Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P3861
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RAUL BORGES
Descritores: MAUS TRATOS
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
CRIME ESPECÍFICO
REITERAÇÃO
FACTOS GENÉRICOS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
REENVIO DO PROCESSO
Nº do Documento: SJ200807020038613
Data do Acordão: 07/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário :
I - O art. 152.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na redacção resultante da alteração operada pelo DL 48/95, de 15-03 – entretanto modificada pelas Leis 65/98, de 02-09, e 7/2000, de 27-05 –, integra-se no âmbito da legislação que tem em vista prevenir o fenómeno da violência doméstica (conjugal), da violência familiar e dos maus tratos familiares.
II - A protecção do cônjuge contra os maus tratos surge pela primeira vez no CP na versão do DL 400/82, de 23-09, sendo consagrada no n.º 3 do art. 153.º, introduzido na fase final dos trabalhos preparatórios.
III - Então, para a integração do crime era indispensável a verificação de uma específica motivação – o dolo específico –, consubstanciada na expressão «devido a malvadez ou egoísmo», constante da parte final do n.º 1 do art. 153.º, exigência que foi suprimida na versão de 1995, no actual art. 152.º.
IV - Segundo Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 132), a ratio do art. 152.º do CP não está «na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana», indo muito mais além «dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica ou mental) do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas», acrescentando que «o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental».
V - Para Augusto Silva Dias (Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, pág. 110), bens jurídicos protegidos pelo tipo incriminador do art. 152.° são a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (no caso das als. b) e c) do n.º 1) em contextos de subordinação existencial (n.º l), coabitação conjugal ou análoga (n.º 2), estreita relação de vida (n.º 3) e relação laboral (n.º 4).
VI - Segundo Maria Manuela Valadão e Silveira (Sobre o crime de maus tratos conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, ed. da UAL, págs. 32-33 e 42), «o n.º 2 do art. 152.º do CP protege em primeira linha a integridade, a saúde, nas suas dimensões física e psíquica. Contribui, desta forma e em uníssono, com os outros tipos incriminadores do capítulo, para densificar o valor constitucional da integridade, que se analisa no n.º 1 do art. 25.º da Constituição, em integridade moral e física». E adianta que «a “mais valia” que o tipo incriminador trouxe à sociedade portuguesa, a partir de 1982, foi o reconhecimento ou, até, o aviso expresso de que o bem jurídico integridade pessoal é tutelado penalmente, mesmo quando as denegações desse bem jurídico ocorram intra muros de uma sociedade conjugal. Ou seja, a integridade pessoal mantém o seu valor, apesar da família».
VII - No mesmo sentido se pronunciaram diversos arestos deste Supremo Tribunal, de que é exemplo o acórdão, de 30-10-2003, proferido no Proc. n.º 3252/03 -5.ª (CJSTJ, 2003, tomo 3, págs. 208 e ss.), no qual se considerou que «O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar».
VIII - Afirma Plácido Conde Fernandes (Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305) que não se vê «razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos».
IX - O ilícito em referência pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo: “quem infligir ao cônjuge ou a quem com ele conviver em condições análogas (…)”. Como tal, o crime de maus tratos a cônjuge é um crime específico, isto é, um delito que só pode ser levado a cabo por certas e determinadas categorias de pessoas, no caso, por quem tenha «dever de solidariedade conjugal, em relações de pura igualdade» – cf. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, 2.ª ed., 2.º vol., pág. 181, e, no mesmo sentido, Maria Manuela Valadão e Silveira, ob. cit., pág. 33.
X - Já para Ricardo Bragança de Matos (Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vítima, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, n.º 107, pág. 97), o crime assume a natureza de crime específico impróprio (na definição de Figueiredo Dias, crimes específicos impróprios são aqueles em que a qualidade do autor ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar), uma vez que só o agente com essa característica subjectiva relacional é passível de o cometer – cf. ainda, defendendo idêntica posição, Augusto Silva Dias, ob. cit., pág. 111.
