Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2019/17.3PBPDL.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ISABEL SÃO MARCOS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
REINCIDÊNCIA
PENA DE PRISÃO
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO O RECURSO PROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - No âmbito da moldura penal abstracta do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos arts. 21.º, n.º 1, e 24.º, al. a) do DL n.º 15/93, de 22-01 (compreendida cinco anos e quinze anos de prisão), a pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão, mostrando-se mais proporcional à culpa do arguido e ainda adequada a garantir a protecção do bem jurídico tutelado pela norma violada e a não comprometer a sua reintegração social, cumpre satisfatoriamente as finalidades da punição.
II - E isto atendendo a que, embora fosse primário aquando da prática do crime e houvesse assumido maioritariamente, não integralmente, a sua responsabilidade pelo mesmo, o arguido, que é casado e pai de seis filhos, encontra-se desinserido sob o ponto vista social e profissional, vivendo à custa de contribuições sociais (Rendimento Social de Inserção, abono de família e pontualmente do apoio prestado pelo Banco Alimentar Contra a Fome), e não possui qualquer projecto de vida orientado no sentido de obter de forma legal proventos económicos que garantam a subsistência própria e da sua numerosa família.Condicionalismo que se revela muito preocupante considerando as motivações do crime cometido, e que mais não eram que as de angariar dinheiro ou outra compensação de natureza patrimonial.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 2019/17.3PBPDL.S1

5.ª Secção

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I. Relatório

1.

No Tribunal Judicial da Comarca ……, Juízo Central Cível e Criminal …., Juiz  …., e no âmbito do Processo n.º 2019/17……, o arguido AA foi julgado e, a final, condenado, no que ora releva, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, número 1 e 24.º alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B ao mesmo anexa, na pena de 6 (seis) anos e 10 (dez) meses de prisão.

2.

Inconformado com esta decisão, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação …. onde, por despacho judicial de 23.11.2020, que o admitiu, foi o mesmo recurso mandado subir – e bem – ao Supremo Tribunal de Justiça por ser o competente, nos termos do disposto no artigo 432.º, número 1, alínea c) do Código de Processo Penal, visto estar em causa pena de prisão de medida superior a 5 (cinco) anos e com ele visar o recorrente tão-só reexame da matéria de direito.

Recurso que, em síntese, o arguido AA concluiu assim:

“I. Ao condenar o ora recorrente pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artºs 21º nº 1 e 24º al. a), ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, na pena de seis anos e dez meses de prisão, o douto Acórdão recorrido violou o disposto no artigo 71.º do Código Penal.

II. O Tribunal de primeira instância, com todo o respeito que nos merece, não ponderou, na devida medida, circunstâncias que militam fortemente a favor do recorrente e que impunham a aplicação de uma pena de prisão inferior àquela em que este foi condenado.

III. Em concreto: a confissão praticamente integral efectuada pelo recorrente (desde o primeiro interrogatório judicial); a ausência de qualquer condenação pela prática de crimes, e, finalmente, as condições pessoais do recorrente que demonstram que este tem condições favoráveis a um processo de ressocialização pleno e eficaz (integração familiar, ausência de dependência e juízo crítico em relação à conduta delituosa).

IV. Em face do supra exposto, consideramos que os critérios determinantes para a fixação da medida concreta da pena sustentam a aplicação de uma pena de prisão ao recorrente inferior a seis anos de prisão”.

3.

Notificado do motivado e assim concluído pelo arguido respondeu Ministério Público junto do tribunal recorrido, que concluiu nos seguintes moldes:

“1. O acórdão impugnado não merece qualquer censura, pois que não enferma de omissões, nulidades ou vícios.

2. A pena imposta ao arguido situa-se no circunspecto de ponderação da gravidade do crime – ponderada a personalidade do agente − e foi graduada de harmonia com as necessidades punitivas (ressocialização e prevenção), tudo conforme os artigos 40º, 70º e 71º, do Código Penal.

3. Por todo o exposto, o acórdão recorrido não merece qualquer censura, pelo que, entendemos que dever ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida”.

4.

Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-Geral-Adjunta, na oportunidade conferida pelo artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu fundamentado parecer que concluiu considerando que “… o Tribunal recorrido fez uma análise cuidadosa e objectiva das circunstâncias que rodearam a prática dos factos, do grau de culpa manifestado, da ilicitude e das exigências de prevenção especial e geral que no caso ocorrem e que a pena aplicada ao recorrente é justa, adequada, proporcional à gravidade dos factos e à perigosidade do agente e respeitadora dos parâmetros decorrentes dos critérios legais fixados nos artºs 40.º e 71.º do Código Penal, pelo que não vemos qualquer fundamento para que a mesma seja reduzida”.

5.

Notificado, nos termos do artigo 417.º, número 2, do Código de Processo Penal, o arguido AA nada mais disse.

6.

Por não ter sido requerida a realização de audiência (número 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal), com projecto de acórdão os autos seguiram para a conferência [artigo 419.º, número 3, alínea c), do Código de Processo Penal] de onde foi tirado o presente acórdão.

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II. Dos Fundamentos

II.1 – De Facto

A matéria de facto dada como assente pelo tribunal recorrido é a seguinte:

“Da acusação pública

1. O arguido é também conhecido pela alcunha de “A.......”.

2. O arguido reside na Rua …., ……, num bloco de apartamentos conhecidos por apartamentos do empreendimento .......

3. Desde data concretamente não apurada, mas pelo menos entre março de 2015 e 28 de março de 2018, o arguido decidiu entregar substâncias estupefacientes, nomeadamente heroína e canábis-resina, a consumidores destas substâncias, obtendo como contrapartida um montante pecuniário ou outra compensação de cariz patrimonial.

4. Tais vendas ocorreram na residência do arguido, à qual os consumidores se deslocavam com esse fito, e no campo de futebol sito naquele empreendimento.

5. As vendas eram dirigidas a todos os indivíduos, designadamente menores de idade, que contactassem o arguido para o efeito.

6. Nesse período, o arguido vendia canábis–resina, vulgo haxixe, como “pedrinha” a € 2,50 e como “língua” a € 5,00, e vendia heroína a €10,00 por pacote.

7. Assim, e entre outros:

7.1. pelo menos no período compreendido entre 28/02/2018 e 28/03/2018, o arguido vendeu haxixe a CC, pelo menos duas vezes, uma vez vendendo-lhe uma “pedrinha” por 2,50€ e outra vendendo-lhe uma “língua” por 5,00€;

7.2. pelo menos durante um ano, entre 28/03/2017 e 28/03/2018, e por mais de 50 vezes, o arguido vendeu a DD, nascido a 00/00/2000, heroína e haxixe, aos preços acima indicados. Este consumidor comprou-lhe um a dois pacotes de heroína de cada vez. E, por vezes, não procedia ao imediato pagamento em razão do que o arguido fazia uma anotação da dívida para futura cobrança;

7.3. no período compreendido entre o verão de 2017 e data próxima ao dia 17/11/2017, por pelo menos três vezes, o arguido vendeu a EE, nascido a 00/00/2003, quantidade de haxixe entre € 5,00 e € 10,00;

7.4. desde data não concretamente apurada, mas pelo menos entre março de 2015 e 28 de março de 2018, o arguido vendeu diariamente a FF, um pacote de heroína pelo preço unitário de € 10,00. Na época, durante o mês, o arguido vendia-lhe heroína no valor de € 240,00, a qual não pagava na totalidade, mas cuja dívida ia saldando ao longo do tempo.

8. Para efeito de prosseguir com a atividade supra descrita, no dia 28/03/2018 o arguido tinha guardado na sua residência onde vive, concretamente no seu quarto de cama:

8.1. uma placa de canábis-resina com o peso ilíquido de 50,193 gramas, correspondente ao peso líquido de 49,817 gramas;

8.2. uma língua de canábis-resina com o peso ilíquido de 1,596 gramas, correspondente ao peso líquido de 1,421 gramas;

8.3. oito panfletos de heroína com o peso ilíquido de 0,915 gramas, correspondente ao peso líquido de 0,827 gramas;

8.4. uma balança de cozinha; uma faca de cozinha com cabo em plástico; uma navalha e uma caixa de madeira, objetos estes usados na sua preparação, corte e acondicionamento do produto estupefaciente;

8.5. várias notas e moedas, no total de 392,00€, obtidas como contrapartida da venda a terceiros de substâncias estupefacientes.

