Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
199/17.7T8TCS.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: PRINCÍPIO DE ADESÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PROCESSO PENAL
PEDIDO GENÉRICO
PRESSUPOSTOS
COMPETÊNCIA MATERIAL
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
DANO
LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DOS DANOS
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Leal Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal anotado, 1.º Volume, p. 378 e ss.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4 E 639.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 30-04-2013, PROCESSO N.º 1718/02;
- DE 13-03-2014, PROCESSO N.º 512/07.5TAVFR.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.

Sumário :
I. O nosso ordenamento jurídico, concretamente o direito adjectivo penal, consagra a regra geral de adesão obrigatória, ou, usando outra terminologia, apelidada de enxerto, da demanda cível de indemnização, baseada na prática de factos que constituam crime, à acção penal respectiva.

II. A adesão obrigatória tem vantagens, permitindo a apreciação, num só Tribunal dos mesmos factos, na sua essencialidade, importando uma análise global do acontecimento, quer na perspectiva penal, quer na perspectiva civil, afastando-se a possibilidade de contradição de julgados entre as duas Jurisdições, importando, pois, que o pedido de indemnização civil, tenha de ser deduzido no processo penal, tendo como factos jurídicos donde emergem a pretensão do lesado, os mesmos factos que são pressuposto da responsabilidade criminal do arguido

III. O direito adjectivo civil permite a dedução de pedidos genéricos quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, sendo o pedido, nestes casos, concretizado através de liquidação em execução de sentença

IV. Reconhecendo-se que o lesado, ao tempo da acusação, conhecia os danos sofridos, em toda a sua dimensão, conquanto não soubesse o seu valor exacto, tal situação não é subsumível à excepção do princípio de adesão, importando, isso, sim, o respectivo exercício, de modo obrigatório, submetendo o direito ao ressarcimento por factos qualificados como ilícito criminal, ao regime processual penal.

V. Não se pode confundir a eventual persistência dos danos ao longo do tempo e o seu agravamento com o desconhecimento dos danos ou da sua extensão, estas sim, razões que sustentam a excepção à regra da adesão obrigatória.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO


O Estado Português, representado pelo Digno Agente do Ministério Público, em nome da Guarda Nacional Republicana, veio propor acção declarativa, com processo comum, contra AA, pedindo a condenação deste, na parte liquidada, no pagamento de €19.508,40 (dezanove mil quinhentos e oito euros e quarenta cêntimos), bem como juros vencidos à taxa legal, no valor de €765,37 (setecentos e sessenta e cinco euros e trinta e sete cêntimos), e juros vincendos até ao efectivo e integral pagamento.

Articulou, com utilidade, que na sequência da conduta do Réu/AA, praticada em 11 de Outubro de 2016, cujos factos consignou, teve os seguintes prejuízos:

“1. A título de privação do uso de veículo, inerentes ao veículo automóvel da marca Skoda, modelo Octavia, com a matrícula GNR L-…, propriedade da Guarda Nacional Republicana, atribuído ao Posto Territorial de …, com o valor global de €11.487,74, veículo que se encontra apreendido à ordem do processo n.º 232/16.0JAGRD desde 19 de Outubro de 2016 e ainda não restituído ao autor;

2. Os inerentes à arma de fogo da marca Glock, calibre 9mm, com o número de série RPS…, atribuída a BB em 19 de Julho de 2016, juntamente com três carregadores, tudo com o valor global de €313,65, na medida em que o réu se apropriou da mencionada arma de fogo e do respectivo carregador os quais, até à data, não foram encontrados;

3. Os relativos ao pagamento do subsídio n.º 111/2016 do Cofre de Providência/GNR, por morte do militar CC, ao seu pai DD, no montante de €997,60, bem como pagamento do subsídio do funeral do militar CC, ao seu pai DD, no montante de €250,00;

4. Os respeitantes ao pagamento de várias consultas médicas, exames, análises e tratamentos a BB, no valor global de €737,29, bem como custos dos transportes efetuados em ambulância entre 20 de Outubro de 2016 e 18 de Agosto de 2017, no valor global de €2.930,74;

5. O relativo ao vencimento mensal de BB, tendo recebido entre os meses de Outubro de 2016 e Setembro de 2017 (inclusive) a quantia global de € 14.279,12.”

Regularmente citado, contestou o Réu/AA, alegando a incompetência do Tribunal, em razão da matéria, por violação do princípio da adesão, uma vez que todos os danos foram conhecidos do Autor, no próprio dia em que ocorreram, faltando apenas ter conhecimento da quantificação exacta de alguns.

A propósito dos valores pagos pela Guarda Nacional Republicana a BB, na sequência da qualificação do acidente como de serviço, do que por aquele foi despendido em consultas médicas, exames, análises, tratamentos, medicamentos e transportes de ambulância, entre Outubro de 2016 e Agosto de 2017, o Autor sabia que o militar tinha sido atingido por um tiro de uma arma de fogo, conhecendo o seu estado de saúde e as necessidades de tratamento e transporte que se impunha, sendo irrelevante a quantificação exacta desses danos, já que a lei permite a formulação de pedidos genéricos e a condenação no que se liquidar depois da sentença.


O Autor/Estado Português, representado pelo Digno Agente do Ministério Público, em nome da Guarda Nacional Republicana, apresentou resposta, alegando que a total extensão e valor dos prejuízos sofridos pela GNR não eram conhecidos na data da acusação, nem grande parte o é agora, a par de que os danos a título de privação do uso não foram nem se encontram calculados, outrossim, as despesas com os vencimentos, saúde e transporte do militar BB, em situação de incapacidade absoluta temporária, sem data de alta clínica previsível eram, são e continuaram a ser, até essa data, suportadas pela Guarda Nacional Republicana.


