Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2058/15.9T8PRD.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: TÁVORA VICTOR
Descritores: ABUSO DE DIREITO
PRESSUPOSTOS
RESERVA DE USUFRUTO
FORMALIDADES
ALEGAÇÕES DE RECURSO
MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE SENTENÇA
RECLAMAÇÃO
NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / ATOS PROCESSUAIS / CUSTAS, MULTAS E INDEMNIZAÇÕES – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / CADUCIDADE / PROVAS – DIREITO DAS COISAS / USUFRUTO, USO E HABITAÇÃO.
Doutrina:
-Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 8.ª Edição;
-Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, Almedina, Coimbra, 6.ª Edição, 514 e ss.;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Volume I, 4.ª Edição.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 197.º, 543.º, 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), 635.º, N.º 3, 639.º, N.º 2, 641.º, 674.º, N.º 3 E 690.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 341.º, 342.º, 1439.º, 1441.º, 1445.º, 1449.º-A, 1484.º, 1485.º, 1486.º, 1487.º.
Sumário :
I - As formalidades devem estar ao serviço da substância das questões e não o contrário. O CPC limita-se a expender genérica e abstractamente os requisitos a observar na prática dos actos processuais; mas só a indispensável mediação judicial permitirá aquilatar da maior pertinência de requisitos a observar caso a caso nas situações concretas.

II - As alegações de recurso de um acórdão não podem restringir-se a meras conclusões limitando-se a uma reprodução conceitual legal antes deverão ainda densificar factualmente os conceitos jurídicos empregues.

III - A ter sido praticada a nulidade de omissão de pronúncia, verifica-se que a mesma terá ocorrido na 1.ª instância, pelo que seria ali (ou no recurso para a Relação) a sede adequada para o levantamento da questão.

IV - Em sede de "abuso do direito" não basta qualquer desvio do estrito fim do direito em análise. Exige a lei que tal desvio seja manifesto, independentemente da existência de intencionalidade do acto sindicado. O instituto em causa visa reconduzir o exercício do direito a limites aceitáveis em face das concepções existentes na ordem jurídica.

Decisão Texto Integral:    

1. RELATÓRIO.


     1. AA veio propor contra os Réus BB, CC e DD a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo a sua condenação solidária a reconhecer o seu direito de usufruto relativamente ao prédio descrito no artigo 6.º da petição inicial e a restituírem-lho, livre de pessoas, coisas e animais, abstendo-se de perturbar-lhe a sua posse, bem como a indemnizá-la num valor nunca inferior a € 250,00 por cada mês que ocupem o imóvel desde a data da interpelação escrita, referida no ponto 22.º da petição inicial, até à data em que o entreguem livre e desocupado de pessoas, coisas e animais e respectivas chaves.

     Para tanto alegou que, por escritura pública de doação, outorgada em 16-01-2008, doou, juntamente com o seu marido, ao filho de ambos, EE, o prédio identificado no artigo 6.º da petição inicial, para si reservando o usufruto. Em 19-12-2009, o filho e a namorada, a Ré BB, decidiram viver juntos, com os filhos desta, no primeiro andar da casa doada, com excepção de um quarto onde estava acamado o marido da Autora, o que ocorreu com o seu consentimento e do marido. Detectado, em 08-09-2012, um cancro a EE, em 10-12-2012, este casou com a Ré BB, com o único objectivo de lhe assegurar uma reforma. EE faleceu em 11-12-2012. Alguns meses depois, interpelou os Réus para desocuparem o imóvel, o que estes recusam fazer, impedindo-a da sua utilização e fruição plena. Esse facto causa-lhe um dano correspondente ao valor locativo da área ocupada, que calcula em € 250,00 mensais.