8.6. três listas manuscritas, tipo “rol de fiados”, com a indicação dos nomes, iniciais ou alcunhas dos consumidores a quem vendeu e dos montantes por eles devidos, destinando-se à gestão dos consumidores devedores.

9. O arguido destinava o produto estupefaciente a ser distribuído, a um número indeterminado de consumidores, obtendo uma contrapartida monetária ou outra de natureza patrimonial, e assim, concomitantemente, o respetivo lucro.

10. O arguido agiu da forma descrita, não obstante conhecer as características estupefacientes das substâncias que transacionava, assim como as consequências nefastas e aditivas que as mesmas provocavam nas pessoas que as consumiam.

11. O arguido mais sabia que, à data em que adquiriram estupefacientes, EE e DD tinham, respetivamente, 14 e 16/ 17 anos de idade, e apesar disso, aproveitou-se da situação de dependência e vulnerabilidade destes para fazer negócio, para assim obter uma vantagem patrimonial.

12. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo bem que toda a sua conduta era proibida e punida por Lei.

II. Mais se provou, das condições pessoais do arguido e a sua situação económica e das condutas anteriores aos factos

O arguido integra o seu núcleo familiar, constituído, também, pela mulher, … e por cinco dos seis filhos do casal, com idades compreendidas entre os 23 e os 9 anos de idade, estando os dois mais velhos desempregados e sendo os demais estudantes. O casal contraiu casamento há cerca de 20 anos, mantendo um bom relacionamento, pese embora alguns períodos conturbados. O agregado familiar ocupa o mesmo apartamento desde há cerca de nove anos, concedido pelo Governo …. em contexto provisório de realojamento, inserido em zona problemática associada à pobreza, desemprego e incidência da problemática da toxicodependência, não dispondo de condições adequadas para a dimensão da família. O agregado subsiste com o Rendimento Social de Inserção no valor mensal de € 690, acrescido abono de família no valor mensal de € 110, e é pontualmente apoiado pelo Banco Alimentar Contra a Fome.

O arguido mostra-se habilitado com o 6º ano de escolaridade, já tendo exercido várias atividades profissionais, predominantemente a atividade de .... Encontra-se desempregado há alguns anos.

O arguido iniciou os consumos de estupefacientes aos 14 anos de idade e rapidamente se tornou consumidor de vários tipos de drogas, tendo estado por várias vezes internado na Clínica …... Entretanto, o arguido esteve vários anos dependente do consumo de bebidas alcoólicas, culminando com o surgimento de doença do foro hepático no passado mês de fevereiro.

Relativamente aos factos revela um discurso de acordo com a desejabilidade social e o seu comportamento é desvalorizado pela esposa. Na comunidade é conotado com a traficância e convive em círculo de amigos e conhecidos problemáticos.

Nada consta averbado no seu certificado do registo criminal”.

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II.2 – De Direito              

Tendo em conta a motivação e as conclusões formuladas pelo recorrente [que, salvo as questões de conhecimento oficioso, são, como se sabe, as que definem e delimitam o objecto do recurso (número 1 do artigo 412.º do Código de Processo Penal)], constata-se que a única questão que nelas se coloca prende-se com a medida judicial da pena que, fixada pelo tribunal recorrido em 6 (seis) anos e 10 (dez) meses de prisão, o recorrente entende ser excessiva e, como tal, dever ser fixada em medida inferior a seis anos de prisão”.

Apuremos então da razão do recorrente,

2. 1

Começando, porém, pela qualificação jurídica dos factos – questão que, embora não suscitada pelo recorrente, por ser de conhecimento oficioso e com inevitável repercussão na pena, sempre importa aferir, ainda que perfunctoriamente, da sua correcção – cabe referir que o decidido a propósito pelo tribunal recorrido não se representa passível de qualquer censura.

E isto em suma na consideração que, de harmonia com a matéria de facto dada como provada, as transações de Cannabis e Heroína efectuadas, pelo menos, entre Março de 2015 e Março de 2018, com intuito lucrativo, pelo arguido (que é pai de seis filhos, alguns deles menores), tiveram por destinatários todos os indivíduos, entre outros os identificados CC e FF, e menores, entre os quais os identificados DD e EE (então com idades compreendidas entre 16/17 anos o primeiro e entre 13/14 anos o segundo) que, com o propósito de adquirirem as mencionadas substâncias estupefacientes, se deslocavam à residência do arguido ou ao campo de futebol do empreendimento onde aquela se situa.

