Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8214/13.7TBVNG-A.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÂO
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
EXTENSÃO DE COMPETÊNCIA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
ALVARÁ
LOTEAMENTO
TERRENO
DIREITO DE PROPRIEDADE
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO, PARTES DO TRIBUNAL / TRIBUNAL / COMPETÊNCIA INTERNA / EXTENSÃO E MODIFICAÇÕES DA COMPETÊNCIA – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE EM GERAL / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / DIREITO DE DEMARCAÇÃO.
Doutrina:
-Ana Fernanda Neves, Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF, E-pública revista electrónica de Direito Público, n.° 2, Junho 2014, in http://e-publica.pt/ambitodejurisdicao.html;
-Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª Edição (Reimpressão), 336 a 341;
-José Carlos Vieira de Andrade, Justiça Administrativa (Lições), 2016, 15.ª Edição, 100, 103 a 113;
-Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, 90 e 91;
-Mariana França Monteiro, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 507 e 508;
-Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2017, 3.ª Edição, 43, 161 a 181;
-Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª Edição, Almedina, 1034 e 1035;
-Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, Edições Lex, 1999, 30 a 32.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 64.º, 91.º, N.ºS 1 E 2, 629.º, N.º 2, ALÍNEA A), 635.º, N.º 4, 639.º, N.º 1, 671.º, N.ºS 2, ALÍNEA A) E 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1305.º, 1353.º, 1354.º E 1355.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 211.º, N.ºS 1 E 3.
LEI N.º 62/2013 DE 26 DE AGOSTO (LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO): - ARTIGO 40.º, N.º 1.
ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS (ETAF), APROVADO PELA LEI N.º 13/2002, DE 19 DE FEVEREIRO: - ARTIGOS 1.º E 4.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 12-01-2010, PROCESSO N.º 1337/07.3TBABT.E1.S1;
- DE 10-12-2015, PROCESSO N.º 83/14.6TVLSB.L1.S1;
- DE 13-10-2016, PROCESSO N.º 30249/14.2YIPRT.G1.S1;
- DE 29-11-2016, PROCESSO N.º 135/14.2T8MDL.G1.S1;
- DE 06-12-2016, PROCESSO N.º 886/15.4T8SXL.L1.S1;
- DE 02-03-2017, PROCESSO N.º 1920/13.8TBAMT-A1.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.

-*-


ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

- DE 03-10-1996, (PLENO) REC. 41.403;
- DE 26-02-1997, (PLENO) REC. 41 487;
- DE 02-02-1998, (PLENO) REC. 40247;
- DE 27-02-2003, REC. 285/03.

-*-

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- PROCESSO N.º 372/94, IN D.R. 07-09-1994;
- PROCESSO N.º 508/94, IN D.R. 13-12-1994;
- PROCESSO N.º 347/97, IN D.R. 25-07-1997.

-*-

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DOS CONFLITOS:

- DE 09-06-2010, PROCESSO N.º 12/10;
- DE 09-07-2014, PROCESSO N.º 32/14;
- DE 30-10-2014, PROCESSO N.º 37/1;
- DE 22-04-2015, PROCESSO N.º 01/15;
- DE 07-06-2016, PROCESSO N.º 33/15;
- DE 01-06-2017, PROCESSO N.º 02/16, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Não obstante ocorrer dupla conforme (decisões e fundamentação inteiramente coincidentes das instâncias, sem voto de vencido), versando o recurso sobre a fixação da competência material do tribunal judicial, é óbvia a admissibilidade da revista – arts. 629.º, n.º 2, al. a), 671.º, n.º 2, al. a), e n.º 3 (parte inicial), do CPC.

II - Como é doutrina e jurisprudência pacíficas, a competência em razão da matéria (ou jurisdição) afere-se em função da relação material controvertida configurada pelo autor, tendo presente que o sistema judicial não é unitário, mas constituído por várias categorias de tribunais, separados entre si, com estrutura e regime próprios.

III - Resultando da petição que os autores, fundamentalmente, o que pretendem é obter a área de terreno que dizem pertencer ao seu lote, ainda que para tanto seja necessária a destruição do anexo e das caixas de drenagem das águas que não se encontram implantadas nos locais indicados nos respectivos alvará e planta de loteamento, ou, em alternativa a redução do preço que pagaram, a questão central dirimenda consubstancia uma relação jurídica de direito privado.

