Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
630/14.3TBFLG.P1.S2
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: REVISTA EXCEPCIONAL
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO.
Doutrina:
- Mota Pinto, Teoria Geral Do Direito Civil, 3.ª edição, 444/445, 574/575.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral Do Direito Civil, 6.ª edição, 546/547.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 236.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 4 DE JUNHO DE 2002; 22 DE SETEMBRO DE 2016; DE 5 DE JANEIRO DE 2016; DE 12 DE MAIO DE 2016, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. A interpretação nos negócios jurídicos surge-nos como uma actividade destinada a fixar o sentido e alcance decisivo do seu conteúdo, determinando o conteúdo das declarações que o suportam e, consequentemente os efeitos que visam produzir.

II. A interpretação da expressão “a partir de” , tendo como boa a doutrina da impressão do destinatário, posição esta adoptada pela doutrina e pela jurisprudência como a mais razoável e mais justa na interpretação negocial, só pode querer significar que as partes assentaram que as solas objecto das encomendas não seriam entregues pela Autora à Ré antes dos dias indicados, e, sempre a partir dos mesmos, funcionando aquelas datas como uma baliza para a entrega, isto é, como termo «a quo», a partir do qual existiria para a Ré a expectativa do respectivo cumprimento.

III. Tendo em atenção a natureza do negócio, a aquisição de solas para a produção de calçado pela Ré, aqui Recorrida, o qual, por sua vez, era objecto de contratos vários, havidos entre esta e terceiros, os quais ficaram por cumprir, conduz-nos inexoravelmente à asserção de que a essência do negócio residia na relevância do momento da entrega, elemento este primordial para a Ré, no desenvolvimento da sua actividade comercial normal: é a manifestação do princípio da razoabilidade de um qualquer destinatário, naquelas mesmas circunstâncias, tendo em atenção todo o complexo contratual que existiu entre as partes.

(APB)

Decisão Texto Integral:

PROC. 630/14.3TBFLG.P1.S2

6ª SECÇÃO

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I V, UNIPESSOAL, LDA, propôs acção declarativa sob a forma de processo comum contra CALÇADO, LDA, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 3.778,46 acrescida de juros de mora.

Alega para tanto que é uma sociedade comercial cujo objeto social compreende o fabrico e comercialização de solas e outros componentes para calçado; por sua banda, a Ré é uma sociedade comercial cujo objeto social consiste na fabricação de calçado; no âmbito das suas atividades comerciais, a Autora e a Ré encetaram negociações comerciais e celebraram entre si vários contratos de compra e venda entre Julho e Setembro de 2013, tendo-lhe sido requisitados 985 pares de solas, tendo as mesmas sido produzidas e embaladas a inteiro contento da Ré, mas esta quando as solas já se encontravam produzidas e prontas a entregar rejeitou a entrega das mesmas, sem qualquer motivo, não tendo até ao presente procedido ao seu pagamento não obstante já ter sido interpelada pela Autora para o efeito.

