Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
919/13.9TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
SEGURO FACULTATIVO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
AUTONOMIA PRIVADA
REPETIÇÃO DO INDEVIDO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/04/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / SEGURO DE VIDA / SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS.
Doutrina:
- Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, página 406
- José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 30-31.
- Moitinho de Almeida, O contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa, 1971, pp. 23-24.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 397.º, 405.º, 473.º, N.ºS 1 E 2, 476.º, N.º1.
DECRETO – LEI N.º 72/2008, DE 16 DE ABRIL (LCS): - ARTIGOS 2.º, N.º 2, 4.º, 32.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 10/07/2008, PROCESSO N.º 08B1846, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Contrato de seguro é aquele em que uma das partes (segurador) se obriga, contra o pagamento de certa importância (prémio), a indemnizar outra parte (segurado ou terceiro) pelos prejuízos resultantes da verificação de determinados riscos.

II - Muito embora se trate de um contrato de adesão – na medida em que as cláusulas gerais são elaboradas sem prévia negociação individual –, nada obsta a que se aplique a regra geral da prevalência da autonomia privada, segundo a qual as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos, desde que não colidam com normas de natureza imperativa.

III - O contrato de seguro é regulado: 1.º) pelas disposições particulares e gerais constantes da apólice, desde que não proibidas por lei; 2.º) na sua falta ou insuficiência, pelas disposições da LCS (DL n.º 72/2008, de 16-04); 3.º) na falta de previsão destas, pelas regras gerais previstas no Código Comercial e no Código Civil.

IV - A apólice dos contratos de seguro contém (i) condições gerais, que se aplicam a todos os contratos de seguro de um mesmo ramo ou modalidade, (ii) condições especiais, que completando ou especificando as condições gerais são de aplicação generalizada a determinados contratos do mesmo tipo, e (iii) condições particulares, que se destinam a responder em cada caso às circunstâncias específicas do risco a cobrir.

V - As cláusulas particulares, especificamente acordadas, prevalecem sobre as cláusulas contratuais gerais, mesmo quando constantes de formulários assinados pelas partes.

VI - Constando do artigo 2º das Condições Gerais que «o seguro garante a cobertura dos riscos identificados nas condições particulares verificados no exercício da actividade profissional, da actividade extra-profissional ou de ambas…» (n.º 1) e que podem ser contratadas as seguintes coberturas «(i) morte por acidente; (ii) morte por acidente de viação e (iii) invalidez permanente», resulta que ficam garantidos pelo contrato de seguro os riscos – de entre os enunciados nessas condições gerais – que ficarem expressamente identificados nas condições particulares (e não os riscos descritos nas condições gerais não expressamente excluídos nas condições particulares, como entendeu a Relação).

VII - Só tendo sido efectivamente contratadas, nas condições particulares, as coberturas de morte e invalidez permanente, fica excluída a cobertura de morte por acidente de viação, apesar de prevista nas condições gerais.

VIII - A repetição do indevido comporta dois tipos de situações: - casos em que se cumpre uma obrigação objectivamente inexistente; - hipóteses de cumprimento de uma obrigação alheia, na convicção errónea de que se trata de dívida própria ou de que se está vinculado para com devedor a esse cumprimento.

IX - Se a seguradora apenas era responsável para com a ré no pagamento de € 50 000, mas lhe pagou € 100 000, a pretensão de enriquecimento valerá quanto à diferença.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




1.

AA - Companhia de Seguros, S.A., intentou esta acção declarativa de condenação com processo ordinário contra BB, peticionando a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 50.000, acrescida de juros vincendos à taxa legal de 5% desde a citação até integral pagamento.

Fundamentando a sua pretensão, alega, em síntese, que, na sequência de sinistro, pagou à Ré cinquenta mil euros por uma cobertura que não estava abrangida no contrato de seguro.


A Ré contestou, alegando que as coberturas contratadas abrangem a morte por acidente, a morte por acidente de viação e a invalidez permanente, pelo que a Ré deve ser absolvida do pedido.


