Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1721/14.6T8VNG-E.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
CAPACIDADE JURÍDICA
FIM SOCIAL
EMPRÉSTIMO BANCÁRIO
HIPOTECA
BEM IMÓVEL
NULIDADE
ARGUIÇÃO
ÓNUS DA PROVA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
PROVA PLENA
ABUSO DO DIREITO
BANCO
VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 11/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO / PROVAS / PROVA DOCUMENTAL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / SOCIEDADE / NOÇÃO.
DIREITO DAS SOCIEDADES – PERSONALIDADE E CAPACIDADE.
DIREITO FALIMENTAR – VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS, RESTITUIÇÃO E SEPARAÇÃO DE BENS / VERIFICAÇÃO ULTERIOR.
Doutrina:
-Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, 447;
-Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, 187;
-Engrácia Antunes, Direito das Sociedades, 2010, 237;
-Henrique Mesquita, Parecer, ROA, 1997, 721 a 737;
-João Labareda, Nota sobre a prestação de garantias por sociedades comerciais a dívidas a outras entidades, Direito Societário Português, Algumas Questões, Quid Juris, Lisboa, 1998, 167 a 195;
-Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Almedina, Coimbra, 2009, 91;
-Pinto Furtado, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, arts. 1.º ao 19.º(…), Almedina, Coimbra, 2009, 26;
-Soveral Martins, Código das Sociedades Comerciais em comentário, Volume I, Almedina, 1.ª Edição, 2010, 1998, 110-111.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 286.º, 294.º, 342.º, N.º 1, 344.º, 371.º, N.º 1 E 980.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 6.º, N.º 3.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 146.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-09-2000;
- DE 13-05-2003, PROCESSO N.º 3425/01;
- DE 28-10-2003, PROCESSO N.º 3A2485, IN HTTP://WWW.DGSI.PT;
- DE 17-06-2004, PROCESSO N.º 04B1773, IN HTTP://WWW.DGSI.PT;
- DE 30-09-2004, PROCESSO N.º 04S2540, IN HTTP://WWW.DGSI.PT;
- DE 07-10-2010, PROCESSO N.º 291/04.8TBPRD-E.P1.S1, IN HTTP://WWW.DGSI.PT;
- DE 28-05-2013, PROCESSO N.º 300/04.0TVPRT-A.P1.S1, IN HTTP://WWW.DGSI.PT;
- DE 26-09-2013, PROCESSO N.º 213/08.7TJVNF-A.P2.S1, IN HTTP://WWW.DGSI.PT;
- DE 26-11-2014, PROCESSO N.º 1281/10.7TBAMT-A.P1.S1, IN HTTP://WWW.DGSI.PT;
- DE 19-01-2016, PROCESSO N.º 893/05.5TBPCV.C1.S1, IN HTTP://WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A lei faz aferir e limitar a capacidade (de gozo) da sociedade pelo fim lucrativo que lhe é inerente; assim, a prática de um acto fora das condições legalmente prescritas (que não seja necessário nem conveniente à prossecução do seu fim) mostra-se ferido de nulidade (artigo 294.º, do CC).

II - A constituição pela sociedade posteriormente declarada insolvente de duas hipotecas sobre imóveis seus, a favor da entidade bancária mutuante, para garantia de empréstimos concedidos a pessoas singulares, consubstancia acto nulo, excepto se ocorrer justificado interesse próprio da sociedade garante.

III – A nulidade de que tais actos, à partida, se revestem, faz impender sobre o Banco Mutuante, beneficiário da garantia e autor em acção de verificação ulterior de créditos, o ónus de alegar e provar o justificado interesse da sociedade na prestação das garantias reais aos mutuários, por tal situação se configurar numa excepção à referida regra da nulidade e, como tal, constituir um elemento constitutivo do seu direito (artigo 342.º, n.º1, do CC).

IV – A declaração pela sociedade garante feita nas escrituras de mútuo de que prestava as garantias aos empréstimos para liquidação de responsabilidades suas, não se encontra abrangida por força probatória plena do documento autêntico e, como tal, não tem o alcance de provar a existência do justificado interesse próprio na prestação da garantia.

