hospital ... informou que o arguido tinha consultas quinzenais com medicação injectável e recomendou a manutenção do tratamento ambulatório compulsivo, dado os antecedentes de descompensações anteriores e o facto de ter apenas crítica parcial para o seu estado mórbido.
- Em 7NOV2018, no âmbito do mesmo processo 31/16...., o Hospital ... informou nos mesmos termos da informação antecedente.
- No relatório periódico de execução elaborado pela DGRSP, de 8ABR2019, concluiu-se que o arguido procurou corresponder às exigências determinadas no âmbito da suspensão da medida de segurança de internamento e assegurou a continuidade do acompanhamento clínico e tratamento psiquiátrico e que se encontrava clinicamente controlado e compensado, apresentando estabilidade e adequação na inserção e relacionamento sociofamiliar, sem sinalização de episódios de conflito ou transgressão.
- Em 10JUL2019, o Hospital ... informou que o arguido vinha comparecendo às consultas psiquiátricas agendadas e cumprindo a medicação injectável, que apresentou na consulta de 13JUN2019, instabilidade comportamental, com sinais de descompensação, e que estaria prevista para breve a integração em instituição para desabituação de tóxicos, situação que interferia na evolução da sua doença.
- Em 30SET2019, o Hospital ... informou que o arguido vinha comparecendo às consultas psiquiátricas agendadas e cumprindo a medicação injectável e que estaria prevista para breve a integração em instituição para desabituação de tóxicos, situação que interferia na evolução da sua doença.
- Em 28NOV2019, o Hospital ... informou que o arguido tinha sido novamente internado em regime de internamento compulsivo, no âmbito do processo 1408/19.....
- No relatório de perícia médico-legal - exame de psiquiatria, datado de 6AGO2020, concluiu-se que, devido à falta de adesão voluntária à terapêutica e à ausência de consciência mórbida, o arguido mantém perigosidade elevada de vir a praticar actos da mesma espécie. Informou-se ainda que o mesmo não tem consciência dos efeitos que o consumo de substâncias psicoactivas tem sobre o seu estado e que não mantém abstinência.
- Face a este último relatório, no termo do prazo de suspensão da medida de segurança de internamento, o Ministério Público promoveu a sua revogação e a consequente execução da medida de segurança de internamento.
- A defesa do arguido foi notificada para se pronunciar sobre a promoção, mas nada disse.
- Em 26NOV2020 foi proferido despacho a declarar extinta a medida de segurança de internamento por um período de 8 anos, suspensa por igual período, sob condição de sujeição a observação, acompanhamento e tratamento médico, a que tinha sido sujeito o arguido AA, por ter sido declarado inimputável perigoso pela prática de um crime de furto qualificado, previsto nos artigos 203º nº 1 e 204º nº 2 al. e) do CP.”
- Esse despacho decisório proferido em 26.11.2020 foi objeto de recurso interposto pelo MP em 27.01.2021, tendo obtido provimento por ac. do TR... de 28.10.2021, transitado em julgado em 12.11.2021, no qual foi decidido “revogar a decisão recorrida, determinando-se a revogação da suspensão da execução da medida de segurança de internamento, o qual deverá agora ser executado, competindo ao tribunal recorrido proceder à respectiva tramitação.”

- Em execução do decidido no dito acórdão do TR... de 28.10.2021, transitado em julgado, foram emitidos na 1ª instância (tribunal da condenação) em 17.12.2021 os respetivos mandados de detenção do arguido para cumprimento da referida medida de segurança de internamento que lhe fora aplicada por sentença de 21.10.2011, os quais foram cumpridos em 22.12.2021, tendo sido então o arguido conduzido ao Estabelecimento Prisional ..., ala psiquiátrica.

- Em 28.12.2021 foi feita a liquidação da medida de segurança de internamento (a qual foi objeto de acordo pela Srª. Juiz em 29.12.2021), estando previsto que o limite máximo de 8 anos fosse atingido em 22 de Dezembro de 2029 e que a revisão obrigatória ocorresse em 22 de Dezembro de 2023.

