Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13427/16.7T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: ASSEMBLEIA GERAL
CONVOCAÇÃO
INQUÉRITO JUDICIAL
SOCIEDADE
Data do Acordão: 05/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES – SOCIEDADES EM NOME COLECTIVO / DELIBERAÇÕES DOS SÓCIOS E GERÊNCIA – SOCIEDADE POR QUOTAS / QUOTAS / CONTITULARIDADE DA QUOTA.
Doutrina:
- Alexandre Soveral Martins, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. III (2ª ed.), p. 59 e ss., 397 e 398 ; Contitularidade de Participações Sociais – Algumas Notas”; Direito das Sociedades em Revista, Ano 3, Vol.5, p. 29;
- Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II (6ª ed.), p. 77 a 79 e 246;
- Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais (6ª ed.), p. 373 e ss.;
- Pedro Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado (2ª ed.), p. 648;
- Raúl Ventura, Sociedades por quotas, Vol. I (2ª ed.), p. 502-503.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 2.º, 189.º E 222.º.
Sumário :
I - Se o contitular de uma parte social pretender a convocação de uma assembleia geral para que aí se delibere sobre prestação de informação, o art.189º manda, expressamente, aplicar as regras do art.222º do CSC. Por identidade de razão (face ao art.2º do CSC), deverá entender-se que essa norma (exigindo um representante comum) também deverá valer quando o contitular de uma parte social pretende agir por via judicial, através do inquérito judicial à sociedade.
Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. AA instaurou ação especial de inquérito judicial a sociedade, ao abrigo do disposto no art.1048º do Código do Processo Civil, contra BB& CA, sociedade em nome coletivo, e CC, invocando a qualidade de sócia da sociedade, e baseando-se na falta de prestação de informações pelo 2º requerido, gerente da 1ª requerida.


2. Os requeridos contestaram, por exceção, invocando a ilegitimidade ativa da requerente, nos termos do art.30º, n.1 do CPC, pela natureza indivisa da quota da qual a requerente é contitular, não tendo esta alegado ter a natureza de representante comum; e, por impugnação, invocando que o pedido é infundado por a sociedade prestar mensalmente informações aos detentores de participações sociais, bem como das decisões tomadas e atos praticados (conforme documentos juntos com a PI). Mais alegam que, além destas informações mensais, foram prestadas informações solicitadas pela requerente em reuniões tidas entre os advogados desta e do 2º requerido, alegando ainda que, pretendendo o 2o requerido agendar com a requerente visita ao escritório, a fim de permitir a consulta de documentos e prestar os esclarecimentos solicitados, esta não acedeu.

3. A autora respondeu às exceções, reafirmando a sua qualidade de sócia e, como tal, interessada no inquérito, como previsto no art.1048º do CPC. Afirmou ainda que o art.222º do CSC não se aplica às sociedades em nome coletivo, por não estar compreendido na remissão do art.189º.

4. Foi proferida sentença que considerou procedente a exceção de ilegitimidade ativa da requerente. Todavia, considerando que esta poderia, em tese, ser suprida mediante convite à intervenção dos demais contitulares da quota, prosseguiu-se com o conhecimento do mérito da causa, vindo a considerar-se o pedido de inquérito judicial improcedente, dele se absolvendo os requeridos.


5. Não se conformando com essa decisão, a autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual revogou parcialmente a decisão recorrida, na parte em que conheceu do mérito da causa, e declarou a recorrente parte ilegítima, absolvendo os recorridos da instância.

 

6. Não se conformando com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, a recorrente interpôs o presente recurso de revista em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«I. A autora, aqui recorrente é sócia da sociedade BB& Ca.

II. O artigo 181°, n.1, do CSC, estabelece que os gerentes de uma sociedade em nome colectivo devem prestar a qualquer sócio, que o requeira, informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade e, bem assim, facultar-lhe na sede social a consulta da respectiva escrituração, livros e documentos.

III. A consulta da escrituração, livros ou documentos deve ser feita pessoalmente pelo sócio, que pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito, como resulta do n. 3 do mesmo artigo 181° do CSC.

IV. Apesar de inúmeras diligências para a obtenção de respostas a várias questões relacionadas directamente com a vida da sociedade, não foi possível obter, pela aqui recorrente, respostas verdadeiras, completas e elucidativas.