XI - A expressão “maus tratos” constante do n.º 2 do referido art. 152.º do CP, segundo Ricardo Bragança de Matos (ob. cit., págs. 102-103), procura «traduzir uma específica realidade sociológica que pode ser caracterizada pelo exercício de inúmeras formas de violência, que ocorre num específico espaço social, em que surgem como agressor e vítima os membros de uma relação conjugal (ou de uma relação a esta análoga, ou de uma relação familiar de âmbito mais alargado) e que visa, a maior parte das vezes, a manutenção na prática de concepções estereotipadas dos papéis atribuídos ao homem e à mulher, concepções essas fundamentadas numa visão ainda patriarcal da sociedade, Mas, em termos práticos, maus tratos significa, antes de mais, o exercício de violência». A «prática de maus tratos entre cônjuges parece então poder analisar-se na perpetração de qualquer acto de violência que afecte, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária».
XII - Segundo Rui Abrunhosa Gonçalves (Agressores conjugais: investigar, avaliar e intervir na outra face da violência conjugal, RPCC, Ano 14, n.º 4, Outubro-Dezembro 2004, págs. 542-543), a expressão “violência conjugal” – que se distingue de conceitos mais abrangentes como os de “violência doméstica”, “violência familiar” ou “maus tratos familiares”, em que podem ser afectados outros elementos da família ou que coabitem com o casal – abarca um conjunto variado de actos agressivos que se distinguem entre si pela sua gravidade, mas que têm em comum o facto de serem exercidos por um elemento do casal (geralmente o homem) sobre o outro, de forma consciente, envolvendo a noção de que de que tais actos podem ocorrer numa fase pré-matrimonial ou de vida em conjunto, durante esse período ou mesmo após, quando o matrimónio ou a união de facto se encontram em vias de dissolução.
XIII - A questão da violência intrafamiliar foi abordada no Conselho da Europa, que, na Exposição de Motivos Relativa ao Projecto de Recomendação Sobre a Violência no Seio da Família (Anexo II), elaborada pelo Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, aprovada na 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais (Abril de 1984), especificou o conceito de violência física no seio da família, excluindo a violência sexual, como «Qualquer acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade» – cf. BMJ 335.º/5-22.
XIV - No plano do direito interno, a evolução no tratamento destas matérias conduziu às modificações resultantes da 23.ª alteração ao CP, operada pela Lei 59/2007, de 04-09, com a nova redacção dada ao art. 152.º e com a criação de uma outra situação padrão qualificativa de homicídio, com a inclusão do conteúdo integrante da al. b) do n.° 2 do art. 132.° do CP, passando a ser susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro sexo ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau.
XV - A nova formulação (“reivindicada” por Manuela Valadão Silveira, ob. cit., pág. 44) vem consagrar a inserção de forma autónoma do conjugicídio e de situações paralelas, para além de outras, o que se justificará atendendo à evolução legislativa, que tem tido em vista o fenómeno da violência doméstica (conjugal), da violência familiar e dos maus tratos familiares, como ocorre com a Lei 61/91, de 13-08 (protecção às mulheres vítimas de violência), a Resolução da AR n.º 31/99, de 14-04, o Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (RCM n.º 55/99, de 15-06, DR n.º 137/99, I Série B), a alteração ao CP, com a nova redacção do art. 152.º e dos arts. 281.º e 282.º do CPP – Lei 7/2000, de 27-05 –, a Resolução da AR n.º 17/2007 (DR I Série A, de 26-04-2007), sobre a iniciativa “Parlamentos unidos para combater a violência doméstica contra as mulheres”, e a Lei 51/2007, de 31-08, que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei 17/2006, de 23-05, que aprova a Lei-Quadro da Política Criminal, com referência, nomeadamente, aos arts. 3.º, al. a), e 4.º, al. a), e respectivo Anexo (cf. Ac. deste STJ de 02-04-2008, Proc. n.º 4730/07).