IV - Para conhecer desse núcleo central é competente, em razão da matéria, o tribunal judicial, por assentar em alegado incumprimento contratual, ou melhor no cumprimento imperfeito ou defeituoso da compra e venda de um lote de terreno, com implicações no direito de propriedade dos autores (art. 1305.º do CC) e na definição das estremas do seu lote (arts. 1353.º a 1355.º do CC).

V - E, por outro lado, sendo este competente, em razão da matéria, para o conhecimento da questão principal ou fundamental submetida pelos autores ao escrutínio judicial, será também ele o competente para o conhecimento das restantes questões conexas, ainda que, isoladamente consideradas, estas pudessem cair no âmbito do foro administrativo.

VI - Esse alargamento de competência procura conferir celeridade na solução do litígio e simultaneamente atribuir plena eficácia à decisão judicial relativa à relação jurídica fundamental (art. 91.º, n.º 2, do CPC).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I AA e marido, BB, residentes em Vila Nova de Gaia, instauraram acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, DD e EE, residentes em …, Vila Nova de Gaia, alegando, em síntese, que:

Adquiriram aos Réus CC e DD um lote de terreno destinado à construção, inserido em loteamento desencadeado sob a responsabilidade do Réu EE, a favor do quem foi emitido o competente “alvará”, sendo que esse lote (com o n.º 5) havia anteriormente sido adquirido pelos 1.ºs Réus ao último (réu EE);

O dito lote de que são donos não dispõe da área que era suposto ter em face do que consta do referido “alvará”, o que se ficou a dever à actuação do Réu EE no levantamento topográfico que levou a cabo, para além de ter sido ocupado parcialmente com a construção dum anexo edificado pelo mesmo Réu, sem a competente licença, nas “traseiras” dos lotes n.º 4 e 5;

O Réu EE, na delimitação dos lotes, não procedeu à implantação dos marcos definidos no respectivo licenciamento referente à operação de loteamento, tão pouco, após a conclusão das obras de urbanização, tendo apresentado junto da entidade licenciadora levantamento topográfico actualizado;

A cobertura do aludido anexo construído pelo Réu EE representava um terraço acessível, em clara violação ao prescrito no art.º 84º do respectivo “Regulamento Municipal”, para além das câmaras das águas residuais e pluviais do lote 5 não terem sido executadas pelo mesmo Réu em conformidade com os respectivos projectos.

Com tais fundamentos, concluíram por pedir:

I) Ser o Réu EE condenado a cumprir as alíneas a) e b) das condições a que o titular do alvará ficou sujeito a cumprir, que constam na página 5 do despacho com referência 2002/62942, referente ao processo 332/00, licenciamento de operação de loteamento, com data de 2002.10.16:

"a) Concluídas as obras de urbanização o titular do alvará providenciará a marcação dos limites dos lotes com marcos de granito ou de betão armado, com as dimensões mínimas de 1,00 x 0,15 x 0,15 m, devendo ficar fora do solo de 0,30 m;

b) Após a conclusão das obras de urbanização e precedendo a recepção provisória das mesmas, o titular do alvará apresentará um levantamento topográfico actualizado (em triplicado) do loteamento na escala não inferior a 1/500, com a localização dos marcos que representam os limites dos lotes e de todas as infra-estruturas subterrâneas instaladas ...";

II) Ser o Réu EE condenado a dividir os lotes n.ºs 4 e 5 com a linha de meação devidamente delimitada, isto é, que os 35,72 m2 de diferença entre a área constante em alvará e a real, sejam divididos de forma proporcional entre os dois lotes e que a linha de meação seja perpendicular ao arruamento e proceder à alteração ao alvará com as referidas alterações;

III) Serem os Réus condenados a pagarem-lhes a indemnização de €2.424,00, resultante da redução da área do lote, bem como;

IV) a pagarem-lhes a indemnização correspondente ao dano causado na redução da área de edificação da construção principal e anexos de 16 m2, no valor de €6.754,00;

V) Ser o Réu EE condenado a restituir a área em falta ao lote 5, em 9,7 m2, causada pela indevida implantação do anexo construído ilegalmente no tardoz deste lote, com a respectiva demolição do anexo;

VI) Ser o Réu EE condenado a pagar-lhes a quantia de €1.237,00, caso não seja viável restituir essa área em falta devida ao desvio do anexo;

VII) Ser o Réu EE condenado a suprimir o acesso à cobertura do anexo;

VIII) Ser o Réu EE condenado a rectificar as câmaras de ramal de ligação (CRL) das águas pluviais e residuais conforme o projecto de loteamento aprovado, nomeadamente, elevar a CRL das águas residuais e reimplantar a CRL das águas pluviais, removendo a actual e procedendo ao seu enchimento com terra, ou condenar o 3.° Réu a pagar aos Autores a quantia de 3.850 euros, acrescidos de IVA, caso não proceda às alterações às CRls;

IX) Ser o Réu EE condenado a proceder à retirada da vedação que cerca a área de cedência do domínio público, zona verde, com 67,5 m2 e passeio público.