V. Nos termos do Artigo 1048° do CPC, o interessado que pretenda a realização de inquérito judicial à sociedade, nos casos em que a lei o permita, alega os fundamentos do pedido de inquérito, indica os pontos de facto que interesse averiguar e requer as providências que repute convenientes.

VI. O direito do sócio requerer inquérito judicial releva, não apenas quanto ao não fornecimento de informações, como, também, em caso de recusa do direito de consulta ou de informação sobre a vida da sociedade, nomeadamente, quando lhe é negado o direito de obter informação sobre um especifico assunto respeitante à gestão da sociedade.

VII. O inquérito à sociedade é o meio próprio da recorrente lançar mão, porquanto se trata de uma faculdade jurídica instrumental do direito à informação, lato sensu, isto é, do direito do sócio a ser informado da vida e do giro da sociedade.

VIII. A Autora, aqui recorrente colocou 46 pontos de facto, ou seja, 46 questões que estão por responder.

IX. Ficou provado que o gerente da sociedade BB& Ca. envia mensalmente, a todos os detentores de participações sociais, uma folha A4 denominada Folha de Caixa” com informação sobre algumas situações relacionadas com a vida da sociedade.

X.  Todavia, a informação enviada mensalmente não é completa nem elucidativa sobre a gestão da sociedade.

XI. Não responde às 46 questões que fazem parte do pedido, e que a sócia, aqui recorrente, pretende ver esclarecidas!

XII. A considerar válida a posição assumida na decisão de que se recorre, é objectivamente afastar a sócia, aqui recorrente, das informações da vida da sociedade.

XIII. Sendo que a recorrente, assume uma responsabilidade acrescida, resultante das características das sociedades em comandita.

XIV. Nos termos do artigo 1049° CPC, é referido que o "... juiz decidirá se há motivos para proceder ao inquérito...", situação que tem de ser entendida no âmbito da natureza do processo em que nos encontramos jurisdição voluntária, sendo-lhe por isso aplicável o disposto nos artigos n. 986° a 988º do CPC.

XV. Ora, no seio de tais processos, o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, podendo ser proferido um juízo de oportunidade ou conveniência face aos interesses em causa.

XVI. Como referia o Professor Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. III, pág. 400 "... o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente; tem liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais equitativa."

XVII. É por via disso que o tribunal "pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes" Artigo 986°, n. 2, do Código Civil.

XVIII. No caso em apreço, a decisão que determinou a não procedência da acção, não valorou todo o comportamento dos requeridos - quer fora do processo, quer no seu seio - e, com o devido respeito, faz uma apreciação não abrangente de todos os elementos conhecidos.

XIX. Pois que a conduta reiterada do gerente da sociedade requerida, foi sempre no sentido de não facultar à requerente as informações por ela pedida, o que aconteceu, aliás, na pendência da acção aqui recorrida

7. Os recorridos não apresentaram contra-alegações.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS:

1. O objeto do recurso:

Como legalmente previsto (art.635º, n.4 e art.639º, n.1 do CPC) o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, as quais devem respeitar ao modo como se decidiu na decisão recorrida.

Todavia, no caso decidendo, apenas no ponto XVIII das conclusões das suas alegações a recorrente se pronuncia minimamente sobre o conteúdo da decisão recorrida, ou seja, sobre a questão da legitimidade para propor a presente ação. E só a partir da consideração do corpo das alegações se consegue perceber qual a sua posição quanto a esta questão.

Todas as considerações que tece sobre o seu direito à informação extravasam o que foi decidido no acórdão em revista, o qual não decidiu tal matéria (nem tinha de o fazer), dado ter entendido que a autora era parte ilegítima. Também assim, todas as considerações que tece quanto ao julgamento da matéria de facto (factos provados e não provados) respeitam a matéria sobre a qual este tribunal não se pode pronunciar, dado o disposto nos artigos 682º, n.2 e 674º, n.3 do CPC.

O objeto da presente revista respeita, assim, apenas à questão da legitimidade da autora.

Trata-se de saber se a autora, enquanto contitular de uma participação social na sociedade 1ª recorrida, tem legitimidade, por si só, para mover a presente ação. A resposta a esta questão condiciona o conhecimento de qualquer outra questão que respeite ao mérito da causa.   