XVI - Por outro lado, a doutrina e a jurisprudência têm debatido se será de exigir ou não a reiteração como elemento integrador do crime de maus tratos. Assim, na doutrina:
- Maia Gonçalves (Código Penal Português – Anotado e Comentado, 17.ª ed., 2005, Almedina, pág. 551, em anotação ao referido art. 152.º, na redacção resultante da revisão operada pelo DL 48/95, de 15-03, alterada pela Lei 7/2000, de 27-05) defende que «Enquanto o crime de ofensa à integridade física pode ser cometido por negligência, o crime de maus tratos previsto neste artigo é essencialmente doloso. Por outro lado, aquele crime pode ser cometido através de um só acto, enquanto que o crime de maus tratos pressupõe alguma reiteração das condutas, de modo a inculcar um carácter de habitualidade. Concorrendo este crime com o de ofensa à integridade física simples, normalmente este último ficará consumido pelo primeiro porque, coincidindo nos seus elementos descritivos, representa em relação a ele um minus»;
- no mesmo sentido, Leal-Henriques e Simas Santos (ob. cit., pág. 182) afirmam que «não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo (estaríamos então no domínio das ofensas à integridade física, pelo menos), mas também não se exige habitualidade da conduta. Afigura-se-nos que o crime se realiza com a reiteração do comportamento, em determinado período de tempo»;
- Américo Taipa de Carvalho (ob. cit., pág. 334) afirma igualmente que «o tipo de crime em análise pressupõe, segundo a ratio da autonomização deste crime, uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará o elemento reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime»;
- a este propósito, Augusto Silva Dias (ob. cit., pág. 111) refere que não deve entender-se por reiteração o mesmo que continuidade criminosa, bastando-se aquela com uma acção plúrima e repetida, como uma sova; - Manuela Valadão e Silveira (ob. cit., pág. 35), citando o acórdão do STJ de 14-11-1997, defende igualmente que os maus tratos, enquanto tal, não implicam repetições reiteradas de ofensas, podendo o crime ser preenchido com uma única conduta agressiva.
XVII - Na jurisprudência deste Supremo Tribunal:
- face ao art. 153.° do CP82, o Ac. de 08-01-1997, Proc. n.° 934/96 - 3.ª, pronunciou-se no sentido de que para a verificação do crime não se exigia uma habitualidade, mas também não bastava uma acção isolada;
- neste sentido, entre outros, se pronunciou, citando o anterior, o Ac. de 30-10-2003 (CJSTJ, 2003, tomo 3, pág. 208 e ss.): «Resulta do próprio dispositivo legal que não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo. Terá, por isso, de se tratar de uma acção plúrima e repetitiva, reiterada. Porém, também não é preciso que se registe uma situação de habitualidade»;
- porém, foi surgindo uma corrente jurisprudencial segundo a qual, em casos de especial violência, uma única agressão seria bastante para preencher o tipo legal. Assim, com referência à redacção do preceito resultante da 3.ª alteração ao CP, operada pelo DL 48/95, de 15-03, extrai-se do Ac. de 14-11-1997, Proc. n.º 1225/97 - 3.ª (CJSTJ, 1997, tomo 3, pág. 235 e ss.), que «A actual redacção (…) mais não significa (…) do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152.º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente»;
- reportando-se a uma situação de maus tratos a menores, já o Ac. de 17-10-1996 (CJSTJ, 1996, tomo 3, pág. 170) referira não exigir o crime para a sua verificação uma conduta plúrima e repetitiva dos actos de crueldade: «o normativo não demanda a prática habitual dos actos nem a repetitividade das condutas», abrangendo os que têm natureza plúrima ou repetitiva, como os que têm natureza una;
- mais recentemente, perfilhando esta orientação, entre outros, o Ac. de 04-02-2004, Proc. n.º 2857/03 - 3.ª, defende que, em regra, o tipo de crime exige uma reiteração da conduta delituosa, só em casos excepcionais bastando um só acto, se ele for suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física ou psíquica da vítima;
- e no Ac. de 05-04-2006, Proc. n.º 468/06 - 3.ª, é seguido o entendimento do acórdão de 1997, dizendo-se que a reiteração é, na maior parte das vezes, elemento integrante destes requisitos, mas excepcionalmente o crime pode verificar-se sem ela;
- igualmente no Ac. de 06-04-2006, Proc. n.º 1167/06 - 5.ª (CJSTJ, 2006, tomo 2, pág. 166 e ss.), se extrai que «Releva aqui de forma especial o tratar-se de um crime de maus-tratos físicos ou psíquicos, o que afasta as meras ofensas à integridade física. Necessário se torna, pois, que se reitere o comportamento, em determinado período de tempo, admitindo-se que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças, do acto de molestar o cônjuge ou equiparado».