A Ré contestou e deduziu pedido reconvencional, alegando para tanto que remeteu à Autora não só as notas de encomenda referidas no artigo 4.º da petição inicial, como ainda remeteu as notas de encomenda n.º R201300586 e n.º R201300579, todas em meados de julho de 2013, tendo a Autora, confirmado as mesmas em 30 de Julho de 2013 para 21 e 23 de Setembro e para 25 de Outubro de 2013, porém tais solas não foram entregues em tais datas, sendo que a Ré interpelou por diversas a Autora no sentido de obter a entrega o quanto antes possível, e em 16 de Outubro de 2013 as solas que deveriam ter sido entregues a 21 e 23 de Setembro de 2013, ainda não haviam sido entregues, tendo a Autora em 15 de Outubro de 2013, após ter sido instada várias vezes para proceder à entrega das solas, exigiu o pagamento a pronto da mercadoria a entregar, contrariamente ao contratado, tendo igualmente reclamado um pequeno valor pendente, tendo-lhe então o gerente da Ré remetido um e-mail, em 16 de Outubro de 2013, dando conta das anulações de encomendas que estava a receber por causa de tal atraso; apenas em 17 de Outubro, procedeu a Autora à entrega dos pares constantes da fatura n.º 201309662 correspondentes às notas de encomenda 201300579, 201300586 e 2012300733, tendo a Ré nesse mesmo dia procedido ao pagamento do mesmo, conforme nota de liquidação NL201300355, tendo feito a dedução do valor correspondente às solas constantes da nota de encomenda 201300733, conforme nota de devolução NL 20100036; tendo a Autora emitido o correspondente recibo de pagamento RE 201301701, que remeteu à Ré, via email, em 29/10/2013, e do qual fez constar o valor da nota de devolução da Ré, como nota de crédito (NCC 201300186); tal nota de devolução foi emitida, uma vez que a Ré não aceitou a entrega das solas de referência canela, uma vez que as mesmas eram para incorporar em sapatos cuja encomenda já havia sido cancelada devido ao atraso de entrega das solas Onix, e que a Ré oportunamente já havia informado a Autora telefonicamente, bem como no e-mail remetido em 16 de Outubro de 2013; na verdade, em 14 de Outubro, a Ré recebeu via fax o cancelamento da encomenda feita por Sapatarias, Lda.; encomenda esta que incluía modelos não só com sola Onix, como também a sola canela; quanto às demais solas encomendadas, nunca a Ré recusou o seu recebimento, uma vez que a Autora nunca procedeu à sua entrega, inexistindo, por conseguinte, qualquer causa para os invocados prejuízos; aliás, atente-se que, nenhuma fatura corresponde a tais solas foi junta aos autos para comprovar que as mesmas foram produzidas e remetidas à Ré; sendo tal fatura um documento essencial para se comprovar e justificar o valor peticionado; foi a Autora e não a Ré quem incumpriu os contratos de compra e venda que com esta celebrou; incumprimento este que ocorreu por exclusiva culpa da Autora, que não procedeu à entrega da maioria das solas encomendadas, tendo apenas feito parcialmente a entrega de algumas, para além dos prazos convencionados; sendo a Autora quem se encontra na obrigação de indemnizar a Ré, pelos danos que a falta culposa no cumprimento da obrigação – entrega das solas encomendadas e que a mesma confirmou - efetivamente lhe causou; a Ré sofreu um elevado prejuízo que teve como causa direta, necessária e adequada a atuação da Autora; isto porque quando o devedor não realiza a prestação a que se encontra adstrito sem que entretanto se verifique qualquer causa extinta da relação obrigacional, diz-se que há uma situação de incumprimento; essa situação de incumprimento é imputável à Autora, uma vez que, relativamente às notas de encomenda n.º R201300565, n.º R201300608, n.º R201300866, n.º R201300539, n.º R201300545, n.º R201300552,n.º R201300572, n.º R201300558 e n.º R201300822, se verificou uma total ausência da prestação debitória, com a consequente perda do interesse na prestação, assim se verificando o incumprimento definitivo; e quanto à nota de encomenda n.º R201300733, a mora na sua entrega, acrescida do facto de não terem sido entregues as solas constantes das notas de encomenda referidas no número anterior, levaram clientes da Ré a cancelar as respetivas encomendas, pelo que, perdeu a Ré o interesse que tinha na prestação; assim e, porque a realização da prestação pela Autora, designadamente a entrega das solas de sapatos constantes nas notas de encomenda em questão, não foi feita dentro do prazo fixado por ela própria, e aceite pela Ré, nem posteriormente, exceção feita para as solas constantes das notas de encomenda n.º 201300579, n.º R201300586 e n.º R201300733, verificou-se a perda de interesse que a Ré tinha na prestação, devendo, por conseguinte, considerar-se a obrigação não cumprida; ora, tal incumprimento definitivo confere ao credor, a ora Ré, o direito a resolver o contrato e a pedir uma indemnização pelos danos eventualmente sofridos; assim, como consequência direta e necessária da não entrega das solas referidas, bem como da entrega extemporânea das que entregou em 17 de Outubro, a Ré viu anuladas as encomendas feitas pelo seu agente Butterfly, num total de 1122 pares, pelos quais a Ré iria receber a importância de € 24.814,98; bem como foi cancelada a encomenda do cliente Manuel Alves, num total de 651 pares, pelos quais a Ré iria receber a quantia de € 16.579,75; assim teve a Ré um prejuízo no valor de € 35.688,55, de deduzido o valor das solas e do montante que conseguiu alcançar com a venda de algum calçado.

A Autora/reconvinda apresentou a réplica constestando o pedido reconvencional e concluindo como na Petição Inicial.

A final foi produzida sentença a julgar totalmente improcedente a ação e, parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, condenou a Autora V, Lda. a pagar à Ré/reconvinte Calçado Aurélio, Unipessoal, Lda. a quantia de € 20.697,36 (vinte mil, seiscentos e noventa e sete euros e trinta e seis cêntimos), absolvendo-a do demais peticionado pela Ré.

Inconformados com esta sentença dela apelaram a Ré Calçado Ldª e a Autora V Lda, tendo ambos os recursos sido julgados improcedentes e confirmada a sentença impugnada.