 

2. Os factos provados:

É a seguinte a factualidade provada:

«1 - A 1ª Requerida é uma sociedade comercial em nome colectivo que se dedica à actividade de gestão de imóveis, nomeadamente a arrendamento imobiliário.
2 - A Requerente e o 2º Requerido são sócios da sociedade 1ª requerida, mostrando-se dividido o capital social em três partes sociais: duas, no valor respectivamente de 50.000$00 e de 25.000$00, da titularidade do 2º Requerido; e outra de 75.000$00 da titularidade em comum e sem determinação de parte ou de direito da aqui Requerente e dos herdeiros de DD, falecido.
3 - O 2º Requerido foi nomeado gerente no contrato de sociedade.
4 - Mensalmente a Requerente, à semelhança dos demais detentores de participações sociais, recebe uma folha A4 com a designação de Folha de Caixa - Doc. 2 junto com a PI - com a informação sobre os valores recebidos e pagos e observações sobre aspectos da sociedade 1ª Requerida - docs. 1 a 12 da contestação.
5 - A Requerente após recebimento da referida Folha de caixa respeitante ao mês de Novembro de 2014, não contente com a distribuição de rendimentos que considerou de valor diminutos, decidiu pedir esclarecimentos e a 4-12-2014 reuniu-se, representada pelo seu advogado para o efeito, no escritório do Requerido com respectivo mandatário.
6 - Na sequência, o Mandatário da Requerente enviou mail, conforme documento 3 junto com a PI, em 15-12-2014, a solicitar explicações sobre a distribuição de resultados, o qual teve resposta no mesmo dia.
O teor do mail enviado pelo requerido CC a 15 de Dezembro de 2014 era o seguinte:
"Boa tarde Dr.  EE: Face à questão levantada, eis o resumo da informação:
No mês de Novembro devido ao pagamento do Imposto de Selo do imóvel da Rua ...(a tal situação que é urgente remediar), acrescido do pagamento da 3a prestação do IMI, agravada pela falta de pagamento de duas rendas em Dezembro (situação inesperada), só ficou disponível para distribuir 309,95 €. Assim e para já, de uma forma simples o porquê da distribuição ser tão diminuta, deve-se às despesas acima referidas e ainda ao facto de continuar a não haver actas assinadas pela sócia D. AA (algo que o anterior Advogado representante da sócia nos disse ir superar), incluindo especificamente aquela acta que permitiria pôr o prédio da Rua ... em regime de propriedade horizontal. Este impasse custou até ao momento à sociedade BB& Ca a quantia de 32.754,80 € nos dois últimos anos (face à questão do Imposto de Selo), o que assim acarretou prejuízos para todos os sócios, prejudicando também directamente a sócia FF em 8.188,70 € nestes 2 anos. Envio em anexo, para conhecimento das contas de Novembro, o documento enviado a todos os sócios. Ficarei a aguardar a outras suas questões para as podermos analisar". - Docs. 17 e 18.
7- Em 22-12-2014 foi enviado novo mail pelo Mandatário da Requerente relativamente ao valor distribuído. Em resposta o Requerido informou não ser possível distribuir valor superior justificando tal posição com questões de tesouraria e justificando com o regime fiscal da sociedade associando esse regime à cadência da distribuição de dividendos.
8- No dia 13-3-2015 houve troca de correspondência electrónica entre Requerente e Requerida.
9 -A Requerente recebeu respostas a algumas das questões colocadas em e-mail de 6-2-2015.
10 -  Regime instituído de distribuição mensal em conta bancária respectiva dos sócios de
resultados de harmonia com sujeição da sociedade ao regime fiscal aplicável.

11 - A Requerente foi convocada em 1-7-2015, por carta registada com aviso de recepção
remetida para a morada da residência como consta da certidão permanente, para comparecer e tomar parte nos trabalhos de uma assembleia geral a realizar no dia 20 de Julho de 2015, pelas 9h30m. - Doc. 13 junto com a contestação.