Proferido o despacho saneador e elaborado o despacho de condensação, procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença, que, julgando a acção procedente por provada, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 50.000, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a citação (27/05/2013) até integral pagamento.


Inconformada, apelou a Ré, tendo o Tribunal da Relação, na procedência da apelação, revogado a sentença e absolvido a Ré do pedido.


Agora, é a autora que, não se conformando com a decisão, recorre de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pretendendo a revogação do acórdão recorrido e, concluindo como na sentença da 1ª instância, considera que a acção deverá ser julgada procedente por provada e, consequentemente, deverá a ré/recorrida ser condenada no pedido.

Defendendo a sua pretensão, finaliza as alegações com as seguintes conclusões:

1ª - O Acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, partiu do axioma de que todas as coberturas referidas em condições gerais estão garantidas excepto se forem expressamente excluídas nas condições particulares do contrato individual ou concreto.

2ª - Tal axioma não tem o menor acolhimento, sobretudo no contrato dos autos que está estruturado exactamente da forma oposta: as condições gerais enumeram os riscos ou coberturas que podem ser garantidas, ficando abrangidas pelo contrato concreto aquelas que forem enumeradas nas condições particulares.

3ª - Na proposta de seguro o tomador quis garantir e escolheu apenas duas coberturas de entre várias que ali estavam assinaladas como possíveis.

4ª - Nas condições particulares surgem de forma positiva como garantias duas coberturas, a saber: despesas de tratamento em Portugal por acidente; morte ou invalidez permanente por acidente.

5ª - Nenhuma outra das coberturas enumeradas nas condições gerais foi escolhida pelo tomador do contrato ou consta das condições particulares, pelo que não se pode ter como garantida, no contrato dos autos, pela ora recorrente.

6ª - A interpretação dada pelo Acórdão recorrido, para além de violar directamente o próprio texto do contrato, muito em especial o que é referido nos pontos 13 e 14, mas também 15, 17 e 18 da matéria de facto assente, não tem a menor correspondência nesse texto, mesmo que este estivesse «imperfeitamente expresso».

7ª - E nem a recorrida pretendeu que o contrato tivesse a abrangência que o Acórdão recorrido lhe dá, sem o que não teria deixado de exigir da ora recorrente também as despesas com o funeral do seu malogrado filho.

8ª - Foram violadas as normas dos artigos 236º, 238º, 239º, 405º e 406º do Código Civil e dos artigos 10º e 11º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, e legislação que alterou este.


A Ré contra – alegou, defendendo a confirmação do acórdão recorrido, finalizando as alegações com as seguintes conclusões:

1ª - No entender da recorrida, o presente recurso deve improceder totalmente porque o douto Acórdão proferido faz uma correcta interpretação de toda a factualidade assente em 1ª instância, e por si invocada.

2ª - De igual modo, considera que é correcto o entendimento do douto Acórdão recorrido quando conclui que como «nenhuma exclusão consta quanto ao âmbito dos riscos cobertos nas condições gerais», «todos os riscos cobertos nas condições gerais estão segurados».

3ª - Não lobrigando em que aspecto possa carecer de "absoluto fundamento" o entendimento dos Venerandos Desembargadores de que se «nenhuma exclusão consta quanto ao âmbito dos riscos cobertos nas condições gerais», «todos os riscos cobertos nas condições gerais estão segurados».

4ª - Porque a verdade é que as seguradoras recorrem exactamente às exclusões quando não pretendem abranger no «âmbito dos riscos cobertos nas condições gerais» das suas apólices, algumas situações que consideram mais gravosas.

5ª - Assim, a regra, que a recorrente procura, existe, e são as seguradoras que a estabelecem, porque quando as seguradoras não pretendem aceitar o que garantem no «âmbito dos riscos cobertos nas condições gerais», excluem.

6ª - Ora, no caso presente, nas condições gerais do seguro que a recorrente celebrou com a Fundação da Faculdade CC, e relativamente às coberturas que podem ser contratadas, como salienta o douto Acórdão, no nº 3, afirma-se, expressa e claramente:

“O que está seguro:

Morte por acidente;

Pagamento do capital seguro em caso de morte por acidente;

Morte por acidente de viação

Pagamento de um capital adicional de montante igual ao do capital seguro pela cobertura de morte por acidente em caso de morte por acidente de viação”.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir:

2.

As Instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1º - Entre a DD - Companhia de Seguros, S.A., antecessora da Autora e a Fundação da Faculdade CC, foi celebrado um contrato de seguro do ramo acidentes pessoais, no qual figurava como pessoa segura EE o qual foi titulado pela apólice n.º AP….

2º - Contrato que foi feito em benefício do EE, pelo facto de este desempenhar funções docentes naquela Faculdade.

3º - O referido EE não teve nenhuma intervenção na celebração do contrato referido em 1º.

4º e 5º - Este faleceu às 4.30 horas do dia 25 de Junho de 2011, em consequência de acidente de viação, ocorrido cerca das 3.15 horas desse dia, ao Km 258,909 da A – 1, em Estarreja.

6º - O EE deixou como únicos e universais herdeiros a sua mãe, ora Ré e seu pai FF.

7º - O seu pai, FF, repudiou a herança do seu falecido filho através de escritura lavrada em 26/09/2011.

8º - O FF não tinha descendentes.

9º - Em 16/11/2011, a ora Autora enviou à Ré, através da tomadora do seguro, Fundação da Faculdade CC, um recibo de indemnização para pagamento das suas responsabilidades emergentes do falecimento do FF.

10º – Tais serviços inscreveram no referido recibo de indemnização a quantia de € 100.000;

11º - Quantia que efectivamente veio a ser entregue pela Autora à Ré.

12ª – As condições particulares e gerais do acordo referido em 1º são as constantes de fls. 5º a 12º.

13º - Nos termos do artigo 2º, n.º 1 das Condições Gerais, «o seguro garante a cobertura dos riscos identificados nas Condições Particulares, verificados no exercício da actividade profissional, da actividade extraprofissional ou de ambas, conforme também indicado nas referidas Condições Particulares»;

14º - Acrescentando-se no n.º 3 quais «as coberturas que podem ser contratadas».

15º - Consta das Condições Particulares relativas à apólice dos autos que foram transferidos para a ora Autora os riscos de Morte ou Invalidez Permanente por Acidente, com um capital seguro de € 50.000 e de Despesas de Tratamento em Portugal por Acidente, com capital seguro de 5.000 euros.

16º - Sendo que através das Cláusulas Particulares aplicáveis a tal apólice, ficou «convencionado que as garantias são válidas no âmbito da Actividade Profissional e Extraprofissional da Pessoa Segura».

17º - Mediante o risco de Morte ou Invalidez Permanente por Acidente, a antecessora da Autora assumiu o pagamento «de um capital por morte ou por invalidez permanente, determinado nos mesmos termos das coberturas “Morte por Acidente” ou “Invalidez Permanente por Acidente”, “Morte ou Invalidez Permanente por Acidente” (cfr. artigo 2º, ponto 3.1.

18º - Sendo que na cobertura de “Morte por Acidente” garantia-se o «pagamento do capital seguro em caso de morte por acidente – cfr. o artigo 2º, ponto 3.1, «Morte Por Acidente».

19º - Nos termos do artigo 11º, n.º 1, das ditas Condições Gerais, «os Beneficiários do contrato em caso de morte da Pessoa Segura são os designados nas Condições Particulares, ou na falta dessa designação, os herdeiros da Pessoa Segura».

20º - E nenhum beneficiário foi designado nas Condições Particulares.

21º - Nenhum outro risco, condição ou cláusula foi acordado entre a antecessora da Autora e a Fundação da Faculdade CC.

22º - Menos ainda foi acordado coisa diferente com o FF.

23º - A Autora contactou por diversas vezes a Ré no sentido de lhe devolver o valor de € 50.000.

24º - A Ré nunca o fez.

3.

3.1.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da Recorrente, a questão que se coloca é a de saber se o contrato de seguro, celebrado entre a Fundação da Faculdade CC, na qualidade de tomadora, e a Ré, na qualidade de seguradora, tendo como pessoa segura o FF, tinha como coberturas os riscos de Morte ou Invalidez Permanente por acidente, com um capital seguro de € 50.000 ou se as coberturas abrangiam também os riscos de morte por acidente de viação.