No saneador foi proferida decisão a julgar verificada a excepção dilatória da incompetência do Tribunal, em razão da matéria, e, em consequência, absolveu o Réu/AA, da instância.


Inconformado, com a decisão proferida, dela recorreu o Autor/Estado Português, representado pelo Digno Agente do Ministério Público, em nome da Guarda Nacional Republicana de apelação, para o Tribunal da Relação de …, tendo-se aí, por acórdão de 22 de Maio de 2018, julgando o recurso procedente, revogado a decisão recorrida e determinado o prosseguimento dos autos.


É contra esta decisão que o Réu/AA, se insurge, interpondo revista, formulando as seguintes conclusões:

“1.ª Vem o presente recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de … que revogou o saneador-sentença proferido em primeira instância, determinando o prosseguimento dos autos.

2.ª O recurso tem por fundamento a violação do disposto no artigo 72.°, n.° 1, al. d) do CPP e a sua errada aplicação (artigo 674.°, n.° 1, do CPC).

3.ª O acórdão recorrido, ao revogar a decisão proferida em primeira instância, que havia julgado verificada a excepção dilatória de incompetência do tribunal, em razão da matéria, por preterição do princípio da adesão obrigatória do pedido cível à acção penal, em consequência do que tinha absolvido o Réu da instância, fez uma errada interpretação do disposto no artigo 72.°, n.° 1, al. d), do Código de Processo Penal, violando o princípio da adesão nele consagrado.

4.ª Devendo tal acórdão ser revogado e mantida a decisão da primeira instância, que decidiu da forma que se impunha, em obediência à lei e sem considerar, evidentemente, a identidade do Réu na acção, ora Recorrente, porque tal não é, não pode ser, elemento do processo de interpretação da lei.

5.ª Do acervo factual a ter em conta para a decisão resulta que, pelos mesmos factos que estão na origem dos danos alegadamente sofridos pelo Estado Português, cujo ressarcimento é peticionado nesta acção, estava o Réu a ser julgado, no processo-crime n.° 232/16.0JAGDR, aquando da propositura da acção (julgamento esse que, entretanto, já terminou, como é do conhecimento público).

6.ª Vigora no nosso sistema jurídico o princípio da adesão, consagrado no artigo 71.° do CPP, nos seguintes termos: “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.

7.ª Têm sido apontadas como razões para o estabelecimento do sistema da adesão, a economia processual, a maior eficácia na protecção das vítimas de crimes, a maior celeridade e simplicidade da decisão e, muito principalmente, a uniformização de julgados (ou melhor, a prevenção da contradição de julgados, no crime e no cível).

8.ª O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime só pode ser deduzido fora do processo penal respectivo nos casos taxativamente previstos no artigo 72.° do CPP, invocando o Autor a aplicabilidade, ao caso, do disposto na parte final da al. d) do n.° 1, que estatui: “1-O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando: (...) d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão”.

9.ª Sem prescindir quanto à verificação dos factos alegados pelo Autor, não se verifica a invocada excepção ao princípio da adesão, pois os danos já eram conhecidos, em toda a sua extensão, apenas não o sendo a sua quantificação, quando a acusação foi deduzida.

10.ª O momento relevante para a verificação dos danos e o conhecimento da sua verificação e extensão é aquele em que, por lei, o pedido cível tem que ser deduzido no processo penal, regendo, a este respeito, o artigo 77.° do CPP, que estatui que, quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido deve ser deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada.

11.ª Partindo do princípio que o Estado Português seria representado, como efectivamente veio a ser, pelo Ministério Público, forçoso era que o pedido tivesse sido deduzido na acusação ou em requerimento ad hoc, a ser apresentado dentro do prazo em que a acusação devesse ser formulada.

12.ª A acusação foi proferida a 29.03.2017, data do termo de conclusão que precede o despacho de encerramento do inquérito.

13.ª Considere-se como relevante a data em que a acusação foi proferida ou aquela até quando o podia ter sido - no entendimento do Autor, até 10.05.2017, no entendimento do Réu, até 11.06.2017 - o certo é que o conhecimento dos - danos e da sua extensão em nada variou, entre essas datas.

14.ª Todos os danos invocados nesta acção foram conhecidos pelo Autor no próprio dia em que ocorreram: a apropriação por outrem do veículo da GNR e a privação do seu uso; a apropriação por outrem da arma de fogo e seus carregadores, e a privação da sua posse pelo Autor; o falecimento do Militar CC e as lesões sofridas pelo Militar BB, que logo se soube ter sido atingido por uma arma de fogo.

15.ª Sabia também o Estado Português, logo nesse dia 11.10.2016, que os seus Militares encontravam-se ao serviço, quando os factos ocorreram, pelo que, independentemente da burocracia que tal implica, não podia o Autor deixar de saber que teria que suportar os subsídios por morte e de funeral da infeliz vítima mortal, e as despesas relacionadas com tratamentos e transportes do Militar que sobreviveu, bem como os vencimentos deste, independentemente do período em que viesse a estar de baixa, isto nos termos da lei que o próprio Estado aprovou e que o vincula enquanto entidade empregadora.

16.ª Portanto, o que apenas faltava saber, naquele dia, e ainda hoje, era a quantificação exacta de apenas alguns daqueles danos.

17.ª Assim, os danos decorrentes da privação do uso do veículo de matrícula GNR L-…, já eram conhecidos desde a altura em que: o mesmo foi apreendido à ordem do processo-crime, só faltando saber qual a sua quantificação exacta, o que dependeria da apreensão viesse a ser levantada, e a situação de facto manteve-se a momento em que o pedido cível podia ter sido deduzido no processo-crime e o momento em que a presente acção foi proposta, a 04.10.2017.