12 - A convocatória especificava o local da reunião e continha a ordem de trabalhos a observar. - Doc. 13.
13 - A carta não foi recebida nem foi posteriormente levantada na estação dos correios, apesar do aviso deixado pelo funcionário - Doc. 13.
14 - A assembleia teve lugar no dia 20 de Julho de 2015, no escritório da sociedade, de que foi lavrada a acta, assinada pelos presentes. E junta como Doc. 14 com a contestação.
15 - A requerente foi convocada, por carta registada com aviso de recepção, datada de 31 de Março de 2016, remetida para a morada da sua residência, constante da certidão permanente da sociedade, para comparecer e tomar parte nos trabalhos de uma assembleia geral a realizar no dia 18 de Abril de 2016, pelas 14h30m. - Doc. 15 junto com a contestação.
16 - A convocatória especificava o local da reunião e continha a ordem de trabalhos a observar. - Doc. 15
17 - A carta não foi recebida, nem foi posteriormente levantada na estação dos correios, apesar do aviso deixado pelo sr. funcionário, como decorre dos documentos juntos. - Doc. 15.
18 - A assembleia teve lugar no dia 18 de Abril de 2016, no escritório da sociedade, de que foi lavrada a acta, assinada pelos presentes, e junta como Doc. 16.
19 - Toda a documentação da sociedade encontra-se nas instalações propriedade da sociedade sitas na Rua ..., …, …, em Lisboa, onde de resto se realizam as próprias assembleias da sociedade.
20 -  O requerido CC esclareceu o mandatário da ora
requerente, nomeadamente como consta em 13 supra, de diversas vicissitudes da sociedade, do comportamento da requerente e seus familiares, da forma como os valores distribuídos eram apurados, salientando que o relatório mensal enviado retratava fielmente a realidade e sublinhando que o valor transferido para a requerente correspondia ao que lhe cabia no saldo mensal disponível.

21- Até ao ano de 2007, a requerente esteve sempre presente e participou em todas as assembleias da sociedade.
22 - A sociedade não tem qualquer funcionário administrativo, nem equipamentos - vide carta de 4 de Janeiro de 2016, remetida pela sociedade requerida à requerente e por esta junta como Doc. 8, que se dá aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

23 - Por esse motivo, por o escritório não ter qualquer "porta aberta", a gerência da sociedade, naquela sua carta de 4 de Janeiro de 2016, solicitou à requerente, por não ter forma de a contactar, "um seu contacto para agendar a sua visita ao escritório da sociedade, bem como para prestar os esclarecimentos que são pedidos ...". - Doc. 8, junto com o requerimento inicial.

24 - A Requerente não contactou a sociedade.»

3. O direito aplicável:

3.1. O acórdão em revista, entendendo que a autora não tinha legitimidade para, por si só, propor a presente ação especial de inquérito judicial à sociedade, declarou a autora parte ilegítima e absolveu os réus da instância, tendo, consequentemente, revogado a decisão da primeira instância na parte em que tinha conhecido do mérito da causa.

Esse entendimento foi, no que ao presente recurso interessa, sumariado nos seguintes termos:

«(…) em caso de contitularidade de quota ou participação social, o direito à informação não pode ser exercido por cada um dos contitulares individualmente, cabendo esse exercício a um representante comum, conforme decorre do disposto nos art.s 222 do CSC, aplicável ex vi do art. 189 do CSC.

 Intentado inquérito judicial à sociedade por contitular da quota, verifica-se a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, sendo esta exceção insuprível, o que determina a absolvição da instância, estando vedado, em consequência, ao tribunal recorrido, proferir decisão de mérito na causa».

Nos fundamentos desta decisão (seguindo jurisprudência da segunda instância) encontram-se os seguintes argumentos: “(…) tratando-se de um direito que apenas pode ser exercido por um dos contitulares, seja ele representante comum, seja cabeça-de-casal, não se nos depara uma ilegitimidade ativa decorrente da falta de intervenção no procedimento dos demais titulares (preterição de litisconsórcio necessário, nos termos do art.33º do CPC), sanável mediante convite à sua intervenção, nos termos previstos nos artigos 6º, n.2, 316º e 318º, n.1 a) do CPC, mas da ausência em juízo daquele que, em representação dos contitulares, pode exercer o direito. É que, em caso de contitularidade do direito, não pode cada contitular, por si, intervir direta e individualmente nos destinos sociais, pois essa intervenção deve, como regra, ter uma única voz, isto é, ser exercida através de um representante comum. Pondera-se, para esse efeito, por um lado, a unidade/indivisibilidade da participação social e, por outro, a necessidade de obstar à perturbação que geraria a intervenção individual de cada contitular da quota”. E acrescenta-se: “com vista a evitar que na mesma participação social se manifestassem vozes dissonantes, com os prejuízos que forçosamente trariam à sociedade”.

