Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6147/12.3TBVFR-A.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: PRESCRIÇÃO
FUNDO GARANTIA AUTOMÓVEL
TERCEIRO
SUB-ROGAÇÃO
REEMBOLSO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESUNÇÃO
RENÚNCIA
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
EXTINÇÃO
FIANÇA
Data do Acordão: 05/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / PRESCRIÇÃO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL ( EXTRACONTRATUAL ) / RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL / FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, reimpressão da 7.ª ed., 344 e 345.
- Filipe Albuquerque Matos, “O Fundo de Garantia Automóvel. Um organismo com uma vocação eminentemente social”, Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Carvalho Fernandes, Vol. I, Universidade Católica Editora, 2011, 561.
- Rodrigues Bastos, Das Relações Jurídicas Segundo o Código Civil de 1966, IV, 1969, 109.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 289.º, 302.º, 303.º, 305.º, 323.º, N.º1, 498.º, N.ºS 1 E 3, 512.º, 518.º, 524.º, 637.º, 651.º, 652.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 573.º.
D.L. N.º 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO (COM A REDACÇÃO DOS DL NºS 122-A/86 E 130/94): - ARTIGOS 21.º, N.º2, 25.º, 29.º, N.º6.
Legislação Comunitária:
2.ª DIRECTIVA DO CONSELHO DE 30 DE DEZEMBRO DE 1983 (84/5/CEE): ARTIGO 1.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 17.11.2005, PROC. N.º 05B061, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 23.09.2008, PROC. N.º 08A1994, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - A prescrição tem como fundamento a negligência do credor no exercício do direito durante um período de tempo no qual seria expectável que ele o exercesse se nisso estivesse interessado. Por razões de certeza e de segurança nas relações jurídicas, atribui-se presuntivamente à inércia do credor o significado de que quis renunciar ao direito ou considera-se que este já não merece tutela, assim libertando-se o devedor do cumprimento e de possíveis dificuldades probatórias que o decurso do tempo pode acarretar.

II - A prescrição depende sempre de invocação pelo devedor (art. 303.º do CC) – pelo que este se mantém adstrito ao cumprimento da prestação se aquela tiver ocorrido –, podendo também ser arguida pelos seus credores e por terceiros com interesse legítimo (n.os 1 e 2 do art. 305.º do CC).

III - O conceito de terceiros com interesse legítimo na arguição da prescrição contempla aqueles que são titulares de um direito próprio que o obrigado não pode eliminar ou diminuir, de que é exemplo o terceiro que garante a obrigação constituindo hipoteca, o fiador, o vendedor obrigado a garantia pela evicção e o subadquirente.

IV - O FGA foi criado para garantir que a vítima de um acidente de viação causado por veículo que não fosse abrangido por seguro ou que não fosse identificado sempre seria indemnizada, assumindo um papel de mero garante subsidiário da obrigação de indemnizar do lesante (e não de devedor da mesma), o qual se manifesta no modo como é legalmente concebido o direito ao respectivo reembolso (sub-rogação legal no crédito indemnizatório de que era titular o lesado em consequência da satisfação da indemnização àquele – art. 25.º do DL n.º 522/85, de 31-12).

V - A prescrição invocada, com sucesso, pelos responsáveis civis aproveita ao FGA; porém o inverso, não é verdadeiro, pois aquele organismo, apesar de ser um terceiro com direito a ser reembolsado, não intervém munido de um interesse próprio, assim se afastando do âmbito do benefício da sub-rogação no pagamento.

VI - Pese embora, no plano interno, exista uma relação de solidariedade imperfeita entre o lesante e o FGA, no plano externo, o lesado pode exigir de ambos a totalidade do seu direito (arts. 512.º e 518.º, ambos do CC), razão pela qual se impõe um litisconsórcio necessário entre aqueles.

VII - Face à natureza garantística e subsidiária da intervenção do FGA, os afloramentos do princípio contido nos arts. 651.º e 652.º do CC não militam no sentido de que aquele está habilitado a invocar a prescrição quando o lesado não o faça, assim a ela renunciando tacitamente (n.º 2 do art. 302.º do mesmo diploma).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:

AA, instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, destinada à efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, contra:

COMPANHIA DE SEGUROS BB, SA,

CC,

HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE DD, representada pelos seus herdeiros EE e mulher FF,

FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL,

pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia total de € 53.435,09, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

         O Fundo de Garantia Automóvel contestou, invocando, no que ora releva, a prescrição do direito do autor face à Herança Aberta por óbito de DD, obrigado principal, nos termos do n.º 1 do artigo 305.º do Código Civil. Alegou, em suma, que, pese embora o facto de ter sido interrompido o prazo prescricional em relação ao contestante, este, enquanto obrigado subsidiário e porque é terceiro relativamente à obrigação principal, tem um interesse legítimo na sua invocação.

         No despacho saneador foi decidido julgar improcedente a excepção da prescrição.

          Inconformado, apelou o Fundo de Garantia Automóvel deste segmento decisório.

          O Tribunal da Relação julgou o recurso improcedente e confirmou o decidido.


Mais uma vez irresignado, recorre o Fundo de Garantia Automóvel para este Supremo Tribunal de Justiça, recurso que foi admitido como revista excepcional.

Na sua alegação deduziu a seguinte síntese conclusiva:

«1ª) O FGA é terceiro com legítimo interesse na declaração da prescrição face à relação material controvertida entre o autor e o obrigado principal/responsável civil, para efeitos do artigo 305º, nº 1 do CC, podendo invocar a prescrição do direito do lesado face ao responsável civil (que a não invocou) e consequentemente, extinguindo-se a obrigação do responsável civil, extingue-se a obrigação acessória de garante do Fundo de Garantia Automóvel;

2ª) Terceiro para os efeitos do nº 1 do artigo 305º do CC é o terceiro na relação material, mesmo que seja parte principal na acção judicial;

3ª) Perante a subsidiariedade da obrigação de garantia, a responsabilidade do garante haverá de aferir-se pela existência e pela medida da obrigação garantida, de sorte que, extinta a obrigação do responsável civil, com ela se extingue a posição de seu garante encabeçada pelo FGA, devendo este ser absolvido do pedido contra si deduzido.

4ª) A decisão recorrida, ao decidir como decidiu violou as normas dos artigos 47º, nº 1 do DL 291/2007 de 21 de Agosto anterior artigo 21º do DL 522/85 de 31 de Dezembro, o artigo 35º do CPC e os artigos 305º, nº 1, 498º, 627º, 635º, nº 2, 636º, nº 1, 637º e 651º todos do CC.

Termos em que, deve a presente revista ser julgada procedente, nos termos acima peticionados».

           

Contra-alegou o recorrido, pugnando pela improcedência do recurso e aduzindo, em suma, as seguintes conclusões:

- Relativamente ao FGA verificou-se a interrupção do decurso do prazo prescricional previsto no citado artigo 498º do Código Civil, designadamente, face à sua citação para contestar a acção que correu termos sob o número 2383/05.7.TBVFR.

- O Fundo de Garantia Automóvel não pode invocar na qualidade de terceiro a prescrição ao abrigo do preceituado no nº 1 do artigo 305º do Código Civil quando o obrigado principal a quem aproveita a prescrição não a invocou, validamente, nos autos.


          II. Fundamentos:

           De facto:

          As Instâncias consideraram as seguintes ocorrências processuais relevantes para a decisão:

1 - O A. instaurou em 17.03.2005, acção de processo ordinário, que correu sob o nº 2383/05.7TBVFR, contra Companhia de Seguros GG, SA, CC e Fundo de Garantia Automóvel, destinada à efectivação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação ocorrido em 21.04.2002. (cfr. certidão de fls. 249 e ss);

2 - Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, em 16.02.2011, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, absolveu a ré seguradora do pedido contra si formulado e condenou, solidariamente, o Réu CC e o Fundo de Garantia Automóvel a pagarem ao A. a quantia de €12.540,00, deduzidos da franquia legal, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento; julgar procedente a acção instaurada pelo Hospital e condenar, solidariamente, os RR. Fundo de Garantia Automóvel, herança aberta por óbito de DD e CC a pagarem ao A. a quantia de €7.697,92, deduzida da franquia legal quanto ao Fundo, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento.