    2. Os Réus deduziram contestação, alegando que a Ré BB começou a namorar com o filho da Autora no ano de 2003, vindo a casar com o exclusivo fim de beneficiar e proteger o seu futuro. A Autora e o seu marido bem sabiam, desde a celebração da escritura pública de doação, que era intenção do filho viver no prédio em causa juntamente com os pais e os Réus, pelo que o usufruto estipulado foi a forma legal encontrada para assegurar uma habitação para a Autora e marido até à sua morte. A casa de banho e sala do primeiro andar, também podem ser usadas pela Autora e marido, o que aquela não faz porque não quer. O usufruto teve sempre como condição a partilha do prédio, pelo que as obras do prédio foram efectuadas e pagas pelo filho da Autora, o EE. Foram feitas após a escritura de doação e para permitir que os Réus fossem para lá viver. Enquanto herdeira do EE, a Ré BB tem direito ao uso e habitação do prédio, que não colide com o direito de usufruto da Autora. De todo o modo, esta excede os limites impostos pela boa fé e age com abuso do direito. Concluíram pela improcedência da acção e absolvição do pedido.

    3. Foi realizada audiência prévia e elaborado despacho saneador.

    4. A Autora deduziu ampliação do pedido, pedindo a condenação dos Réus em indemnização de 10.000,00 euros por danos não patrimoniais padecidos e de 4.000,00 euros por litigância de má-fé. Foi proferido despacho de não admissão do primeiro pedido.

     5. Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo e foi pronunciada sentença com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:

   A) Condenaram-se os RR. a reconhecer o direito de usufruto da A. relativamente o prédio descrito no ponto B) dos factos dados como provados e nos termos constantes do ponto W) dos factos provados;

   B) Absolveram-se os RR. do demais peticionado pela A.».


     6. A Autora recorreu da sentença, tendo a Relação do Porto julgado parcialmente procedente a apelação e em consequência revogou em igual medida a sentença recorrida, reconhecendo o direito de usufruto da Autora AA sobre o prédio urbano sito na Rua … n.º … em Parada …, concelho de …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 880 e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o artigo 892.º e condenar os RR. BB, CC e DD a restituir-lho livre de pessoas, coisas e animais e abster-se de perturbar a sua posse mantendo a decisão quanto ao demais sentenciado.

     Por seu turno, inconformados com o decidido por último, recorreram os RR., agora de revista, tendo no fim de tudo quanto alegaram pedido a revogação do acórdão da 2ª instância. 

     Foram para tanto apresentadas as seguintes,


     Conclusões.


    1. Com o devido respeito pela decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto e, salvo melhor opinião, cremos, que esta não procedeu a uma correcta e ponderada aplicação do direito aos factos provados devendo a mesma ser revogada.

    2. Igualmente, cremos que o acórdão de que se recorre não fez uma correcta e ponderada interpretação da prova produzida em sede de audiência de julgamento e sua submissão ao direito.

    3. Em primeiro lugar, importa salientar que segundo o estipulado no art.° 639.º n° 2 do CPC quando o recurso incida sobre matéria de direito, como também era o caso do recurso interposto pela aqui recorrida, para o Tribunal da Relação do Porto, as conclusões deveriam de ter indicado: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada, o que, salvo melhor opinião, a aí recorrente, aqui recorrida, não cumpriu com tais ónus. (sic)

    4. Em segundo lugar, e salvo melhor opinião, a decisão proferida em 1ª Instância não apreciou os pedidos deduzidos sob as alíneas b) e c) do requerimento de ampliação do pedido apresentado nos autos pela autora a fls., não fazendo quaisquer considerações de direito ou de facto sobre os mesmos.

    5. Tal omissão constitui uma nulidade prevista no art.° 615°, n° 1, al) d) do CPC, que para os devidos efeitos se invoca.

    6. Depois, cremos igualmente que o Tribunal recorrido não apreciou convenientemente as questões jurídicas que lhe foram submetidas, não fazendo uma justa e correcta interpretação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, que necessariamente, impõem, salvo melhor opinião, solução diferente da sufragada.

    7. Sempre com o devido respeito, o Tribunal a quo violou disposições de direito probatório substantivo, nomeadamente, o disposto nos artigos 1439°; 1441°; 1445°; 1484°; 1485°; 1486º; 1487° e 341°; 342° todos do CC.

    8. Com efeito e, com o devido respeito, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, alterou a resposta aos pontos O); T); U); V) e X dando-os como provados nos termos aí melhor descritos, sem a prova legalmente exigida.

    9. Dando consequentemente como não provado o que tinha sido dado com provado em 1ª instância, apesar da prova legalmente impor que fosse dado como provado nos termos dados em 1ª instância.

    10. Também, o Tribunal a quo alterou os factos dados como provados em W pelo Tribunal de 1ª Instância, não obstante, não ter sido objecto de impugnação por parte da aí recorrente, aqui recorrida, conforme aliás salientado pelos aqui recorrentes em sede de alegações, o que salvo melhor opinião não o deveria ter feito.

     Ora,

    11. Tais factos supra-referidos foram alterados pelo Tribunal a quo sem a prova legalmente exigida, apesar da prova, impor, que tais factos fossem dados como provados nos termos referidos na douta sentença proferida em sede de 1ª Instância.

   12. Depois, por não ter sido objecto de impugnação por parte da recorrida, deveriam ter sido dados como provados, nomeadamente, os factos dados como assentes e provados constantes nas alíneas A); B); C); D); E); F); G); H); 1); J); K); LJ; M); N); Q); Rj; S); W) e, como não provado os factos constantes nos pontos lj; 2); 3); 4); 5); 6); 7); 8); 9);11) da douta sentença de 1ª instância.

   13. Tendo ainda em consideração que a recorrente não impugnou, nomeadamente, os factos dados como assentes e provados constantes nas alíneas F); M); N); R); S); W) e os factos dados como não provados constantes nos pontos 2); 4); 5); 6); 8); 9) o recurso, salvo melhor opinião, nunca poderia ter sido procedente, sob pena de entrar em contradição com estes factos dados por assentes, provados e não provados.

   14. Acresce que, existe igualmente uma clara e errada interpretação da prova produzida em sede de audiência de julgamento.

   15. Também, e sempre com o devido respeito por opinião diversa, cremos, não assistir razão ao Tribunal da Relação do Porto nas considerações de direito que faz no o acórdão recorrido.

    16. Na verdade, o art.º 1450.º, do Código Civil, proclama o princípio segundo o qual cabe ao título constitutivo do usufruto a fixação dos direitos e obrigações do usufrutuário, revestindo as disposições legais reguladoras do instituto mero carácter supletivo,

    17. Assim, existe a possibilidade legal, conforme acontece no caso dos autos, já que, é o próprio título constitutivo do usufruto que declara que o prédio doado pela Autora ao seu filho José Pereira, se destina exclusivamente a habitação.

    18. Depois, conforme resulta igualmente dos autos e da matéria dada como provada a usufrutuária, aqui recorrida, sempre habitou o referido prédio, primeiro com o seu filho EE e outros filhos, e depois também com os RR, partir de 19/12/2009, até à presente data.

    19. Pelo que, ao habitar nos moldes referidos na sentença proferida em 1ª Instância e alegados pela própria recorrente na sua douta PI, a aqui recorrida não prescinde nem está impedida do seu poder de fruição.

    20. Sendo certo que, o direito de usufruto da A., aqui recorrida, não foi constituído de forma exclusiva, mas sim, com a restrição de a Autora partilhar o prédio com o seu falecido filho, EE, e os RR. aqui recorrentes.

    21. Ainda e sem prescindir do supra exposto, o comportamento da Autora, aqui recorrida, ao formular o pedido dos autos configura, salvo melhor entendimento, um exercício de um direito de forma abusiva e injustificada.

    22. O comportamento assumido pela recorrida vai contra a realidade dos factos praticada ao longo dos últimos anos.

    23. Com efeito, a recorrida, desde 19 de Dezembro de 2009, que vive com a Ré e os seus filhos, partilhando e usando a casa em comum.

    24. Tudo com o conhecimento e aprovação da Autora, aqui recorrida.

    25. O falecido marido da Ré, EE, ao casar com a Ré teve o intuito claro de instituir a aqui recorrente como sua herdeira e, deste modo a favorecer, salvaguardando para futuro a sua residência/habitação que até então vinham partilhando com a aqui autora, ora recorrida.