Afirma-se ainda na decisão em revista que: “concluindo pela ilegitimidade ativa da requerente, devia o tribunal recorrido ter proferido decisão na qual, abstendo-se de conhecer do pedido formulado, absolvesse os requeridos da instância, nos termos do disposto nos art.577º al. e) e 576º, n.2 do CPC. Prosseguiu, no entanto, o tribunal recorrido com a apreciação da causa, fazendo uso, ao que se denota, do disposto no art.278º, n.2 do CPC, proferindo afinal decisão no sentido da improcedência do inquérito judicial. Ora, trata-se de uma exceção dilatória insuprível, sendo certo que o interesse que a legitimidade visa tutelar não é o do recorrente, não estando, pois, reunidos os pressupostos para a desconsideração desta exceção dilatória, não podendo, em consequência, o tribunal recorrido proferir decisão de mérito na causa (…)”.

3.2. Através da presente ação, a autora pretende encontrar tutela judicial para a satisfação do seu direito à informação, enquanto sócia da sociedade 1ª requerida (gerida pelo 2º requerido).

Não está em causa, nos presentes autos, saber se um sócio de uma sociedade em nome coletivo tem legitimidade, em geral, para propor ação de inquérito judicial contra a sociedade.  O problema a decidir respeita apenas ao modo de exercício desse direito, quando o sócio requerente não é o único titular da participação social com base na qual sustenta a sua legitimidade para agir judicialmente.

3.3. A matéria em análise inscreve-se, em termos amplos, no quadro da problemática do direito dos sócios à informação (matéria que tem sido abundantemente tratada pela doutrina, no que respeita às sociedades por quotas e às sociedades anónimas[1]), respeitando a concreta questão a decidir ao modo de exercício desse direito.

Nas sociedades em nome coletivo, o direito dos sócios à informação encontra-se regulado no art.181º do CSC[2], prevendo-se, no n.6 desta norma, a possibilidade de o sócio requerer inquérito judicial nos termos do art.450º do CSC (instrumental à ação por “abuso de informação”, prevista no art. 449º); em face desta remissão restrita[3], o inquérito judicial (arts. 1048º, ss, CPC) destinado a suprir recusa ilícita de informação ou informação «presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa» fica legitimado pela aplicação por analogia do art.216º (do regime da sociedade por quotas) e sua remissão para o art. 292º, n.2 e ss (do regime da sociedade anónima) e seu âmbito de aplicação.

Todavia, na hipótese de o sócio que pretende exercer tal direito à informação não ser titular único de determinada participação social, mas apenas seu contitular, suscita-se a questão da legitimidade para o exercício desse direito. A contitularidade de participações sociais nas sociedades em nome coletivo não é objeto de previsão legal específica[4].

No regime das sociedades por quotas, a hipótese de contitularidade encontra-se prevista no art.222º do CSC. Dispõe o n.1 desta norma: “Os contitulares de quota devem exercer os direitos a ela inerentes através de representante comum[5]. A exigência de que os direitos dos contitulares sejam exercidos através de um representante comum é também a solução legalmente consagrada no regime das sociedades anónimas para a contitularidade de ações, no art.303º, n.1 do CSC.

3.4. Cabe, assim, questionar se o art.222º do CSC deve ser aplicado à contitularidade de participações sociais nas sociedades em nome coletivo, como se entendeu no acórdão em revista, o qual chegou a essa conclusão por via da remissão que o art.189º do CSC faz para o regime das sociedades por quotas[6].

Sustenta a recorrente (no corpo das suas alegações) que essa norma não tem aplicação porque respeita apenas às “deliberações dos sócios e à convocação e funcionamento das assembleias gerais”. E acentua a ideia da maior responsabilização pessoal dos sócios na sociedade em nome individual, o que afastaria a aplicação do regime das sociedades por quotas ao exercício do direito à informação.

Sendo certo que, literalmente, o art.189º respeita às “deliberações dos sócios e à convocação e funcionamento das assembleias gerais” e o seu conteúdo não abrange diretamente a regulação do art.222º, no entanto esse obstáculo (falta de remissão para a temática pertinente) não deve precludir a aplicação do art.222º às sociedades em nome coletivo por via analógica, como decorre do art.2º do CSC, nos termos do qual as hipóteses não previstas “são reguladas segundo a norma desta lei aplicável aos casos análogos”.

Trata-se de uma solução que permite harmonizar os interesses de celeridade na tomada de decisões tanto dos titulares das participações sociais como da própria sociedade[7], e que constituirá um corolário natural da homogeneidade de interesses e vontades que deverá existir entre os contitulares de uma mesma participação social[8].

3.5. Considerando o teor mais personalístico (regime definido e em grande medida dependente da individualidade e da importância da pessoa dos sócios na vida da sociedade, acentuado, mesmo que por via supletiva, pelo CSC) da sociedade por quotas[9], à disciplina deste tipo se deve recorrer em primeira linha para suprir as lacunas de regime da sociedade “arquétipo da sociedade de pessoas”[10] que é manifestamente a sociedade em nome coletivo. O maior pendor do elemento pessoal nas sociedades em nome coletivo [espelhado, por exemplo, no regime de responsabilização dos sócios (art.175º), ou na necessidade do consentimento de todos para a transmissão da parte social (art.182º)], quando confrontadas com as sociedades por quotas, não comporta, por si só, uma diferenciação valorativa que torne normativamente desajustada a aplicação da regra contida no art.222º do CSC.

Não se vislumbra, assim, nem num prisma de análise funcional, nem numa perspetiva teleológica, em que medida as particularidades de regime da sociedade em nome coletivo impediriam a aplicação analógica do art.222º, que é convocada pelo art.2º do CSC.      

Por outro lado, na hipótese de um contitular de uma parte social pretender a convocação de uma assembleia geral para que aí se delibere sobre prestação de informação[11], bem como no exercício do direito de voto, não há dúvidas de que o art.189º manda aplicar as regras do art.222º do CSC. Ora, poderá entender-se que, por identidade de razão (ou até por maioria dela) essa norma também deverá ter aplicação (exigindo-se um representante comum) quando aquele contitular de uma parte social pretende alcançar a satisfação do seu direito à informação por via judicial, através de um meio (o inquérito judicial) que, pela sua própria natureza, causará maior perturbação na vida da sociedade.

3.6. Feito este percurso, deve agora concluir-se como é que a contitularidade se projeta ao nível processual, condicionando a legitimidade ativa para propor a ação de inquérito judicial, face ao disposto no art.30º do CPC.

Entende a recorrente que tem legitimidade porque é interessada na realização do inquérito judicial, para efeitos do art.1048º do CPC.

 Todavia, o seu “interesse” em demandar assenta em direitos cuja titularidade não lhe pertence em exclusivo (como já se viu). Assim, para efeitos do art.30º, n.1 do CPC, a recorrente não é a única titular do interesse direto em demandar, nem tal interesse se afigura fracionável, pelo que tal particularidade de regime sempre condicionará a forma como a recorrente/autora configura a relação controvertida (n.3 do art.30º do CPC).

3.7. A existência de conflitos entre os sócios e a sociedade não será, pela própria natureza das figuras societárias, algo de normalmente expectável. Tal como não será “normal” a existência de conflitos entre os contitulares de uma determinada participação social quanto ao exercício dos direitos comuns. Ora, nos autos não existe informação que permita saber se as outras duas contitulares da mesma participação social concordariam ou não com a proposição da presente ação contra a sociedade. Conclui-se apenas que a autora/recorrente não demonstrou representar as outras contitulares.

Prevendo a hipótese de não existir unanimidade dos contitulares na nomeação do representante comum, o art.223º do CSC fornece regras para o efeito, podendo, mesmo, essa nomeação ser pedida ao tribunal.

3.8. Entendendo-se que o art. 222º do CSC se deve aplicar também às sociedades em nome coletivo, concluiu-se que a recorrente só teria legitimidade para estar sozinha em juízo, caso demonstrasse ter a qualidade de representante das outras duas contitulares da mesma participação social. O que não se verifica nos presentes autos. A referida situação de contitularidade não implica, assim, uma situação de litisconsórcio necessário, como bem se entendeu no acórdão recorrido, mas sim, no caso concreto, uma hipótese de falta de legitimidade processual insanável.  