3 - Interposto recurso da decisão proferida em 1ª instância, por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2.02.2012, foi julgado procedente o recurso de agravo interposto pelo Fundo (que tinha invocado na sua contestação a sua ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo, excepção julgada improcedente no despacho saneador) e revogada a decisão proferida no despacho saneador quanto à legitimidade passiva do mesmo, o qual foi absolvido da instância no que toca ao pedido formulado pelo Autor. E, por se entender que o assim decidido prejudicava a apreciação dos restantes recursos interpostos pelo A. e pelos RR. Fundo de Garantia Automóvel e CC, os mesmos não foram objecto de apreciação pelo Tribunal da Relação do Porto. Mais se afirmou entender-se não poder ser alterado o decidido na parte da sentença que julgou o pedido formulado pelo Hospital de São Sebastião;

4 - Do acórdão do Tribunal da Relação do Porto foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que negou provimento ao recurso e confirmou o acórdão recorrido;

5 - Na referida acção não figurava como Ré a herança aberta por óbito de DD

6 - A presente acção foi interposta, em 05.12.2012, contra a Companhia de Seguros BB, CC, a Herança aberta por óbito de DD e o Fundo de Garantia Automóvel, tem em vista a efectivação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação ocorrido no dia 21.04.2002, alegando o autor que a acção se destina a suprir a ilegitimidade passiva invocada pelo Fundo ao abrigo do disposto no artigo 289º, nºs 1 e 2, do CPC.

7 - O R. Fundo de Garantia Automóvel defendeu-se por excepção, invocando a prescrição.

8 - Alegou que, apesar de se ter interrompido quanto a si o decurso do prazo de prescrição com a citação no âmbito do processo nº 2383/05.7TBVFR, mostra-se prescrito o direito do A. reclamado nesta acção quanto ao devedor principal “Herança aberta por óbito de DD”, o que acarreta também a extinção da obrigação acessória que lhe compete garantir.

9 - Por despacho de fls. 162/163, já transitado em julgado, foi dado sem efeito o praticado pelo mandatário a fls. 129 a 134, correspondendo a falta de contestação da Ré herança.

10 - Foram julgadas improcedentes as excepções da prescrição invocada pelo Fundo de Garantia Automóvel e do caso julgado invocada pela Ré Seguradora.


          De direito:

          Balizado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente e não se suscitando a apreciação de questões de conhecimento oficioso, está em causa na presente revista saber se o Fundo de Garantia Automóvel pode considerar-se terceiro com interesse legítimo na declaração da prescrição para os efeitos do disposto no artigo 305º do Código Civil e invocá-la em seu benefício quando o obrigado principal a não invocou.

          É sabido que o fundamento específico do instituto da prescrição reside na negligência do credor em exercer o seu direito durante um período de tempo razoável e em que seria legítimo presumir que ele o exercesse, se nisso estivesse interessado. Razões de certeza e de segurança nas relações jurídicas conduzem a que a inércia prolongada do titular do direito em exercitá-lo faça presumir que quis renunciar ao direito ou a que se considere que um tal direito já não merece tutela jurídica, libertando o devedor do cumprimento e de possíveis dificuldades probatórias que o decurso do tempo pode acarretar, bastando para tanto invocá-lo como meio de defesa (artigo 303º do Código Civil). 

No âmbito da responsabilidade extracontratual ou aquiliana estabelece o artigo 498º do Código Civil que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, ainda que desconheça o lesante e a extensão integral dos danos. Constituindo o facto ilícito crime para o qual a lei estabeleça prazo mais longo será, contudo, este aplicável (nºs 1 e 3).