    26. Não se apresenta razoável, justo, ponderado que ao fim destes anos venha a aqui recorrida requer a entrega da casa para usufruir da mesma em exclusivo.

    27. Tal comportamento agora assumido vai frontalmente contra o praticado pela Autora ao longo dos últimos anos.

    28. Tanto mais que os RR., conforme consta provado dos autos, não dispõem de outra habitação, ao que acresce que, a casa sub iudice, onde habitam, sofreu obras, antes de os RR. irem para aí habitar, tudo com claro intuito de permitir e criar condições para isso, como continuou a sofrer obras durante o período que os RR aí permanecem para melhor e permitir a sua habitabilidade em conjunto com o falecido marido da Ré, o EE, a Autora o seu falecido marido, os seus filhos, tudo com o conhecimento e consentimento da autora.

    29. A Autora desde o inicio, que criou, no mínimo, fundadas e legítimas expectativas nos RR. em dividir e partilhar a casa com eles.

    30. Ao actuar da forma supra descrita, a recorrida, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, e, por isso, age com abuso de direito.

    31. Violou assim a sentença entre o mais o disposto nos arts.º 1439°; 1441°; 1445°; 1484°; 1485°; 1486; 1487°, 334°; 341°; 342° todos do CC.


Contra-alegaram os recorridos pugnando pela confirmação do decidido.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


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2. FUNDAMENTOS.


O Tribunal da Relação deu como provados os seguintes,


2.1. Factos.


2.1.1. A A. casou com FF no dia 01-01-1956, no regime da comunhão geral e em primeiras núpcias de ambos, que se extinguiu com a morte deste, no dia 13 de Agosto de 2015, nos termos constantes do assento de casamento inserto a fls. 8 dos autos e que se dá por integralmente reproduzida.

2.1.2. Por escritura pública de doação outorgada em 16-01-2008, no Cartório Notarial a cargo da Notária GG, deste concelho, exarada a folhas 109 a 110 verso do respectivo livro 109, a A. e o marido doaram ao seu filho EE o prédio inscrito na matriz predial urbana sobre o artigo 880 e descrito na competente Conservatória de Registo Predial sob o n.º 8…/20…4, composto por casa de rés-do-chão e andar, com logradouro junto, nos termos constantes de fls. 31 a 37 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas.

2.1.3. Na escritura pública de doação identificada em B) consta que a ora A. e marido doam a EE o prédio aí identificado “com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo até à morte do último a favor dos doadores”.

2.1.4. A aquisição da raiz ou nua propriedade do prédio identificado em B) a favor do filho da A., EE, bem como a reserva de usufruto a favor da A. e do seu marido constam da apresentação 6, de 24-01-2008.

2.1.5. EE e a sua namorada, aqui 1ª R. BB, decidiram viver juntos.

2.1.6. O EE e os ora RR. passaram, a partir do dia 19-12-2009, a deter individual e materialmente praticamente todo o primeiro andar da habitação referida em B), com excepção do quarto onde se encontrava acamado o marido da ora A.

2.1.7. No dia 08-09-2012 foi detectado um cancro a EE, então com 56 anos de idade, cuja doença, já numa fase avançada, não permitiu que os médicos ou os tratamentos a que se submeteu, a vencessem.

2.1.8. EE faleceu no dia 11-12-2012, nos termos constantes da certidão junta a fls. 39 e 40 dos autos e que se são por integralmente reproduzidas.

2.1.9. No dia 10-12-2012, EE contraiu matrimónio com a R. BB no regime imperativo da separação de bens.

2.1.10. O Ilustre Mandatário da A. remeteu à 1ª R. carta registada com aviso de recepção datada de 30-12-2014, nos termos constantes de fls. 44 a 46 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas, recepcionada pela 2ª R. em 02-01-2015.

2.1.11. Todavia, até hoje os RR. sempre se recusaram a fazê-lo, pelo que, contra a vontade da A. e, enquanto vivo, o seu marido, continuam a deter materialmente parte do referido imóvel.

2.1.12. A R. BB começou a namorar com o filho da Autora, EE, no início do ano de 2003.

2.1.13. Os RR. não possuem outra habitação.

2.1.14 O marido da A. esteve acamado vários anos, vivendo e utilizando o quarto que se situa no 1.º andar da casa.

2.1.15. Desde 19-12-2009 que os Réus e a Autora habitam no prédio descrito em B) e, até aos respectivos óbitos, os falecidos marido e filho da Autora, EE.

2.1.16. As obras no prédio identificado em B) iniciaram-se depois da celebração da escritura de doação do prédio, tendo como fim permitirem que o EE fosse para aí viver com a sua companheira e os seus filhos, em união de facto, o que sucedeu.

2.1.17. Quem efectuou as obras no prédio identificado em B) para o EE foi o seu irmão HH, que é empresário da construção civil.

2.1.18. Foi o falecido marido da 1ª R. que contratou e pagou as obras efectuadas no prédio em causa.

2.1.19. Os RR. têm usado e habitado, desde 19 de Dezembro de 2009, de forma ininterrupta, o prédio em causa;

2.1.20. O casamento referido em L) foi celebrado para beneficiar a ré BB e os seus filhos, garantindo-lhes a herança e a reforma do EE.

2.1.21. 2.1.22. 2.1.23. Provado apenas o que consta da escritura de doação referida em B) e C).

2.1.24. Os Réus ocupam o primeiro andar da casa, à excepção de um quarto, e uma divisão no rés-do-chão.

2.1.25. A Autora e o seu falecido marido consentiram que o EE levasse os Réus para viverem consigo na casa identificada em B).

2.1.26. A casa aludida em B) é uma habitação restaurada, com condições de habitabilidade.


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   2.2. O Direito.


     Nos termos do preceituado nos arts.º 608º n.º 2, 635.º n.º 3 e 690º n.º 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- Questões prévias.

- Mostra-se violado o artigo 615.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil? 

- A problemática da alteração da matéria de facto.

- Da inexistência de abuso do direito por parte da Autora.



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2.2.1. Questões prévias.


    Preliminarmente à abordagem dos pontos substanciais do recurso apontam os requerentes várias questões. Referem à partida que não se mostram cumpridos os ónus a que se reporta o artigo 639.º n.º 2 do Código de Processo Civil. É o seguinte o teor do aludido normativo legal: “– O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

 2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:

   a) As normas jurídicas violadas;

    b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;

    c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.


 3 – Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afectada.

 4 – O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.

5 – O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei”. 


Quanto a esta matéria diremos que as formalidades devem estar ao serviço da substância das questões e não o contrário. O Processo Civil limita-se a expender genericamente os requisitos a observar na prática dos actos processuais; mas só a indispensável mediação judicial permitirá aquilatar da maior pertinência de requisitos a observar caso a caso nas situações concretas.


As omissões que os recorrentes apontam ao acórdão recorrido praticamente apenas de forma conclusiva limitando-se a uma reprodução conceitual/legal não reportam factos. E, de qualquer forma, tal não impediu que a outra parte pudesse inteirar-se das questões e que o Tribunal dispusesse de todos os elementos em ordem a decidir a questão de forma que entendeu pertinente.

Improcedem, pois, as considerações proferidas neste particular.


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2.2.2. Mostra-se violado o artigo 615.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil?


Os RR. vêm arguir de nulo o acórdão da Relação, na medida em que a Relação não se terá pronunciado sobre questões cujo conhecimento se imporia – Cfr. artigo 615.º n.º 1.


 “1 – É nula a sentença quando:

   a) Não contenha a assinatura do juiz;

   b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

    c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

     d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

     e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.


    2 – A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.

  3 – Quando a assinatura seja aposta por meios electrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.

4 – As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”. 


No caso em análise os RR. alegam que o Juiz não se pronunciou sobre questões que deveria ter abordado – alínea d) do n.º 1 do citado normativo legal”.

Assim a Autora AA, já depois de ter sido iniciado o julgamento, requereu a ampliação do pedido no que toca à condenação da Ré no pagamento da indemnização de € 10.000,00 a título de “danos não patrimoniais” pedindo ainda que os ora recorrentes fossem condenados como litigantes de má-fé e por último que os RR., aqui recorrentes, fossem ainda condenados na indemnização de € 4.000,00 a título de indemnização nos termos do previsto no artigo 543.º do Código de Processo Civil. O Tribunal de 1ª instância não admitiu o pedido de indemnização de € 10.000,00, nos termos fundamentados; quanto aos pedidos deduzidos nas alíneas b) e c) da ampliação do pedido, remeteu a sua apreciação para a sentença final. Mas este último aresto não apreciou tais pedidos, não fazendo quaisquer considerações de direito e de facto sobre a requerida condenação por litigância de má-fé.

 Independentemente de quaisquer outras considerações há a considerar de decisivo somente o seguinte: A ter sido praticada a nulidade de omissão de pronúncia verifica-se que a mesma terá ocorrido na 1ª instância, pelo que seria ali ou no recurso para a Relação a sede adequada para o levantamento da questão. Estatui o artigo 641.º do Código de Processo Civil que “1 – Findos os prazos concedidos às partes, o juiz aprecia os requerimentos apresentados, pronuncia-se sobre as nulidades arguidas e os pedidos de reforma, ordenando a subida do recurso, se a tal nada obstar.

  2 – O requerimento é indeferido quando:

 a) Se entenda que a decisão não admite recurso, que este foi interposto fora de prazo ou que o requerente não tem as condições necessárias para recorrer;

   b) Não contenha ou junte a alegação do recorrente ou quando esta não tenha conclusões.


     3 – (…)

     4 – (…)

     5 – (…)

     6 – (…)

     7 – (…)



Não tendo ocorrido a reclamação atempada da nulidade só o tendo sido neste Supremo Tribunal de Justiça sempre a alegada nulidade se teria de considerar-se sanada porque extemporaneamente alegada. 

  A acrescer às considerações tecidas e a reforçá-las dir-se-á que à mesma conclusão se chegaria atentando no artigo 197º do Código de Processo Civil, onde pode ler-se que “1 – Fora dos casos previstos no artigo anterior, a nulidade só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto”.

2 – Não pode arguir a nulidade a parte que lhe deu causa ou que, expressa ou tacitamente, renunciou à arguição.

Do exposto resulta que não tendo procedido à arguição atempada e no local próprio, a recorrente renunciou a fazê-lo.


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2.2.3. A problemática da alteração da matéria de facto.


Nos termos do preceituado no artigo 674.º n.º 3 do Código de Processo Civil “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”[1]. Passando em revista as alegações de recurso dos pontos 6 a 8, insurgem-se os recorrentes contra o acórdão em análise que no seu entender teria violado normas de direito probatório substantivo, nomeadamente os artigos 1439.º, 1441.º 1445.º, 1484.º, 1485.º, 1486.º, 1487.º, 341.º e 342.º do Código Civil; só que a Ré não concretiza minimamente onde se situa o vício cognoscível por este Tribunal que possa estribar a alteração do decidido, casos esses que têm de considerar taxativos e palpáveis sob pena de um alargamento inaceitável do âmbito do conhecimento da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça e que o Legislador do Código de Processo Civil pretendeu ver arrumada em segunda instância, não se bastando o tribunal com a mera enumeração seca de factos tendentes a fazer realçar a substância do vícios que apontam; é o que se passa com os factos dados como assentes e não provados a que a Autora se reporta na última parte da sua minuta de recurso a fls. 284 e seguinte onde dão continuidade a metodologia por si adoptada agravada até de certa forma, já que recorrendo a depoimentos para fundamentar a pretensão de alterar a matéria de facto. Este procedimento prolonga-se ao longo de toda a pronúncia sobre esta questão.

Improcedem, pois, as considerações expendidas pelos recorrentes a propósito deste item.


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2.2.4. Da inexistência de “abuso do direito” por parte da Autora.