3.9  Tendo-se concluído que se a autora, enquanto contitular de uma participação social da sociedade 1ª recorrida, não tem legitimidade, por si só, para mover a presente ação, fica automaticamente prejudicado o conhecimento de qualquer outra questão suscitada pela recorrente (nomeadamente a questão de saber se foi ou não satisfeito o seu direito à informação). 


*

III. DECISÃO: Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 23 de maio de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

_________________
[1] Vd., por exemplo, Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais (6ª ed.), pág.373 e seguintes.
[2] Sobre o direito dos sócios à informação nas sociedades em nome coletivo, veja-se, sobretudo, Alexandre Soveral Martins, in Anotação ao art.181º do CSC, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. III (2ª ed.), pág.59 e seguintes.
[3] “A remissão é estranha, atendendo a que para as sociedades por quotas o art.216º, 2, manda aplicar o disposto no art. 292º, 2 e ss”: Alexandre Soveral Martins, in Anotação ao art.181º do CSC, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. III cit., pág. 65.
[4] Também na doutrina não se encontram estudos aprofundados sobre a contitularidade de participações sociais de sociedades em nome coletivo, que possam auxiliar o intérprete quanto às equacionáveis hipóteses de solução. Ainda que indiretamente (porque respeita apenas às sociedades por quotas e às sociedades anónimas) assume alguma pertinência o estudo de Alexandre Soveral Martins: “Contitularidade de Participações Sociais – Algumas Notas”; Direito das Sociedades em Revista, Ano 3, Vol.5.
[5] Afirmando tratar-se de uma norma de natureza imperativa, vd. Alexandre Soveral Martins, Anotação ao art.222º do CSC, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. III (2ª ed.), pág.397.
[6] Como afirma Alexandre Soveral Martins: “O representante comum é necessário para o exercício de direitos inerentes à quota. (…) E apenas esses é que devem ser exercidos através do representante comum. Os direitos inerentes à quota não se confundem, por exemplo, com os direitos sobre a quota. Os direitos que devem ser exercidos pelo representante comum são de muito variada ordem. Ao representante comum caberá, por exemplo, o exercício do direito de voto, do direito de informação, do direito aos lucros”: Anotação ao art.222º do CSC, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. III (2ª ed.), pág.398, sublinhado nosso. No âmbito desses direitos que não podem ser de exercício individual e que implicam a competência do representante comum está, pois e em regra, o direito à informação – e o direito subsequente a pedir inquérito judicial para regularizar e/ou sanar a sua violação – e o direito de impugnação judicial (maxime, de deliberações sociais): neste sentido, Raúl Ventura, Anotação ao art.222º, in Sociedades por quotas, Vol. I (2ª ed.), págs.502-503, Pedro Cordeiro, Anotação ao art. 222º, in Código das Sociedades Comerciais Anotado (2ª ed.), pág.648. A este propósito, Ricardo Costa, A sociedade por quotas unipessoal no direito português. Contributo para o estudo do seu regime jurídico, 2002, pág.430, exceciona da competência do representante comum «o direito de ser informado pela gerência acerca de uma questão que implique com o sentido de voto a expressar em assembleia pelos contitulares (na falta de representante)».
[7] No entender de Soveral Martins, trata-se de uma solução que “visa acima de tudo proteger o interesse da sociedade”; in Contitularidade de Participações Sociais – Algumas Notas; Direito das Sociedades em Revista, Ano 3, Vol.5, pág.29.
[8] Sobre a questão, já debatida na doutrina e na jurisprudência, de saber se o direito pode ser exercido em simultâneo por todos os contitulares da participação social, não nos pronunciaremos, porque a questão não foi suscitada nos presentes autos.
[9] Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II (6ª ed.), págs.78-79.
[10] Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II cit., pág. 77.
[11] Veja-se o caso particular do art.215º, n.2, do CSC («Em caso de recusa de informação ou de prestação de informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa, pode o sócio interessado provocar deliberação dos sócios para que a informação lhe seja prestada ou seja corrigida.»), aplicável por analogia à sociedade em nome coletivo (assim sustentam Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II cit., pág. 246, nt. 572; Alexandre Soveral Martins, Anotação ao art.222º do CSC, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. III (2ª ed.), pág. 65.