XVIII - Da análise da letra do preceito em causa – que pune quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos – não parece resultar a necessidade de uma acção reiterada para o preenchimento do elemento objectivo integrador do tipo legal. De todo o modo, tal requisito foi expressamente afastado na nova redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, ao art. 152.º, cujo n.º 1 pune quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais.
XIX - A solução legislativa veio a afirmar-se em sentido divergente do propugnado no Anteprojecto de Revisão do CP, apresentado pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, harmonizando-se com a exposta corrente jurisprudencial que, face a anterior redacção do preceito, o interpretava no sentido de não ser exigida a reiteração, desde que a conduta maltratante fosse especialmente grave.
XX - Resultando da matéria de facto apurada apenas que (aqui se excluindo factualidade abrangida por anterior condenação judicial), após 03-11-2003, o arguido, que havia estado preso e voltara a viver com a mulher e as filhas, «continuou a consumir bebidas alcoólicas e, por algumas ocasiões, em datas não apuradas», agrediu aquela «com bofetadas» e que com «frequência era chamada a Polícia àquela residência», impõe-se concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e respectivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidas, ao local do corpo da ofendida atingido e às suas consequências, em termos de lesões corporais ou de efeitos psíquicos, também se desconhecendo, além do contexto de consumo de álcool, a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjectivo constitutivo do tipo legal.
XXI - Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. n.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. n.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. n.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. n.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. n.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. n.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. n.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. n.º 4197/07 - 3.ª.
XXII - De todo o modo, sempre se impunha concluir que a escassa matéria de facto provada, analisada à luz das considerações antecedentes, não integra a prática pelo arguido do crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1 e 2, do CP (na redacção resultante da revisão operada pelo DL 48/95, de 15-03, entretanto modificada pelas Leis 65/98, de 02-09, e 7/2000, de 27-05), uma vez que, por um lado, da mesma não se pode aferir da intensidade da ofensa corporal, o que impede que se considere violado o bem jurídico protegido pela norma em causa, e, por outro, não se provaram as consequências, directas ou indirectas, da conduta do arguido, não resultando demonstradas quaisquer lesões corporais ou danos psíquicos para a ofendida, nem que aquele comportamento se repercutiu, de alguma forma, na sua saúde física, psíquica, emocional e moral.
XXIII - Se os factos provados, no que respeita aos antecedentes criminais, são insuficientes para justificar a decisão de direito proferida, relativamente à escolha e determinação da medida da pena – o tribunal não apurou os antecedentes criminais do arguido, o que deveria ter efectuado oficiosamente, através da requisição ou insistência pelo respectivo CRC, e, em sede de escolha e determinação da medida da pena a aplicar ao crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190.º, n.º 1, do CP, pelo qual o arguido foi condenado, fez constar da decisão recorrida que «os antecedentes criminais não são relevantes para a punição deste crime», o que não se mostra suficientemente fundamentado na matéria de facto considerada provada, atenta a citada omissão de indicação de tais antecedentes criminais –, verifica-se o vício de insuficiência da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
XXIV - Considerando que a omissão na matéria de facto provada dos elementos relativos aos antecedentes criminais do arguido não pode ser ultrapassada em sede de recurso, dado que sobre a aludida questão se torna necessário produzir prova, o que impede este Supremo Tribunal de conhecer do mérito da causa, há que determinar o reenvio do processo para novo e parcial julgamento, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPP, limitado à questão da indagação dos antecedentes criminais do arguido e subsequente determinação da sanção, a realizar pelo mesmo tribunal, nos termos do art. 426.º-A do mesmo diploma legal.
Decisão Texto Integral: