Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1857/09.9TJVNF.S1.P1
Nº Convencional: 7ª SECÇÂO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
CADUCIDADE
ABUSO DE DIREITO
ADMISSÃO
DEFEITO
VENDEDOR
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 09/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL / DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / RESOLUÇÃO DO CONTRATO / CADUCIDADE
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: ARTS. 665.º, N.º 2, 679.º;
CÓDIGO CIVIL: ARTS. 329.º, 331.º, N.º 2, 432.º E SEGS., 436.º, N.º 1, 801.º, N.º 2, 913.º E SEGS., 917.º
Jurisprudência Nacional: ACS. DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 24-09-2009, PROC. N.º 2210/06.8TVPRT.S1;
- DE 06-07-2007, PROC. N.º 3440/07 IN CJIII/07, N.º 203, PÁG. 129;
- DE 02-11-2010, PROC. N.º 6473/06.OTBAGD.C1.S1;
- DE 16-03-2011, PROC. N.º 558/03.2TVPRT.P1.S1;
- DE 24-05-2012, PROC. N.º 1288/08.4TBAGD.C1.S1;
- DE 13-02-2014, PROC. N.º 1115/05.4TCGMR.G1.S1.
Sumário :
1. Integra violação das cláusulas gerais da boa fé e do abuso de direito o comportamento do vendedor de coisa alegadamente defeituosa que – embora sem reconhecer inequívoca e expressamente o vício ou defeito denunciado - admitiu como possível a sua existência e tentou, por várias vezes , corrigi-lo - vindo ulteriormente, contra facto próprio, invocar a caducidade, em consequência de o comprador – confiando justificadamente na seriedade do propósito de correcção do vício ou defeito da coisa manifestado pela conduta do vendedor – não ter actuado em juízo antes de se ter revelado na prática o resultado final de tais tentativas de resolução do problema, de modo a excluir quaisquer perspectivas de solução consensual do litígio.

2. Porém, se a parte já resolveu o negócio com fundamento em incumprimento não pode ainda invocar, perante comportamentos da contraparte ulteriores ao acto resolutivo, não cabalmente conclusivos e inequívocos quanto ao reconhecimento do defeito, uma justificada confiança na obtenção de uma solução consensual para o litígio, posterior ao acto resolutivo, que a dispense de recorrer oportunamente às vias judiciais, respeitando o prazo curto de caducidade previsto no art. 917º do CC.

3. Vale como denúncia ou reclamação dos defeitos da coisa a que é feita especificadamente em carta remetida à contraparte, reiterando que tais vícios não foram adequadamente solucionados pelas anteriores intervenções técnicas do vendedor – e manifestando a final o propósito de resolução do contrato por incumprimento do vendedor.

4. Está fora do perímetro dos interesses especificamente tutelados através do regime da venda de coisas defeituosas, tal como se mostra especialmente construído e regulado nos arts. 913º e seguintes do CC - encontrando antes apoio nos princípios gerais do direito das obrigações, nomeadamente nos arts. 801º, nº2, e 432º - a acção de condenação intentada com vista à efectivação dos efeitos jurídicos típicos da resolução extrajudicial do negócio jurídico ( operada logo após o acto de denúncia dos defeitos), maxime os deveres de restituição, não espontaneamente acatados pela contraparte.

5. Na verdade, tal acção não tem como causa imediata os defeitos ou vícios da coisa vendida que justificaram o acto resolutivo, sendo o objecto e o fim imediato das pretensões nela formuladas a título principal, meramente consequenciais ao exercício do direito de resolução, o asseguramento, nos termos gerais de direito, da tutela judiciária efectiva da parte quanto aos típicos efeitos da resolução de um negócio jurídico, realizando, desde logo, o respectivo efeito retroactivo sobre as prestações realizadas pelas partes em cumprimento do contrato.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA, Lda instaurou, em 22 de Maio de 2009, acção com processo ordinário contra BB, Lda e CC, S.A, pedindo:
1 - que seja declarada válida e eficaz a resolução operada pela demandante, com as legais consequências ou,
2 - subsidiariamente, para o caso de a resolução praticada pela demandante não ser considerada válida e eficaz, atenta a factualidade alegada, seja o contrato em mérito declarado resolvido por via judicial;
3 - subsidiariamente ainda, atento o erro sobre o objecto mediato, seja declarada a anulabilidade do contrato de compra e venda, com as legais consequências.
Declarado resolvido e/ou anulado o contrato de compra e venda, deverão as demandadas, solidariamente ou não, ser condenadas:
a) a restituir o valor relativo à contrapartida pela aquisição do veículo, computando-se o já liquidado em € 13.795,05 (treze mil, setecentos e noventa e cinco euros e cinco cêntimos), correspondente ao valor já pago por conta do valor do veículo (referente a 20 prestações já vencidas e pagas, no valor de € 607,73 cada, bem como uma primeira prestação de € 1.640,45), bem como em igual quantia mensal de € 607,73 até cumprimento do contrato em 01/10/2001, bem como ainda na quantia de € 5.531,44 referente à venda do veículo pela locadora à demandante;
b) caso assim se não entenda, sempre será devido à demandante o preço de venda do veículo, de € 32.808,98, acrescido de juros de mora até efectivo pagamento, à taxa comercial, ascendendo os já vencidos a € 5.782,67, como restituição dos frutos civis – juros – vencidos desde o recebimento do preço e vincendos até pagamento, dado que, como a resolução depende de culpa da parte faltosa, deverá esta ser equiparada ao possuidor de má fé no que respeita à restituição dos frutos;
c) na quantia de € 5.850,00, a título de privação do uso, calculados desde a resolução até à presente data e referente ao período em que o veículo esteve nas oficinas das demandadas, e em igual quantia diária até que as demandadas restituam o valor do veículo e,
d) ainda nas despesas e encargos que a demandante suporte com a recolha, guarda e depósito do veículo – vulgo parqueamento – deverá ser suportado pelas demandadas, valor que se remete para liquidar em execução de sentença, por não ser neste momento conhecido, quantificável e líquido.

Como fundamento de tais pretensões, alegou, em síntese, que:
Em 1/10/2007, celebrou um contrato de aluguer de longa duração com o Banco de Crédito Especializado DD, SA, que teve por objecto o veículo Renault Laguna, de matrícula …-EJ-…, adquirido, em 28/9/2007, à primeira demandada e fornecido pela segunda ré, pelo preço de 32.808,98 €, com a duração de quatro anos, ficando com a opção de compra, no fim do contrato, pelo valor de 4.609,53 €.
Tal veículo apresenta várias anomalias desde a sua aquisição, o que motivou a apresentação de reclamações junto das demandadas que providenciaram pela reparação, a última das quais em 10/11/2008, sem qualquer êxito.
Em face disso, porque persistiam as anomalias, resolveu o contrato de compra e venda por carta registada de 21/11/2008 que enviou à primeira demandada e que foi por ela recebida no dia 25 seguinte.
Em 25/11/2008, foi-lhe enviada uma carta pela 2.ª demandada informando-a de que o veículo se encontrava conforme o preconizado pelo construtor e, em 10/12/2008, interpelou-a para que procedesse ao levantamento da viatura na oficina onde se encontrava, dado estar devidamente reparada, o que não se verificou, continuando a apresentar maus cheiros.


Em 11/5/2009, confirmou à 1.ª demandada a resolução já operada e deu conhecimento à 2.ª demandada, por cartas registadas por ambas recebidas, e interpelou-as para a restituição do preço, pondo à sua disposição o veículo.
Em consequência da conduta das rés, sofreu danos, correspondentes às prestações que teve de pagar à locadora e terá ainda que pagar ou ao preço do veículo.

As rés contestaram por excepção, invocando a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, a ilegitimidade activa e passiva e a caducidade do direito de acção, e ainda por impugnação.

A autora replicou, pugnando pela improcedência das invocadas excepções e requerendo a intervenção principal provocada de Banco de Crédito Especializado DD, Instituição Financeira de Crédito, S.A..

Admitida a requerida intervenção, foi citada a interveniente, que fez seus os articulados da autora.


No despacho saneador, foram julgadas improcedentes a invocada nulidade por ineptidão e as excepções da ilegitimidade activa e passiva, tendo sido relegada para final a apreciação da caducidade.
No termo da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença a julgar procedente a excepção peremptória da caducidade e, consequentemente, a absolver as rés dos pedidos formulados.

2. Inconformada, a autora interpôs recurso para o STJ - per saltum, nos termos do art.º 725.º do CPC - determinando-se, porém, a remessa dos autos à Relação, por se entender que as questões suscitadas ultrapassavam o âmbito da revista – e tendo a Relação julgado a apelação improcedente e confirmado a sentença recorrida.


O acórdão recorrido começou por considerou estabilizado o seguinte quadro factual:


1. A 1.ª ré, como concessionária da marca Renault, é representante e distribuidora da marca Renault para os concelhos de Vila Nova Famalicão, Santo Tirso e Trofa, tendo como objecto social a comercialização, serviço pós venda e pelo comércio de peças originais da marca Renault (sítio:www.diascosta.pt)
2. A 2.ª ré é representante em Portugal da Renault.
3. A 2.ª ré vende os veículos a uma rede oficial de distribuidores – in casu, à 1.ª ré -, que os revendem depois em nome próprio, aos clientes finais.
4. O serviço pós venda dos veículos da marca Renault, manutenção, revisão, reparação, é realizada por uma rede oficial de reparadores autorizados – in casu, entre as quais, a 1.ª ré -, os quais, na maioria das vezes, acumulam também a qualidade de distribuidores.
5. É nesta rede de distribuidores e reparadores autorizados que se integra a actividade comercial da 1.ª ré, com ambas as qualidades.
6. Em 24-04-2008, a 1.ª ré procedeu à limpeza dos filtros de partículas do habitáculo – cfr. doc. 5.
7. Àquela data, o veículo tinha apenas 5.692 Km.
8. Em 18-09-2008, o veículo tinha 9.200 Km.
9. Em 13-10-2008 foram realizados trabalhos de limpeza de filtros e do circuito de ar condicionado.
10. O veículo tinha à data desta intervenção, apenas 9.766 Km.
11. Em 03-11-2008, o veículo apresentava 10.047 Km.
12. Passados 5 (cinco) dias, em 07-11-2008 – 6.ª feira – quando a autora foi “levantar” o veículo, foi-lhe dito que a oficina tinha procedido à desmontagem do tablier, à desmontagem dos cintos de segurança.
13. Não tendo sido detectado a causa do problema.
14. Nesta data, as intervenções da oficina Renault Boavista, foram acompanhadas pelo departamento técnico da CC – cfr. doc. 12.
15. Logo na 2.ª feira seguinte, dia 10-11-2008, conforme acordado com a oficina, a autora depositou o veículo nas instalações da Renault da Boavista – cfr. doc. 13.
16. Àquela data, o veículo apresentava apenas 10.237 Km.
17. As rés não detectavam as causas dessas mesmas manifestações.
18. A autora, por carta registada com aviso de recepção datada de 21-11-2008, comunicou à 1.ª ré a resolução do contrato de compra e venda – cfr. doc. 14 e 15.
19. Carta esta que foi recepcionada pela ré em 25-11-2008 – cfr. Doc. 16.
20. Nessa mesma carta, a autora, invocando a cronologia das sucessivas intervenções pelas oficinas das rés,
21. A persistência dos problemas e seu agravamento e,
22. Sobretudo, as manifestações nas pessoas desses mesmos odores e cheiros de carácter tóxico, com dores de cabeça, pressão encefálica, tonturas, enjoos, hemorragias nasais, inflamações e irritações das vias respiratórias, dos olhos e das mucosas, perdas de consciência, latejar das têmporas,
23. Não tendo inclusive, segundo referiram, sequer detectado a causa do problema,
24. A 2.ª ré, posteriormente, enviou à autora uma carta com data de 25-11-2008, segundo a qual preconizava a conformidade do veículo com os requisitos do construtor – cfr. Doc. 18
25. A que a autora respondeu, por carta registada com aviso de recepção de 28-11-2008 – cfr. Doc. 19, 20 e 21
26. Posteriormente, a autora foi interpelada pela 2.ª ré, por carta de 18-12-2008, no sentido de proceder ao levantamento do veículo que se encontrava nas instalações da Boavista – cfr. Doc. 22.
27. Na sequência daquela enviada em 10-12-2008, segundo a qual seriam debitados €: 15,25 por cada dia que decorresse até ao levantamento do veículo.
28. O que a autor fez, procedendo ao levantamento do veículo.
29. Todavia e apesar da resolução do contrato pela autora e da posição tomada pelas rés, a 1.ª ré pretendeu ainda tentar apurar a causa dos odores e cheiros e,
30. E a sua eliminação.
31. Para o que convenceu a autora a permitir esses trabalhos,
32. Perante a ausência de resposta, por carta registada com aviso de recepção, datada de 11-05-2009, a autora confirmou à 1.ª ré a resolução já operada – cfr. Doc. 23 e 24.
33. Recepcionada pela 1.ª ré em 12-05-2009 – cfr. Doc. 25
34. Carta que foi igualmente enviada à 2.ª ré – cfr. Doc. 26 e 27
35. Recepcionada em 13-05-2009 – cfr. Doc. 28
36. Nestas cartas, atenta a resolução do contrato, a autora procedeu à interpelação das rés para procederem à restituição do preço.
37. Sendo que colocou à disposição das mesmas o veículo,
38. Interpelando-as expressamente para indicarem local, dia e hora para a entrega do veículo,
39. Além do mais, a autora adquiriu este veículo para assegurar as deslocações do seu sócio-gerente, aos clientes, fornecedores, a parceiros.
40. Na verdade, foi a autora quem escolheu o veículo, as suas características, o modelo, a cor, a potência, a cilindrada, os acessórios extras.
41. A autora tem como objecto social a instalação eléctrica de comunicações e de climatização, comércio de electrodomésticos, aparelhos de rádio e televisão – cfr. doc. 2
42. A segunda ré procede à importação para Portugal de veículos da marca Renault.
43. No dia 28-09-2007, a autora adquiriu à 1.ª ré um veículo automóvel de marca Renault, modelo Laguna Break, 2.0 dCI de 175 cv, de cor preta, com matrícula …-EJ-…, no estado novo, pelo preço de €: 32.808,98 – cfr. doc. 3.
44. Sendo que, para financiamento da aquisição, a autora celebrou com a Banco de Crédito Especializado DD, S.A., um contrato de ALD, aluguer de longa duração, com o n.º ….
45. Segundo o qual está assegurado, no final de duração do contrato, a opção de compra do veículo pelo valor de €: 4.609,53, sendo que a autora já optou pela compra, tendo já registado o veículo em seu nome.
46. O valor real de aquisição ascenderá aos €: 41.200,47, em resultado do preço final a pagar no cumprimento do contrato de aluguer de longa duração, celebrado entre a autora e a Banco de Crédito Especializado DD, S.A., com o n.º …,
47. Pelo qual a locadora, após ter pago o preço de aquisição à 1.ª ré, é credora perante a autora do valor de €: 41.200,47 – cfr. doc. 4
48. A média prevista para este veículo para que se proceda aos serviços de manutenção programada é de 30.000 em 30.000 km ou de 24 em 24 meses.
49. Desde a aquisição do referido veículo que este apresentava várias anomalias e,
50. A autora foi apresentando reclamações junto da vendedora, ora 1.ª ré.
51. E posteriormente à 2.ª ré.
52. Com o que o veículo foi sendo assistido e vistoriado quer na oficina da vendedora, quer, posteriormente, na oficina da Renault Boavista – ambas reparadoras autorizadas.
53. Para apuramento dos vícios, desconformidades e/ou defeitos e sua eliminação.
54. Na verdade, desde a aquisição do veículo que se nota um cheiro, um odor, sendo que o veículo apresenta uma concentração média de dióxido de carbono que ultrapassa a respectiva concentração máxima admissível (de 1.800 mg/m3), sendo os mínimos apresentados na perícia realizada de cerca de 2.500 mg/m3 e os máximos de quase 9.000 mg/m3.