V – A arguição da nulidade da garantia prestada por parte da sociedade garante (beneficiária da nulidade) não integra, necessariamente, uma situação de abuso de direito. Todavia, poderá merecer cabimento impor-lhe o ónus de demonstrar a inexistência de justificado interesse próprio por se encontrar em posição privilegiada para fazer a prova desse facto (artigo 344.º, do CC) e por ter adoptado posição contrária à boa fé.

VI – Não obstante a nulidade da prestação da garantia (por inexistência de justificado interesse da sociedade garante) ter sido arguida pela massa insolvente, não há que inverter o ónus da prova que impende sobre o Autor, Banco Mutuante, em acção de verificação ulterior de créditos visando o reconhecimento do respectivo crédito como “crédito garantido” e a graduação do mesmo preferencialmente em relação aos imóveis que fazem parte do acervo pertencente à massa insolvente e que se encontram onerados com hipoteca.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório

1. O BANCO AA, SA intentou (em Março de 2014), por apenso aos autos de insolvência de BB, LDA e nos termos do artigo 146.º, do CIRE, acção de verificação ulterior de créditos contra a Insolvente BB, LDA., a Massa Insolvente e os Credores da Massa Insolvente, pedindo o reconhecimento de um crédito, no valor global de 259.524,33€, referente a dois contratos de mútuo celebrados em 10-11-2006 com CC e DD, que foram garantidos com hipoteca sobre dois imóveis (fracções “E” e “F” pertencentes ao prédio urbano sito na Rua ..., ...), posteriormente apreendidos à ordem do processo de insolvência.

Alegando que os contratos de mútuo foram definitivamente incumpridos (desde 2014) por falta de pagamento das respectivas prestações, pretende que os referidos créditos (no montante de 220.5590,00€ e de 38.977,27€) sejam reconhecidos como “créditos garantidos” e graduados preferencialmente em relação aos imóveis identificados.

2. Após citação a MASSA INSOLVENTE apresentou contestação excepcionando a nulidade da constituição das hipotecas porque contrárias ao fim da sociedade insolvente (artigos 6. º, n.º3 e 286.º, ambos do Código das Sociedades Comerciais – doravante CSC).  

3. Em resposta a Autora defende a improcedência da excepção por se encontrar justificado o interesse da sociedade na constituição da garantia face à vantagem económica que havia obtido dos mutuários. Invoca ainda que é sobre a Insolvente que recai o ónus de provar a violação do princípio da especialidade previsto no artigo 6.º, do CSC.       

4. Realizado julgamento foi proferida sentença (em 3 de Novembro de 2016) que julgou improcedente a acção e absolveu os Réus do pedido.

4. Inconformado a Autora apelou, tendo o Tribunal da Relação do Porto (por acórdão de 4 de Maio de 2017), ainda que com um voto vencido, julgado a apelação improcedente, confirmando a sentença.

5. Interpôs o Autor recurso de revista formulando as seguintes conclusões:

I. O douto acórdão recorrido não deve manter-se pois não consagra a justa e correcta aplicação das normas legais e dos princípios jurídicos aplicáveis.

II. O douto acórdão recorrido está em contradição com vários acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, não tendo sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme, estando igualmente em violação do disposto nos artigos 6.º do Código das Sociedades Comerciais, as regras do ónus da prova constantes dos artigos 342.º e seguintes do Código Civil.

III. O Recorrente instaurou a acção de verificação ulterior de créditos para que lhe fossem reconhecidos dois créditos, um no montante de 220.559,98€ e o outro no montante de 38.964,35€;

IV. Tais créditos encontram-se garantidos por uma hipoteca constituída pela Insolvente sobre dois imóveis apreendidos para a massa insolvente;

V. Os créditos do Autor são provenientes de dois empréstimos, dos montantes originais de 263.433,00€ e de 46.532,57€ que o mesmo efectuou a CC e a DD em 10/11/2006 nos termos e condições constantes das escrituras públicas das quais fazem parte integrante os documentos complementares a ela anexos;