18.ª Uma vez; que a quantificação desses danos não era passível de ser feita integralmente em nenhum desses momentos relevantes, é claro que o Estado Português podia ter requerido, no processo-crime, que a sua fixação fosse relegada para execução de sentença, nos termos do artigo 82.° do CPP, que expressamente admite tal possibilidade.  

19.ª Como quer que seja, estes danos decorrentes; da privação do uso do veículo, apesar de referidos na p. i., não fazem parte do pedido, o que sempre impediria a sua apreciação pelo tribunal.

20.ª Quanto aos danos causados no veículo que, na descrição dos factos contante da petição inicial, decorrerão mormente da destruição da pega de apoio superior do banco dianteiro direito, eles foram conhecidos também de imediato, ou pelo menos desde que o veículo foi apreendido, muito antes de ter sido proferida â acusação, pelo que, também quanto a estes danos, a situação em nada se alterou, desde o momento que o pedido cível podia ter sido deduzido no processo-crime e a data em que a acção foi instaurada, o que aliás levou a que o Autor, ora Recorrido, tivesse que formular um pedido genérico, de condenação do Réu, ora Recorrente, no valor que viesse a apurar-se em incidente de liquidação.

21.ª No que respeita ao valor da arma de fogo e seus carregadores, o Autor, agora Recorrido, era conhecedor do seu desaparecimento e do seu valor desde momento muito anterior àquele em que o pedido cível deveria ter sido deduzido.

22.ª Quanto à despesa com o pagamento do subsídio por morte, ela foi feita a 10.02.2017, portanto em data anterior à da acusação.

23.ª Relativamente ao valor do subsídio do funeral do Militar CC, é irrelevante que tenha sido pago pelos Serviços Sociais da GNR apenas a 04.04.2017; muito antes disso já o Autor sabia do falecimento do seu Militar e de que este se encontrava ao seu serviço aquando dos acontecimentos relatados. Como já sabia qual o valor que viria a ter que suportar, a esse título.

24.ª A propósito dos valores pagos pela GNR ao Militar BB, na sequência da qualificação do acidente como de serviço, do que foi despendido em consultas, exames, análises, tratamentos, medicamentos e transportes ambulância, entre Outubro/2016 e Agosto/2017, há que frisar que o Autor, sabia que o seu Militar tinha sido atingido por um tiro de uma arma de fogo, conhecendo o seu estado de saúde e as necessidades de tratamento e transporte que esse seu estado impunha, sendo irrelevante que a quantificação exacta desses danos não estivesse efectuada, no momento em que o pedido cível podia ter sido deduzido, no processo-crime, pois também o não está no presente, e é para isso que a lei permite a formulação de pedidos genéricos e a condenação no que se liquidar depois da sentença.

25.ª Da mesma forma em que, nesta acção, o Estado pede a condenação no que se liquidar em incidente posterior, nos termos do n.° 2, do artigo 358.° do CPC, podia e devia tê-lo feito, no processo-crime, atendendo ao disposto no artigo 82.° do CPP.

26.ª Sabendo-se ainda que à acção cível enxertada no processo penal aplicam-se, na medida em que tal for possível, as regras próprias do processo civil (e, designadamente, do direito civil, concretamente o disposto no artigo 569.° do Código Civil, que permite ao lesado não indicar a importância exacta em que avalia os danos).

27.ª O mesmo se diga, finalmente, quanto aos danos decorrentes dos vencimentos pagos ao Militar BB, a título de vencimentos, entre Outubro de 2016 e Setembro de 2017, pois o Estado sempre soube, desde o dia em que os factos ocorreram, que o seu Militar, que tinha sido alvejado, teria que ficar de baixa e que, nesse período, evidentemente que teria que continuar a pagar os seus vencimentos, pelo que a situação do Estado quanto ao conhecimento dos danos é absolutamente igual, no momento em que o pedido cível podia ter sido deduzido no processo-crime, e o momento em que a presente acção foi proposta, continuando sem se saber em que data o mesmo poderá regressar ao serviço.

28.ª Da mesma forma em que, nesta acção, o Estado pede a condenação no que se liquidar em incidente de liquidação, podia e devia tê-lo feito, no processo-crime.

29.ª A persistência dos danos ao longo do tempo e o seu agravamento não significam o mesmo que o desconhecimento dos danos ou da sua extensão, que servem para excepcionar a regra da adesão obrigatória, nos termos da al. d) do n.° 1 do artigo 72.° do CPP - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de …, de 21.02.2013, acima citado.

30.ª Note-se bem que os pais do infeliz do Militar falecido e o infeliz Militar alvejado deduziram oportunamente, o seu pedido cível, no processo-crime, tal como outros lesados; se o Estado Português não o fez também, sibi imputet.

31.ª Nos termos do Doc. 2 da petição inicial, ofício datado de 22.03.2017, dirigido ao Senhor Procurador-Adjunto dos serviços do Ministério Público da Procuradoria da Guarda, o Senhor Tenente-General, 2.° Comandante Geral do Comando-Geral, Direcção de Justiça e Disciplina da Guarda Nacional Republicana, veio solicitar “que, atentos os factos descritos no Processo n.° 232/16.0JAGRD, em representação do Estado Português, deduza pedido de indemnização civil contra o cidadão AA, pelos danos perpetrados em 11 de outubro de 2016 à Guarda Nacional Republicana» (negrito nosso), mais informando os valores dos danos apurados, concretamente o valor do veículo automóvel; o valor das armas, carregadores, coldres, cinturões, porta-bastões e par de algemas; as despesas de saúde do Guarda Principal BB e o subsídio pago aos familiares do Guarda CC, alertando ainda para a sua pretensão de ressarcimento dos danos que continuar a suportar em despesas de saúde, de transporte e com vencimentos deste último.