55. Que a autora, inicialmente atribui ao cheiro típico de “carro novo”, eventualmente proveniente dos estofos em pele.
56. Todavia, à medida que o tempo passava, aquele cheiro foi-se agravando, a ponto de tornar insuportável a circulação dentro do veículo.
57. Dado que tais cheiros e os níveis de dióxido de carbono existente no veículo causavam, como ainda causam, grave irritação e congestionamento das vias respiratórias, dos olhos e das mucosas, enjoos e tonturas.
58. E tal irritação e congestionamento era de tal forma grave e intensa que impossibilitava a utilização do veículo de uma forma normal, atento o fim a que ele se
destinava: o de assegurar as deslocações dos representantes legais da demandante e demais utilizadores do mesmo.
59. Desta vez, a 1.ª ré, na pessoa do seu director comercial, EE, referiu que o veículo teria de circular com o ventilador (chaufagem ou ar condicionado) ligado.
60. Com o que evitaria aquele problema.
61. O que causou à autora estranheza e insatisfação.
62. Com o que se deslocou à Renault Retail Group da … a fim de solicitar segunda opinião.
63. E porque o problema persistia, apesar de manter o ventilador accionado permanentemente, agravando-se até, a autora, mais uma vez, deslocou-se em 24-04-2008 à 1.ª ré.
64. Em 18-09-2008, mais uma vez e perante a persistência e agravamento do problema, o veículo deu novamente entrada na oficina da 1.ª ré.
65. Com queixas de maus odores que causavam, pela sua toxidade, irritação das vias respiratórias e ao nível ocular, pressão encefálica e fortes dores de cabeça, nas pessoas que nele fossem transportadas – cfr. doc. 6.
66. Apesar das supostas intervenções pela 1.ª ré, e perante a persistência dos odores e cheiros, novamente em 13-10-2008, a autora voltou a reclamar dos odores e irritação dos olhos e das vias respiratórias.
67. Para o que desta, desta vez, se deslocou às instalações da Renault Retail Group … (Porto).
68. Tendo o veículo lá ficado depositado 8 (oito) dias – cfr. doc. 7.
69. Em 20-10-2008, perante a persistência e agravamento dos odores e cheiros e, sobretudo, das suas consequências, dado que os filhos e esposa do sócio-gerente da autora, também ela sócia, se recusavam a fazer-se transportar no veículo.
70. Dado que sempre que o faziam sentiam-se indispostos, com sintomas de congestionamento nasal e a autora, por carta registada e com aviso de recepção, comunicou à 2.ª ré, todos os factos supra alegados – cfr. doc. 8, 9 e 10.
71. Decorrido (1) mês, em 03-11-2008, e novamente porque os maus odores e irritações persistiam, a demandante dirigiu-se novamente às oficinas da Renault da Boavista – cfr. doc. 11.
72. O veículo esteve nas oficinas da Renault … durante mais de (1) um mês.
73. Em 25-11-2008, privada do veículo, privada da disponibilidade e dos poderes de disposição sobre o veículo, da sua utilização, fruição e uso,
74. E porque os problemas se mantinham e vinham a agravar-se apesar da pouca circulação do veículo,
75. Tornando incomportável o transporte de pessoas
76. E porque as oficinas das rés, apesar da constatação da manifestação das anomalias, dos defeitos e/ou vícios,
77. Que impediam a sua, do veículo, utilização para o fim pretendido – de assegurar as deslocações do sócio-gerente da demandante e demais familiares que integram o respectivo agregado -
78. Apresentando os ocupantes sintomatologia supra alegada.
79. Tendo o veículo passado naquele 1.º ano, mais de 2 meses nas oficinas,
80. E ainda porque as rés não resolveram o problema, eliminando a causa dos odores e cheiros tóxicos.
81. Tendo o veículo estado nas oficinas da 1.ª ré largos períodos de tempo.
82. Tendo sido experimentado pelos Srs. Eng. FF e GG.
83. Os quais solicitaram à autora que aguardasse, dado que iriam solicitar junto da Renault uma solução para o problema, fosse a eliminação do problema, fosse a substituição do veículo, fosse a restituição do preço.
84. Em meados de Janeiro de 2009, dois representantes da 2.ª ré, os Srs. HH e o Sr. Eng. II procederam à experimentação do veículo em circulação.
85. E que, em 15 dias, seria apresentada uma solução à demandante.
86. Desde então que o veículo, ainda que na disponibilidade da autora, esteve sempre parado.
87. Apresentando actualmente 12.723 Km.
88. A autora não obteve qualquer resposta relativamente à interpelação das rés para indicarem local, dia e hora para entrega do veículo.
89. A autora procedeu à resolução do contrato.
90. A coisa comprada, o veículo, não pode ser considerada adequada ao uso normal que lhe está adstrito, a sua circulação e permitir a quem nele circula, fazê-lo sem perigo para a sua saúde e para os demais utilizadores da via pública.
91. Nem para o uso específico para que a autora o destinava, para assegurar as deslocações do seu sócio e gerente a clientes, fornecedores, associados, parceiros, feiras e convenções,
92. Sendo de todo inadequada à circulação rodoviária e ao transporte de pessoas.
93. Não era adequado para o fim para que foi concebido e adquirido.
94. Com o conhecimento de tais factos não se celebraria qualquer negócio, a autora não adquiria o veículo.
95. O que era do conhecimento da vendedora.
96. A autora está a pagar, a título de prestação, a quantia mensal de €: 607, 73, tendo já procedido ao pagamento de 20 delas, já vencidas.
97. Tendo pago ainda uma 1.ª prestação de €: 1.640,45.
98. Este veículo é o único veículo com estas características, ligeiro de passageiros de gama alta, que a autora possui.
99. Sendo proprietária de 2 veículos ligeiros de mercadorias, todos da marca Citroen, com as matrículas …-FN-… e …-…-UH – cfr. doc. 29 e 30.
100. Tal veículo, para além do transporte dos representantes legais da autora destina-se ainda às deslocações pessoais, aos passeios familiares de fim-de-semana e férias, com o agregado familiar.
101. Dado que o sócio-gerente e agregado não têm outro veículo.
102. A autora é accionista da “JJ, S.A.” – cfr. doc. 31
103. Deslocando-se, duas vezes por semana, a reuniões com os restantes accionistas em Condeixa-a-Nova.
104. Conforme referido, nestes 13 meses que mediaram entre a aquisição do veículo e a resolução do contrato, a autora esteve privada do veículo semanas seguidas.
105. Num total de pelo menos 60 dias.
106. E ainda por não ter possibilidades financeiras para o fazer.
107. A custos de mercado de aluguer, um veículo de características semelhantes tem um valor diário de pelo menos €: 30,00.
108. Foi a autora quem negociou o preço com a vendedora.
109. Sendo que, celebrou com a Banco de Crédito Especializado, S.A., um contrato de ALD, apenas com o intuito de financiar a aquisição do veículo, o pagamento do preço.
110. Verifica-se ainda que as partes quiseram realmente outorgar um contrato de compra e venda ainda que a prestações, com reserva de propriedade – querido indirectamente pelas partes.
111. Se a autora tivesse sido informada daquelas anomalias do veículo, nunca optaria por adquirir um produto ou serviço que, de qualquer forma, pudesse representar um risco para a saúde – ou até mesmo para a vida -, quer sua, quer de terceiros, pelo que, conhecendo os riscos, com o que nunca teria aceite contratar.
112. Porque o mesmo se encontrava dentro do período legal e contratual, de garantia, de 2 anos (art. 15º da p.i., não impugnado).