VI. O Tribunal da Relação do Porto, ainda que com um voto vencido, julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida, considerando que teria que ser o Banco a provar o interesse económico próprio da sociedade comercial insolvente, susceptível de justificar a prestação da garantia a favor do banco autor;

VII. O douto acórdão recorrido está em contradição com vários acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, a saber: De 21-09-2000, IN CJSTJ, ANO VIII, TOMO III, P. 36 E SEGS, de 13-05-2003, no processo Nº 3425/01, em www.dgsi.pt, de 28-05-2013, NO PROCESSO Nº 300/04.0TVPRT-A.P1.S1, em www.dgsi.pt e de 26-11-2014, NO PROCESSO Nº 1281/10.7TBAMT-A.P1.S1, em www.dgsi.pt.

VIII. Nas escrituras juntas as fls. dos autos, é expressamente referido que os empréstimos concedidos são também para liquidar responsabilidades assumidas pela Insolvente;

IX. Existem claros indícios da existência de interesse económico próprio da sociedade comercial insolvente;

X. Ao contrário do entendimento do Tribunal a quo e do Tribunal da Relação, não é ao Banco que incumbe provar a violação do princípio da especialidade ínsito no já referido artigo 6 do Código das Sociedades Comerciais, mas sim à própria Insolvente;

XI. O douto acórdão recorrido, a fls. 126, invoca inclusivamente o aludido aresto, contudo atribui-lhe sentido oposto do que é efetivamente defendido pelo mesmo, referindo que não pode deixar de recair sobre o beneficiário da garantia, o ónus de alegar e provar o “justificado interesse próprio da sociedade garante”, a aqui Insolvente;

XII. Decidindo precisamente em contradição com o já mencionado Acórdão do STJ de 21.9.2000, in Col. 2000-III-40 e com o Acórdão do STJ de 13-05-2003, no processo nº 3425/01;

XIII. Sendo certo que também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-05-2013, no processo nº 300/04.0TVPRT-A.P1.S1, em www.dgsi.pt, decide no mesmo sentido, invocando o mesmo excerto e fundamentos;

XIV. Não se vislumbra como é que o Credor poderia provar a existência de um interesse próprio da sociedade Insolvente, para além da junção das escrituras e da sua menção expressa que os mútuos concedidos foram também para liquidação de responsabilidades da empresa;

XV. A lei não define tal interesse, pelo que este terá sempre que ser avaliado com referência à actividade social e contabilística da sociedade e não apreciado o acto de forma isolada;

XVI. Sendo certo que não é o Credor que tem estes elementos, mas tão só a própria Insolvente;

XVII. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-11-2014, no processo nº 1281/10.7TBAMT-A.P1.S1, em www.dgsi.pt, assenta igualmente na jurisprudência aqui já amplamente mencionada, estando em igual contradição com o douto acórdão recorrido;

XVIII. Igualmente parte significativa da doutrina tem aderido e sufragado esta tese;

XIX. E no mesmo caminho foi o voto vencido do Sr. Juiz Desembargador Mário Fernandes;

XX. Dúvidas não restam que mal andou o douto acórdão recorrido ao ignorar todos estes acórdãos, decidindo em plena contradição com os mesmos ao julgar improcedente a apelação;

XXI. Ao julgar improcedente a apelação, o douto acórdão de que ora se recorre violou o disposto nos artigos 6.º do Código das Sociedades Comerciais e as regras do ónus da prova constantes dos artigos 342.º e seguintes do Código Civil, motivo pelo qual deve ser revogado.

XXII. O Recorrente fez a prova que lhe competia, ou seja, demonstrou a existência do seu crédito, tendo sido a Recorrida a invocar que a constituição das hipotecas era contra o seu interesse próprio.