Irresignada, recorre a Autora de novo, agora de Revista, apresentando as seguintes conclusões.

- A teoria da impressão do destinatário constitui matéria de direito e, nessa medida, é matéria sindicável pelo STJ.

- A teoria da impressão do destinatário não impõe ao declaratório uma investigação sobre o que o declarante pretendeu significar com o seu comportamento, mas antes a apreensão do sentido objetivo que resulta da declaração, independentemente da cognoscibilidade da verdadeira intenção do declarante.

- A inserção num qualquer contrato da expressão “entrega a partir de ...” nunca pode ser entendida, por um normal destinatário, com o significado “entrega no dia ...”, pois que “a partir de” estabelece um limite/um termo inicial e nunca um limite/um termo final.

- A inexistência de qualquer interpelação a fixar um prazo essencial para o cumprimento dos contratos nem a fixação de um prazo pelo tribunal, nos termos do disposto no art. 777° do Código Civil, impede a conclusão de que o prazo de execução foi ultrapassado e que a mora, a existir, se converteu em incumprimento definitivo.

- Inexistindo incumprimento definitivo também inexiste fundamento para a recusar da receção dos bens e do seu pagamento, pelo que a reconvenção teria de improceder.

- Tendo havido recusa ilegítima na receção dos bens, incumbia sobre a recorrida a obrigação de indemnizar o recorrente dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra, pelo que a ação teria de ser julgada totalmente procedente.

- O sentido da expressão “a entregar a partir de...” que conduziria, em caso de dúvida na sua interpretação, ao maior equilíbrio das prestações, seria o de a considerar como identificativa do primeiro dia em que a obrigação poderia vir a ser cumprida, pois ao credor da mesma sempre caberia o direito de, judicial ou extrajudicialmente, fixar um termo a tal prazo, logo que considerasse que a demora já era excessiva e irrazoável.

- Foram violados os arts. 236°, 237°, 238°, 239° e 777°, todos do Código Civil.       

Nas contra alegações a Ré, aqui Recorrida, pugna pela manutenção do julgado.

II As instâncias declararam como assente a seguinte factualidade:

a) A Autora é uma sociedade comercial cujo objeto social compreende o fabrico e comercialização de solas e outros componentes para calçado (resposta ao artigo 1.º da petição inicial).

b) A Ré é uma sociedade comercial cujo objeto social consiste na fabricação de calçado (resposta ao artigo 2.º da petição inicial).

c) No âmbito das suas atividades comerciais a Autora e a Ré encetaram negociais comerciais, tendo a Autora requisitado 985 pares de solas por meio das requisições n.º R201300565, n.º R201300608, n.º R201300866, n.º R201300733, n.º R201300539, n.º R201300545, n.º R201300552, n.º R201300572, n.º R201300558 e n.º R201300822 (resposta aos artigos 3.º e 4.º da petição inicial e ao artigo 8.º da réplica).

d) As requisições identificadas em c) foram confirmadas pela Autora, as solas foram produzidas e embaladas (resposta aos artigos 5.º e 6.º da petição inicial).

e) A Ré não aceitou as solas referidas na requisição n.º 201300733 (resposta aos artigos 7.º, 8.º, 9.º da petição inicial).

f) A Autora interpelou a Ré para pagamento do preço relativo às solas identificadas em c), no dia 29 de novembro de 2013 (resposta aos artigos 11.º e 12.º da petição inicial).

g) Para além das requisições identificadas em c), a Ré/reconvinte ainda apresentou as requisições n.º R201300586 e n.º R201300579 (resposta ao artigo 2.º da contestação e resposta ao artigo 8.º da réplica).

h) A Autora/reconvinda confirmou a entrega das solas requisitadas em c), através por escrito com a menção de “entrega a partir de 21 de setembro”, “entrega a partir de 23 de setembro” e ”entrega a partir de 25 de outubro de 2013” (resposta aos artigos 4.º e 5.º da contestação e ao artigo 9.º da réplica).

i) A Autora/reconvinda não entregou as solas requisitadas em c), nas datas referidas em h).

j) Em 16 de outubro de 2013 as solas requisitadas que se reportavam às datas de 21 de setembro e de 23 de setembro ainda não tinham sido entregues (resposta ao artigo 7.º da contestação).

k) O gerente da Ré/reconvinte remeteu um e-mail à Autora/reconvinda em 16 de outubro de 2013, a comunicar a anulação de encomendas que estava receber por causa do atraso na entrega das solas, pedindo informação das solas que iriam enviar e a entrega das solas Onix (resposta ao artigo 9.º da contestação).