3. Passando ao enquadramento jurídico de tal factualidade, considerou o acórdão proferido procedente a referida excepção peremptória de caducidade dos direitos invocados pela demandante, afirmando:


É pacífico que estamos perante uma venda de coisa defeituosa.


Da conjugação do disposto nos art.ºs 913.º, n.º 1, e 914.º, ambos do Código Civil, com os art.ºs 908.º a 910.º e 915.º e segs., do mesmo diploma, resulta que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela, de anulação do contrato e do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo.
Atento o disposto no art.º 916.º do Código Civil, para que haja responsabilidade pela venda de coisa defeituosa é necessário que o comprador, previamente, denuncie ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, excepto se este tiver actuado com dolo (n.º 1), devendo a denúncia ser feita até 30 dias, depois de conhecido o vício e dentro de seis meses após a entrega da coisa (n.º 2
Este artigo estabelece, claramente, um prazo de caducidade.
Parece existir consenso, tanto ao nível da doutrina como da jurisprudência, quanto ao dever de denúncia a que o comprador está legalmente obrigado, previamente ao exercício de qualquer dos direitos que a lei lhe confere, excepto se o vendedor tiver usado de dolo, tal como resulta do citado art.º 916.º, n.º 1, sob pena de caducidade dos mesmos direitos nos termos referidos (v.g. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., pág. 191; Pedro Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso, em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, 2001, pág. 331; João Calvão da Silva, in Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, 2002, págs. 73 e 74; Luís de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III (Contratos em Especial), 6.ª edição, Almedina, 2009, pág. 129; e os acórdãos do STJ de 29/1/2008 e de 21/5/2009, processos n.ºs 07B4540 e 08B1356 e desta Relação de 8/2/2010, processo n.º 3958/06.2TBGDM.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Denunciado o defeito, inicia-se o prazo para a propositura da respectiva acção, que é de seis meses, sob pena de caducidade, nos termos do art.º 917.º do Código Civil que dispõe:
“A acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2 do artigo 287.º”.


Apesar do normativo acabado de transcrever só prever a acção de anulação com base no erro, é de o aplicar, por interpretação extensiva, a todas as outras acções que visem a tutela do adquirente de coisa defeituosa, como tem vindo a entender a melhor doutrina e a maioria da jurisprudência (cfr., entre outros, Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, 5.ª ed., Almedina, 2008, pág. 80; Pedro Romano Martinez, obra citada, pág. 413; Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 193; e Acórdãos da RC, de 31.05.94, CJ, 1994, III, pág. 22, desta Relação de 11/4/2011, processo n.º 887/09.1TBVNG.P e do STJ de 18/03/2003, processo n.º 03B45 e de 96.11.2007, processo n.º 07A3440, todos em www.dgsi.pt.).
Não vem posta em causa a aplicabilidade do citado art.º 917.º nesta acção aos direitos invocados pela autora/recorrente.
No recurso, vem apenas questionado o funcionamento da caducidade da acção interposta, reconhecida na sentença, mas que aquela não aceita, defendendo que houve reconhecimento do direito à reparação dos defeitos pelas recorridas e abuso de direito por parte das mesmas, o que impede a verificação de tal excepção.

Após frisar que o reconhecimento do direito, impeditivo da consumação da caducidade, terá que ser sempre claro e inequívoco, não oferecendo quaisquer dúvidas sobre a atitude de quem reconhece, considerou o acórdão recorrido que os comportamentos das RR., constantes da factualidade dada como provada nos n.ºs 29, 30, 31, 83, 84 e 85, mesmo eventualmente complementados pelo uso de presunções naturais, não satisfaziam tais parâmetros, afirmando:

Recordemos os factos em que a recorrente estriba o seu entendimento, quer do reconhecimento expresso, quer do presumido:
“Todavia e apesar da resolução do contrato pela autora e da posição tomada pelas rés, a 1.ª ré pretendeu ainda tentar apurar a causa dos odores e cheiros e a sua eliminação, para o que convenceu a autora a permitir esses trabalhos” (factos 29 a 31).


“Os quais (o Eng.º FF e o GG) solicitaram à autora que aguardasse, dado que iriam solicitar junto da Renault uma solução para o problema, fosse a eliminação do problema, fosse a substituição do veículo, fosse a restituição do preço” (facto 83).
“Em meados de Janeiro de 2009, dois representantes da 2.ª ré, os Srs. HH e o Sr. Eng. II procederam à experimentação do veículo em circulação e (disseram) que, em 15 dias, seria apresentada uma solução à demandante” (factos 84 e 85).
Os factos ocorreram após a última denúncia dos defeitos, ocorrida em 10/11/2008 (facto 15), a resolução do contrato pela autora por carta de 21/11/2008 (facto 18), o envio de carta à autora pela 2.ª ré, em 25/11/2008, onde “preconizava a conformidade do veículo com os requisitos do construtor” (facto 24), a interpelação da autora pela mesma ré, por carta de 18/12/2008, para que procedesse ao levantamento do veículo que se encontrava nas instalações da Boavista (facto 26) e depois de ter estado nas oficinas da 1.ª ré e de ter sido experimentado pelos referidos FF e GG (factos 81 e 82).
Em parte alguma existe o tal reconhecimento expresso, concreto, inequívoco, claro, no sentido de as rés aceitarem o cumprimento como defeituoso. Bem pelo contrário, a 2.ª ré declinou qualquer cumprimento defeituoso, afirmando que o veículo se encontrava em conformidade com os requisitos do construtor, o que faz presumir que não teria defeitos. As tentativas de reparação, só por si, não implicam reconhecimento dos direitos invocados pela autora/recorrente. A promessa de apresentação de uma “solução para o problema” também não implica aquele reconhecimento, pois, não estando ainda identificada a causa do problema, não poderia haver reconhecimento do respectivo defeito e dos correspondentes direitos da ora recorrente.
E, se não está identificado o defeito, ou melhor, a sua causa, não pode falar-se em reconhecimento relevante por forma a que, em boa fé, tornasse efectivamente desnecessário o recurso à via judicial.
Os factos provados, nomeadamente os invocados pela recorrente não permitem concluir pelo reconhecimento expresso, muito menos tácito ou presumido.


(…)
Apesar da amálgama dos factos alegados e provados, é muito pouca a matéria de facto provada, com relevância para a solução desta questão.
Com base nela, não podemos concluir, de forma segura, que as rés aceitaram reparar, à sua custa, o defeito reclamado pela autora, assim reconhecendo o direito desta à reparação do veículo, à sua substituição ou à restituição do preço, muito menos os direitos por ela reclamados nesta acção – de resolução ou anulação do contrato de compra e venda!
Desconhece-se, desde logo, a causa da anomalia que era objecto das queixas da autora; os termos em que as rés se disponibilizavam solucionar o problema do veículo, que, elas próprias, ignoravam; quais os concretos problemas que estariam abrangidos por tal disponibilidade e cuja solução se propuseram apresentar; e se tal solução abrangeria a resolução de todos os problemas que estiveram na base da presente acção.
Sendo muito estranho – e por isso pouco concludente – que, caso as rés pretendessem assegurar, à sua custa, a reparação ou substituição do veículo ou a restituição do preço, assim cumprindo as obrigações a que se obrigaram ou que garantiram, estivessem mais de um ano para o fazer.
Mal se compreendendo, por outro lado, que a autora, tendo em conta tal lapso de tempo e tratando-se de defeito que detectou logo após a venda e entrega do veículo, ocorridas em 28 de Setembro de 2007, e não obstante as denúncias efectuadas e as tentativas fracassadas de eliminação, ao que parece sempre do mesmo defeito, venha agora considerar impedida a caducidade dos direitos que invocou nesta acção, instaurada apenas em 22/5/2009.
Ainda que se considere que, naquelas tentativas frustradas de eliminação do defeito, houve novos cumprimentos defeituosos aos quais se devem aplicar as mesmas regras do primeiro, designadamente as respeitantes a prazos, não podemos deixar de considerar que a última reclamação efectuada ocorreu em 10/11/2008, sendo esse o início do prazo de caducidade, por ser esse o momento em que o direito podia legalmente ser exercido (art.º 329.º do Código Civil).


A partir daí, houve apenas uma manifestação de intenção genérica de resolução do problema, não se vislumbrando qualquer comportamento das rés que permitisse concluir, sem margem para dúvidas, que aceitavam os direitos que a autora se propõe exercer através da presente acção.
E não ocorreu qualquer outra denúncia, não podendo falar-se em renovação das anteriormente apresentadas.
Refira-se que, em Janeiro de 2009, não houve denúncia alguma dos defeitos, mas apenas uma “experimentação do veículo em circulação”, certamente na tentativa de descobrir a causa dos odores que exalava.
Não faz assim sentido afirmar-se que o prazo da caducidade só começou a contar-se em Janeiro de 2009, nem pode entender-se o comportamento das rés, acima descrito, como reconhecimento inequívoco dos direitos reclamados pela autora.
Inexiste, pois, esta causa impeditiva da caducidade.


Passando de seguida a pronunciar-se sobre o outro fundamento – o abuso de direito - invocado como susceptível de obstar à caducidade, considerou o acórdão recorrido:

Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.

Porém, o abuso do direito, enquanto “válvula de escape”, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito (cfr. acórdão do STJ de 15/1/2013, no processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1).