32.ª Donde se conclui que a Guarda Nacional Republicana conhecia a extensão dos danos por si sofridos, tendo inclusivamente procedido à indicação dos montantes de cada um deles, na comunicação que, oportunamente, antes da dedução da acusação, dirigiu ao Ministério Público, solicitando a dedução do pedido cível, no processo-crime.

33.ª Bem andou, assim, o tribunal de primeira instância ao afirmar que “é importante destrinçar o desconhecimento e extensão dos danos da persistência e/ou atenuação ou agravamento dos mesmos, sob pena de transformar o aludido princípio da adesão obrigatória do pedido cível à acção penal em mera opção de foro, em face do desconhecimento da quantificação dos danos, o que iria conduzir, necessariamente, ao esvaziamento do preceituado no artigo 82. ° do CPP. Assim, perante os factos alegados, mesmo que viessem a ser considerados todos como provados (...), constatamos que os pedidos vertidos na petição inicial não dizem respeito à extensão dos danos desconhecida no momento da prolação do despacho de encerramento do inquérito, na medida em que não consubstanciam mais danos provenientes de factos constantes da acusação pública e sim prolongamento e/ou persistência dos mesmos danos, cuja previsibilidade era possível quando foi deduzida a acusação pública, não sendo possível a sua quantificação, tal como não o é no presente» (negrito nosso).

34.ª O Estado Português não está, manifestamente, desobrigado de cumprir as leis que ele próprio aprova; pelo contrário, a Administração Pública está sujeito ao princípio da legalidade, consagrado no artigo 266.°, n.° 2, da CRP.

35.ª Como assim, o Estado estava obrigado a deduzir o seu pedido de indemnização no processo-crime, não podendo fazê-lo em separado.

36.ª Entendeu o tribunal a quo que a interpretação do artigo 72.°, n.° 1, al. d), feita pela primeira instância, de forma restritiva, não é adequada, invocando diversos argumentos que, salvo o devido respeito, não convencem.

37.ª Em primeiro lugar, argumenta-se no acórdão recorrido que “A ideia subjacente à norma parece ser a de não atrasar a decisão no âmbito do processo penal com as complicações que o apuramento civil possa acarretar.

O processo penal não pode ficar dependente de um conhecimento tardio dos danos ou de uma prova que venha a determinar toda a sua extensão”.

38.ª Não é porém essa a ideia subjacente nem o objectivo da lei, o que resulta manifesto da redacção dada ao artigo, que estabelece excepções ao princípio da adesão obrigatória, começando por afirmar que «o pedido de indemnização pode ser deduzido em separado, perante o tribunal cível, quando (...)», e quando a lei diz que o pedido cível pode ser, tal significa que também pode não ser deduzido em separado, pelo que o que está em causa não é proteger a celeridade do processo-crime contra eventuais atrasos no apuramento da matéria cível.

39.ª O inquérito no processo-crime nunca se atrasará por causa da investigação de factos apenas com relevância para o pedido cível, pela simples razão de que o inquérito não tem esse objecto, mas antes, e exclusivamente, a matéria criminal, como claramente resulta do disposto no artigo do artigo 262.°, n.° 1 do CPP.

40.ª O interesse de protecção da celeridade do processo-crime é alcançado por outra via, através da previsão do n.° 3 do artigo 82.° do CPP, que permite ao tribunal remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização sejam susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.

41.ª O artigo 72.°, n.° 1, do CPP, ao excepcionar o princípio da adesão, protege outros interesses que não o da celeridade no processo-crime, interesses que variam consoante a previsão de cada uma das suas alíneas sendo que, no caso da al. d), o que está em causa é proteger a integridade do pedido de indemnização quando, à data em que devesse ser deduzido no processo-crime, os danos não forem conhecidos, ou não o forem em toda a sua extensão.

42.ª Em segundo lugar, invoca o acórdão recorrido que a melhor jurisprudência é a vertida no acórdão do STJ de 16.12.1992, e que não deve ser deduzido pedido genérico no processo penal.

43.ª No entender do Recorrente, ao contrário do que se afirma nesse acórdão do STJ, a falta de previsão expressa, no CPP, da possibilidade de dedução de pedido cível genérico, não deve considerar-se impeditiva da sua admissibilidade, nem tem sido esse, tanto quanto se julga saber, o entendimento dos nossos tribunais, nos inúmeros casos em que são formulados pedidos cíveis total ou parcialmente genéricos, em processo-crime.

44.ª A possibilidade de dedução de pedido genérico não deriva apenas da previsão contida no CPC (actualmente, no artigo 556.°, n.° 1, al. b)), mas principalmente, em termos substantivos, do que dispõe o artigo 569.° do Código Civil que - como acima se referiu - permite ao lesado não indicar a importância exacta em que avalia os danos.

45.ª Ao contrário do que se refere nesse acórdão do STJ, não está apenas em causa saber se a norma do código de processo civil que se refere ao pedido genérico é de aplicação subsidiária ao processo penal - entendendo o STJ, naquele aresto, que não é - mas antes se a norma substantiva que lhe dá fundamento pode ser afastada e, a este propósito, cremos que a resposta só pode ser uma: o CPP não afasta, nem podia afastar, a aplicabilidade ao pedido cível deduzido em processo-crime da norma substantiva contida naquele artigo 569.° do Código Civil, uma vez que o Código Civil não constitui legislação subsidiária do processo penal.