XXIII. Tendo inclusivamente o próprio Administrador de Insolvência referido que só através de uma auditoria seria possível aferir se foram, ou não, liquidadas responsabilidades da empresa;

XXIV. Assim, é óbvio que só a Insolvente poderia e tinha que demonstrar que não beneficiou daqueles mútuos, ilidindo a presunção da força probatória que tem uma escritura pública;

XXV. Sucede porém que a Recorrida/Insolvente se limita a alegar, sem qualquer prova ou princípio de prova, que os empréstimos foram contraídos apenas e só em benefício dos sócios;

XXVI. Com efeito e também por esta via, mal andou o Tribunal da Relação do Porto ao inverter o ónus da prova, referindo que a mesma recaía sobre o Recorrente;”.

6.Em contra alegações a Massa Insolvente defende a improcedência do recurso com confirmação do acórdão recorrido. 

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC), impõe-se conhecer a seguinte questão:
Ø A quem compete o ónus de alegar e provar o justificado interesse próprio da sociedade na prestação da garantia

1. Os factos provados
a) A sociedade comercial "BB, Lda." apresentou-se à insolvência a 4 de Novembro de 2014 e, por sentença proferida no dia 6 dos mesmos mês e ano, foi declarada a situação de insolvência;
b) A sociedade comercial "BB, Lda." encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o NIPC 000000709, com sede na Rua …, n," 000, …, freguesia de ..., concelho de …, tendo por objecto a prestação de serviços de informática e telecomunicações, formação, consultaria, assistência técnica e desenvolvimento de aplicações nas áreas de informática e telecomunicações, a comercialização de hardware e software, tendo como sócios CC e EE, exercendo o primeiro a gerência;
c) Foram apreendidos bens móveis e as fracções autónomas designadas pelas letras "E" e "F", do prédio urbano descrito na 2.ª Conservatória do Registo Comercial de …, freguesia de ..., com o número 000/00000021;
d) A aquisição da propriedade das referidas fracções autónomas encontra-se registada a favor da insolvente através das inscrições com a ap. 71, de 18 de Dezembro de 2006;
e) Para garantia do empréstimo concedido a CC, divorciado, e a DD, solteira - capital de 46.532,57 euros, ao juro anual de 4,34%, acrescido de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal, despesas de 1.861,30 euros, montante máximo assegurado de 60.036,32 euros - foi constituída sobre as fracções autónomas referidas nas alíneas c) e d), registadas através das inscrições com a ap, 73, de 18 de Dezembro de 2006;
f) Para garantia do empréstimo concedido a CC, divorciado, e a DD, solteira - capital de 263.400,33 euros, ao juro anual de 4,21 %, acrescido de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal, despesas de 10.536,01 euros, montante máximo assegurado de 338.811,84 euros - foi constituída sobre as fracções autónomas referidas nas alíneas c) e d), registadas através das inscrições com a ap. 74, de 18 de Dezembro de 2006;
g) Por escritura pública outorgada a 10 de Novembro de 2006, no Cartório sito na Rua …, n." 000, 0.° andar, sala 0, em …, CC e EE, como únicos sócios e em representação da sociedade comercial "BB, Lda. ", declararam que do património de tal sociedade faziam parte as fracções autónomas identificadas nas alíneas c) e d), adquiridas na mesma data, e que, "tendo em vista que parte do empréstimo que se vai efectuar ao sócio CC e DD, é também para liquidação de responsabilidades assumidas pela sociedade que representam e que o referido CC é o sócio maioritário, verificando-se assim interesse justificado no acto a praticar e, como tal, cumprido o pressuposto da segunda parte do número três do artigo sexto do Código das Sociedades Comerciais, neste acto: O sócio EE, uma vez que o restante sócio está impedido de votar nos termos da alínea g) do número um, do artigo duzentos e cinquenta e um (..), delibera, para garantia do referido empréstimo, hipotecar os imóveis supra identificados";

h) No mesmo acto, o autor declarou conceder a CC e DD um empréstimo no montante de 263.400,33 euros, declarando estes aceitar e confessar-se solidariamente devedores, nos termos e condições constantes de fls. 7 verso a 15, cujo teor se dá aqui por reproduzido;

i) CC e EE declararam, ainda, em nome da sociedade sua representada e em execução do deliberado, constituir a favor do autor hipoteca sobre as fracções autónomas referidas;

j) Os outorgantes declararam que "Nesta data, a quantia referida é entregue pelo Banco por crédito na conta dos primeiros outorgantes da alínea a) (CC e DD) com o número 000000408, aberta junto do "BANCO AA, S.A.";

k) O contrato de mútuo referido nas alíneas anteriores foi objecto de aditamento celebrado a 10 de Abril de 2014, nos termos e condições constantes dos documentos juntos a fls. 15 verso e seguintes, cujo teor se dá aqui por reproduzido;

l) Por escritura pública outorgada a 10 de Novembro de 2006, no Cartório sito na Rua …, n." 000, 00 andar, sala 0, em …, CC e EE, como únicos sócios e em representação da sociedade comercial "BB, Lda. ", declararam que do património de tal sociedade faziam parte as fracções autónomas identificadas nas alíneas c) e d), adquiridas na mesma data, e que, "tendo em vista que parte do empréstimo que se vai efectuar ao sócio CC e DD, é também para liquidação de responsabilidades assumidas pela sociedade que representam e que o referido CC é o sócio maioritário, verificando-se assim interesse justificado no acto a praticar e, como tal, cumprido o pressuposto da segunda parte do número três do artigo sexto do Código das Sociedades Comerciais, neste acto:

O sócio EE, uma vez que o restante sócio está impedido de votar nos termos da alínea g) do número um, do artigo duzentos e cinquenta e um (..), delibera, para garantia do referido empréstimo, hipotecar os imóveis supra identificados";

m) No mesmo acto, o autor declarou conceder a CC e DD um empréstimo no montante de 46.532,57 euros, para efeitos de transferência do empréstimo que foi concedido ao primeiro pela "BANCO FF, S.A. ", declarando ambos aceitar e confessar-se solidariamente devedores, nos termos e condições constantes de fls. 25 a 33, cujo teor se dá aqui por reproduzido;

n) CC e EE declararam, ainda, em nome da sociedade sua representada e em execução do deliberado, constituir a favor do autor hipoteca sobre as fracções autónomas referidas;

o) Os outorgantes declararam que "Nesta data, a quantia referida é entregue pelo Banco por crédito na conta dos primeiros outorgantes da alínea a)" (CC e DD) com o número 000000408, aberta junto do "BANCO AA, SA. ":

p) O contrato de mútuo referido nas alíneas anteriores foi objecto de aditamento celebrado a 10 de Abril de 2014, nos termos e condições constantes dos documentos juntos a fis. 33 verso e seguintes, cujo teor se dá aqui por reproduzido;

q) As quantias referidas nas alíneas h) e m) foram creditadas na conta de CC e DD, aberta junto do banco autor;

r) CC, relativamente a ambos os acordos descritos, não pagou ao autor, nem na data do respectivo vencimento, nem posteriormente, as prestações vencidas a 25 de Setembro de 2014.

2. O direito

2.1 O acórdão recorrido, no seguimento da sentença de 1ª instância, julgou a acção improcedente absolvendo os Réus do pedido (reconhecer ao Banco Autor um crédito, no valor global de 259 524,33€, garantido por hipoteca constituída em dois imóveis propriedade da BB, LDA, que foi declarada insolvente) considerando que o Banco não tinha demonstrado, como se lhe impunha, o interesse económico próprio da sociedade insolvente por forma a justificar a prestação da garantia a seu favor. Esta decisão mostra-se alicerçada na seguinte ordem de argumentos:

- A regra ínsita no artigo 6.º, n.º3, 1ª parte, do CSC - falta de capacidade jurídica das sociedades comerciais para prestarem garantias a favor de outras entidades –, cede perante duas situações: justificado interesse próprio da garante e sociedade em relação de domínio ou de grupo;

- Qualquer uma destas situações (excepcionais), enquanto condição de validade da garantia prestada, teria de ser demonstrada pelo beneficiário da garantia;

- No caso, não obstante constar das respectivas escrituras públicas que parte dos empréstimos concedidos aos mutuários visava a liquidação de responsabilidades assumidas pela sociedade garante, não foi demonstrada tal realidade.     

2.2 A Recorrente defende que, ao invés do decidido, incumbe à insolvente a demonstração da violação do princípio da especialidade previsto no artigo 6.º, do CSC. Evoca em sustento do seu posicionamento entendimento jurisprudencial e doutrinário (que refere ser maioritário) que considera que o ónus da prova de inexistência de justificado interesse da sociedade recai sobre a sociedade garante[1], fazendo ênfase num argumento de contingência probatória: sendo o justificado interesse avaliado em referência à actividade social e contabilística da empresa, só a sociedade garante se encontra em condições de poder produzir tal prova.

Na sua argumentação a Recorrente descora, porém, que a questão de saber a quem incumbe fazer a prova de determinado facto não é apriorística pois que, sendo decidida pelo tribunal no caso de não ter sido feita a demonstração do facto, é sempre avaliada, na situação concreta, em função do direito invocado e da pretensão deduzida.

Vejamos.


2.3 Conforme resulta da factualidade assente no processo (nºs7, 12 e 17), através de escrituras públicas outorgadas a 10 de Novembro de 2006, o banco aqui Recorrente celebrou com CC e com DD dois contratos de mútuo, tendo as quantias mutuadas (263.400,33€ e 46.532,57€) sido creditadas na conta destes aberta junto do banco mutuante.
Para garantia dos referidos empréstimos, a sociedade BB, Lda., posteriormente declarada insolvente, constituiu a favor do Banco mutuante hipotecas sobre dois imóveis sua propriedade, que foram apreendidos para a massa insolvente (n.ºs 1,3, 4, 5, 6, 9 e 14 dos factos provados).
Em ambas as escrituras a BB, Lda., representada pelos seus dois sócios (o mutuário CC e EE) emitiu a seguinte declaração: “(…) tendo em vista que parte do empréstimo que se vai efectuar ao sócio CC e DD, é também para liquidação de responsabilidades assumidas pela sociedade que representam e que o referido CC é o sócio maioritário, verificando-se assim interesse justificado no acto a praticar e, como tal, cumprido o pressuposto da segunda parte do número três do artigo sexto do Código das Sociedades Comerciais, neste acto.” – n.ºs 7 e 12 dos factos provados.     

Mostra-se incontroverso nos autos que a situação fáctica delineada, porque referente à prestação por parte da sociedade da garantia real relativamente a dívidas de outra entidade, prende-se com a sua capacidade (de gozo) e, como tal, regulada pelo artigo 6.º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), mais precisamente pelos seus n.ºs 1 e 3, onde se preceitua: “1. A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular. (…) 3. Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo”.

Sendo o lucro o fim da sociedade comercial (cfr. artigo 980.º, do Código Civil) e uma vez que a lei, imperativamente, faz aferir e limitar a capacidade da mesma pelo fim lucrativo que lhe é inerente[2], a prática de um acto fora das condições legalmente prescritas (que não seja necessário nem conveniente à prossecução do seu fim) mostra-se ferido de nulidade, nos termos do artigo 294.º, do Código Civil[3].

Por conseguinte, como expressamente refere o n.º3 do artigo 6.º da CSC, a prestação de uma garantia real a dívidas de outras entidades não se assume, à partida, no âmbito do escopo lucrativo; como tal, constitui acto contrário ao seu fim.      

Todavia, salvaguarda o referido preceito, que cairá fora do âmbito dos actos contrários ao fim da sociedade a prestação de garantia no caso de existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou tratando-se de sociedades em relação de domínio ou de grupo.

Nesta ordem de ideias e para o que aqui assume cabimento (porquanto se evidencia não estar em causa a situação referente à última ressalva), a constituição pela sociedade posteriormente declarada insolvente das (duas) hipotecas sobre imóveis seus a favor do Banco Recorrente, para garantia de empréstimos concedidos a pessoas singulares, consubstancia acto nulo, vício de conhecimento oficioso – artigo 286.º, do Código Civil.

Esta nulidade, porém, não ocorrerá se existir justificado interesse próprio da sociedade garante.

Da matéria de facto apurada pelas instâncias não é possível concluir pela ocorrência desta excepção porquanto não foi demonstrado o justificado interesse próprio da sociedade na prestação da garantia.

Com efeito, não obstante a sociedade garante ter declarado nas escrituras que prestava as garantias aos empréstimos para liquidação de responsabilidades suas, tal declaração não se encontra abrangida por força probatória plena do documento autêntico[4] pois que apenas os factos dados por praticados ou atestados pelo oficial público com base na sua percepção têm força probatória plena (artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil) [5].

Nesta medida, no caso, a força probatória plena decorrente da celebração das escrituras públicas e relativamente às declarações em causa restringe-se unicamente à circunstância de ter sido atestado pela entidade pública que, perante si, foi declarado que os empréstimos concedidos se destinavam em parte à liquidação de responsabilidades da sociedade garante.

Não se mostrando provado que a sociedade tivesse interesse na prestação das garantias, há que concluir que não se encontra preenchido o interesse justificado próprio da sociedade garante a que alude a parte final do disposto no n.º 3 do artigo 6.º do CSC.

Perante a falta de demonstração deste elemento importará retirar as devidas consequências fazendo funcionar as regras de ónus da prova[6].

O princípio geral para averiguar a quem incumbe a prova dos factos é o que resulta do artigo 342.º, do Código Civil: àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, sendo que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extensivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (nºs. 1 e 2 do referido preceito). 

Assim, a reclamação do crédito enquanto crédito garantido, (invocando as hipotecas constituídas a seu favor pela sociedade insolvente), atenta a nulidade de que os actos, à partida, se revestem, impunha ao Banco aqui Recorrente, o ónus de alegar e provar a excepção à referida regra, isto é, de que, no caso, existiu justificado interesse da sociedade na prestação das referidas garantias reais.

O justificado interesse da sociedade na prestação das garantias surge, por isso, como facto constitutivo da validade das garantias e do direito do Banco reclamante ver o seu crédito reconhecido como privilegiado. Por consequência, o ónus de provar tal circunstância teria de recair sobre o beneficiário da garantia, in casu a credor reclamante ora Recorrente – artigo 342.º, n.º1, do Código Civil.

A este propósito refere Soveral Martins “Se é invocado um justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação da garantia, quem tem o ónus de alegar e provar que aquele interesse existe é aquele que tem interesse em afirmar a validade da garantia. Para que a garantia deva ser considerada nula, basta que não se prove que existe esse justificado interesse próprio da sociedade garante. Não é, por isso, necessário que o terceiro soubesse ou não pudesse ignorar que esse justificado interesse próprio não existia. Esta conclusão parece inequívoca atendendo ao que se lê no art. 6.º, 3: aí se estabelece, logo à partida, que «Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias». É certo que, muitas vezes, a própria sociedade declara, ao prestar a garantia, que existe um justificado interesse próprio. Só por si, isso não significa que a invocação posterior, pela sociedade, da inexistência desse mesmo interesse constitua um abuso de direito. Em muitos casos, nenhuma expectativa de terceiros existe que deva ser tutelada. Os terceiros estão obrigados a conhecer a lei e os limites que esta fixa para a capacidade das sociedades comerciais. Os terceiros estão obrigados a saber que as sociedades comerciais existem para buscar o lucro (…). E se a sociedade presta a garantia a dívida de outrem alega que tem um justificado interesse próprio, o terceiro ou controla se isso é verdade, ou arrisca e sujeita-se às consequências, ou recusa a garantia[7].

Como se encontra salientado no excerto transcrito, nos casos em que é a própria sociedade garante quem invoca a nulidade das garantias por si prestadas, ainda que tal não integre, necessariamente, uma situação de abuso de direito, assume cabimento impor sobre a mesma, enquanto arguente e beneficiária da nulidade, o ónus de demonstrar a inexistência de justificado interesse próprio. Nesse sentido o tem entendido a jurisprudência deste Tribunal[8] alicerçada em duas ordens de razões:

- por a sociedade ter tomado posições contrárias à boa fé, a sancionar com a inversão do ónus da prova;

- por a sociedade se encontrar em posição privilegiada para fazer prova de tal facto – artigo 344.º, do Código Civil. 

Tal posicionamento, todavia, não assume assento no caso dos autos por a situação se reportar a acção proposta pelo credor reclamante que se quer valer das garantias prestadas (e a quem compete demonstrar essa validade – artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).

Por outro lado, a excepção de nulidade das garantias foi deduzida não pela sociedade que as prestou, a devedora insolvente, mas pela massa insolvente, património autónomo que com a primeira se não confunde e que, por existir apenas com o processo insolvencial, não lhe pode ser atribuída posição probatória privilegiada do (des)interesse da sociedade aquando da prestação das garantias – artigo 146.º, n.º1, do CIRE.

Improcedem, pois, as conclusões de recurso.

IV. DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 16 de Novembro de 2017

Graça Amaral – Relatora

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

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SUMÁRIO

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[1] Alega a Recorrente que o acórdão recorrido se encontra em oposição com vários acórdãos proferidos por este Tribunal: de 21-09-2000, de 13-05-2003 (processo n.º 3425/01), de 28-05-2013 (processo n.º 300/04.0TVPRT-A.P1.S1), de 26-11-2014 (processo n.º 1281/10.7TBAMT-A.P1.S1).   
[2] A capacidade de gozo da sociedade comercial abrange os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do fim lucrativo, visando a limitação legal na actuação da sociedade a protecção dos interesses de terceiros, designadamente dos credores. 
[3] Neste sentido e entre outros cfr. Acórdãos deste Tribunal de 28-10-2003, Processo n.º 3A2485 e de 28-05-2013, revista n.º 300/04.0TVPRT-A.P1.S1, acessíveis através das Bases Documentais do IGFEJ.
Na doutrina cfr., designadamente, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 187; Engrácia Antunes, Direito das Sociedades, 2010, pág. 237; Henrique Mesquita, “parecer”, ROA, 1997, pág. 721-737; João Labareda, “Nota sobre a prestação de garantias por sociedades comerciais a dívidas a outras entidades”, Direito Societário Português – Algumas Questões, Quid Juris, Lisboa, 1998, p. 167-195; Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Almedina, Coimbra, 2009, p. 91; Pinto Furtado, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, arts. 1.º ao 19.º(…)”, Almedina, Coimbra, 2009, p. 26.
[4] As escrituras públicas de mútuo com hipoteca celebradas são documentos autênticos por nelas ter intervenção oficial público (notário) cuja falta de competência não foi posta em causa (artigo 369.º, n.º 1, do Código Civil).
[5] Cfr. Acórdão deste Tribunal de 19-01-2016, Revista n.º 893/05.5TBPCV.C1.S1, onde consta do respectivo sumário: .A força probatória plena dos documentos autênticos circunscreve-se às percepções neles afirmadas pela autoridade ou oficial público documentador, já não à sinceridade, genuinidade ou verdade das declarações dos intervenientes, ou a factos que não possam por ele ser comprovados cientificamente., acessível através das Bases Documentais do IGFEJ.
[6] Doutrina do ónus da prova pode assim ser chamada a doutrina dos efeitos da falta de prova - Prof. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 447.
[7] Código das Sociedades Comerciais em comentário, Volume I, Almedina, 1ª edição, 2010, 1998, p.110-111.  
[8] Cfr. entre outros Acórdãos de 30-09-2004, Processo n.º 04S2540, de 17-06-2004, Processo n.º 04B1773, de 07-10-2010, Revista n.º 291/04.8TBPRD-E.P1.S1, de 28-05-2013, Revista n.º 300/04.0TVPRT-A.P1.S1 (citado pela Recorrente); de 26-09-2013, Revista n.º 213/08.7TJVNF-A.P2.S1, de 26-11-2014, Processo n.º 1281/10.7TBAMT-A.P1.S1 (citado pela Recorrente), acessíveis através das Bases Documentais do IGFEJ.