O Réu EE contestou, excepcionando a incompetência em razão da matéria do tribunal judicial para conhecer dos pedidos referidos em I), VII), VIII) e IX), antes essa competência cabendo aos tribunais administrativos, posto estar em causa o cumprimento de regulamentação que às respectivas entidades administrativas camarárias cabe controlar e fazer cumprir.

Os autores replicaram a pugnar pela improcedência da excepção.

A instância foi entretanto declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide, quanto ao pedido aludido em IX) e, quanto aos restantes – I), VII) e VIII) - foi proferida decisão a refutar a invocada excepção de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria.

Inconformado, apelou o Réu EE, com parcial êxito, tendo a Relação do Porto, alterado aquela decisão no tocante ao pedido I), atribuindo a competência para dele conhecer ao foro administrativo, mas mantendo a competência do tribunal judicial para conhecer dos dois outros pedidos.


Persistindo inconformado, interpôs o Réu EE recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

1) O presente recurso de revista é admissível nos termos do art. 671º, n° 2 al. a) do CPC.

2) A peticionada supressão de acesso à cobertura do anexo, ao abrigo do art. 84º, n° 2 do regulamento de taxas e compensações do Município de V. N. Gaia, porque tem por objecto a tutela de direitos e interesses de particulares devidamente fundados em normas de direito administrativo, constitui um litígio da competência dos tribunais administrativos nos termos do art. 4º, n° 1 al a) do ETAF (Lei 13/2002).

3) Tal competência, ao contrário do que pretende o douto Acórdão sob recurso, não lhes é retirada quando são ou podem ser privados os interesses e direitos a proteger por tal norma administrativa, e isto sob pena de esvaziar o alcance do art. 4º, n° 1 al a) do ETAF e manter a já arredada proibição dos Tribunais Administrativos poderem conhecer de questões de direito privado.

4) Por isso, o douto Acórdão recorrido ao considerar o tribunal comum competente para apreciar o pedido de supressão do acesso à cobertura do anexo por violação do art. 84º, n.° 2 do Regulamento Municipal de Taxas e Compensações, viola o art. 4º, n° 1 al a) do ETAF, que atribui tal competência aos Tribunais Administrativos, e ofende a competência dos órgãos municipais que têm de ser solicitados a actuar antes da intervenção judicial, tudo nos termos processualmente regulados no art. 37°, n°3 do CPTA.

5) As câmaras dos ramais de ligação fazem parte das redes de águas pluviais e residuais do loteamento, como tal foram executadas e, como obras de urbanização que são, foram, em conformidade com prévias vistorias efectuadas, nos termos do art. 87° do DL 555/99, de 16/12, recebidas provisoriamente em 2006 e definitivamente em 2008, pelo Município de V. N. Gaia que determinou o cancelamento da caução prestada pelo loteador pela sua boa execução.

6) Desta forma a verificação da boa execução dessas obras e a recepção delas, invocando expressamente o art. 87° do DL 555/99, ocorreu no domínio de uma relação jurídica administrativa de recepção de obras de urbanização, inserida numa relação jurídica administrativa mais ampla de loteamento.

7) Por isso, todos os litígios, como o atinente ao pedido VIII, emergentes dessa relação jurídica administrativa, caem sob a alçada da jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos do art. 10º, n.° 1 do ETAF, em vigor á data da propositura da acção, sendo o tribunal comum incompetente, em razão da matéria, para deles conhecer.

8) Deste modo, fez errada interpretação desse preceito - art. 1º, n° 1 do ETAF - o douto Acórdão recorrido que decidiu excluir da jurisdição administrativa o litígio atinente ao pedido VIII, por, apesar de emergir de relação jurídica administrativa, visar a defesa de interesses de ordem particular.

9) Deve o douto acórdão recorrido ser revogado, na parte impugnada, e ser julgada procedente a excepção da incompetência material do Tribunal Comum para conhecer dos pedidos n.°s VII e VIII da petição inicial.

Não foi oferecida contra-alegação e, colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, tendo em consideração, em sede factual, o que consta deste relatório.