3.2.

A sentença fundamentou a sua decisão, assentando nos seguintes elementos estruturantes:

1 - A Fundação da Faculdade de Ciências, na qualidade de tomadora, e a Ré, na qualidade de seguradora, celebraram um contrato de seguro que teve, como pessoa segura, o FF e como coberturas os riscos de Morte ou Invalidez Permanente por acidente, com um capital seguro de € 50.000.

2 - Tendo o FF falecido, em 25/06/2011, em consequência de um acidente de viação, a Ré veio a pagar à mãe e herdeira deste, a quantia de cem mil euros.

3 - Essa quantia foi entregue com base num pressuposto errado, qual seja o de que o contrato de seguro cobria o risco de morte por acidente de viação quando tal cobertura não foi contratada.

4 - Apesar das Condições Gerais do contrato preverem vários tipos de cobertura, (morte por acidente, morte por acidente de viação, invalidez permanente por acidente), o certo é que só foram contratadas as coberturas de morte ou invalidez permanente por acidente e as despesas de tratamento em Portugal.

5 – Com efeito, as cláusulas particulares prevalecem sobre as cláusulas contratuais gerais, mesmo quando constantes de formulários assinados pelas partes.

3.2.

Por sua vez, o acórdão assentou nos seguintes elementos estruturantes:

1 – Os contratos de seguro contêm cláusulas que constituem as condições gerais, cláusulas que constituem as condições particulares e cláusulas que constituem as condições especiais.

2 – As cláusulas insertas nas condições gerais aplicam-se a todos os contratos do mesmo tipo, salvo se ao contrato for aposta cláusula que expressamente exclua qualquer condição geral.

3 – Como «nenhuma exclusão consta quanto ao âmbito dos riscos cobertos nas condições gerias», «todos os riscos cobertos nas condições gerais estão segurados».

4 – Assim, as coberturas contratadas incluem «a morte por acidente de viação», atendendo a que se encontra expressa a contratualização desse risco, no âmbito das condições gerais e nenhuma exclusão consta quanto ao âmbito dos riscos cobertos nas condições gerais.

4.

4.1.

A problemática do contrato de seguro:

O legislador não definiu o contrato de seguro, deixando ao intérprete a tarefa de deduzir esse conceito a partir dos seus elementos integradores.

Moitinho de Almeida, depois de recordar a definição do artigo 1538º do Código Civil de 1867 e de registar diversas noções doutrinárias e legais estrangeiras, identifica os elementos essenciais que do seu ponto de vista caracterizam o contrato de seguro, para deles extrair a seguinte definição:

O contrato de seguro éaquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos, ou, tratando-se de evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou renda ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de pretensão a realizar em data determinada[1]”.


O "contrato de seguro" poderá, pois, definir-se como aquele em que uma das partes (segurador) se obriga contra o pagamento de certa importância (prémio), a indemnizar outra parte (segurado ou terceiro), pelos prejuízos resultantes da verificação de determinados riscos.


O regime do contrato de seguro achava-se, até há pouco, contido nos artigos 425º e seguintes do Código Comercial, encontrando-se diversos aspectos regulados em diplomas avulsos atinentes à actividade seguradora.

Entretanto, em 1/01/2009, entrou em vigor um novo regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo Decreto – Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (regime doravante designado abreviadamente por LCS), o qual, por via do sinistro ter ocorrido já depois da entrada em vigor do referido diploma, é aplicável ao caso dos autos (vide artigo 2º, n.º 2 do citado DL).


O contrato de seguro continua a ser considerado como um contrato consensual e formal: consensual porque se realiza por via do simples acordo das partes; formal porque o segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador de seguro (vide artigo 32º, n.º 2da LCS), dependendo, portanto, a sua validade da redução a escrito da apólice.