Não sendo de conhecimento oficioso, impõe-se a expressa invocação da prescrição por aquele que dela beneficia para esta ser eficaz (artigo 303º do Código Civil), o que significa que a obrigação do devedor persiste se a prescrição não for eficazmente invocada, mantendo-se, neste caso, vinculado ao seu cumprimento. Fica na disponibilidade do devedor renunciar ou não à prescrição depois de decorrido o respectivo prazo, isto é, escolher se quer cumprir ou não a sua prestação (artigo 302º do Código Civil).

No caso vertente, o réu Fundo de Garantia Automóvel reconhece ter operado, quanto a si, a interrupção do prazo prescricional em consequência da citação que lhe foi feita no âmbito acção nº 2383/05.7TBVFR movida anteriormente pelo autor, acto judicial idóneo para lhe dar a conhecer a intenção de exercer o direito de que se veio arrogar titular (artigo 323º nº 1 do Código Civil).

O acto interruptivo da prescrição tem natureza pessoal, circunscrevendo-se os seus efeitos unicamente àquele a quem foi dirigida a citação ou a notificação judicial, pelo que deixa incólume o direito do autor em relação aos demais obrigados.

A ré herança aberta por óbito de DD, obrigado civil, não só não havia sido demandada pelo autor naquela acção, o que determinou a absolvição do réu Fundo de Garantia Automóvel com fundamento na sua ilegitimidade por preterição do litisconsórcio necessário passivo imposto pelo estatuído no artigo 29º nº 6 do DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro, em vigor na data em que ocorreu o acidente (21 de Abril de 2002) e, por isso, aqui aplicável, como não ofereceu contestação válida na presente acção, não obstante a sua regular citação.

Não exerceu, por conseguinte, o direito potestativo de excepcionar a prescrição de que era beneficiária, vedando-lhe tal conduta a possibilidade de a suscitar ulteriormente, a não ser que demonstrasse justo motivo para não a ter invocado, atento o sistema de preclusão consagrado no artigo 573º do Código de Processo Civil (anterior artigo 489º).

Na presente acção, interposta ao abrigo do preceituado no artigo 289º do Código de Processo Civil, na versão do DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, veio, porém, o réu Fundo de Garantia Automóvel suscitar a prescrição do direito do autor contra o seu co-réu e obrigado civil com fundamento no disposto no artigo 305º do Código Civil.

Este normativo permite aos credores e aos terceiros com legítimo interesse na declaração da prescrição invocá-la, ainda que o seu beneficiário a ela tenha renunciado, muito embora, neste caso, a lei exija, quanto aos credores, a demonstração dos requisitos da impugnação pauliana

O Fundo de Garantia Automóvel não detém a qualidade de credor do autor.

Arroga-se, contudo, a qualidade de terceiro com legítimo interesse na declaração da prescrição, alegando, em suma, que, enquanto garante da satisfação da obrigação de indemnizar o lesado – o autor – em consequência de acidente de viação, se encontra em posição equiparada à do fiador, sendo-lhe lícito opor ao autor, além dos meios de defesa que lhe são próprios, também os que competem ao obrigado civil, designadamente a prescrição, em conformidade com o comando legal inserto no artigo 637º do Código Civil.

Não constitui tarefa fácil definir o conceito de terceiro com legítimo interesse na declaração da prescrição, referindo Rodrigues Bastos (Das Relações Jurídicas Segundo o Código Civil de 1966, IV, 1969, p.109), a propósito da renúncia à prescrição, que os terceiros interessados, que não os credores, podem invocá-la, sem necessidade de impugnação da renúncia do devedor, “pois tal direito de alegar a prescrição resulta da circunstância de a renúncia não poder prejudicá-los, por terem um direito próprio, que o devedor não pode eliminar ou diminuir».

Refere o mesmo autor que «Os terceiros, diferentes dos credores, que podem ter interesse em opor a prescrição, são, nomeadamente, o terceiro que constituiu hipoteca para garantia da obrigação (opõe a prescrição do crédito garantido pela hipoteca), o fiador (opõe a prescrição do crédito garantido por fiança), o vendedor obrigado a garantia pela evicção (opõe a prescrição – ou não-uso – do direito real sobre a coisa vendida), o subadquirente do que adquiriu por negócio jurídico anulável (opõe ao terceiro a prescrição da acção de anulação) ”.

A criação do Fundo de Garantia Automóvel resultou do cumprimento dos princípios contidos na 2ª Directiva do Conselho de 30 de Dezembro de 1983 (84/5/CEE) e teve por finalidade garantir que a vítima de acidente de viação não deixará de ser indemnizada no caso de o veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado, organismo a quem o lesado poderá dirigir-se, directa e prioritariamente, sem prejuízo das disposições aplicadas pelos Estados-membros relativamente à natureza, subsidiária ou não, da sua intervenção e, bem assim, das normas aplicáveis em matéria de sub-rogação (artigo 1º n.º 4).

No nosso ordenamento jurídico o Fundo de Garantia Automóvel assume um cariz eminentemente social e intervém na qualidade de mero garante do cumprimento da obrigação indemnizatória do lesante ao lesado. Não é um devedor. Caracteriza-o uma posição de independência face às regras da responsabilidade civil, advindo a sua intervenção da falta de contrato de seguro válido e eficaz ou do desconhecimento da existência de um contrato de seguro por ser desconhecido o responsável civil.

O Fundo actua como mero garante subsidiário. Como observa Filipe Albuquerque Matos (“O Fundo de Garantia Automóvel. Um organismo com uma vocação eminentemente social”, Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Carvalho Fernandes, Vol. I, Universidade Católica Editora, 2011, p. 561), um corolário importante da subsidiariedade da intervenção do Fundo manifesta-se, de modo significativo, na forma como o legislador perspectiva o direito de reembolso, uma vez satisfeita a indemnização aos lesados, através da figura da sub-rogação (artigo 25º do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro).

Trata-se de um caso de sub-rogação legal ao lesado, que se traduz na transmissão do crédito de que era titular para o Fundo em consequência do cumprimento da obrigação indemnizatória do responsável principal – o obrigado civil – .

Com efeito, cabe ao Fundo, no que ora releva, garantir o cumprimento das indemnizações por morte ou lesões corporais quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz e por lesões materiais quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie, igualmente, de seguro válido e eficaz, decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos a seguro obrigatório e que estejam matriculados em Portugal ou em países terceiros da União Europeia, (artigo 21º nº 2 do DL nº 522/85, com a redacção dos DL nºs 122-A/86 e 130/94).

A função de garante subsidiário da obrigação indemnizatória devida pelo lesante à vítima de acidente de viação nas circunstâncias acabadas de enunciar e com direito a reembolso fundado na figura da sub-rogação legal constituirá a matriz para se encontrar a resposta à questão nuclear colocado na presente recurso.

Compreende-se que, em face deste estatuto, aproveite ao Fundo a extinção da obrigação dos responsáveis civis, por decisão transitada em julgado, nomeadamente em resultado da prescrição invocada com sucesso por estes, conforme doutrina do Acórdão deste Supremo Tribunal proferido em 23.09.2008 (proc. nº 08A1994, acessível em www.dgsi.pt/jstj). Como nele se escreveu “crê-se ser incontornável (…) que se o titular do direito à indemnização perdeu o direito de a exigir do responsável devedor, isto é, o direito de accionar a obrigação garantida, não se encontra fundamento para que ainda possa ser exercitado o direito consubstanciado pela obrigação de garantia (cfr. neste sentido, o ac. deste Supremo de 06/7/2004 – proc. 04B296) ”, obrigação que está condicionada pela existência, verificação e quantificação do responsável civil.

Adiantamos já que a solução inversa não é verdadeira. A argumentação de que resulta beneficiar o Fundo da prescrição ou de outra causa de extinção da obrigação do devedor principal não pode reverter em benefício da tese sustentada pelo recorrente nestes autos. De acordo com o ensinamento de Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, vol. II, reimpressão da 7ª ed., págs. 344 e 345), a lei quis restringir o benefício da sub-rogação ao pagamento efectuado por quem tenha um interesse próprio na satisfação do crédito. Afirma ainda este Ilustre Professor que “Dentro da rubrica geral do cumprimento efectuado no interesse próprio do terceiro cabem, não só os casos em que este visa evitar a perda ou limitação dum direito que lhe pertence, mas também aqueles em que o solvens apenas pretende acautelar a consistência económica do seu direito”.