- O internado nasceu em .../.../1984 e, em 29.12.2021, apresentou na 1ª instância no referido processo comum singular nº 628/08.... o supra identificado requerimento de habeas corpus, juntando, além do mais, o aludido doc. n.º 5, que consiste num relatório médico do H..., EPE, datado de 29.12.2021, subscrito pela médica CC, da especialidade psiquiatria, proveniência em consulta (embora não seja indicada de quem) com o seguinte teor:

“Acompanho desde 2006 o doente acima identificado, portador de patologia psiquiátrica crónica, psicose esquizofrenica. Encontra-se estabilizado e cumpre de forma regumar a medicação injectavel que lhe tem sido proposta.

Ao longo de todo o percurso da sua doença e principalmente nos últimos anos, não tem historial de violência ou comportamentos lesivos que ponham em risco a integridade física sua ou de terceiros.

Tem datado a toma do próximo injectavel ja para início de janeiro.”

- Perante esse requerimento de habeas corpus, em 30.12.2021 a Srª. Juiz proferiu o seguinte despacho:

Nos autos principais de que estes constituem apenso, foi o arguido condenado em medida de segurança de internamento, por um período não superior a oito anos, suspensa na sua execução por 8 anos.

Por acórdão de 28 de outubro de 2021 (cf. Apenso A), proferido pelo Tribunal da Relação ..., decidiu-se revogar a suspensão da execução da medida de segurança de internamento, determinando-se a sua execução, a levar a efeito pelo tribunal da condenação. 

É, precisamente, nesse contexto que, em 13 de dezembro de 2021, são emitidos os competentes mandados para a detenção e condução do requerente, tendo em vista a sua colocação, imediata, no Estabelecimento Prisional ..., o que foi cumprido em 22 de dezembro de 2021.

O requerente vem, agora, interpor, por apenso, o presente “Habeas Corpus”, nos termos do art.º 31.º, da Lei de Saúde Mental, requerimento que dirige ao Juízo Local Criminal ....

Adiantamos, desde já, que entenderemos o requerido como manifestamente infundado, conforme art.º 31.º, nº 2, da Lei de Saúde Mental.

Vejamos.

O pedido de “habeas corpus” a que se reporta o art.º 21.º, da LSM, tem o seu campo de aplicação limitado aos casos de privação da liberdade de qualquer internando antes da intervenção de um juiz com vista à confirmação judicial da medida de internamento (art.º 26.º, da LSM) (neste sentido Ac. STJ, 27-06-2019, in www.dgsi.pt).

Dispõe o mencionado artigo que:

“1 - O portador de anomalia psíquica privado da liberdade, ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, pode requerer ao tribunal da área onde o portador se encontrar a imediata libertação com algum dos seguintes fundamentos:

a) Estar excedido o prazo previsto no artigo 26.º, n.º 2,

b) Ter sido a privação da liberdade efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

c)Ser a privação da liberdade motivada fora dos casos ou condições  previstas nesta lei”.

In casu, o arguido não se encontra internado de forma compulsiva, antes estando a cumprir medida de segurança, na qual foi condenado, condenação devidamente transitada em julgado.

Note-se que, em sede de recurso, a defesa do arguido sequer se pronunciou quanto ao mesmo.

Ora, não pode, agora, por via do “Habeas Corpus” previsto no âmbito da Lei de Saúde Mental para os Internamentos Compulsivos, pretender por em crise a detenção para cumprimento de uma medida de segurança.

Tal teria de obedecer à normais gerais dos artigos 222.º e 223.º, do CPP, previstas para as situações de privação de liberdade no âmbito processual penal, devendo, nesse caso, dirigir-se a pretensão ao nosso Supremo Tribunal, e não a esta Instância Local.

Assim, face ao exposto, e sem necessidade de mais considerações, indefere-se o requerido, por falta de fundamento legal.

Sem custas.