46.ª Ademais, a norma que permite que o tribunal condene no que se liquidar em execução de sentença (artigo 82.° do CPP) - entenda-se, actualisticamente, a liquidar em incidente posterior à sentença, nos termos do actual artigo 358.° do CPC -, relaciona-se intimamente e articula-se de forma óbvia com a possibilidade de formulação de um pedido genérico (que será precisamente um pedido de condenação no que se liquidar em incidente posterior).

47.ª Assim, se os pedidos genéricos não têm necessariamente que dar origem a condenações genéricas, e se pode haver condenações genéricas que tenham na base pedidos líquidos, é evidente que a sobreposição das duas figuras será a situação mais frequente.

48.ª Donde, com o devido respeito, a tese que deve defender-se, por ser a correcta, é a da admissibilidade da dedução, em processo-crime, de pedido cível genérico.

49.ª Prossegue o acórdão recorrido a sua argumentação afirmando que, no caso, há danos que persistem no tempo, podendo até modificar-se, salientando nesse sentido a incapacidade temporária absoluta de um dos lesados, o que não se contesta.

50.ª Porém, e em primeiro lugar, tal só se verifica quanto a um dos dois militares da GNR - pelo que o argumento não poderia estender-se ao caso do outro, infelizmente falecido.

51.ª Em segundo lugar, o que é relevante é que absolutamente nada se alterou, entre o momento em que o pedido cível podia ter sido deduzido e aquele em que a acção foi intentada, e até ao presente (tanto quanto se sabe), bem podendo ocorrer que a incapacidade temporária se prolongue por muito mais tempo, sem que tal tenha impedido o Ministério Público de propor a acção cível, como não o devia ter impedido de deduzir pedido cível, sem que tal implicasse qualquer atraso do processo-crime, ao contrário do que afirma o tribunal a quo.

52.ª O terceiro argumento usado pelo acórdão recorrido - o de que o acórdão citado da Relação de … respeita a uma situação diferente, pois a persistência da angústia tem feição subjectiva e o dano não se altera - também não tem fundamento, pois a angústia também tem graus que podem variar no tempo, e até pode cessar, com o decurso deste, estando por demonstrar que os danos psicológicos sejam mais definitivos do que os físicos.

53.ª Pelo que a decisão correcta passaria pela afirmação da violação do princípio da adesão obrigatória, com os fundamentos invocados no douto saneador-sentença da primeira instância, salvo melhor opinião.

54.ª Intentando-se acção cível em separado, em violação do princípio da adesão, de acordo com a melhor doutrina e jurisprudência, verifica-se a excepção dilatória de incompetência material do tribunal, que determina que a absolvição do Réu da instância, nos termos dos artigos 97.°, al. a), 99.°, n.° 1, 576.°, n.° 2, 577.°, al. a) e 578.°, todos do CPC.

55.ª Decidindo em sentido oposto, revogando o despacho-saneador e determinando o prosseguimento dos autos, o acórdão recorrido deve ser revogado, julgando-se o presente recurso procedente.

TERMOS EM QUE, pelos fundamentos expostos, deve ser julgado procedente o recurso, revogando-se o acórdão recorrido e mantendo-se na íntegra o douto despacho-saneador proferido em primeira instância.”


Houve contra-alegações apresentadas pelos Recorrido/Autor/Estado Português, representado pelo Digno Agente do Ministério Público, em nome da Guarda Nacional Republicana, sustentadas nas conclusões que consignamos de seguida:

“4.1. Da conjugação do disposto nos art°s. 71°, 72°, n° 1 e 82°, n° 3, todos do CPP, decorre que a regra é a de que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é sempre deduzido no âmbito do respectivo processo em que existe acusação da prática do crime, crime esse que, por se revelar como facto danoso para o sujeito passivo do crime, constitui causa de pedir do próprio pedido.

4.2.   Todavia, pelo facto de se verificar uma qualquer das situações a que aludem as alíneas do n° 1 do art° 72°, do CPP, o pedido cível pode ser deduzido em separado, ou seja, num foro e no âmbito de um outro processo que não aquele onde decorre a investigação ou foi deduzida acusação pela prática de um crime.

4.3.  Estando em causa, entre outros danos, uma incapacidade temporária, com lesões não consolidadas, que evoluirão para a incapacidade permanente absoluta ou parcial, justifica-se, nos termos do art.° 72°, n° 1, al. d), do CPP, a dedução do pedido civil em separado, perante o tribunal civil.

4.4.  Assim sendo, brevitatis causa, serão de improceder todas as conclusões do recurso, mantendo-se o acórdão recorrido, com o que se fará a habitual Justiça!”


Foram colhidos os vistos. Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pelo Recorrente/Réu/AA, consiste em saber se:

(1) O Tribunal a quo, ao revogar a decisão proferida em 1ª Instância, que havia julgado verificada a excepção dilatória de incompetência do tribunal, em razão da matéria, por preterição do princípio da adesão obrigatória do pedido cível à acção penal, em consequência do qual absolveu o Réu/AA, da instância, fez errónea interpretação e aplicação do direito, impondo-se a sua revogação, por violação do princípio da adesão consagrado no art.º 72.°, n.° 1, al. d), do Código de Processo Penal, devendo, por isso, manter-se a decisão da 1ª Instância?


II. 2. Da Matéria de Facto


Os factos relevantes a considerar no conhecimento do objecto do presente recurso, são os que resultam do relatório antecedente e os seguintes:

“1. O início do inquérito, no âmbito do processo-crime com o n.º 232/16.0JAGRD, ocorreu a 11.10.2016;

2. O pagamento do subsídio por morte do militar CC foi feito em 10.02.2017;

3. Por ofício datado de 22.03.2017, o Senhor Tenente-General, 2.º Comandante Geral do Comando-Geral, Direcção de Justiça e Disciplina da Guarda Nacional Republicana, solicitou ao autor “que, atentos os factos descritos no Processo n.º 232/16.0JAGRD, em representação do Estado Português, deduza pedido de indemnização civil contra o cidadão AA, pelos danos perpetrados em 11 de outubro de 2016 à Guarda Nacional Republicana”;

4. Nesse mesmo ofício ainda é referido que: “ até ao momento foram apurados danos no montante total de €14.192,97 (catorze mil cento e noventa e dois euros e noventa e sete cêntimos), nomeadamente: a. €6.716,00 (…) referente ao valor venal da viatura militar de matrícula GNR L-…; b. €817,95 (…) relativo à caracterização da viatura militar; c. €3.953,79 (…) ponte electrónica da viatura GNR L-…; d. €627,30 (…) referente às Pistolas Glock 19 Calibre 9 mm (…) e carregadores; e. €66,40 (…) dois coldres; f. €10,20 (…) dois cinturões; g. €9,08 (…) dois porta bastões; h. €7,83 (…) par de algemas; i. €986,82 (…) relativo a despesas de saúde (…); j. €997,60 (…) subsídio n.º111/2016 (…) pago aos herdeiros legais do Guarda (…) CC.”

5. Desse ofício ainda consta que: “Considerando que o Guarda-Principal BB, desde a data dos factos, se encontra na situação de incapacidade temporária absoluta, não sendo possível prever quando será considerado clinicamente curado das lesões sofridas, a Guarda Nacional Republicana (…) continuará a suportar as despesas de saúde, despesas de transporte e a liquidar-lhe os vencimentos, pretendendo ser ressarcida dos mesmos.” – cfr., fls. 456;

6. A prolação do despacho de encerramento do inquérito, no âmbito do processo com o n.º 232/16.0JAGRD, foi proferida a 29.03.2017 – cfr., fls. 402;

7. Foi deduzida acusação contra o Réu;

8. O Réu foi condenado em primeira instância;

9. O pagamento do subsídio do funeral do Militar CC foi feito em 04.04.2017;

10. O prazo da prisão preventiva a que o réu se encontrava sujeito, no âmbito do processo com o n.º 232/16.0JAGRD, iria atingir o seu termo, previsivelmente, a 10.05.2017;

11. A petição inicial deu entrada a 04.10.2017 – cfr., fls.2.”


II. 3. Do Direito


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjectivo civil - artºs. 635º, n.º 4, e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código Processo Civil.


II. 3.1. O Tribunal a quo, ao revogar a decisão proferida em 1ª Instância, que havia julgado verificada a excepção dilatória de incompetência do tribunal, em razão da matéria, por preterição do princípio da adesão obrigatória do pedido cível à acção penal, em consequência do qual absolveu o Réu/AA, da instância, fez errónea interpretação e aplicação do direito, impondo-se a sua revogação, por violação do princípio da adesão consagrado no art.º 72.°, n.° 1, al. d), do Código de Processo Penal, devendo, por isso, manter-se a decisão da 1ª Instância? (1)

O nosso ordenamento jurídico, consagra a regra geral de adesão obrigatória, ou, usando outra terminologia, apelidada de enxerto, da demanda cível de indemnização, baseada na prática de factos que constituam crime, à acção penal respectiva.

Assim, estabelece o art.º 71º do Código Processo Penal - Princípio de adesão - “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o Tribunal Civil, nos casos previstos na Lei”, donde, o lesado está obrigado a deduzir a sua pretensão na acção penal, sob pena de ver precludida a arrogada indemnização, ou seja, o direito adjectivo penal estabelece o princípio regra da adesão obrigatória do exercício do direito ao ressarcimento por factos qualificados como ilícito criminal, ao regime processual penal.

A aludida adesão obrigatória tem, necessariamente, vantagens, importando economia processual, dado que num mesmo e único processo se resolvem todas as questões atinentes ao facto criminoso, sem necessidade de fazer correr mecanismos diferentes e em sede autónomas, outrossim, por razões de economia de meios, uma vez que os interessados não necessitam de despender e dispersar custos, a par das razões de prestígio institucional, porquanto se evitam contradições de julgados, neste sentido, Leal Henriques e Simas Santos, apud, Código de Processo Penal anotado, 1º volume, páginas 378 e seguintes, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2013 (Processo n.º 1718/02 da 3º Secção), in, www.dgsi.pt.

Aprecia-se, pois, num só Tribunal os mesmos factos, na sua essencialidade, importando uma análise global do acontecimento, quer na perspectiva penal, quer na perspectiva civil, afastando-se a possibilidade de contradição de julgados entre as duas Jurisdições, importando, pois, que o pedido de indemnização civil, tenha de ser deduzido no processo penal, tendo como factos jurídicos donde emerge a pretensão do lesado, os mesmos factos que são pressuposto da responsabilidade criminal do arguido, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março de 2014 (Processo n.º 512/07.5TAVFR.P1.S1), in, www.dgsi/stj.pt, onde se consignou “pedido será “fundado” [na prática de um crime] se, além do mais, respeitar a exigência do art.º 71º do CPP, isto é, se tiver como causa de pedir os factos imputados ao arguido como sendo integradores de um ou mais crimes que fazem parte do objecto do processo penal em que é deduzido, e se esses factos se provam, pelo menos numa vertente que sustente a condenação em indemnização civil”.

Por seu turno, o art.º 72º, nº 1, al. d) do Código de Processo Penal, que ao caso interessa, estatui uma excepção, consagrando que o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando: “d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão.”

