Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
127/09.3PEFUN.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
CRIME PRIVILEGIADO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 11/23/2011
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - No que respeita ao crime de tráfico de estupefacientes, o legislador adoptou um esquema de tipificação penal em que leva em conta que a grande maioria dos casos que chegam aos tribunais se apresentam como pouco investigados, pelo que há uma «zona cinzenta» em que o juiz fica na dúvida sobre a real dimensão do tráfico em causa e, nesses casos, deverá, tendencialmente, aplicar uma pena cuja medida concreta é coincidente na moldura penal abstracta do crime de tráfico comum e na do crime de tráfico menor gravidade, a qual, conforme se pode verificar pelos artigos 21.º e 25.º, se situa entre os 4 e os 5 anos de prisão.

II - Nesses casos, a que chamámos de «zona cinzenta», o legislador apontou para que se aplicasse o crime regra – o do art.º 21.º - mas permitiu que a sua moldura mais baixa convergisse com a penalidade própria do art.º 25.º, reservando este tipo criminal para outras situações de muito menor ilicitude.

III - Note-se que o legislador não se contentou com uma simples diminuição da ilicitude para enquadrar o crime de tráfico de menor gravidade, pois obrigou a que fosse “consideravelmente diminuída”. Do mesmo modo, não aceitou que o tráfico que é realizado pelo agente com a finalidade de obter droga para o seu consumo seja sempre integrado no crime privilegiado do traficante-consumidor, pois que essa finalidade tem de ser “exclusiva”. Em ambos os casos, o legislador deu um sinal claro ao intérprete de que os crimes privilegiados são a excepção e nunca a regra. 

IV - Mas, como importa não transformar o crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º numa raridade jurisprudencial, faremos uma tentativa de exemplificação teórica da situação factual que configura o tipo de crime de tráfico de menor gravidade, cujo objectivo final é o de guiar a jurisprudência para alguma objectividade de critérios e para que, em casos semelhantes, as consequências jurídicas venham a ser as mesmas.

V - Mencionando a lei na previsão do art.º 25.º que a ilicitude do facto se deve mostrar “consideravelmente diminuída”, não nos parece que o pequeno vendedor de rua, que faz dessa actividade “um modo de vida” deva beneficiar de uma considerável diminuição de ilicitude. Haverá, na nossa perspectiva, que impor algum limite temporal máximo para a prática dessa pequena actividade.

VI - Porém, admitimos que aqueles que vendem na rua com a finalidade de, essencialmente, poderem prover o seu próprio consumo (não considerados legalmente como vendedores-consumidores para o efeito do art.º 26.º, onde se exige que essa finalidade seja exclusiva), devam gozar de uma maior condescendência quanto ao período temporal de manutenção da actividade, pois a toxicodependência é uma doença de difícil reversão, geradora de actos compulsivos.  

VII - Note-se, também, que provavelmente não poderá ser considerado como «vendedor de rua», mas como «pequeno armazenista», aquele que, apesar de só ter sido observado pela polícia em pequenas vendas aos consumidores, detém em local próprio uma quantidade de droga que excede largamente a necessidade de satisfazer os seus «clientes» num período de tempo razoavelmente curto, tal como o retalhista no comércio cujo stock é limitado às exigências dos clientes nos tempos mais próximos.

VIII - Importa referir, também, que um problema importante que se deve equacionar é o da “qualidade” da droga, isto é, da percentagem do princípio activo que contém o produto estupefaciente apreendido. Com efeito, quanto mais puro for o produto, isto é, quanto mais princípio activo contiver, maior é a quantidade de doses individuais de consumo que pode proporcionar. Há que ter em conta, para esse efeito, a Portaria 94/96 de 26 de Março, que estabeleceu, com base nos "dados epidemiológicos referentes ao uso habitual", o limite quantitativo máximo, do princípio activo de cada produto, para cada dose média individual diária.

IX - A diminuição de ilicitude que o tráfico de menor gravidade pressupõe resulta de uma avaliação global da situação de facto, atenta a qualidade ou a quantidade do produto, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção.

X - Mas, a avaliação de uma actividade, seja ela qual for, obriga a uma definição prévia de critérios (ou de exemplos-padrão) e, portanto, dir-se-á que o agente do crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, deverá estar nas circunstâncias seguidamente enunciadas, tendencialmente cumulativas:
a) A actividade de tráfico é exercida por contacto directo do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet); 
b) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto;
c) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado;
d) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas.
e) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos;
f) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes;
g) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita;
h) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça


1. A, nascido em 12-10-1951, juntamente com outro, foi julgado nas Varas Mistas do Funchal, no âmbito do processo n.º 127/09.3PEFUN da 2ª secção e, por acórdão de 19/07/2011, foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela C a ele anexa, na pena de 6 anos de prisão.

2. O arguido interpôs recurso dessa decisão para o STJ e concluiu assim:

1°- O presente recurso versa matéria de direito

2º- O arguido foi condenado a uma pena de prisão de 6 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. p. pelo artigo 21 do DL 15/93 de 22/01.

3º- Da quantidade de produtos estupefacientes apreendidos bem como a falta de sofisticação dos meios utilizados pelo arguido na venda de pequenas doses de produtos estupefacientes é notório que estamos perante um pequeno traficante de rua.