Notifique.“

- Não se conformando com esse despacho decisório o arguido interpôs recurso[2], tendo sido proferido o acórdão do TR... de 30.03.2022, o qual, sem explicações sobre a não pronúncia relativa ao recurso, decidiu antes pronunciar-se sobre a tramitação do processo de habeas corpus e da incompetência material do Tribunal da Relação nos seguintes termos:

II. Da tramitação do processo de habeas corpus e da incompetência material do Tribunal da Relação

Conforme resulta do requerimento junto aos autos com a referencia ...57 de 29.12.2021, o arguido AA, encontrando-se detido no Estabelecimento Prisional ..., ala psiquiátrica, destinada a inimputáveis, veio, nos termos do disposto no artigo 31.º da Lei de Saúde Mental, lei n.º 36/98, de 24 de julho, requerer providência de HABEAS CORPUS em virtude de privação da liberdade ilegal, invocando os fundamentos nele constantes, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos. O senhor juiz proferiu a decisão supra transcrita.

A Lei de Saúde Mental, estabelece os princípios gerais da política de saúde mental e regula o internamento compulsivo dos portadores de anomalia psíquica, designadamente das pessoas com doença mental, e no seu artigo 31º prevê uma providência de habeas corpus especifica para o portador de anomalia psíquica privado da liberdade, com os fundamentos previstos no nº 1 da referida norma, providencia que é dirigida ao tribunal da área onde se encontrar o requerente e ai é tramitada.

Porém, após a decisão do juiz, se acordo com o artigo 32º, a contrário, e artigo 9º, ambos da Lei da Saúde Mental, aplicam-se as disposições do CPP relativas à tramitação posterior à decisão do juiz, concretamente o artigo 223º, do CPP.

Ou seja, o tribunal superior competente para apreciar o pedido de habeas corpus é o Supremo Tribunal de Justiça, na qualidade de supremo garante da liberdade dos cidadãos, conforme dispõe o artigo 11º, nº4, c), do CPP.

Assim, o Tribunal da Relação ... não tem competência para apreciar o pedido de Habeas Corpus.

Destarte, e considerando que dos autos constam as informações sobre as condições em que foi efetuada e se mantém a prisão, devem estes ser remetidos, de imediato ao Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com o artigo 223º, do CPP, ex vi, do artigo 9º, da Lei da Saúde Mental.

III. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 1ª secção criminal, declarar a incompetência material deste tribunal e, em consequência, determinar a remessa da providência de Habeas Corpus para o Supremo Tribunal de Justiça.
(…).”
- Foi na sequência desse acórdão, que a respetiva Relatora, ordenou depois, por despacho da mesma data (30.03.2022), a remessa do apenso do Habeas Corpus ao STJ.

- atualmente, o arguido encontra-se na mesma situação, isto é, está no âmbito do referido processo crime a cumprir a medida de segurança de internamento, conforme foi determinado por ac. do TR... de 28.10.2021, transitado em julgado, no EP ..., ala psiquiátrica.

Direito

2.1. Invoca o peticionante, em resumo, que deve ser libertado de imediato por, na sua perspetiva, não haver motivos para a manutenção do seu internamento no EP ..., ala psiquiátrica, não só por excesso de prazo, como por inexistência de perigosidade.

Faz o enquadramento jurídico dos factos que invoca, no art. 31.º da Lei de Saúde Mental, sustentando que não poderia ser no processo comum singular nº 628/08.... decretado o seu internamento, mas antes em processo autónomo, onde se apurasse a sua efetiva perigosidade, sustentando que é o regime da LSM que deve ser aplicado.

2.2. Dispõe o artigo 222.º (habeas corpus em virtude de prisão ilegal) do CPP:

1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

São taxativos os pressupostos do habeas corpus (que também tem assento no art. 31.º da CRP), o qual não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste.

Aliás, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Lisboa: Editorial Verbo, 1993, p. 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.

Convém ter presente, como se refere no art. 31.º, n.º 1 CRP, que “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Ou seja, esta providência, que inclusivamente pode ser interposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (art. 31.º, n.º 2 CRP), tem apenas por finalidade libertar quem está preso ou detido ilegalmente e, por isso, é uma medida excecional e muito célere.