Revertendo ao caso sub iudice, e atendendo ao quadro normativo enunciado, a resolução da questão colocada a este Tribunal ad quem, passa pela interpretação conjunta das aludidas normas adjectivas que dispõem sobre esta matéria, concretamente, a consignada excepção ao princípio de adesão, contemplada na alínea d) do nº. 1, do art.º 72º do Código de Processo Penal, face aos factos alegados, tidos por relevantes, decorrentes dos articulados apresentados pelo demandante.

Resulta dos autos que o Autor/Estado Português, representado pelo Ministério Público, em nome da Guarda Nacional Republicana, veio propor acção contra, AA, pedindo a condenação deste, na parte liquidada, no pagamento de €19.508,40, bem como, juros vencidos à taxa legal, no valor de €765,37, e juros vincendos até ao efectivo e integral pagamento, concretizando, na sequência da conduta do Réu/AA, os seguintes danos:

“1. A título de privação do uso de veículo, inerentes ao automóvel da marca Skoda, modelo Octavia, com a matrícula GNR L-…, propriedade da Guarda Nacional Republicana, atribuído ao Posto Territorial de …, com o valor global de €11.487,74, veículo que se encontra apreendido à ordem do processo n.º 232/16.0JAGRD desde 19 de Outubro de 2016 e ainda não restituído ao autor;

2. Os inerentes à arma de fogo da marca Glock, calibre 9mm, com o número de série RPS…, atribuída a BB em 19 de Julho de 2016, juntamente com três carregadores, tudo com o valor global de €313,65, na medida em que o réu se apropriou da mencionada arma de fogo e do respectivo carregador os quais, até à data, não foram encontrados;

3. Os relativos ao pagamento do subsídio n.º 111/2016 do Cofre de Providência/GNR, por morte do militar CC, ao seu pai DD, no montante de €997,60, bem como pagamento do subsídio do funeral do militar CC, ao seu pai DD, no montante de €250,00;

4. Os respeitantes ao pagamento de várias consultas médicas, exames, análises e tratamentos a BB, no valor global de €737,29, bem como custos dos transportes efetuados em ambulância entre 20 de Outubro de 2016 e 18 de Agosto de 2017, no valor global de €2.930,74;

5. O relativo ao vencimento mensal de BB, tendo recebido entre os meses de Outubro de 2016 e Setembro de 2017 (inclusive) a quantia global de €14.279,12.”

É certo que os danos a título de privação do uso do veículo, não foram nem se encontram integralmente calculados, outrossim, as despesas com os vencimentos, saúde e transporte do militar BB, em situação de incapacidade absoluta temporária, sem data de alta clínica previsível eram, são e continuam a ser, até esta data, suportadas pela Guarda Nacional Republicana.

Acontece, porém que o ressarcimento dos danos, impetrado pelo Autor/Estado Português, são conhecidos deste, conforme o próprio alega nos respectivos articulados, conquanto não esteja apurado, o valor exacto dos conhecidos danos, atinentes à privação do uso do veículo, liquidado, em parte, outrossim, as despesas com os vencimentos, saúde e transporte do militar BB, em situação de incapacidade absoluta temporária, sem data de alta clínica previsível, que foram e continuam a ser, até à data, suportadas pela GNR, valor já liquidados em parte.

Como sabemos, o direito adjectivo civil - art.º 556º do Código de Processo Civil - permite a dedução de pedidos genéricos, nomeadamente, “1 — É permitido formular pedidos genéricos nos casos seguintes: b) Quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito (…)” “2 - Nos casos das alíneas a) e b) do número anterior, o pedido é concretizado através de liquidação, nos termos do disposto no artigo 358.º (…).”

Ora, como resulta adquirido processualmente, no que respeita ao dano condizente aos valores pagos pela Guarda Nacional Republicana ao BB, na sequência da qualificação do acidente como de serviço, do que foi despendido em consultas médicas, exames, análises, tratamentos, medicamentos e transportes de ambulância, entre Outubro de 2016 e Agosto de 2017, o Autor sabia que o militar tinha sido atingido por um tiro de uma arma de fogo, conhecendo o seu estado de saúde e as necessidades de tratamento e transporte que esse seu estado impunha, podendo, como decorre no normativo adjectivo civil, formular o respectivo pedido genérico, sem deixar de liquidar o valor já conhecido, e pedir a liquidação em execução de sentença, do valor exacto, ainda desconhecido, de igual modo, o dano relativo à privação do uso do veiculo, onde à semelhança do que se passa com as despesas com os vencimentos, saúde e transporte do militar BB, em situação de incapacidade absoluta temporária, sem data de alta clínica previsível, também aqui poderia liquidar o valor reconhecido, como, aliás formulou, e relegar para execução de sentença o valor exacto deste mesmo dano, ainda não conhecido.    

Daqui decorre, cremos que de modo linear, o reconhecimento de que o Autor/Estado Português, ao tempo da acusação, conhecia os danos sofridos, em toda a sua dimensão, conquanto não soubesse o seu valor exacto, pelo que, não é subsumível à excepção do princípio de adesão, que importa o exercício obrigatório, submetendo o direito ao ressarcimento por factos qualificados como ilícito criminal, ao regime processual penal aplicável.