4°- O arguido vendia produtos estupefacientes directamente ao consumidor junto à sua residência sem recurso a meios sofisticados, arriscando a ser detectado pelos agentes policiais conforme veio a acorrer.

5º- A forma de actuação do arguido aliado à sua toxicodependência e à quantidade de produto estupefaciente apreendido, permite-nos concluir que estamos perante uma situação de pequeno tráfico completamente distinta da do grande tráfico, razão pela qual a actuação do arguido deveria ter sido enquadrada no previsto no artigo 25 do DL 15/93 de 22/01.

6°- Dá-se por reproduzidos os factos constantes no relatório social do arguido.

7º- A falta de antecedentes criminais pela prática do crime pelo qual foi condenado, bem como a sua idade avançada, o facto de ser doente, ter-se mostrado arrependido, ter projectos de trabalho no futuro e de ter deixado de consumir produtos estupefacientes, permite-nos concluir que é possível estabelecer um juízo de prognose no sentido de se concluir que a simples ameaça do crime permitirá concluir que o arguido irá manter a sua conduta de acordo com as normas sociais.

8°- Assim a pena a aplicar ao arguido não deverá ultrapassar os 4 anos de prisão a qual deverá ser suspensa nos termos do previsto no artigo 50 do C.P.

9º- A suspensão da execução da pena de prisão acompanhada das medidas e das condições admitidos na lei que forem consideradas adequadas a cada situação permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias a condução da vida no respeito pelos valores de direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura social, familiar, laboral e comportamental como factores de exclusão.

10º- Não são considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos de prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.

11°- Mas mesmo que assim não se considere, parece-nos que a pena aplicada ao arguido é deveras exagerada e desproporcional tendo em consideração os factores sociais e pessoais do arguido aliado ao seu arrependimento.

12º- O arguido é uma pessoa de idade avançada além de ser doente.

13º- A manutenção do arguido num estabelecimento prisional por longos seis anos poderá inviabilizar a sua reinserção social além de contribuir para a sua exclusão social dado que irá ter problemas acrescidos em integrar-se no mundo laboral quando tiver mais de 65 anos de idade.

Pelo exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso condenando-se o arguido pela prática de um crime p. p. pelo artigo 25 do DL 15/93 de 22/01 na pena de 4 anos de prisão a qual deverá ser suspensa na sua execução nos termos previstos no artigo 50 do C.P. ou em alternativa aplicando-se ao arguido uma pena que não deverá ser superior a cinco anos de prisão.

3. O Ministério Público, tanto na 1ª instância como no STJ, concluiu pela improcedência do recurso.

4. Cumpre decidir.

As principais questões a decidir são as da qualificação jurídica (tráfico comum ou tráfico de menor gravidade), depois a da medida da pena e, se a mesma vier a ser fixada em 5 ou menos anos de prisão, a da possibilidade da sua suspensão.

5. FACTOS PROVADOS

1. Como forma de obter ganhos financeiros e, assim, prover ao seu sustento e dispor de dinheiro para todas as suas despesas, o arguido A, desde data não concretamente apurada, mas anterior a 26 de Setembro de 2009, tomou a resolução de proceder à compra e posterior revenda a terceiros de produto estupefaciente, nomeadamente, cocaína.

2. Assim, no exercício de tal actividade, no dia 26 de Setembro de 2009, pelas 23:00 horas, na zona da entrada da sua residência sita no B, o arguido A foi surpreendido na posse de € 60,00, divididos em 3 notas de € 20,00.

3. De seguida, concretamente no período compreendido entre as 23:00 horas e 01:00 horas, já no interior da residência do arguido A, situada na morada a que acima se fez referência, foi localizado o seguinte: (i) uma embalagem contendo um produto, que se veio a revelar ser 23,730 g de cocaína, que se encontrava dentro de uma gaveta da mesinha de cabeceira do quarto do arguido; (ii) uma embalagem contendo um produto, que se veio a revelar ser 0,192 g de cocaína, que se encontrava em cima da mesinha de cabeceira do quarto do arguido; (iii) € 1450, 00 em notas do Banco Central Europeu, divididas em 20 notas de € 50,00, 22 notas de € 20,00 e 1 nota de € 10,00, que se encontravam dentro do bolso de uma camisa, no interior do guarda-fatos do quarto do arguido; (iv) um telemóvel de marca «Nokia», (v) um telemóvel, cuja marca se desconhece, mas que pertence à operadora Vodafone»; (vi) uma balança digital, marca «Becken, Pesice», embrulhada num cobertor, no interior do guarda-fatos do quarto do arguido; (vii) um moinho de café, marca (Taurus, Aromatic», embrulhado num cobertor, dentro do guarda-fatos do quarto do arguido; (viii) um punhal, de marca «Muela Bowie», que se encontrava em cima da mesa de cabeceira, no quarto do arguido;

4. Os objectos acima elencados eram usados pelo arguido A no negócio de compra e venda de produto estupefaciente, concretamente na sua preparação, corte, pesagem e acondicionamento.