Cita no primeiro caso, a título de exemplo, o sublocatário que paga a renda devida pelo locatário no intuito de obstar à caducidade da sublocação e o adquirente da coisa empenhada ou hipotecada, que cumpre pelo devedor, com o propósito de prevenir a venda e a adjudicação do penhor ou a execução do crédito hipotecário.

No segundo, refere, também a título exemplificativo, o pagamento feito por um credor preferente, a outro graduado antes dele ou o pagamento feito por um credor comum ao credor preferente, para evitar uma execução ruinosa ou inoportuna para os demais credores.

Subjacentes à criação do Fundo de Garantia Automóvel estiveram razões de protecção das vítimas da sinistralidade automóvel, que, se não fosse a sua intervenção, quedariam sem ser ressarcidas dos prejuízos sofridos nos casos de desconhecimento do obrigado civil ou de inexistência de seguro válido e eficaz.

Ao contrário do que defende, não pode afirmar-se que ao satisfazer a indemnização ao lesado como garante subsidiário seja um terceiro detentor de um interesse próprio no cumprimento dessa obrigação. É um terceiro com direito a ser reembolsado pelo devedor principal com base no instituto da sub-rogação, mas não intervém munido de um interesse próprio, seja para evitar a perda ou a diminuição de um direito que lhe pertença, seja para acautelar a consistência económica do seu direito.

E só ao terceiro titular de um direito próprio que o obrigado civil não pode eliminar ou diminuir assiste legitimidade para invocar a prescrição com fundamento no preceituado no artigo 305º do Código Civil.

Acresce que, apesar de no plano interno se configurar uma relação de solidariedade imperfeita ou imprópria entre o Fundo e o lesante, que conduz à inaplicabilidade do disposto no artigo 524º do Código Civil e ao reconhecimento de um direito ao reembolso apenas ao primeiro com base em sub-rogação legal, a verdade é que no plano externo a relação entre o Fundo de Garantia Automóvel e o obrigado civil surge sob a veste de uma solidariedade perfeita susceptível de permitir ao lesado exigir de ambos a totalidade do seu direito indemnizatório - artigos 512º e 518º do Código Civil (cfr. neste sentido o Acórdão deste Supremo Tribunal de 17.11.2005, proc. 05B061, disponível em www.dgsi.pt/jstj).

A sua responsabilidade perante o lesado é solidária – não obstante o Fundo responda como garante e não com fundamento na responsabilidade civil extracontratual –, impondo a lei um litisconsórcio necessário passivo, sob pena de ilegitimidade caso um deles não seja demandado (artigo 29º nº 6 do DL nº 522/85).

Os afloramentos do princípio contido nos artigos 651º e 652º do Código Civil relativos à fiança a que se refere o já citado Acórdão deste Supremo, de 23.09.2008, no sentido de que a extinção da obrigação principal determina a extinção e consequente desoneração dos fiadores, dada a natureza acessória da garantia (fiança), não militam, in casu, em favor da tese do recorrente.

As assinaladas natureza e características da obrigação do Fundo, ainda que de garantia subsidiária se trate, não permitem ir buscar ao regime legal da fiança argumentos ou princípios a favor do entendimento de que detém a posição de terceiro com legítimo interesse na declaração da prescrição do direito do autor, nos termos do artigo 305º nº 1 do Código Civil, podendo suscitar em seu benefício a prescrição que o principal obrigado – a ré Herança Aberta por óbito de DD – não invocou.

Em suma, não pode o Fundo de Garantia Automóvel, que viu interrompida quanto a si a prescrição, vir invocar em seu benefício a prescrição que o devedor principal, seu co-réu, não suscitou, a ela renunciando, ainda que tacitamente (artigo 302º nº 2 do Código Civil).


III. Decisão:

Termos em que se acorda no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o douto acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 12 de Maio de 2016


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Pires da Rosa