Como escreveu Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, ali citado:

“O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”

E ensina, lapidarmente, o mesmo Professor, na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:

 “ (...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.” (cfr., ainda, o mesmo autor, no Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, 2.ª reimpressão, pág. 292, onde menciona as mesmas quatro proposições para a concretização da confiança).

A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte.

Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural” (citado acórdão de 15/1/2013).

Para que pudesse considerar-se abusivo o exercício do direito por parte das rés/recorridas, era necessário demonstrar factos através dos quais se pudesse considerar que excederam, manifestamente, clamorosamente, o fim social ou económico do direito por elas exercido ou que com a sua pretensão violavam expectativas incutidas na autora.

Ora, no presente caso, isso não se verifica.

Não só não foram provados factos que permitam concluir pelo excesso manifesto, clamoroso, do fim social ou económico do direito exercido pelas rés ao invocarem a caducidade, mas também que a sua pretensão viola expectativas por elas incutidas à autora.

Os factos, por esta, invocados em sede de recurso (provados sob os n.ºs 29, 30 e 83 a 85) traduzem-se em meras apreciações subjectivas e tentativas de descoberta e solução para o problema, genéricas e imprecisas, não permitindo equacionar uma eventual ofensa clamorosa a um sentimento de justiça socialmente dominante.

Nenhuma confiança há a tutelar, pois o comportamento das rés não permite, com razoabilidade, fazer acreditar que resolveriam o problema do veículo à autora.

Note-se que não houve por parte daquelas qualquer promessa de resolução, nem elas criaram uma expectativa fundada de que iriam reparar o veículo.

Limitaram-se a tentar descobrir a causa dos maus cheiros e propor uma eventual solução.

Isto já depois de a autora ter resolvido o contrato e de ter depositado o veículo nas instalações das rés/recorridas e de a 2.ª ré lhe ter comunicado a conformidade do veículo com os requisitos do construtor e de ter rejeitado a possibilidade de o mesmo permanecer nas instalações da 1.ª ré, exigindo o seu levantamento ou o pagamento do parqueamento, tendo aquela optado pelo levantamento (cfr. factos provados sob os n.ºs 24 a 28).

Este comportamento jamais permite criar expectativas de resolução do problema do veículo, tendo as rés/recorridas afirmado que nem sequer reconheciam a sua existência e que não pretendiam proceder a qualquer reparação, por não a considerarem necessária.

Faltando o primeiro pressuposto da situação de confiança, é manifesta a falta dos restantes, acima referidos, para que se possa considerar verificado o abuso de direito na modalidade indicada.

As rés limitaram-se a invocar a caducidade da acção em termos que não evidencia violação, muito menos clamorosa, do direito conferido pelos citados art.ºs 916.º, n.º 2 e 917.º, por não ter violado qualquer confiança que tivesse sido incutida à autora, pelo que, salvo melhor opinião, não abusaram desse direito.

Inexiste, por conseguinte, abuso de direito, impeditivo do direito de caducidade da acção.


Cremos ser inequívoco que decorreram mais de seis meses sobre a denúncia do defeito sem a respectiva acção ter sido proposta. Ainda que se entenda que houve renovação da denúncia, a última ocorreu em 10/11/2008. E não se verificando qualquer circunstância impeditiva, a caducidade verificou-se com o decurso daquele prazo, pelo que, quando a acção foi instaurada, em 22/5/2009, já tinha caducado o direito de acção fundada na compra de coisa defeituosa.
Tendo caducado o exercício do direito invocado pela autora, tornou-se impossível o seu exercício judicial, como foi decidido pela primeira instância.

3. Novamente inconformada, interpôs a A. recurso de revista excepcional, fundada em contradição do decidido com o teor do acórdão fundamento invocado, documentado a fls. 718 e seguintes, tendo a competente formação admitido o recurso, por considerar verificado o conflito jurisprudencial invocado, considerando que a questão de direito que essencialmente cumpre dirimir, no fundo, se cifra em saber se, face aos comportamentos das RR., tal como se provaram numa e noutra acção, era legítima a invocação da excepção de caducidade ou se tal invocação se traduzia em manifesto abuso de direito:

   Enquanto no acórdão recorrido as aludidas condutas das RR foram tidas como insusceptíveis de gerar na A. qualquer expectativa razoável e legítima de que as RR iriam reparar o veículo, até porque não houve qualquer promessa de reparação do problema e, consequentemente , não existia nenhuma situação de confiança a tutelar por via da cláusula geral do abuso de direito, tendo sido perfeitamente legítima a invocação da excepção de caducidade, no acórdão fundamento a conduta das RR, apesar de ali também não haver promessa de reparação das deficiências do prédio, ( mas apenas a afirmação de que iriam contactar o empreiteiro para esse fim), foi considerada como susceptível de criar nas AA. a expectativa razoável de que os defeitos iriam ser reparados e, portanto, de criar-lhe a convicção de que não era necessária a instauração de nenhuma acção, concluindo-se que, depois de tal conduta, a invocação da caducidade seria manifestamente excessiva segundo os princípios da boa fé, ou seja, concluiu-se que a invocação da excepção pelas RR se traduzia num nítido abuso de direito.

4. São as seguintes as conclusões da alegação do recurso da recorrente:

DA ADMISSIBILIDADE DO PRESENTE RECURSO:

i) - Nos termos do disposto no art. 672º/1 c) do CPC, cabe recurso do Acórdão da Relação que confirme a decisão proferida em primeira instância quando o mesmo esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

ii) - Ora, o Acórdão em crise encontra-se em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 2012, proferido no âmbito do processo n° 1754.6TBCBR que correu termos na 2ª secção da Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Coimbra - cfr. doc. 2.

iii) - Para que seja admitido o recurso excepcional de revista com base naquela alínea c) do n° 1 do art. 672° do CPC, necessário é que os aspectos de identidade dos acórdãos em comparação se evidenciem no seu núcleo decisório e não apenas em quaisquer considerações feitas na sua motivação - vd, p.e., o Ac. (do STJ) de 15 de Julho de 2011, proc. n° 930/10.0TBOER.L1 .S1, in www.dgsl.pt.

iv) A questão apreciada em ambos os processos é, em suma, a de saber se, à luz do preceituado no art. 334° do CC, é legítimo ao vendedor/devedor/réu que, através de uma sucessão de comportamentos que se prolongaram no tempo, criou no comprador/credor/autor, uma confiança tal na solução extrajudicial do litígio emergente da venda de coisa defeituosa que obstou à propositura da acção, vir a aproveitar-se do decurso do tempo, invocando a caducidade do direito de acção.

v) Por outras palavras, o thema decidendum de ambos os processos é o de saber que valoração dar a uma sequência de comportamentos prolongados no tempo, como promessas de eliminação do defeito ou restituição do preço, para efeitos de impedir a invocação da caducidade em sede judicial.

vi) Os acórdãos encontram-se em contradição precisamente porque, havendo uma forte similitude entre o núcleo da situação de facto, a valoração que fazem do mesmo, é manifestamente oposta, não obstante o thema decidendum ser o mesmo.

vii) Os presentes autos versam sobre uma venda de coisa defeituosa; provado o defeito da coisa vendida, cumpre apurar se o direito de acção caducou, nos termos do art. 917° do CC.

viii) Entende a recorrente que a invocação da caducidade, no caso sub iudice, constitui um verdadeiro abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

ix) O Acórdão que legitima o presente recurso versa sobre factualidade em tudo idêntica à dos autos (com a excepção do objecto da venda que, nos autos, é um bem móvel - um veículo e naqueles é um imóvel - uma moradia.)

x) Em ambos os casos foi demonstrada e provada a existência de defeito.

xi) O comportamento adoptado pelos responsáveis (aqui, vendedor e produtor e ali, vendedor e construtor) é, também semelhante.

xii) Em ambos os processos se constatam:

-diligências no sentido de apurar a natureza e origem do defeito,

-solicitações para entrar na residência ou vistoriar o automóvel e

-comunicação a rejeitar responsabilidades,

Tudo como factualidade transcrita e destacada supra.

xiii) Os acórdãos encontram-se em total contradição na sua concreta decisão/fundamentação.