5. O dinheiro provinha dessa actividade, na medida em que tais substâncias eram adquiridas pelo arguido a um preço inferior ao preço de revenda, permitindo obter, concomitantemente, um lucro.

6. Na sequência dos factos acima referidos, em 28 de Setembro de 2009, pelas 16:35 horas, o arguido A foi submetido ao interrogatório judicial, onde se considerou indiciada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, tendo-lhe sido aplicadas as medidas de coação de Termo de Identidade e de Residência, de apresentações semanais no posto policial da área da sua residência e de proibição de se ausentar da ilha da Madeira.

7. Porém, não obstante ter sido surpreendido na posse do produto estupefaciente e dos demais objectos supra mencionados e da solene censura feita em sede de 1º interrogatório judicial, o arguido manteve o propósito de adquirir para posterior revenda produto estupefaciente, nomeadamente cocaína.

8. Assim, desde essa data, na execução desse propósito, o arguido A, a partir da sua residência, sita na C, e na imediação da entrada da mesma vendeu por número não determinado de vezes tais produtos aos consumidores que o procurassem e que se mostrassem interessados.

9. O arguido procedia ao embalamento de doses individuais destinadas a ser entregues, a troco de dinheiro e outros valores, a indivíduos que as quisessem adquirir.

10. O arguido A era contactado, pessoalmente e através dos seus vários telemóveis, por consumidores de cocaína, os quais lhe solicitavam a entrega destes produtos em doses individuais, sendo que o arguido acordava com eles o preço e a quantidade do produto, bem como o local da sua entrega.

11. No dia 22 de Outubro de 2010, por volta das 21:45 horas, no hall de entrada da residência do arguido A, sita na C, área desta comarca do Funchal, o arguido A transportava consigo: (1) no bolso da camisa, 2 embalagens de um produto, que se veio a revelar ser 21,680 g de cocaína; (ii) num dos bolsos das calças, uma balança electrónica de bolso, marca "Tangeant", e (iii) um telemóvel, marca "Nokia";

12. Nessas mesmas circunstâncias de tempo de lugar, o arguido A autorizou a entrada dos agentes da Polícia de Segurança Pública na sua residência.

13. Nesse local foram ainda encontrados: (i) 8 embalagens, contendo um produto que mais tarde se veio a revelar ser 148,335 g de cocaína encontradas dentro de uma bolsa azul, num compartimento da sala; (ii) 2 embalagens, contendo uma substância que se velo a revelar ser 17,070 g de cocaína; (iii) 2 embalagens, contendo uma substância que se veio a revelar ser 9,183 g de cocaína; (iv) € 1060,00 em notas do Banco Central Europeu, encontradas dentro de um saco no interior de uma gaveta da mesinha de cabeceira do quarto do arguido A; (v) € 2 070, 00, em notas do Banco Central Europeu, encontradas dentro de uma bolsa azul num compartimento da sala; (vi) uma balança de cozinha, marca "Becken" encontrada dentro da mesma bolsa azul; (vii) um moinho de café, marca "Beckcn", encontrado no interior de um móvel de cozinha; uma TV Plasma, marca "LG"; (viii) um isqueiro, marca "Bic"; (ix) um telemóvel, marca "Sony Eriksson"; (x) um telemóvel, marca "Nokia"; (xi) 1 recorte em plástico, encontrado no quarto de A;

14. Os objectos acima elencados eram usados pelo arguido A no negócio de compra e venda de produto estupefaciente e destinavam-se, concretamente, à sua preparação, corte, pesagem e acondicionamento.

15. O dinheiro provinha dessa actividade, na medida em que tais substâncias eram adquiridas pelo arguido A a um preço inferior ao preço de revenda, o que permitia a obtenção de um lucro.

16. O arguido A dedicou-se à compra, detenção e posterior revenda de substâncias estupefacientes a consumidores.

17. O arguido A desenvolveu esta actividade não obstante conhecer as características estupefacientes das substâncias detidas e transaccionadas, e as consequências nefastas e aditivas que as mesmas provocavam nas pessoas que as consumiam.

18. Apesar de estar ciente da natureza estupefaciente dos produtos em causa, o arguido A quis e efectivamente logrou detê-los e entregá-los a troco de dinheiro e outros valores, a todos os indivíduos que os pretendessem adquirir.

19. Desta prática, o arguido A retirou o consequente benefício económico.

20. Nas circunstâncias de tempo referidas em 11., também dentro da casa de A, encontrava-se o arguido D que detinha na sua posse (…)

21. (…)

22. Os arguidos A e D sabiam que as supra descritas condutas lhes estavam vedadas por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, não se coibiram de as realizar.