Transações (realizadas pelo arguido num ou noutro dos aludidos locais, não de modo inopinado, mas propositadamente buscado e tendo em conta a condição e vulnerabilidade dos compradores, entre os quais pessoas menores, interessados em adquirir-lhe os referidos produtos) que, como se observa na decisão recorrida, não se verificaram de jeito acidental ou pontual.

Tanto assim é que, para gestão desta sua ilícita actividade, o arguido guardava na sua residência, para além dos estupefacientes aí encontrados, três listas manuscritas, tipo “rol de fiados”, com a indicação dos nomes, iniciais ou alcunhas dos consumidores a quem vendera os mencionados produtos, e bem assim os montantes que os mesmos lhe deviam. 

Concluindo, pois, pela correcção da qualificação jurídica dos factos gizada pelo tribunal recorrido, passemos ora a apreciar a questão colocada pelo recorrente.

2. 2

A.

Como se sabe, a protecção dos bens jurídicos e a e a reintegração do agente na sociedade são, como bem flui do disposto no 40.º, número 1 do Código Penal, os fins visados pelas penas que, servindo finalidades exclusivas de prevenção geral e especial, têm por escopo, com a prevenção geral positiva ou de integração assegurar a tutela dos bens jurídicos, o que vale por dizer a confiança dos cidadãos na validade da norma jurídica e restabelecer a paz jurídica afectada com a prática do crime, e com a prevenção especial ressocializar o agente, o que vale por dizer prepará-lo para no futuro não cometer outros crimes.

De que decorre que se é verdade que uma e outra das aludidas finalidades (a tutela dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade) prosseguidas com a aplicação das penas e das medidas de segurança concorrem para um único objectivo, que mais não é que o de evitar a lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos, consubstanciado na prática de crimes definidos nos respectivos tipos legais, certo é igualmente que a função de cada qual é, porém, delimitada por exigências próprias, de sorte que à primeira sempre cabe a primazia de, no quadro de valores traçado pela moderna política criminal, transposto para o artigo 40.º do Código Penal, definir a medida da tutela dos bens jurídicos.

Medida da tutela dos bens jurídicos que é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo, ainda suportável pela necessidade comunitária de reafirmar a validade da norma jurídica violada com a prática do crime.

Daí que, como refere Figueiredo Dias[1], seja entre esses dois limites, máximo e mínimo que, tanto quanto possível, devem satisfazer-se as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, incumbindo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade.

Assim se a medida da pena não pode em circunstância alguma exceder a medida da culpa, o limite a partir do qual aquela não pode ultrapassar esta serve de barreira intransponível às considerações preventivas.

E se, como estabelece o número 1 do artigo 71.º do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, não é menos verdade que as circunstâncias referidas no número 2 do citado preceito são, para além de outras, todas as que, não tendo já sido valoradas no tipo legal de crime, importa levar em linha de conta na fixação concreta da pena, no âmbito da submoldura definida pelas exigências de prevenção geral e limitadas no seu máximo pela medida da culpa, de sorte que a pena constitui sempre o resultado da avaliação de todos esses factores.

Aspectos entre os quais se destacam (artigo 71.º, número 2, do Código Penal) os que, relativos à execução do facto, ao tipo de culpa e à conduta do agente, se tenham manifestado antes e depois da prática do facto ilícito típico.

B.

Retendo tudo quanto se acabou de anotar e o demais que para trás se disse, vejamos então se excessiva e, como assim, carecida de correcção se representa a pena de 6 (seis) anos e 10 (dez) meses de prisão que, no acórdão sob impugnação, foi imposta ao arguido e ora recorrente pela prática do indicado crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punível, nos termos dos artigos 21.º, número 1 e 24.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.0, com a pena abstracta de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos de prisão.

Procedendo deste jeito, cabe reparar que, no quadro da tipologia em causa (crime de tráfico de estupefacientes agravado), a ilicitude dos factos representa-se média baixa.

E isto atendendo, por um lado, à natureza dos referidos produtos estupefacientes, aos efeitos devastadores que os mesmos provocam na saúde de quem os consome, sobretudo tratando-se de Heroína, à condição dos seus destinatários, designadamente pessoas menores ainda em formação, e ao largo lapso de tempo durante o qual o arguido se dedicou traficá-los quer na sua residência quer num local público.