Insurgem-se ainda os RR quanto ao decidido na 2ª instância na medida em que julgou procedeu à revogação do decidido na sentença e deu à Autora parcial ganho de acção, reconhecendo o direito de usufruto à impetrante AA sobre o prédio identificado nos autos condenando os RR. BB, CC e DD e DD e restituir-lho livre de pessoas, coisas e animais abstendo-se de perturbar a sua posse, mantendo tudo o demais sentenciado.

Estatui o artigo 334.º do Código Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Como válvula de escape do sistema ou Ventilbegriffe pressupondo a existência de um direito tem o instituto por finalidade conformar o exercício do mesmo dentro dos limites aceitáveis em determinado contexto sócio económico. Em princípio é a própria lei que fixa os limites dentro dos quais tal instituto deve funcionar na prática. Não basta com efeito qualquer desvio do estrito fim do direito em análise. Exige a lei que tal desvio seja manifesto e patente, independentemente da existência de intencionalidade do acto sindicado[2]. O Código Civil adoptou uma concepção objectiva do “abuso do direito”.

Revertendo ao caso concreto, analisando-o à luz dos conceitos basilares supra-referidos não vemos que possa concluir-se pela necessidade da intervenção moderadora do instituto, considerando também os factos provados. No fundo, a questão que apreciamos apresenta-se-nos como um vulgar litígio centrado no exercício de um direito de usufruto. Neste contexto não pode pretender-se que a Autora sendo titular daquele direito tenha de aceitar viver debaixo do mesmo tecto com os RR. situação susceptível de afectar em maior ou menor grau sua privacidade; e se bem que esta situação se tivesse mantido anteriormente pelo prazo de seis anos, nada implica que a Autora se veja impedida de romper com a situação e pretenda exercer a plenitude dos seus direitos como seu exclusivo titular que é, tal como vem configurado tal exercício no artigo 1439º do Código Civil, onde pode ler-se que o “usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito sem alterar a sua forma ou substância”; cfr. ainda o artigo 1449º. A pretensão dos RR. traduzir-se-ia, ela sim na ablação do direito da Autora na medida em que atinge o respectivo cerne numa das suas facetas mais relevantes. E não é o facto de o artigo 1441.º permitir o usufruto simultâneo que abala este entendimento; só que as duas situações não são equiparáveis, situando-se na génese daquele direito e tendo como fundamento o contrato, testamento e usucapião.

Nesta conformidade tendo aquando da outorga da doação do prédio a favor do filho os seus pais reservaram para si próprios o usufruto simultâneo e sucessivo até à morte do último.

Por todo o exposto a revista terá que ser negada.


Poderá destarte assentar-se à guisa de sumário e conclusões:


1) As formalidades devem estar ao serviço da substância das questões e não o contrário. O Processo Civil limita-se a expender genérica e abstractamente os requisitos a observar na prática dos actos processuais; mas só a indispensável mediação judicial permitirá aquilatar da maior pertinência de requisitos a observar caso a caso nas situações concretas.

2) As alegações de recurso de um acórdão não podem restringir-se a meras conclusões limitando-se a uma reprodução conceitual legal antes deverá ainda densificar factualmente os conceitos jurídicos empregues.

3) A ter sido praticada a nulidade de omissão de pronúncia verifica-se que a mesma terá ocorrido na 1ª instância, pelo que seria ali ou no recurso para a Relação a sede adequada para o levantamento da questão.

4) Em sede de “abuso do direito” não basta qualquer desvio do estrito fim do direito em análise. Exige a lei que tal desvio seja manifesto, independentemente da existência de intencionalidade do acto sindicado. O instituto em causa visa reconduzir o exercício do direito a limites aceitáveis, em face das concepções existentes no seio da ordem jurídica.


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3. DECISÃO.


Pelo exposto acorda-se em negar a revista.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 12 de Setembro de 2017


Távora Victor (Relator)

António Joaquim Piçarra

Fernanda Isabel Pereira

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1 Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela “Código Civil Anotado” I, 4ª Edição, em anotação ao artigo 334.º do Código Civil; Antunes Varela “Das Obrigações Em Geral, Almedina, Coimbra, 6ª Edição, 514 ss. Almeida Costa “Direito das Obrigações”, Almedina, Coimbra, 8ª Edição pags.