De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão ou a privação da liberdade, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
2.3.Apreciação

E, o que é que se passa neste caso concreto?

O enquadramento jurídico-penal feito pelo arguido/requerente quando pede a sua libertação imediata, fazendo uso do habeas corpus previsto art. 31.º da Lei de Saúde Mental (por, na sua perspetiva, se encontrar ilegalmente detido, entendendo não haver motivos para a manutenção do seu internamento, pretendendo que fosse averiguada a sua efetiva perigosidade em processo autónomo e aplicado o regime da LSM) não vincula este STJ.

De qualquer modo, esclarece-se que, o concreto requerimento de habeas corpus em virtude de alegada privação da liberdade ilegal, apresentado ao abrigo do art. 31.º da LSM, teria de ser decidido pelo tribunal da 1ª instância (art. 30.º LSM), sendo passível de recurso para o Tribunal da Relação competente (art. 32.º LSM).

Neste caso concreto o que se passou foi que, quando foi apresentado esse habeas corpus ao abrigo do art. 31.º da Lei de Saúde Mental na 1ª instância (ou seja, no tribunal competente para dele conhecer), ainda que no âmbito do dito processo comum singular, a Srª. Juiz proferiu a sua decisão e, porque considerou manifestamente infundado o requerimento, nos termos do art. 31.º, n.º 2, LSM, indeferiu-o por falta de fundamento legal.

Ora, dessa decisão recorreu o arguido, mas o TR... no acórdão de 30.03.2022, sem que se perceba, uma vez que não foi explicado de forma transparente, não conheceu do recurso (revogando, alterando ou mantendo a decisão sob recurso) e antes decidiu (sem se pronunciar sobre se alterava ou não a decisão impugnada) declarar-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do habeas corpus que havia sido pedido ao abrigo do art. 31.º da LSM, mas no âmbito do referenciado processo comum singular, onde o arguido estava a cumprir a medida de segurança de internamento, em execução do decidido no ac. do TR... de 28.10.2021, transitado em julgado (que revogou a suspensão da execução da medida de segurança de internamento aplicada por sentença de 21.10.2011, quando fora declarado inimputável em relação aos factos provados, integradores dos elementos objetivos da co-autoria de um crime de furto qualificado, p. e p. nos arts 203°, n° 1, e 204°, n° 2, al. e), do Código Penal, e perigoso).

A perplexidade deste caso é tanto maior, uma vez que, como sabido são distintos por um lado os procedimentos no âmbito do internamento compulsivo (e decisões que aí são proferidas, nomeadamente, quando se trata ou não de proc. relativo a confirmação judicial de internamento de urgência) e, por outro lado os procedimentos no âmbito de um processo-crime em que se aplica e executa uma medida de segurança de internamento (e decisões aí proferidas)[3].

E, ainda para mais, tendo em atenção aqui a situação do arguido AA desde que foi detido em 22.12.2021 e colocado no EP, em ala psiquiátrica e o tempo entretanto decorrido, tanto mais que se estava perante um processo-crime (processo comum singular) urgente, impondo-se maior celeridade, uma vez que a opção era, pelo menos temporariamente, não proferir a decisão sobre o recurso que fora interposto e, antes remeter o habeas corpus ao STJ, por o TR... ter entendido ser antes aplicável (se bem interpretarmos o acórdão de 30.03.2022) o disposto no art. 223.º do CPP.

Na providência de habeas corpus em virtude de prisão ilegal, a que se referem os artigos 222 e 223 do CPP, como já se referiu, o STJ não analisa o mérito da decisão que determina a privação da liberdade, nem tão pouco aprecia erros procedimentais ou erros de direito (sejam cometidos pelos tribunais ou pelos sujeitos processuais), uma vez que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

A matéria que o requerente do habeas corpus coloca ao abrigo do art. 31.º da LSM no respetivo requerimento e depois, face ao indeferimento, no recurso terá de ser apreciada pelo TR... oportunamente, uma vez que para já ainda não se pronunciou, como lhe competia, sobre o mesmo recurso.