Na verdade, os factos alegados que sustentam os danos sofridos pelo Autor/Estado Português (a apropriação por outrem do veículo da GNR, danos causado no veículo, e a privação do seu uso; a apropriação por outrem da arma de fogo e seus carregadores, e a privação da sua posse pelo Autor; o falecimento do Militar CC, que importou pagamento do subsídio por morte, em razão de estar ao serviço da GNR, aquando dos acontecimentos relatados na acusação, e as lesões sofridas pelo Militar BB, que logo se soube ter sido atingido por uma arma de fogo, que demandavam, necessariamente, despesas relacionadas com tratamentos e transportes do Militar que sobreviveu, bem como os vencimentos deste, independentemente do período em que viesse a estar de baixa, que incumbia ao Estado, enquanto entidade empregadora), já eram conhecidos deste, aquando da dedução da acusação (art.º 77 do Código de Processo Penal), concedendo-se a respectiva data, o dia 10 de Maio de 2017, apenas não se sabendo a sua exacta quantificação, sendo certo que não podemos confundir a eventual persistência dos danos ao longo do tempo e o seu agravamento com o desconhecimento dos danos ou da sua extensão, estas sim, razões que sustentam a excepção à regra da adesão obrigatória.

Sublinhamos que todas as enunciadas circunstâncias atinentes ao conhecimento dos danos resultam, sem reservas do ofício datado de 22 de Março de 2017, dirigido ao Senhor Procurador-Adjunto dos serviços do Ministério Público da Procuradoria da Guarda, pelo Senhor Tenente-General, 2.° Comandante Geral do Comando-Geral, Direcção de Justiça e Disciplina da Guarda Nacional Republicana, conforme adquirido processualmente, importando, assim, concluir, que a Guarda Nacional Republicana conhecia os danos sofridos, tendo liquidado alguns, podendo impetrar a liquidação, em execução de sentença, daqueles, cujo valor exacto, era desconhecido à data da acusação.

Sufragamos, a este propósito as considerações exaradas na sentença proferida em 1ª Instância, “é importante destrinçar o desconhecimento e extensão dos danos da persistência e/ou atenuação ou agravamento dos mesmos, sob pena de transformar o aludido princípio da adesão obrigatória do pedido cível à acção penal em mera opção de foro, em face do desconhecimento da quantificação dos danos, o que iria conduzir, necessariamente, ao esvaziamento do preceituado no artigo 82. ° do CPP. Assim, perante os factos alegados, mesmo que viessem a ser considerados todos como provados (...), constatamos que os pedidos vertidos na petição inicial não dizem respeito à extensão dos danos desconhecida no momento da prolação do despacho de encerramento do inquérito, na medida em que não consubstanciam mais danos provenientes de factos constantes da acusação pública e sim prolongamento e/ou persistência dos mesmos danos, cuja previsibilidade era possível quando foi deduzida a acusação pública, não sendo possível a sua quantificação, tal como não o é no presente”.

Tudo visto, rematamos, que o Autor/Estado Português, representado pelo Digno Agente do Ministério Público, estava obrigado a deduzir o seu pedido de indemnização no processo-crime, não podendo fazê-lo em separado, e não se diga que, ao fazê-lo, tal importaria atraso na decisão, no âmbito do processo penal, porquanto, como estatui o art.º 82º do Código de Processo Penal, acerca da liquidação em execução de sentença e reenvio para os tribunais civis “1 - Se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal”, salvaguardando-se, assim, a celeridade do processo-crime contra eventuais atrasos no apuramento da matéria cível, de igual modo, não vemos qualquer óbice a que no processo enxertado, seja deduzido pedido genérico, como já adiantamos, quando discreteamos sobre os pedidos genéricos, e que aqui nos dispensamos de repetir, importando somente dizer, a este respeito que, como vem sendo defendido por este Supremo Tribunal de Justiça, por todos, o Acórdão de 10 de Julho de 2008, “a interdependência das acções significa que mantêm a independência nos pressupostos e nas finalidades (objecto), sendo a acção penal dependente dos pressupostos que definem um ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção penal, e a acção civil dos pressupostos próprios da responsabilidade civil; a indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil (artigo 129° do Código Penal) nos respectivos pressupostos e só processualmente é regulada pela lei processual penal. A interdependência das acções significa, pois, independência substantiva e dependência (a “adesão”) processual da acção civil ao processo penal”, salientando-se, neste particular, o estatuído no art.º 82º do Código de Processo Penal, ao estabelecer literal e inequivocamente, que “se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal” contemplando, neste caso, o art.º 358° do Código de Processo Civil, que concretiza os termos da liquidação em execução de sentença.

Realçamos que a alegada delonga da invocada incapacidade temporária do Militar da GNR, não impede, de todo, como, aliás, já mencionamos, o enxerto do pedido cível na acção penal, porque, uma vez verificada a alegação do dano, liquidar-se-á o valor exacto do mesmo, em execução de sentença.


Cotejado o acórdão recorrido, e na decorrência do enquadramento jurídico perfilhado, uma vez interiorizada a facticidade relevante para o conhecimento do objecto do recurso de revista, concluímos que o acórdão sob escrutínio, merece censura, e, na sua consequência, reconhecemos à argumentação aduzida pelo Recorrente/Réu/AA, virtualidade bastante no sentido de alterar o acórdão de que se recorre de revista, repristinando o destino da presente demanda, traçado em 1ª Instância, ao reconhecer que, intentada acção cível em separado, nos termos invocados, foi violado o princípio da adesão, reconhecendo-se, assim, a procedência da excepção dilatória de incompetência material do tribunal, determinando a absolvição do Réu/AA da instância, nos termos dos artigos 96°, alínea a), 99º, n.º 1, 576°, n.º 2, 577.°, alínea a) e 578º, todos do Código de Processo Civil.        



IV. DECISÃO


Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar procedente o recurso interposto, e, consequentemente, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, mantendo-se na íntegra o douto despacho-saneador, proferido em 1ª Instância, que absolveu o Réu/AA, da instância.

Sem custas por delas estar isento o Autor/Estado Português representado pelo Digno Agente do Ministério Público.

Notifique.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Novembro de 2018


Oliveira Abreu (Relatora)

Ilídio Sacarrão Martins

Maria dos Prazeres Beleza