Muito embora se trate de um contrato de adesão, na medida em que as cláusulas gerais são elaboradas sem prévia negociação individual e a cujos termos o segurado (ou tomador de seguro) se terá de subordinar, nada obsta a que se aplique a regra geral do regime contratual que é o da autonomia da vontade, segundo o qual as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos (artigo 405º do Código Civil), excepto se colidir com normas de natureza imperativa quer relativa quer absoluta.

Deste modo, o contrato de seguro é essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice, não proibidas por lei, e na sua falta ou insuficiência, pelas disposições aplicáveis da LCS, ou na falta de previsão destas, pela aplicação dos regimes gerais previstos no Código Comercial e no Código Civil (vide artigo 4º da LCS).

4.2.

Relação jurídica firmada entre as partes:

Ficou assente que a Fundação da Faculdade CC, na qualidade de tomadora e a Ré, na qualidade de seguradora, celebraram um contrato de seguro do ramo acidentes pessoais, no qual figurava como pessoa segura o referido FF, sendo o contrato titulado pela apólice n.º AP ….

Este contrato foi feito em benefício do FF pelo facto de este desempenhar funções docentes naquela Faculdade.

Como acima referimos, a apólice dos contratos de seguro contém cláusulas que constituem as condições gerais, cláusulas que constituem as condições especiais e cláusulas que constituem as condições particulares.

Segundo José Vasques[2], condições gerais são as que se aplicam a todos os contratos de seguro de um mesmo ramo ou modalidade. Condições especiais são as que, completando ou especificando as condições gerais, são de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo. Condições particulares são as que se destinam a responder em cada caso às circunstâncias específicas do risco a cobrir.

Significa isto que as condições gerais enumeram os riscos ou coberturas que potencialmente podem ser garantidas, ficando abrangidas pelo caso concreto aquelas que forem enumeradas nas condições particulares.

Com efeito, as cláusulas particulares especificamente acordadas prevalecem sobre as cláusulas contratuais gerais, mesmo quando constantes de formulários assinados pelas partes[3].


Salvo o devido respeito, o entendimento perfilhado no acórdão recorrido, de que as condições gerais se aplicam a todos os contratos do mesmo tipo, salvo se ao contrato for aposta cláusula que expressamente exclua qualquer condição geral, não merece o nosso acolhimento.


Este entendimento parte de um axioma que não existe e que carece em absoluto de fundamento, violando, para além do mais, o que a seguradora e o tomador do seguro quiseram e na realidade contrataram.

Efectivamente, não existe regra que determine que todas as coberturas descritas nas condições gerais de um determinado tipo de seguro são aplicáveis aos contratos individuais celebrados no seu âmbito, salvo aquelas que sejam expressamente excluídas.

Por outro lado, basta atentar no presente contrato de seguro e nas condições gerais que constituem o documento de fls. 6 a 12 dos autos, para que se possa concluir que a estrutura deste é exactamente o contrário do que o acórdão recorrido realça.

Consta do artigo 2º, n.º 1 das Condições Gerais que “o seguro garante a cobertura dos riscos identificados nas Condições Particulares verificados no exercício da actividade profissional, da actividade extra – profissional ou de ambas, conforme também indicado nas referidas Condições Particulares”.

Segundo dispõe o n.º 3 deste artigo 2º das Condições Gerais, podem ser contratadas as seguintes coberturas: (i) Morte por Acidente; (ii) Morte por Acidente de Viação e (iii) Invalidez Permanente por Acidente.

Ou seja, o contrato de seguro dos autos estrutura-se de forma exactamente oposta ao axioma adoptado no acórdão recorrido. Ficaram garantidos, não os riscos descritos nas condições gerais não expressamente excluídos nas condições particulares, mas os riscos, de entre os enunciados nessas condições gerais, que ficaram expressamente identificados nessas condições particulares.

Aliás, na proposta de seguro, o tomador quis garantir e escolheu apenas duas coberturas de entre várias que nas condições gerais estavam assinaladas como possíveis, pelo que, como muito bem assinala a recorrente, nas condições particulares surgem de forma positiva como garantidas duas coberturas, ou seja, despesas de tratamento em Portugal, por acidente e morte ou invalidez permanente por acidente.

Nenhuma outra das coberturas enumeradas nas condições gerais foi escolhida pelo tomador do contrato ou consta das condições particulares, pelo que se não pode ter como garantida, no contrato dos autos, pela Seguradora.

Face a esta proposta e às condições particulares da apólice, em que, sob a epígrafe «coberturas, capitais, franquias e períodos de carência, se enumeram exclusivamente as coberturas de «Despesas de Tratamento Portugal Acidente 5.000,00 sem franquia e «Morte ou Invalidez Permanente Acidente – 50.000,00», teremos de concluir que nem todos os riscos cobertos nas condições gerais estão segurados.


A interpretação dada pelo acórdão recorrido, para além de violar directamente o próprio texto do contrato, (ver pontos 13º, 14º, 15º, 17º e 18º da matéria de facto assente), não tem a menor correspondência nesse texto, mesmo que este estivesse imperfeitamente expresso.


Se o contrato tivesse a abrangência que o acórdão lhe confere e que a recorrida consagra nas contra - alegações, não se entende por que não foram peticionadas, nomeadamente, as despesas com o funeral do seu malogrado filho, a par de outras coberturas incluídas nas condições gerais.


Em suma, apesar das Condições Gerais do contrato preverem vários tipos de coberturas, só foram contratadas as coberturas de morte ou invalidez permanente por acidente e as despesas de tratamento em Portugal. A cobertura de morte por acidente de viação não foi subscrita e contratada.

Deste modo, a autora só deveria ter pago cinquenta mil euros, pelo que a quantia que veio a ser paga à mãe do falecido FF, foi entregue com base num pressuposto errado, qual seja o de que o contrato de seguro cobria o risco de morte por acidente de viação quando tal cobertura não foi contratada.

5.

Repetição do indevido.

O Código Civil, após a enunciação do princípio geral (enriquecimento sem causa), que decorre do n.º 1 do artigo 473º, acrescenta, no n.º 2 do mesmo preceito, que «a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que se não verificou».

Prevêem-se, assim, três situações especiais de enriquecimento sem causa, numa enumeração, obviamente, exemplificativa.


No caso, importa apurar, em particular, o que se estabelece quanto à repetição do indevido.

A respeito deste regime, de acordo com a lei, importa distinguir dois tipos de situações: a) – um deles abrange os casos em que se cumpre uma obrigação objectivamente inexistente; b) – o outro refere-se às hipóteses de cumprimento de obrigação alheia, mas na convicção errónea de que se trata de dívida própria ou de que se está vinculado para com o devedor a esse cumprimento.


O primeiro tipo de situações referido, que ora nos interessa, reporta-se ao cumprimento de obrigação que não existe, nem relativamente ao que o efectua nem a terceiro, a que se refere o artigo 476º.

Determina o seu n.º 1 que, «sem prejuízo do disposto acerca das obrigações naturais, o que for prestado com intenção de cumprir uma obrigação pode ser repetido se esta não existia no momento da prestação».

Explicitando este preceito, refere o Prof. Almeida e Costa[4] que da referida norma resulta a exigência de três requisitos ou pressupostos para o exercício da pretensão de enriquecimento nela admitida: 1) – que se efectue uma prestação com a finalidade de cumprir uma obrigação; 2) – que essa obrigação não exista na data da prestação; 3) – que a prestação efectuada nem mesmo se relacione com um dos deveres de ordem moral ou social, impostos pela justiça, que originam obrigações naturais.


No tocante ao primeiro pressuposto, a palavra obrigação está aqui utilizada com a amplitude do conceito do artigo 397º. Designa todo o vínculo jurídico, autónomo ou não autónomo, pelo qual uma pessoa fica adstrita para com outra ao cumprimento de uma prestação.

Quanto ao terceiro pressuposto, é excluída a repetição, desde que haja uma obrigação natural do autor da prestação.

Relativamente ao segundo pressuposto, importa referir que se a obrigação existe, mas com um conteúdo inferior ao da prestação satisfeita, a pretensão de enriquecimento valerá quanto à diferença, pois nesta parte a dívida não existia.


No caso sub judicio, verificam-se os aludidos pressupostos, importando salientar que a seguradora devia € 50.000 à mãe, enquanto herdeira única do malogrado FF, em razão da cobertura dos riscos de morte por acidente mas pagou-lhe € 100.000.

Se lhe devia € 50.000 mas pagou-lhe € 100.000, a pretensão de enriquecimento valerá quanto à diferença, pois nesta parte a dívida não existia.

Decorre do exposto que a Ré deverá ser condenada a restituir à Autora a quantia de cinquenta mil euros.

Os juros devidos são apenas os legais de 4%, a partir da citação (Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril).

6.

Sumariando:

I - Contrato de seguro é aquele em que uma das partes (segurador) se obriga, contra o pagamento de certa importância (prémio), a indemnizar outra parte (segurado ou terceiro) pelos prejuízos resultantes da verificação de determinados riscos.

II - Muito embora se trate de um contrato de adesão – na medida em que as cláusulas gerais são elaboradas sem prévia negociação individual –, nada obsta a que se aplique a regra geral da prevalência da autonomia privada, segundo a qual as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos, desde que não colidam com normas de natureza imperativa.

III - O contrato de seguro é regulado: 1.º) pelas disposições particulares e gerais constantes da apólice, desde que não proibidas por lei; 2.º) na sua falta ou insuficiência, pelas disposições da LCS (DL n.º 72/2008, de 16-04); 3.º) na falta de previsão destas, pelas regras gerais previstas no Código Comercial e no Código Civil.

IV - A apólice dos contratos de seguro contém (i) condições gerais, que se aplicam a todos os contratos de seguro de um mesmo ramo ou modalidade, (ii) condições especiais, que completando ou especificando as condições gerais são de aplicação generalizada a determinados contratos do mesmo tipo, e (iii) condições particulares, que se destinam a responder em cada caso às circunstâncias específicas do risco a cobrir.

V - As cláusulas particulares, especificamente acordadas, prevalecem sobre as cláusulas contratuais gerais, mesmo quando constantes de formulários assinados pelas partes.

VI - Constando do artigo 2º das Condições Gerais que «o seguro garante a cobertura dos riscos identificados nas condições particulares verificados no exercício da actividade profissional, da actividade extraprofissional ou de ambas…» (n.º 1) e que podem ser contratadas as seguintes coberturas «(i) morte por acidente; (ii) morte por acidente de viação e (iii) invalidez permanente», resulta que ficam garantidos pelo contrato de seguro os riscos – de entre os enunciados nessas condições gerais – que ficarem expressamente identificados nas condições particulares (e não os riscos descritos nas condições gerais não expressamente excluídos nas condições particulares, como entendeu a Relação).

VII - Só tendo sido efectivamente contratadas, nas condições particulares, as coberturas de morte e invalidez permanente, fica excluída a cobertura de morte por acidente de viação, apesar de prevista nas condições gerais.

VIII - A repetição do indevido comporta dois tipos de situações: - casos em que se cumpre uma obrigação objectivamente inexistente; - hipóteses de cumprimento de uma obrigação alheia, na convicção errónea de que se trata de dívida própria ou de que se está vinculado para com devedor a esse cumprimento.

IX - Se a seguradora apenas era responsável para com a ré no pagamento de € 50.000, mas lhe pagou € 100.000, a pretensão de enriquecimento valerá quanto à diferença.

6.

De tudo quanto se deixa exposto, concedendo a revista, revoga-se o acórdão recorrido, repristinando a sentença.


Custas pela Recorrida.


Lisboa, 4 de Dezembro de 2014


Manuel F. Granja da Fonseca


António Silva Gonçalves


Fernanda Isabel Pereira

_______________________

[1] Moitinho de Almeida, O contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa, 1971, página 23-24.

[2] Contrato de Seguro, Coimbra Editora, Coimbra, páginas 30-31.

[3] Neste sentido, Ac. STJ de 10/07/2008, Relator João Camilo, 08B1846.

[4] Direito das Obrigações, 5ª edição, página 406.