23. Os arguidos A e D agiram, assim, deliberada, voluntária, livre, e conscientemente.

24. O arguido A nasceu em Cabo Verde, no seio de uma família de características rurais e que se dedicava à agricultura e criação de animais e onde pelas dificuldades económicas só frequentou a 1ª classe. Em 1973 imigrou para Portugal, onde tinha família e alguns conhecimentos, tendo passado a desenvolver actividade na área da construção civil em várias localidades e empregadores, em função das ofertas de trabalho existentes. Entretanto deslocou-se para a Região e veio a casar, fixando-se na zona do Campanário, onde viveu com a mulher e os filhos, actualmente com 23 e 22 anos de idade, tendo o casamento terminado em 2009, com o divórcio. Viveu sempre em casa dos sogros e apesar de ter iniciado a construção de uma moradia, não veio a conclui-la. Em termos laborais, apresentou uma mobilidade ascendente, vindo na altura de maior volume de construção na Região a possuir uma firma, juntamente com a cônjuge, tendo desenvolvido obras de dimensão apreciável e tido muitos trabalhadores ao seu encargo. Nessa altura a situação económica era favorecida o que permitiu a aquisição de alguns bens, designadamente viaturas automóveis de marcas socialmente reconhecidas. O decréscimo das solicitações, associado ao não pagamento de algumas obras, terá contribuído para o desmoronamento da firma e para uma série de problemas, designadamente no Tribunal de Trabalho, por incumprimentos da legislação laboral. Terá também dívidas às Finanças que não liquidou e foi sujeito a penhoras. Segundo refere, na sequência de uma situação de conflito com um cliente, que me deveria dinheiro e sob uma elevada tensão por não conseguir pagar aos seus trabalhadores, envolveu-se em confronto, vindo a ser condenado judicialmente. Em 2006 cessou a actividade da empresa e passou a trabalhar como assalariado para outras sociedades de construção civil, tendo inclusive trabalhado nos Açores para um subempreiteiro que no momento se encontra a cumprir pena de prisão por tráfico de estupefacientes. De acordo com a sua narrativa, foi nos Açores que consumiu pela primeira vez cocaína, vindo mais tarde a utilizá-la de forma mais ou menos regular. Ainda assim, não terá sentido necessidade de prosseguir tratamento, apesar de em Maio de 2010 ter comparecido a consulta de acolhimento na Unidade de Tratamento da Toxicodependência. No regresso à Região e a partir de 2009, não há registo de descontos para o sistema de protecção social. Refere ter subsistido da venda de um terreno em Cabo Verde, facto não passível de comprovação, e nos últimos tempos alternava de residência em apartamentos alugados. No meio social onde residiu cerca de 20 anos, é visto como um indivíduo que não suscitava problemas e era conhecida a sua actividade no ramo da construção civil, existindo mesmo a percepção de que este estaria fora da Região. Vive o presente processo com alguma apreensão, ainda que o seu discurso seja tranquilo, procurando transmitir uma imagem de não envolvimento em actividades de tráfico de estupefacientes, circunscrevendo a sua ligação às drogas, ao consumo ocasional de cocaína. Já recebeu visita da filha no estabelecimento prisional, mas o seu discurso revela algum desconhecimento da situação de vida dos descendentes. Caso seja condenado em pena de prisão, parece acreditar nos seus recursos pessoais para registar uma boa adaptação à realidade prisional, ainda que as suas expectativas sejam as de regressar ao seu país de origem, onde refere ter oportunidade de trabalho.

25. O arguido A tem antecedentes criminais pela prática de crimes de desobediência.

6. TRÁFICO MENOR OU TRÁFICO COMUM?

O art.º 21.º do DL n.º 15/93 define o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual se punem diversas actividades ilícitas, cada uma delas com virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do crime.

O art.º 24º do mesmo diploma prevê o tipo agravado de tráfico, com a enumeração taxativa das respectivas circunstâncias agravantes.

Quanto ao art.º 25º, para o qual o recorrente apela, refere-se ao tráfico de menor gravidade, fundamentado na diminuição considerável da ilicitude do facto revelada pela valoração em conjunto dos diversos factores, alguns deles enumerados na norma, a título exemplificativo (meios utilizados, modalidade e circunstâncias da acção, qualidade e quantidade das plantas, substâncias ou preparados.

Estará a lei, assim, a fazer uma distinção entre o comum traficante, o grande traficante e o pequeno traficante, para enquadrar os factos sob análise no tráfico-tipo (art.º 21.º), no tráfico agravado (art.º 24.º) e no tráfico de menor gravidade (art.º 25.º)?

A este respeito e admitindo que seria essa a intenção legislativa, poder-se-ia pensar que, como a maioria dos casos investigados pelas polícias no combate ao tráfico de droga se dirigem contra a parte mais visível, isto é, contra o «tráfico de rua», e havendo que distinguir o simples «passador» de droga do intermediário e este do dono ou produtor do negócio, a lógica obrigaria a que houvesse mais condenações pelo tráfico de menor gravidade do que as pelo tráfico comum e mais destas do que as pelo tráfico agravado. Haveria, assim, uma pirâmide que teria por base o tráfico menor e por topo o tráfico agravado, estando no meio o tráfico comum.

Esta visão sedutora do problema choca-se frontalmente, porém, com a realidade normativa.

Com efeito, o DL 15/93 começa por tipificar o crime que chama de “tráfico e outras actividades ilícitas” (art.º 21.º), depois enuncia as circunstâncias que o deverão agravar (art.º 24.º/tráfico agravado) e, por fim, as que o poderão privilegiar (art.º 25.º/tráfico de menor gravidade e art.º 26.º/traficante-consumidor). A imagem que a lei transmite, deste modo, não é a de uma única pirâmide, mas de duas pirâmides invertidas, uma maior que engloba a partir da “base” o crime de tráfico comum e junto ao topo o crime de tráfico agravado e outra, para baixo, de menor dimensão, constituída pelo tráfico de menor gravidade (e pelo traficante-consumidor), cuja “base” está unida à do tráfico comum e que, como se verá, se confunde em parte com a deste.

Fá-lo, aliás, à semelhança de outras tipificações legais, como as do crime de homicídio, onde se verifica que o crime tipo tem uma muito maior incidência do que o qualificado ou do que o privilegiado.

Há, contudo, uma diferença. Enquanto o homicídio comum é punível com uma pena de 8 a 16 anos de prisão e o homicídio privilegiado com uma pena de 1 a 5 anos de prisão, isto é, com penas que não se interceptam, já as penas pelo tráfico comum e pelo tráfico de menor gravidade comungam em parte na mesma pena, pois o primeiro é punível com 4 a 12 anos de prisão e o segundo com 1 a 5 anos de prisão. 

Porque terá o legislador optado por esta solução legal e não por outra que considerasse o crime base o tráfico de menor gravidade?

Por uma lado, pela orientação política que permanece arreigada na grande maioria dos países de que o tráfico de estupefacientes tem de ser atacado de forma particularmente severa, sem laxismos e num combate permanente. O crime regra é grave. Não é de gravidade diminuída. Não estamos em condições de aqui abordar a questão de saber se essa é uma opção justa e eficaz, já que está fora das nossas atribuições a discussão de opções políticas, muito menos as tomadas à escala global, mediante tratados a que Portugal se comprometeu.

Por outro lado, se ao traficante for passada a mensagem de que há um tratamento especial na pena para os casos «tidos» sistematicamente como de menor gravidade, ainda que na realidade não o sejam, tudo fará para adaptar o seu grande ou pequeno tráfico aos «modelos» concebidos jurisprudencialmente, por exemplo, transportando sempre pequenas quantidades de droga, embora o tenha de fazer por um maior número de vezes por dia, pois sabe que assim será menos penalizado.

A nosso ver, o legislador adoptou um esquema de tipificação penal em que leva em conta que a grande maioria dos casos que chegam aos tribunais se apresentam como pouco investigados, pois que as polícias só detectam, em regra, a parte mais visível dos factos (por exemplo, a apreensão de determinada quantidade de droga num certo dia). Na verdade, outro tipo de investigação, mais profunda, seria deveras dispendioso e, porventura, ineficaz (ineficácia, contudo, parcialmente colmatada nos últimos anos pelo crescente uso de escutas telefónicas como meio de prova).

Tal esquema parte da constatação de que há uma «zona cinzenta» em que o juiz fica na dúvida sobre a real dimensão do tráfico em causa e, nesses casos, deverá, tendencialmente, aplicar uma pena cuja medida concreta é coincidente na moldura penal abstracta do crime de tráfico comum e na do crime de tráfico menor gravidade, a qual, conforme se pode verificar pelos artigos 21.º e 25.º, se situa entre os 4 e os cinco anos de prisão.

Mas, enquanto essa pena de 4 a 5 anos de prisão pertence à moldura menos gravosa da que está prevista para o art.º 21.º, já fica na moldura mais gravosa do art.º 25.º, sendo, portanto, muito mais fácil justificar a aplicação da primeira do que a da segunda, face ao «peso» negativo ou positivo das demais circunstâncias do caso. Bem difícil seria justificar que um determinado crime de tráfico de menor gravidade tem uma elevada ilicitude para esse quadro legal e, em face disso, aplicar uma pena de 5 anos de prisão, pois estar-se-ia à beira da incongruência; os 4 ou 5 anos de prisão nesse tipo de crime ficarão reservados, deste modo, para outro tipo de casos em que intervêm circunstâncias agravantes não ligadas à ilicitude, como a reincidência.

Naqueles casos a que chamámos de «zona cinzenta», o legislador apontou para que se aplicasse o crime regra – o do art.º 21.º - mas permitiu que a sua moldura mais baixa convergisse com a penalidade própria do art.º 25.º, reservando este tipo criminal para outras situações de muito menor ilicitude, pois que “A tipificação do art. 25.º, do DL 15/93, parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21.º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar” (1).

Na verdade, tem-se a percepção que, estatisticamente, a maioria das penas por crimes de tráfico de estupefacientes se situa na faixa dos 4 a 5 anos de prisão, com enquadramento dos factos no crime tipo do art.º 21.º, cuja pena, portanto, caberia também na do tráfico de menor gravidade.

Esta tendência estará, porventura, a ser ligeiramente alterada nos últimos anos, desde que o legislador permitiu a suspensão da pena aplicada até aos 5 anos de prisão. Nota-se, na verdade, que a 1ª instância está a aplicar muitas vezes penas ligeiramente superiores a esse limite, por entender que em regra não se justifica a pena de substituição. Mas, a jurisprudência do STJ tem contrariado essa distorção na aplicação da pena, com a indicação de que no tráfico comum há exigências elevadas de prevenção geral que desaconselham a suspensão da pena, mesmo que aplicada em medida inferior a 5 anos de prisão. O que é, também, mais um argumento a favor da perspectiva legal de que o crime regra é o do art.º 21.º, ficando o do art.º 25.º para as situações em que há uma sensível diminuição da ilicitude e em que, portanto, mais facilmente se poderá perspectivar a suspensão da pena.

Note-se que o legislador não se contentou com uma simples diminuição da ilicitude para enquadrar o crime de tráfico de menor gravidade, pois obrigou a que fosse “consideravelmente diminuída”. Do mesmo modo, não aceitou que o tráfico que é realizado pelo agente com a finalidade de obter droga para o seu consumo seja sempre integrado no crime privilegiado do traficante-consumidor, pois que essa finalidade tem de ser “exclusiva”. Em ambos os casos, o legislador deu um sinal claro ao intérprete de que os crimes privilegiados são a excepção e nunca a regra. 

Importa, porém, não transformar o crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º numa raridade jurisprudencial e, pelo contrário, há que fazer um esforço para que surja com mais equidade e, portanto, num maior número de casos.

Essa tem sido uma luta doutrinária de alguns, desde há muitos anos (v.g. Carlos Almeida, "Legislação Penal Sobre Droga: Problemas de Aplicação", na RMP, 44, Eduardo Maia Costa, Direito Penal da Droga, RMP, 74, Vítor Paiva, Breves notas sobre a penalização do pequeno tráfico de estupefacientes, RMP 99) e de alguma jurisprudência, designadamente a que tentou inverter a tendência conservadora já instalada (por exemplo, 15-02-2001 - Proc. n.º 106/01, 19-04-2001 - Proc. n.º 948/01, 10-05-2001 - Proc. n.º 472/01, 21-06-2001 - Proc. n.º 863/01, 31-01-2002 - Proc. n.º 4264/01, 31-01-2002 - Proc. n.º 4264/01, 13-02-2003 - Proc. n.º 253/03, 13-02-2003 - Proc. n.º 167/03-5, todos relatados pelo Cons. Carmona da Mota).

Diz-se, por exemplo, neste último acórdão: «Haverá, por isso, que não «meter no mesmo saco» todos os traficantes, distinguindo entre os casos «graves» (art. 21.º), os muito graves (art. 24.º) e os pouco graves (art. 25.º). Em tempos, é certo, «a jurisprudência quase esvaziou os art.s 25.º e 26.°, remetendo para o art. 21.° a generalidade das situações e fazendo uma interpretação contra legem do art. 25.º». Mas, «aplicando-se este artigo às situações em que a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das drogas, a interpretação que parece mais consentânea com o texto (e com a epígrafe do artigo) – e que vem cativando, progressivamente, a jurisprudência - é a de que o legislador quis incluir aqui todos os casos de menor gravidade», ou seja, o «pequeno tráfico», o «pequeno retalhista de rua» (2)».

Em relação a esta jurisprudência agora citada só poderá haver discordância se conduzir ao resultado (não explícito) de que o maior número de condenações deveria ser pelo crime do art.º 25.º, como se este fosse o crime regra. Mas tem o mérito de alertar os juízes de que o art.º 25.º não deve ser tido como letra morta ou de rara aplicação.

Ora, se é relativamente fácil o enquadramento do crime agravado, pois a lei enumera taxativamente as diversas circunstâncias que considera qualificativas, já é matéria pouco elaborada pela jurisprudência a exemplificação do que deverá ser o tráfico de menor gravidade, cujo tipo criminal é sempre apresentado de um modo teórico e, depois, casuisticamente determinado, com as inevitáveis discrepâncias de tribunal para tribunal.

Faremos aqui uma tentativa de exemplificação teórica da situação factual que configura o tipo de crime de tráfico de menor gravidade, com a esperança de que venha a ser aprofundada e corrigida por outros, cujo objectivo final é o de guiar a jurisprudência para alguma objectividade de critérios e para que, em casos semelhantes, as consequências jurídicas venham a ser as mesmas. Com o esclarecimento, porém, de que não temos o objectivo de fechar a porta a soluções distintas ou de estar a criar barreiras, pois a norma do art.º 25.º é aberta e, portanto, permite outras interpretações que não as que propomos.

O que nos move é a sensação de que, decorridos tantos anos, ainda o STJ não soube indicar com exactidão em que casos-tipo se verifica o tráfico de menor gravidade, tipificado legalmente no art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro.

Diremos, antes de mais, que aderimos parcialmente ao que escreveu Carlos Almeida na já citada obra, escrita em 5/12/1989, ainda no âmbito da vigência da anterior Lei da Droga: "considerando que se devem somar a globalidade das doses que um pequeno traficante veio a transmitir a terceiros ao longo da sua vida, ou atendendo apenas à totalidade do produto que num determinado momento lhe foi apreendida, não obstante se saber que se destinava a ser cedida a terceiros em pequenas porções, estamos a esvaziar de conteúdo o art. 24.1 [agora, 25], estamos a restringir a sua aplicação a casos mal investigados, a apreensões fortuitas, no fundo a acasos da vida”. "Não podemos admitir que seja esse o campo de aplicação do citado preceito. Não podemos admitir que tenha o legislador pretendido reconduzir a globalidade das situações às penas severas estabelecidas pelo art. 23 [agora 21] para os casos de tráfico mais graves". "Concluímos, assim, que não há que adicionar todas as substâncias que o "dealer" vendeu na vida, ou que considerar a quantidade que ele num determinado momento detinha, devendo-se, pelo contrário, atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores. Nisto, como em tudo o que respeita à aplicação do direito, há que ter pondera­ção e equilíbrio, não deixando passar um intermediário por passador de rua, mas também não sancio­nando um e outro de forma idêntica".

E aderimos parcialmente e não totalmente, pois, mencionando a lei na previsão do art.º 25.º que a ilicitude do facto se deve mostrar “consideravelmente diminuída”, não nos parece que o pequeno vendedor de rua, que faz dessa actividade “um modo de vida” deva beneficiar de uma considerável diminuição de ilicitude. Haverá, na nossa perspectiva, que impor algum limite temporal máximo para a prática dessa pequena actividade, pois, de outro modo, estaremos a beneficiar quem renitentemente vive à margem da lei, dos proventos arrecadados à custa de um negócio paralelo, criminoso e com resultados nefastos para a saúde dos “compradores”.

Porém, admitimos que aqueles que vendem na rua com a finalidade de, essencialmente, poderem prover o seu próprio consumo (não considerados legalmente como vendedores-consumidores para o efeito do art.º 26.º, onde se exige que essa finalidade seja exclusiva), devam gozar de uma maior condescendência quanto ao período temporal de manutenção da actividade, pois a toxicodependência é uma doença de difícil reversão, geradora de actos compulsivos.  

Note-se, também, que provavelmente não poderá ser considerado como «vendedor de rua», mas como «pequeno armazenista», aquele que, apesar de só ter sido observado pela polícia em pequenas vendas aos consumidores, detém em local próprio uma quantidade de droga que excede largamente a necessidade de satisfazer os seus «clientes» num período de tempo razoavelmente curto, tal como o retalhista no comércio cujo stock é limitado às exigências dos clientes nos tempos mais próximos.

Importa referir, também, que um problema importante que se deve equacionar é o da “qualidade” da droga. Não nos referimos, propriamente, à questão controversa das “drogas leves” e das “drogas duras”, mas da percentagem do princípio activo que contém o produto estupefaciente apreendido. Com efeito, quanto mais puro for o produto, isto é, quanto mais princípio activo contiver, maior é a quantidade de doses individuais de consumo que pode proporcionar. Há que ter em conta, para esse efeito, a Portaria 94/96 de 26 de Março, que estabeleceu, com base nos "dados epidemiológicos referentes ao uso habitual", o limite quantitativo máximo, do princípio activo de cada produto, para cada dose média individual diária.

Como derradeira consideração, importa afirmar que somos favoráveis à jurisprudência mais constante do STJ, de que a diminuição de ilicitude que o tráfico de menor gravidade pressupõe resulta de uma avaliação global da situação de facto, atenta a qualidade ou a quantidade do produto, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção.

Na verdade, os próprios elementos típicos do crime do art.º 25.º, aí enunciados, para isso apontam. O que afirmamos é que toda a avaliação de uma actividade, seja ela qual for, quer num estabelecimento de ensino, quer no desempenho profissional, quer de uma obra de construção, pressupõe a definição prévia de critérios e, portanto, a nossa tentativa é a de aqui enunciar que critérios são esses, de acordo com actuações padrão, no domínio da factualidade que a norma legal abarca.     

Diríamos, em suma, que o agente do crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, deverá estar nas circunstâncias seguidamente enunciadas, tendencialmente cumulativas:
i) A actividade de tráfico é exercida por contacto directo do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet); 
j) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto;
k) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado;
l) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas.
m) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos;
n) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes;
o) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita;
p) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.

*


Ora, no caso em apreço, os factos provados demonstram que o recorrente não está dentro dos critérios anteriormente definidos.

Com efeito, tendo sido confirmada a posse instantânea, mas em dois momentos distintos, de cerca de 220 gramas de cocaína para venda, cujo grau de pureza não consta dos factos provados, ainda poderemos admitir que essa quantidade pudesse ser a necessária para vender em pequenas doses aos consumidores que o contactassem, durante uns dias.

Mas não está provado que o recorrente, apesar de se dizer consumidor (conforme relatório social elaborado e transcrito nos factos provados), exercesse a actividade de venda de cocaína para, essencialmente, prover ao seu próprio consumo.

Deste modo, como vendeu cocaína desde 28 de Setembro de 2009 a 22 de Outubro de 2010 e também num período indeterminado anterior, fê-lo, portanto, por mais de um ano e fora do critério definido anteriormente na al. c).

Por outro lado, se da primeira vez tinha obtido com a venda de cocaína € 1510,00, quantia essa que lhe foi então apreendida, da segunda vez tinha na sua posse € 3130,00 como produto da venda desse produto, quantias essas que excedem o vencimento médio mensal e que eram para seu uso pessoal, pois provou-se que comprava aquela droga por um preço e, depois, revendia-a com lucro, isto é, “trabalhava” por conta própria. Também está fora do critério definido na al. f). 

Dúvida não há, portanto, de que os factos provados devem ser qualificados no crime por que foi o recorrente condenado na decisão recorrida, o do art.º 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro.

7. MEDIDA DA PENA

O crime de tráfico comum, cuja qualificação não foi contestada nem oferece dúvida, é punível com prisão de 4 a 12 anos.

A 1ª instância fixou a pena em 6 anos de prisão.

Estará correcta a decisão recorrida nesse aspecto?

«1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2. Na determinação da pena, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena» (art.º 71º, n.ºs 1 e 2, do CP).

 O grau de ilicitude é pequeno, pois, no quadro de um tráfico comum, a quantidade que detinha de produto não era elevada, os proventos também não o eram (nesse quadro), os meios usados eram rudimentares e o recorrente fazia a venda “a retalho”, sem usar intermediários, embora como «negócio» próprio.

A sua participação no crime, todavia, não foi ocasional e estava a tornar-se um “modo de vida”.

Já o dolo, por outro lado, foi muito intenso, não só pela frequência das vendas, pelo tempo decorrido e também pelo facto de, apesar de detido por posse e venda de cocaína e colocado sob termo de identidade e residência e apresentações periódicas junto da autoridade policial, voltou a exercer essa actividade, sem respeitar a advertência dos tribunais que então lhe foi feita.

Demonstrou-se que o recorrente, natural de Cabo Verde, está em Portugal desde 1973, teve uma actividade lícita durante muitos anos na área da construção civil, até como empreiteiro e depois como assalariado, mas posteriormente, como correram mal os negócios, terá enveredado pelo consumo (?) e venda de cocaína.

Tem antecedentes criminais por crimes de desobediência.

Como muitas vezes se tem dito, citando Anabela Miranda Rodrigues, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” (“A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág. 570).

“É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica (mesma obra, pág. seguinte).

Ora, se o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade se situaria, atenta a mediana ilicitude dos factos, nos 6 anos de prisão, tal como foi fixado na 1ª instância, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas.

E o mínimo indispensável à protecção dessas expectativas situar-se-á nos 5 (cinco) anos de prisão, atenta a sua idade actual (60 anos) e o facto de ter mantido durante muitos anos um comportamento socialmente adequado, só quebrado por vicissitudes económicas.

Será esta última a pena que se irá fixar, o que suscita a questão de poder ser suspensa na sua execução (art.º 50.º do CP).

Dispõe o art.º 50°, n.º 1, do C. Penal:

"O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

Este preceito consagra agora um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 14ª edição, pág. 191).
O juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido pode assentar numa expectativa razoável de que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização (em liberdade) do arguido.

Ou dito de outro modo: a suspensão da execução da pena deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime.

  Ora, no caso, não é possível formar tal juízo de prognose favorável, pois o recorrente, apesar de ter tido a oportunidade de refazer a sua vida quando foi detido a primeira vez por posse de cocaína, já que, ao contrário do que é habitual, não foi colocado em prisão preventiva e antes foram-lhe fixadas outras medidas de coacção menos gravosas, voltou a delinquir e fê-lo durante mais de um ano, o que demonstra que, se fosse colocado em liberdade, voltaria a delinquir.

Por outro lado, no crime de tráfico comum de estupefacientes há fortes exigências de prevenção geral e a comunidade, em princípio, não aceita nem compreende outra pena que não a de prisão efectiva, salvo nos casos em que se justifica uma atenuação especial.

Assim, a pena será efectiva.

Como tal, o recurso mostra-se parcialmente procedente. 

8. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso e, em consequência, em condenar o recorrente A, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela C a ele anexa, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

Não há lugar a tributação (art.º 513.º, n.º 1, do CPP).

Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Novembro de 2011

Santos Carvalho (Relator)

Rodrigues da Costa (com declaração de voto)

Carmona da Mota

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(1) Frase citada em vários acórdãos, pensa-se que retirada do Ac. STJ de 15/12/99, proc. 912/99.

(2) Eduardo Maia Costa, Direito penal da droga, RMP 74-103, ps. 114 e ss.


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Declaração de voto

         Acompanho a decisão e grande parte da fundamentação, nomeadamente no que se refere às considerações gerais e perspectiva histórica da prática jurisprudencial no que toca à interpretação do art. 25.º do DL 15/93, de 22/01 (tráfico de menor gravidade), mas discordo da parte em que se tentam fixar as circunstâncias que deveriam ocorrer tendencialmente de forma cumulativa para definir o âmbito normativo desse tipo legal.

            Entendo que não compete ao aplicador do direito fixar, de uma forma tendencialmente geral e abstracta, circunstâncias, elementos, pressupostos ou actuações-padrão em que se deve concretizar uma determinada conduta típica, ou melhor dizendo, um determinado tipo de ilicitude. É essa uma tarefa regulamentadora que não pode confundir-se com a elaboração jurisprudencial.

            Acresce que, no caso, a pretexto de uma concretização, ainda que não exaustiva, dos elementos consubstanciadores da ilicitude consideravelmente diminuída postulada pelo art. 25.º do DL 15/93, de 22/01, se utilizam com frequência outros conceitos indeterminados, que acrescem aos da própria lei, quando se pretendia concretizá-los.

Rodrigues da Costa