xiv) No dito Acórdão Fundamento, entendeu o Tribunal que a invocação da caducidade constituía um abuso do direito, na modalidade de venire contra facturo proprium, na medida em que o comportamento das rés, que se foram mostrando disponíveis para a solução extrajudicial do litígio, constituiu um impedimento, só se manifestando o interesse em agir (processual) dos autores quando, pela primeira vez, foi declinada a responsabilidade. Mais entendeu que o comportamento das co-rés foi gerador de uma confiança tal que constituía um verdadeiro obstáculo à interposição da acção. Assim, decidiu ser abusivo o aproveitamento do decurso do tempo, por parte das rés, quando foram elas quem criou a expectativa de solução do problema sem recurso à via judicial.

xv) Em contrapartida, o Acórdão em crise entendeu que os comportamentos das rés não foram suficientes para gerar a confiança que obstaculiza à interposição da acção. Mais entendeu que o reconhecimento do defeito, sem que seja apurada a sua origem, é irrelevante. Entendeu, portanto, não haver abuso do direito por parte das rés a invocar a caducidade, quando foram elas quem sempre solicitou prazo para apresentação de uma solução, fazendo várias vistorias ao automóvel, prometendo, inclusive, a apresentação de uma solução em quinze dias, já depois de terem declinado responsabilidades.

xvi) A recorrente não compreende, nem aceita, este entendimento. Não compreende que, tendo ficado provado que as rés reconheceram os maus cheiros e que sempre solicitaram mais prazo para a solução do problema, prometendo, inclusive, que em 15 dias seria apresentada uma solução, fosse a eliminação do problema, a substituição do veículo ou a restituição do preço, não se considere que foi criada uma forte confiança e expectativa na solução extrajudicial do problema, pelo simples facto de uma das rés ter enviado uma carta a declinar responsabilidades, para, um mês depois, a mesma ré, voltar a prometer apresentar uma solução.

xvii) As decisões de ambos os acórdãos foram transcritas supra.

xviii) RESUMINDO, entende a recorrente haver identidade entre a factualidade dos autos e a daquele processo, e entende que as decisões proferidas num e noutro processo são manifestamente contrárias, apesar de apreciarem situações muito semelhantes.

OBJECTO DO RECURSO:

xix) A recorrente entende que deveria a excepção peremptória da caducidade ter improcedido por a sua invocação ser um manifesto abuso do direito, na modalidade de venire contra facfum proprium, devendo, portanto, ser revogados o Acórdão e a sentença em crise, que antecedem.

xx) Concretamente, entende a recorrente que o comportamento gerador da confiança que merece a tutela do instituto do abuso do direito resulta da factualidade vertida nos pontos 6, 9, 15, 1 7 a 38, 52, 59 a 64, 71, 72, e 81 a 89

xxi) Durante todo este período, dos comportamentos que resultam da factualidade provada, não se pode considerar que a autora/recorrente foi negligente, deixando passar o tempo em que deveria ter proposto acção judicial.

xxii) A recorrente acreditou nas rés que foram criando expectativas sérias na resolução extrajudicial do problema que, mesmo após terem declinado a responsabilidade (a 2° ré), e após a resolução do contrato, solicitaram (a 2ª ré) à autora mais quinze dias para apresentar uma solução.

xxiii) As rés, através de uma conduta aparentemente correcta, foram demonstrando a vontade de corrigir o defeito ou apresentar uma solução alternativa, obstaculizando à entrada da acção judicial.

xxiv) Até àquele momento em que toma conhecimento de que, não obstante o comportamento que haviam adoptado, a 2ª ré declina qualquer responsabilidade, chegando mesmo a preconizar a conformidade da coisa com as normas do construtor, a autora não preenche o pressuposto do interesse em agir, essencial para qualquer demanda judicial.

xxv) E mesmo que se considere que aquele obstáculo cessou com a carta da 2ªré (doc. 18, facto provado n° 24), a mesma data de 25/11/2008 e a presente acção deu entrada em juízo em 22/05/2009, ainda antes do prazo de seis meses.

xxvi) Contudo, ainda que assim não se entenda, a recorrente não pode conformar-se com o entendimento de que o comportamento supra descrito não gera confiança suficiente para impedir a invocação da caducidade, em sede judicial, sem chocar frontalmente com a ética negocial vigente e com as expectativas criadas, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural.

xxvii) Ambas as recorridas criaram uma situação propícia a que a autora/recorrente acreditasse na solução extrajudicial do litígio, foram elas que prolongaram no tempo aquela situação, utilizando diversas manobras dilatórias de que querem, agora, prevalecer-se, agindo com manifesto abuso do direito na modalidade de venire factum proprium que resulta, com maior expressão, dos factos provados sob os n.ºs 29, 30, 83 a 85.

xxviii) Mas mais! Como prova de que os mesmos conheciam o defeito, atente-se, ainda, o facto provado sob o n° 59, de onde resulta, com toda a clareza, que a Ia ré sempre conheceu e reconheceu o defeito.

xxix) As rés/recorridas convenceram, através de uma sucessão de condutas, de factos, de actos e declarações, todos eles peremptórios e concludentes, a autora/recorrente de que solucionariam o problema, dentro de um tempo razoável, sempre pedindo mais tempo para a apresentação de uma solução, mostrando-se sempre disponíveis para a mesma; mas não o fizeram, e agora pretendem aproveitar-se do tempo entretanto decorrido, e por elas solicitado, (aproveitar-se da excepção peremptória da caducidade) para se esquivar às suas responsabilidades.

xxx) Atento o critério do bónus pater familiae, à autora/recorrente, enquanto declaratória normal, não seria exigível, face ao comportamento das recorridas outra conduta que não fosse aguardar pela resolução da situação, antes de intentar a competente acção?

xxxi) EM SUMA, entende a recorrente que as demandas não poderão prevalecer-se da caducidade pois a sua invocação constitui abuso do direito.

xxxii) Assim, e improcedendo aquela excepção, deve proceder, totalmente, o pedido da autora, condenando-se, em conformidade, as rés.

xxxiii) O Acórdão em crise violou, entre outras, as normas constantes dos artºs 331 °/2 e 334° do Código Civil.

TERMOS EM QUE,

Admitido que seja o presente recurso, deve o mesmo ser declarado procedente, revogando-se o Acórdão em crise, que antecede e, em consequência, serem as rés condenadas no pedido.

As recorridas contra alegaram, pugnando pela manutenção do decidido no acórdão recorrido.

5. Em tese geral, não oferece dúvida que não corre o prazo curto de caducidade previsto no art. 917º do CC  ( aplicável ao caso dos autos por o comprador –sociedade comercial - do veículo automóvel em questão se não poder qualificar como consumidor, como reconheceu expressamente a sentença proferida na 1ª instância)  nos casos em que – não tendo embora o vendedor reconhecido, em termos cabais e inequívocos, o defeito da coisa vendida ( e não cabendo, por isso, a hipótese no âmbito do preceituado no  nº2 do art. 331º do CC) assume comportamentos que revelem a admissão da existência do possível defeito, tempestivamente reclamado ou denunciado pela contraparte, tentando corrigi-lo ( mesmo que tal tentativa de correcção se venha a revelar frustrada, com persistência das deficiências notadas).

   E esta solução pode justificar-se por duas vias:

- desde logo, por apelo ao princípio da confiança, integrado na cláusula geral da boa fé no cumprimento dos contratos e resultante da proscrição do abuso de direito, que obsta efectivamente a que o vendedor que admitiu como possível a existência do vício e tentou corrigir o defeito denunciado venha ulteriormente, contra facto próprio, invocar a caducidade, em consequência de o comprador – confiando justificadamente na seriedade do propósito de correcção do vício ou defeito da coisa manifestado pelo vendedor – não ter actuado em juízo antes de se ter revelado na prática o resultado final de tais tentativas de resolução do problema : como se afirma no acórdão fundamento, seria manifestamente abusivo o comportamento de quem criasse num comprador de uma obra com defeitos a expectativa de que eles iriam ser reparados, promovendo diligências nesse sentido, e depois viesse invocar o decurso do tempo como base da caducidade do direito de pedir a reparação;

- em segundo lugar, por via do apelo à desnecessidade de tutela judiciária do comprador enquanto persistirem indícios consistentes de que o vendedor, assumindo ou admitindo como possível a existência dos defeitos denunciados, se compromete a realizar as intervenções técnicas necessárias e adequadas para os identificar cabalmente nas suas causas, removendo-os ou eliminando-os – ou seja, enquanto for plausível a existência de uma solução consensual para o litígio, que dispense razoavelmente o recurso à via judiciária: como se afirma, por exemplo, no Ac. de 24/9/09, proferido pelo STJ no P. 2210/06.8TVPRT.S1, não se inicia o prazo curto de caducidade, contado da denúncia do defeito, para agir em juízo por carecer o demandante , nesse momento, de interesse processual, perante a atitude do vendedor que se compromete a reparar os denunciados defeitos construtivos, tentando , embora deficientemente, efectivá-la.

   Na verdade, sendo tempestiva a primitiva denúncia, relativamente ao momento do conhecimento inicial dos defeitos da coisa, e ocorrendo estes manifestamente dentro do «prazo de garantia», não poderá consumar-se a caducidade dos direitos do comprador quando, entre o momento originário da denúncia e aquele em que o comprador propõe a acção, se verifica uma ininterrupta «cadeia» de sucessivas denúncias de vícios da coisa vendida e que originam repetidas tentativas, embora infrutíferas, de resolução do defeito originário – não tendo, neste caso, o comprador avançado para a via judiciária dentro do referido prazo de caducidade, contado da denúncia inicial, por ter confiado no compromisso assumido pelo vendedor de que iria providenciar pela reparação adequada dos vícios e estarem em curso as intervenções técnicas aparentemente vocacionadas para tal finalidade.

   É que não seria aceitável, nem conforme aos princípios da boa fé e da confiança, «forçar» o comprador a propor em juízo acção visando o reconhecimento do seu direito e a condenação do réu a efectivá-lo quando o comportamento da contraparte sugere claramente uma aceitação ou admissão do seu direito , manifestando disponibilidade prática para o realizar, através das intervenções técnicas aparentemente adequadas, sem necessidade de recurso à via judiciária: na realidade, a propositura de acção na pendência desta situação implicaria normalmente a falta do pressuposto processual «interesse em agir», por o direito invocado não estar, nesse momento, carecido de tutela judiciária, inexistindo um litígio actual e efectivo entre os contraentes - o qual , naturalmente, apenas se desencadeará no momento em que o vendedor, invertendo a posição inicialmente assumida, passar a recusar a existência e o dever de reparação dos defeitos da coisa que ainda subsistam.

   No entanto, esta tese geral – que, como se viu, tem tido acolhimento ao nível da jurisprudência, nomeadamente do STJ – não dispensa uma ponderação cuidada das circunstâncias peculiares do caso concreto, de modo a avaliar da seriedade e consistência das expectativas de resolução amigável do litígio acerca dos vícios da coisa, dispensando o recurso à via judiciária enquanto se não revelar plenamente o resultado das tentativas do vendedor de eliminar os defeitos da coisa vendida, que admite como eventualmente existentes: na realidade, neste, como em muitos outros casos, estando em causa a densificação e concretização de cláusulas gerais – boa fé, abuso de direito – a actividade do intérprete e aplicador do direito passa necessariamente por uma cuidada avaliação e ponderação casuísticas do significado a atribuir às condutas das partes, face às circunstâncias peculiares de cada situação litigiosa.

   Importa, pois, passar em revista as características específicas da concreta situação debatida nos presentes autos, tendo igualmente em conta a especificidade dos pedidos formulados.

  

Assim, da matéria de facto provada decorre, em termos de factualidade essencial, que:

- o veiculo automóvel em causa – adquirido em 28/9/07 – apresentava uma anomalia que perturbava significativamente a sua utilização normal (produção acentuada de odores incómodos e presença de níveis anormais de dióxido de carbono,  perturbadores da comodidade e saúde dos respectivos utentes),

- tal defeito motivou uma cadeia de reclamações perante a vendedora que – sem lograr eliminar o problema – foi sucessivamente procedendo às peritagens e intervenções técnicas que considerava idóneas à eliminação do defeito ( pontos 9/17 e 49/72);

- tal procedimento culminou numa última reclamação ou denúncia do defeito, apresentada em  10/11/08 ( ponto 15);

- como as RR continuassem a não detectar e eliminar o problema, a A. procedeu à resolução do contrato, mediante carta expedida em 21/11/08 e recebida pela contraparte em 25/11/08 (pontos 18/19);

- na sequência do recebimento da carta a resolver o contrato, a R, enviou à A., nessa mesma data, uma outra carta em que sustentava a conformidade do veículo com os requisitos do construtor ( ponto 24);

- apesar da resolução extrajudicial do contrato, ocorreu ainda, por iniciativa das RR., uma última tentativa para apurar a causa dos odores e cheiros, em Janeiro de 2009, levando à experimentação do veículo em circulação, comprometendo-se as demandadas a encontrar uma solução para o problema  – o que, mais uma vez se frustrou ( pontos 29/30 e 83/85);

- a presente acção foi intentada em 22/5/09.


   Perante este quadro factual, considerou o acórdão recorrido :
- que não houve um acto de reconhecimento inequívoco do defeito por parte das RR;
- que os factos atrás mencionados, constantes dos pontos 29/30 e 83/85 da matéria de facto, posteriores ao acto resolutivo do contrato e ocorridos em meados de Janeiro de 2009, não são idóneos para gerar uma justificada confiança no comprador quanto ao propósito de eliminação dos pretensos defeitos do veículo, mais não traduzindo que meras apreciações subjectivas e tentativas de descoberta e solução para o problema, genéricas e imprecisas, não permitindo equacionar uma eventual ofensa clamorosa a um sentimento de justiça socialmente dominante ;
- finalmente, que , ainda que se considere que, naquelas tentativas frustradas de eliminação do defeito, houve novos cumprimentos defeituosos aos quais se devem aplicar as mesmas regras do primeiro, designadamente as respeitantes a prazos, não podemos deixar de considerar que a última reclamação efectuada ocorreu em 10/11/2008, sendo esse o início do prazo de caducidade, por ser esse o momento em que o direito podia legalmente ser exercido (art.º 329.º do Código Civil).

Concorda-se inteiramente com aquela primeira asserção – não parecendo que a matéria factual apurada permita efectivamente concluir pelo reconhecimento inequívoco e categórico dos defeitos denunciados e dos consequentes direitos do comprador: na verdade, são situações diferentes aquelas em que o vendedor reconhece, de forma cabal e clara, o defeito denunciado, assumindo o compromisso inequívoco de o eliminar, e os casos em que o vendedor se limita a admitir, como possível ou plausível, a existência eventual do vício denunciado, assumindo as intervenções técnicas adequadas a confirmar a sua existência e causas, eliminando-o, caso se confirme a sua existência: no primeiro caso, o acto de reconhecimento inequívoco funciona como causa imediatamente impeditiva da caducidade, enquanto no segundo grupo de situações a mera admissão do vício da coisa e a realização de intervenções técnicas destinadas a confirmá-lo e eliminá-lo, quando existente, podem tornar abusiva a ulterior invocação da excepção de caducidade, sempre que os comportamentos assumidos pelo vendedor justificarem, em concreto, uma fundada confiança do comprador na desnecessidade de recorrer à via judiciária para ver satisfeito o seu direito.

Por outro lado, adere-se à tese da irrelevância dos comportamentos verificados em meados de Janeiro ( factos 29/31 e 83/85) para funcionarem ainda como impedimento à caducidade, embora por razões não perfeitamente coincidentes com as expressas no acórdão recorrido – relevando fundamentalmente a circunstância de a tentativa final de eliminação do vício denunciado já ter ocorrido posteriormente à resolução extrajudicial do contrato pelo comprador : não parece, na verdade, que a parte que já resolveu o negócio possa ainda invocar, perante aquela factualidade, não cabalmente conclusiva e inequívoca quanto ao reconhecimento do defeito, uma justificada confiança na obtenção de uma solução consensual para o litígio, posterior ao acto resolutivo, que a dispensasse de recorrer oportunamente  às vias judiciais.

Finalmente, não se acompanha a terceira asserção constante do acórdão recorrido, na parte em que se considera iniciado o prazo de caducidade na precisa data em que foi formulada pelo comprador a última reclamação dos invocados defeitos, situada em 10/11/2008 : face ao anterior comportamento global das RR. – admissão da possível existência do defeito do veículo, expressa nas várias intervenções técnicas persistentemente realizadas ao longo de extenso período temporal, tentando - embora sem êxito - apurar a sua causa e eliminá-lo – entende-se que não pode deixar de qualificar-se como denúncia ou reclamação da persistência do defeito do veículo a carta, remetida em 21/11/08 e recebida em 25/11/08, em que – antes de manifestar a vontade de resolver o negócio - se enunciam especificadamente as vicissitudes motivadas pelo alegado defeito do veículo, expressando claramente a sua persistência actual, apesar das tentativas de resolução por parte das RR.; acresce que tem essa mesma data o comportamento do vendedor que , pela primeira vez, considerou de forma clara inexistente o defeito denunciado, pondo termo ao comportamento anteriormente colaborante e à situação de indefinição, incerteza e pendência que até então se verificava, recusando cabalmente  a proceder a novas reparações ou intervenções no veiculo - que considerou conforme aos parâmetros do construtor.


E, assim sendo, o momento em que se iniciou o prazo curto de caducidade do art. 917º deve reportar-se ao dia 25/11/08, por ser a data em que simultaneamente foi comunicada à A. a conformidade do veículo com os requisitos do construtor ( enjeitando com clareza, pela primeira vez, a existência do vício denunciado) e recebida a carta em que a compradora , antes de manifestar a vontade  de resolver o contrato , especificava e reclamava a persistência do defeito reiteradamente denunciado.
Ora, situando-se tal momento para além do prazo de 6 meses, contados anteriormente  à data da entrada em juízo da presente acção, está, sem mais, excluída a verificação da excepção de caducidade.


6. Acresce que – relativamente ao pedido principal, fundado na resolução extrajudicial do negócio e no reconhecimento dos respectivos efeitos jurídicos – nunca se poderia ter por verificada a caducidade, já que o direito potestativo de resolução do negócio foi exercitado menos de 15 dias sobre a data que o acórdão recorrido considerou como sendo o da última denúncia ou reclamação apresentada.
Na verdade, importa ter presente que, na situação litigiosa dos autos, a A. optou por resolver o contrato, com base em alegado incumprimento culposo das RR., fazendo-o extrajudicialmente, mediante comunicação à contraparte por carta registada ( como lhe é permitido pelo nº1 do art. 436º do CC): o comprador do bem defeituoso optou, assim, em primeira linha, não pelo exercício dos direitos que lhe são conferidos especificadamente pelo CC ( anulação do contrato – objecto, como se viu, apenas de pedido subsidiário em segundo grauredução do preço, reparação ou substituição da coisa, indemnização pelos danos decorrentes do defeito denunciado), mas antes pela resolução do contrato, nos termos gerais ( peticionando a condenação das RR no que considera serem as consequências do acto resolutivo, desde logo a restituição do preço), e exercendo tal direito potestativo à resolução por via extrajudicial, através da remessa da carta recebida pela R. em 25/11/08.

É isto que permite compreender, aliás, que na petição inicial se comece por formular um pedido principal puramente declaratório – e não constitutivo – peticionando-se que o tribunal aprecie da validade e regularidade do exercício extrajudicial do direito potestativo de resolução, pedindo ainda a condenação das RR nas obrigações de restituição e indemnização que a A. considera decorrerem consequencialmente do acto resolutivo.
Subsidiariamente, formula ainda a A. dois pedidos, esses sim de natureza constitutiva:
- o de resolução judicial do contrato, se porventura for tido como inválido ou ineficaz o acto de resolução extrajudicial, consumado através da referida carta registada;
- o de anulação do contrato de compra e venda, se porventura improcederem os pedidos tendentes a confirmar ou obter a resolução do negócio.

Ora, mesmo que se considere – dentro da lógica do entendimento ampliativo, segundo o qual o prazo de caducidade de 6 meses previsto no art. 917º é aplicável, não apenas à acção de anulação, mas também à formulação de qualquer outra pretensão baseada na existência de defeitos da coisa vendida, incluindo o direito de indemnização pelos danos decorrentes da venda de coisa  defeituosa ou o direito à reparação ou substituição da coisa ( cfr., por ex., os Acs. de 6/7/07, proferido pelo STj no P. 3440/07 in CJIII/07, nº203, pag.129, de 2/11/10, proferido no P. 6473/06.OTBALM.L1.S1 , de 16/3/11, proferido no P. 558/03.2TVPRT.P1.S1 e de 24/5/12, proferido no P. 1288/08,4TBAGD.C1.S1 ) - não abrangendo, porém, as situações em que o pedido de indemnização se não funda directamente na venda de coisa defeituosa, visando antes obter  a indemnização correspondente ao incumprimento do contrato, rectius, ao incumprimento da prestação a que a ré estava adstrita ( cfr. Ac. de 13/2/14, proferido pelo STJ no P. 1115/05.4TCGMR.G1.S1 )  -  o que é facto é que, no caso dos autos,  o acto resolutivo foi manifestamente praticado dentro desse prazo, contado da última denúncia ou reclamação deduzida:
Não caducou, pois, nestas circunstâncias, manifestamente o direito potestativo de resolver o contrato com base em cumprimento defeituoso da contraparte ( o qual, como se referiu, podia ser validamente exercitado por via extrajudicial, sem implicar a necessidade de proposição de uma acção pelo respectivo titular, ao contrário do que, segundo o entendimento corrente,  sucede com as acções de anulação).

Ora, sendo inquestionavelmente tempestivo o exercício do direito de resolução, não pode, no nosso entendimento, aplicar-se o prazo curto de caducidade do art. 917º à ulterior acção de condenação, intentada com vista à efectivação dos efeitos jurídicos típicos da resolução do negócio jurídico, maxime os deveres de restituição, não acatados espontaneamente pela contraparte; é que tal acção condenatória, consequencial ao exercício do direito de resolução, para além de se situar fora do perímetro dos interesses especificamente tutelados através do regime da venda de coisas defeituosas, tal como se mostra especialmente construído e regulado nos arts. 913º e seguintes do CC ( encontrando antes apoio nos princípios gerais do direito das obrigações, nomeadamente nos arts. 801º, nº2, e 432º e seguintes do CC) , não tem como causa imediata os defeitos ou vícios da coisa vendida que justificaram o acto resolutivo: na verdade, o objecto e o fim imediato dessa acção de condenação, meramente consequencial ao exercício do direito de resolução, fundado em incumprimento contratual,  é o de garantir, nos termos gerais de direito, a tutela judiciária efectiva da parte quanto aos típicos efeitos da resolução de um negócio jurídico, assegurando e realizando, desde logo, o respectivo efeito retroactivo sobre as prestações realizadas pelas partes em cumprimento do contrato.


7. Não pode, deste modo, proceder, pelas razões apontadas, a excepção peremptória de caducidade – cumprindo apreciar, perante a improcedência de tal excepção, a matéria da acção ( e, desde logo, o mérito do pedido principal formulado, envolvendo a apreciação da existência dos pressupostos da resolução extrajudicial operada e a determinação dos seus precisos efeitos jurídicos, face às pretensões formuladas pela A. em sede de condenação).

Na verdade, tal matéria tinha ficado prejudicada pela solução que as instâncias haviam dado ao litígio, decorrente de se ter considerado intempestivas as pretensões formuladas, em consequência da procedência da excepção de caducidade.

Ora, por força do preceituado no art. 679º, conjugado com o nº2 do art. 665º do CPC, não compete ao STJ, no âmbito de um recurso de revista, dirimir pela primeira vez questões de mérito que não foram precedentemente apreciadas pelas instâncias, por terem ficado prejudicadas pela solução por elas adoptada quanto à matéria litigiosa.
Cumpre, assim, por força do nº2 do art. 665º do CPC, remeter os autos à Relação, a fim de que este Tribunal , em aplicação da regra da substituição, ali prevista, possa apreciar o mérito da acção.


8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, concede-se provimento à revista, revogando o acórdão recorrido, na parte em que julgou procedente a excepção peremptória de caducidade; e, consequentemente, julgando tal excepção improcedente e considerando, em consequência, tempestiva a acção proposta, determina-se a remessa dos autos à Relação para apreciação do mérito da acção.
Custas da presente revista pelas recorridas, ficando as custas da acção a cargo das partes, consoante o decaimento que se vier a verificar.

Lisboa, 18 de setembro de 2014

Lopes do Rego (Relator)
Orlando Afonso
Távora Victor