Ora, apesar de na petição do habeas ter sido invocado o disposto no art. 31.º da LSM (para o qual, como já referimos, neste caso concreto falece competência ao STJ para dele conhecer, não nos vinculando interpretações diversas feitas por outros sujeitos do processo, tanto mais que o requerente não foi detido no âmbito de um processo de internamento compulsivo, nem está em causa decisão judicial de confirmação judicial de internamento proferida v.g. ao abrigo dos arts. 26.º e 27.º da LSM), tendo em atenção o princípio do aproveitamento dos atos (art. 193.º do CPC aplicável ex vi do art. 4.º do CPP), podemos prosseguir e analisar se ocorre qualquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

E isto porque a providência do habeas corpus prevista no art. 222.º do CPP pode também ser aplicada, por interpretação extensiva ou por analogia (art. 4.º do CPP), à medida de segurança de internamento aplicada em processo-crime[4].

De resto, também o requerente/arguido sabia que o respetivo enquadramento jurídico-penal efetuado em sede de requerimento de habeas corpus (e, o mesmo se passando v.g. em sede de recurso), não vinculava os tribunais.

Pois bem.

Foi no âmbito do referenciado processo comum singular e, em execução do acórdão do TR... de 28.10.2021, transitado em julgado (que revogou a suspensão da execução da medida de segurança de internamento aplicada por sentença de 21.10.2011, quando fora declarado inimputável em relação aos factos provados, integradores dos elementos objetivos da co-autoria de um crime de furto qualificado, p. e p. nos arts 203°, n° 1, e 204°, n° 2, al. e), do Código Penal, e perigoso), que o arguido AA foi detido em 22.12.2021 e passou a cumprir a medida de segurança de internamento por um período não superior a oito anos, sem prejuízo de findar caso se verificar a cessação do seu estado de perigosidade criminal.

Portanto, o que sucede neste caso é que, ao contrário do que alega o requerente do habeas corpus, o mesmo está em cumprimento de uma medida de segurança de internamento aplicada em processo-crime, cujo período máximo ainda não findou, determinada por entidade competente e por facto que a lei permite.

Como já foi dito no ac. do TR... de 28.10.2021, transitado em julgado, “o internamento não terá necessariamente a duração de 8 anos. Se cessar o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem, deve terminar imediatamente por decisão judicial, como decorre do artigo 92º do CP.”

Para o efeito, verificando-se os respetivos pressupostos, o requerente deverá usar os mecanismos legais próprios e adequados ao seu dispor, nomeadamente tendo presente o estatuído nos arts. 92.º e 93.º, n.º 1 do CP e respetivas normas aplicáveis do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade.

Não ocorre, pois, qualquer fundamento para o deferimento do habeas corpus ao abrigo do art. 222.º, n.º 2, do CPP.

Deverá, contudo, oportunamente o TR... pronunciar-se, como lhe compete, sobre o recurso interposto do despacho de 30.12.2021.

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III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus ora em apreciação.

Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.

D.n., enviando-se, oportunamente, certidão de todo o processado à respetiva secção do TR... (vista a distribuição já efetuada), a fim de se pronunciar, como lhe compete, sobre o recurso interposto do despacho da 1ª instância de 30.12.2021, aludido neste acórdão.

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Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria, pelo Senhor Juiz Conselheiro Adjunto e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente.

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Supremo Tribunal de Justiça, 7.04.2022

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Cid Geraldo

Eduardo Almeida Loureiro

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[1] Promoção feita com base no que já constava da douta Resposta elaborada pelo Digno Magistrado do Ministério Público ao Recurso do arguido relativo ao Despacho de 30.12.2021.
[2] No seu recurso, o arguido apresentou as seguintes conclusões e pedido:

1. A douta sentença, que ora se recorre, entende que a providência de habeas corpus deveria cumprir as normas gerais dos artigos 222º, 2 e 223º, 2, ambos do CPP.

2. O ora recorrente não concorda com tal entendimento.

3. O artigo 1º da Lei de Saúde Mental, Lei nº 36/98, de 24 de Julho, estabelece os princípios gerais da política de saúde mental e regula o internamento compuIsivo dos portadores de anomalia psíquica, designadamente das pessoas com doença mental.