Ponderando, por outra via, as porções individualmente daqueles produtos traficadas pelo arguido e as correspondentes contrapartidas económicas que o mesmo terá obtido com a mencionada actividade ilícita.

Porém algo mais acentuada se revela a culpa concreta do arguido, que agiu com dolo directo.

Com efeito, sendo, como referido, pai de seis filhos, ora com idades compreendidas entre 9 e 23 anos, (dos quais cinco a coabitar com os progenitores), o arguido não só não encontrou nisso motivo que o inibisse de traficar com menores os indicados produtos, como ainda, fazendo-o, não só no dito campo de futebol, mas também na sua residência, expôs os seus próprios filhos (alguns deles menores) e o cônjuge ao convívio com toxicodependentes que, na dita casa, o procuravam com o apontado objectivo.

A isto acrescem as muitas significativas necessidades de prevenção, sobretudo geral, mas também especial.

As primeiras que, a imporem a reintegração da norma jurídica reiteradamente violada pelo arguido e a restauração dos interesses jurídicos por ela visados, num caso com as peculiaridades do presente reclamam da parte da comunidade grande firmeza das instâncias formais de controlo no sentido de se reprimir este tipo de criminalidade que, como se sabe, aporta de forma inexorável profunda e devastadora erosão dos valores sociais. Para mais quando, como na situação presente, o arguido é conotado, no meio social, com a dita actividade de tráfico.

E as últimas, as necessidades de prevenção especial, ditadas pela circunstância de, conquanto não registe condenações antes e depois dos factos ilícitos dos autos e verbalize algum juízo crítico em relação à sua conduta, revelar o arguido patentes dificuldades em perspectivar uma inversão do seu muito reprovável modo de vida.

A par disto, importa não perder de vista o demais circunstancialismo que depõe a favor e contra o arguido, tal seja o reportado às suas condições pessoais e situação económica.

Conspecto em que há a destacar que: i) sendo primário aquando dos factos e não registando qualquer condenação após os mesmos, assumiu maioritariamente, mas não integralmente, a sua responsabilidade pela prática dos mesmos; ii) tendo o 6.º ano de escolaridade, não possui qualquer profissão, pese embora em tempos haja exercido a actividade de ...; iii) sendo casado e progenitor de seis filhos, alguns deles menores e estudantes e outros maiores e desempregados, encontra-se desinserido social e profissionalmente, dispondo o numeroso agregado familiar legalmente para a sua subsistência do Rendimento Social de Inserção no montante de € 690,00, de abono de família no valor de € 110,00 e, pontualmente, do apoio prestado pelo Banco Alimentar Contra a Fome; iv) embora integrado na família constituída, o que já sucedia aquando dos factos, tal circunstância não inibiu o arguido de incorrer na sua prática, durante longo tempo.

Condicionalismo que, aliado à inexistência por parte do arguido de um qualquer projecto de vida orientado no sentido de legalmente lhe permitir obter proventos económicos que garantam a sua subsistência e da sua numerosa família, se representa assaz preocupante atendendo às motivações do crime cometido e que mais não eram que as de angariar dinheiro ou outra compensação de natureza patrimonial.   

Fazendo então o balanço de tudo isto e do mais que para trás se disse, conclui-se que, no âmbito da respectiva moldura penal abstracta (que, como referido, é de 5 a 15 anos de prisão), a pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão, mostrando-se mais adequada à culpa do arguido e proporcional às exigências de prevenção, cumpre satisfatoriamente as finalidades da punição.

Daí que na referida medida de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão se fixe a pena em que vai condenado o arguido AA, pela prática do indicado crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, número 1, e 24.º, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01.

Procede, pois, o recurso.

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III. Decisão

Termos em que, na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, se acorda:

1º Julgar procedente o recurso do arguido AA e condená-lo na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, número 1, e 24.º alínea a), ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01;

2º. Manter no mais o acórdão recorrido

Sem custas (artigo 513.º, número 1, do Código de Processo Penal).

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Lisboa, 11 de Fevereiro de 2021

      

Os Juízes Conselheiros

Isabel São Marcos (Relatora)

Helena Moniz

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[1] “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Parte Geral, Editorial Notícias, página 227.