II – Fundamentação

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635º, n.º 4 , e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), resumem-se à análise e dilucidação da única questão jurídica por ele colocada a este tribunal e que consiste em determinar se o tribunal judicial é competente, em razão da matéria, para apreciar dos pedidos aludidos no petitório inicial sob os números VII) e VIII), ou seja, ser o recorrente condenado a suprimir o acesso à cobertura do anexo e a rectificar as câmaras de ramal de ligação (CRL) das águas pluviais e residuais conforme o projecto de loteamento aprovado, nomeadamente, elevar a CRL das águas residuais e reimplantar a CRL das águas pluviais, removendo a actual e procedendo ao seu enchimento com terra, ou a pagar aos Autores a quantia de 3.850 euros, acrescidos de IVA, caso não proceda às alterações às CRls.

Antes de entrar na abordagem dessa questão, importa esclarecer que, não obstante ocorrer dupla conforme (decisões e fundamentação inteiramente coincidentes das instâncias, sem voto de vencido), versando o recurso sobre a fixação da competência material do tribunal judicial, é óbvia a admissibilidade da revista - art.ºs 629º, n.º 2, alínea a), 671º, n.º 2, alínea a), e n.º 3 (parte inicial) do Cód. Proc. Civil.

Definida a recorribilidade do acórdão impugnado e avançando para a questão fulcral do recurso - fixação do tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer dos aludidos pedidos - interessa sublinhar que, como é doutrina e jurisprudência pacíficas, a competência em razão da matéria (ou jurisdição) afere-se em função da relação material controvertida configurada pelo autor[1]. É, portanto, a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado na petição que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é o tribunal (ou a jurisdição) competente para a apreciação do mesmo, tendo presente que o sistema judicial não é unitário, mas constituído por várias categorias de tribunais, separados entre si, com estrutura e regime próprios[2].

A tal propósito, dispõe o art.º 211°, n.° 1, da CRP que "os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais", competência residual confirmada pelos art.ºs 40º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário) e 64º do Cód. Proc. Civil, estatuindo, por seu turno, o art.º 212°, n° 3, da CRP, que "compete aos tribunais administrativos o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas".

Decorre dos citados preceitos constitucionais e dos art.ºs 1º e 4º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2004 (cfr. art.º 9.° da Lei n04-A/2003, de 19 de Fevereiro ) que os tribunais administrativos viram a sua competência alargada e são hoje considerados os tribunais comuns em matéria administrativa, isto é, apresentam-se com uma área própria, uma reserva de jurisdição, que espelha o seu núcleo essencial, ainda que algumas matérias possam ser pontualmente atribuídas, por lei especial, a outra jurisdição.

Tal doutrina encontra-se espelhada nos ensinamentos de Mário Aroso de Almeida, in Manual de Processo Administrativo, 2017, 3ª edição, págs. 161 a 181, e José Carlos Vieira de Andrade, in Justiça Administrativa (Lições), 2016, 15ª edição, págs. 100 e 103 a 113, e Ana Fernanda Neves, Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF, in E-pública revista electrónica de Direito Público, n.° 2, Junho 2014, disponível em http://e-publica.pt/ambitodejurisdicao.html.) e está, aliás, plasmada em dezenas de acórdãos quer do Supremo Tribunal Administrativo, quer do Tribunal Constitucional ­ - cfr. acórdãos do STA de 03.10.96 (Pleno), rec. 41.403, de 26.02.97 (Pleno), rec. 41 487, de 2.02.98 (Pleno), rec. 40247, e de 27.02.2003, rec. 285/03, e acórdãos do TC, proc. 372/94, DR 07.09.94, proc. 347/97, DR 25.07.97, e proc. 508/94, DR 13.12.94.

Debruçando-nos sobre a situação em apreço verifica-se que nos aludidos pedidos não se questiona a legalidade ou ilegalidade de qualquer acto administrativo, nem está em causa qualquer contrato dessa natureza, e da análise da petição inicial vê-se também que o cerne do litígio tem por base o incumprimento contratual, mais propriamente o cumprimento imperfeito ou defeituoso[3], referente à compra e venda de um lote de terreno, cuja área é inferior à escriturada, o que ocorreu por acção do recorrente, encarregado do loteamento desse terreno, que, nos termos alegados nos art.ºs 18º a 29º dessa peça processual, terá desrespeitado a linha de meação entre o lote 5 e o lote 4 e terá igualmente construído um anexo clandestino, no tardoz, que ocupa parte do lote que compraram.

Resulta, assim, que os autores, fundamentalmente, o que pretendem é obter a área de terreno que dizem pertencer ao seu lote, ainda que para tanto seja necessária a destruição do anexo e das caixas de drenagem das águas que não se encontram implantadas nos locais indicados nos respectivos alvará e planta de loteamento, ou, em alternativa a redução do preço que pagaram. Daqui decorre, linearmente, que a questão central dirimenda se consubstancia numa relação jurídica de direito privado, que assenta no alegado incumprimento contratual, ou melhor no cumprimento imperfeito ou defeituoso da compra e venda de um lote de terreno, com implicações no direito de propriedade dos autores (art.º 1305º do Cód. Civil) e na definição das estremas do seu lote (art.º 1353º a 1355º do Cód. Civil), sendo consequentemente o tribunal judicial o competente, em razão da matéria, para conhecer do núcleo central da acção.

E, por outro lado, sendo este competente, em razão da matéria, para o conhecimento da questão principal ou fundamental submetida pelos autores ao escrutínio judicial, será também ele o competente para o conhecimento das restantes questões conexas, os aludidos dois pedidos, ainda que, isoladamente considerados, pudessem cair no âmbito do foro administrativo. Como o Tribunal dos Conflitos tem vindo a decidir estando em causa diversos pedidos, alguns deduzidos cumulativa ou subsidiariamente, a definição da jurisdição competente afere-se pela índole da causa, resultando esta do pedido principal[4].

É seguro que o loteamento, sua aprovação, emissão de alvará, reconstituição, emissão de licença para construção do anexo, etc. são actos administrativos e, como regra, os tribunais administrativos são os materialmente competentes para a sua impugnação contenciosa. Todavia, no caso, encontrando-se alguns dos aspectos atinentes a tais actos conexionados com o núcleo essencial do litigio de natureza privada que cabe dirimir ao tribunal judicial, a competência deste alarga-se e, nos termos do art.º 91º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, estende-se também ao conhecimento dessas questões.

Deste modo, é forçoso concluir que, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, se deve manter o sentido decisório do acórdão recorrido, com atribuição da competência em razão da matéria ao tribunal judicial para conhecer também dos pedidos formulados pelos autores de supressão do acesso à cobertura do anexo e à rectificação das câmaras de ramal de ligação (CRL) das águas pluviais e residuais, em ordem à reposição do seu lote com a área constante do projecto de loteamento aprovado.

Esse alargamento de competência procura conferir celeridade na solução do litígio e simultaneamente atribuir plena eficácia à decisão judicial relativa à relação jurídica fundamental, pois que, como se sabe, a competência por extensão em consequência da qual um tribunal competente, por lei, para conhecer de certa causa, se torna também competente para conhecer de outras questões que, normalmente, não caberiam na medida da sua jurisdição, visa precisamente evitar a suspensão da causa principal até ao julgamento no tribunal próprio das questões conexas. Aliás, a decisão que o tribunal judicial vier a proferir, a tal respeito, apenas produzirá efeito neste processo (art.º 91º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil).

Nesta conformidade, improcedem as conclusões do recorrente a quem não assiste razão em insurgir-se contra o decidido no acórdão da Relação.


III – Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


*


Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

*



Lisboa, 09 de Novembro de 2017


António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

_____


[1] Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 90 e 91, Miguel Teixeira de Sousa, in “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, Edições Lex, 1999, págs. 30 a 32, Mariana França Monteiro, in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa”, págs., 507 e 508, e, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12/01/2010 (proc. 1337/07.3TBABT.E1.S1), de 10/12/2015 (proc. 83/14.6TVLSB.L1.S1), de 13/10/2016 (proc. 30249/14.2YIPRT.G1.S1) de 29/11/2016 (proc. n.º 135/14.2T8MDL.G1.S1), de 06/12/2016 (proc. 886/15.4T8SXL.L1.S1), e de 02/03/2017 (proc. 1920/13.8TBAMT-A1.P1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[2] Cfr., neste sentido, Mário Aroso de Almeida, in Manual de Processo Administrativo, 2017, 3ª edição, pág. 43.
[3] Cfr, sobre as modalidades ou acepções de incumprimento/inexecução do contrato, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, págs. 1034 e 1035, e Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição (Reimpressão), págs. 336 a 341.
[4] Cfr., entre outros, os acs. do Tribunal dos Conflitos de 09.06.2010, Proc. 12/10, de 09.07.2014, Proc. 32/14, de 30.10.2014, Proc. 37/1, 22.04.2015, Proc. 01/15, 07.06.2016, Proc. 33/15, e de 01.06.2017, Proc. 02/16, todos acessíveis in www.dgsi.pt.