4. É consabido que a lei especial prevalece sobre a lei geral.

5. Critério da especialidade é a lex specialis derogat legi generali.

6. Por conseguinte, deve-se aplicar, ao caso em apreço, a Lei de Saúde Mental, Lei n.º 36/98, de 24 de Julho.

7. Uma vez que, o recorrente, padece de uma anomalia psíquica.

8. Deste modo, não deverá ser aplicada a lei geral dos artigos 222º e 223º, ambos do CPP.

9. Mas, a lei especial aplicável ao internamento compulsivo dos portadores de anomalia psíquica.

10.Existindo uma lei especial aplicável, a Lei de Saúde Mental, Lei nº 36/98, de 24 de Julho, como é o caso, deverá ser essa a lei a aplicável.

11.Assim, o recorrente poderia lançar mão, da providência de habeas corpus em virtude de privação da liberdade ilegal, nos termos do artigo 31º da Lei nº 36/98, de 24 de Julho, Lei da Saúde Mental.

12.Mais, nos termos do disposto no artigo 26S, nS3, da Lei ns 36/98, de 24 de Julho, Lei da Saúde Mental, “A decisão de manutenção do internamento é comunicada, com todos os elementos que a fundamentam, ao tribunal competente.”

13.A lei ordinária estabelece o dever de fundamentação no artigo 97º, nº5, do CPP.

14.Porém, a sentença recorrida não fundamenta de facto e de direito.

15.Não analisa, nomeadamente, o pressuposto da perigosidade.

16.Pressuposto, esse, que é fundamental para decretar a manutenção do internamento.

17.A perigosidade tem de ser actual e concreta, não se podendo basear em meras conjeturas ou suspeitas.

18.sem que fosse analisada, a alegada, perigosidade do arguido.

19.O tribunal teria, obrigatoriamente, de se pronunciar quanto à existência da perigosidade, nos termos do artigo 26º, nº3, da Lei nº 36/98, de 24 de Julho, Lei da saúde mental.

20.E, ainda, conforme o disposto no artigo 374º do CPP.

21.A sentença teria de ser, devidamente, fundamentada.

22.Por conseguinte, a mesma padece de deficiente fundamentação.

23.Esta omissão constitui uma nulidade prevista na alínea a), do nº 1 do artigo 379º, com referência ao artigo 374º, nº2, ambos do CPP.

24.Pelas razões amplamente deduzidas, foram violadas as disposições constantes nos artigos 379º, nº 1, al. a) e 374º, nº 2, ambos do CPP e artigo 26º, nº 3, da Lei nº 36/98, de 24 de Julho, Lei da Saúde Mental.

Nestes termos, e nos demais de direito supridos por V. Exa., deve ser dado provimento ao presente recurso, com as devidas consequências, revogando-se a decisão de internamento compulsivo, sem prejuízo do tratamento em regime ambulatório, do ora recorrente.”
[3] Essa distinção e autonomia entre os dois tipos de processos – internamento compulsivo por um lado e processo penal por outro lado - também é realçada pelo que resulta do disposto nos arts. 28.º e 29.º da LSM, tal como é notado por Pedro Soares Albergaria, “Aspectos Judiciários da Problemática da Inimputabilidade”, in RPCC ano 14, n.º 3 (2004), pp. 392 a 394.
[4] Ver Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, p. 590, referindo que “A providência do habeas corpus é, por interpretação extensiva, aplicável ao internamento, impondo o art. 5.º, n.º 4, da CEDH que o internamento esteja submetido a um controlo judicial da existência e manutenção dos respetivos pressupostos. Também, Tiago Caiado Milheiro, in AAVV, Comentário Judiciário do Código Processo Penal, tomo III, Artigos 191.º a 310.º, 2ª edição, Almedina, 2022, p. 589, sustentando que “a providência de habeas corpus é aplicável, por interpretação extensiva ou analogia, à medida de segurança de internamento.”