l) A Autora/reconvinte procedeu à entrega das solas constantes na requisição n.º 201300733 no dia 17 de outubro, quando a confirmação desta requisição foi feita pela Autora/reconvinte com a menção de “entrega a partir de 21 de setembro” (resposta aos artigos 11.º e 12.º da contestação).

m) As solas identificadas em l) foram pagas pela Ré/reconvinte à Autora/reconvinda (resposta ao artigo 13.º da contestação).

n) Posteriormente a Ré/reconvinte fez a dedução do valor correspondente ao pagamento referido em g), com a emissão da nota de devolução n.º 201300036 no valor de € 405,65 relativamente às solas identificadas em l) (resposta ao artigo 13.º da contestação).

o) A Autora/reconvinda emitiu o correspondente recibo de pagamento RE201301701 e da qual fez contar o valor da nota de devolução da Ré, como nota de crédito (NCC201300186).

p) A Ré/reconvinte emitiu a nota de devolução identificada em n), com fundamento na não aceitação da entrega das solas de referência canela, uma vez que as mesmas eram para incorporar em sapatos cuja encomenda já havia sido cancelada devido ao atraso de entrega das solas Onix e que a Ré/reconvinte já tinha informado a Autora (resposta ao artigo 16.º da contestação).

q) Em 14 de outubro, a Ré recebeu via fax o cancelamento da encomenda feita por Sapatarias, Lda. (resposta ao artigo 17.º da contestação).

r) A encomenda referida em q) incluía modelos não só com sola Onix, como também a sola canela (resposta ao artigo 18.º da contestação).

s) As restantes solas identificadas em c), com exceção das solas identificadas em e), não foram entregues pela Autora/reconvinda à Ré/reconvinte (resposta ao artigo 19.º da contestação).

t) Em 17 de outubro, o agente Butterfly da Ré/reconvinte anulou as encomendas que tinha feito num total de 1122 pares, pelos quais a Ré iria receber a importância de € 24.814,98 (resposta ao artigo 31.º da contestação).

u) Mais concretamente: - a devolução da encomenda feita por R, Lda. que a Ré enviou em 23 de outubro de 2013; - a anulação da encomenda em 22 de outubro de 2013 por C, Lda., por a mesma ter sido entregue fora de prazo e incompleta; - a devolução da encomenda feita por R R, Lda. feita em 11/11/2013; - a devolução da encomenda feita por E, Lda., que a Ré/reconvinte remeteu em 25/10/2013; - a devolução da encomenda que a Ré/reconvinte remeteu a J, Lda. em 25/10/2013; - a devolução da encomenda que a Ré remeteu a Y, Lda. em 23/10/2013; - a devolução da encomenda que a Ré remeteu a Y, Lda., em 23/10/2013 e 25/10/2013; - devolução da encomenda feita por P, Lda., em 25/10/2013, 24/10/2013 e 29/10/2013 (resposta ao artigo 32.º da contestação).

v) Foi cancelada a encomenda do cliente M, num total de 651 pares, pelos quais a Ré/reconvinte iria receber a quantia de € 16.579,75 (resposta ao artigo 33.º da contestação).

w) As encomendas feitas à Ré/reconvinte pelos clientes F, Lda.; M P; S, Lda.; J M; A, Lda. e; M I foram canceladas (resposta ao artigo 36.º da contestação).

x) A Ré/reconvinte comprou materiais para incorporação no calçado constante nas encomendas identificadas em t), u), v) e w), designadamente peles, forros, calcanheiras, esponjas, fechos, palmilhas, etiquetas (resposta ao artigo 38.º da contestação).

y) A Ré/reconvinte suportou encargos com mão-de-obra, bem como com água, eletricidade e instalações (resposta aos artigos 40.º e 41.º da contestação).

z) A sola-amostra de confirmação foi entregue à Autora/reconvinda em data posterior ao dia 13 de setembro de 2013 (resposta ao artigo 13.º da réplica).

A questão solvenda no âmbito deste recurso, motivo pelo qual a Revista, a titulo excepcional, foi admitida, atenta a dupla conformidade decisória existente, assenta na interpretação da expressão “a partir de” referente às datas de entrega das solas que foram objecto da encomenda da Ré.

Lê-se no Acórdão impugnado o seguinte:

«[R]esulta dos factos dado como provados que a Autora deveria entregar as solas requisitadas em C) “entrega a partir de 21 de Setembro”, “entrega a partir de 23 de Setembro” e “entrega a partir de 25 de Outubro de 2013”.

E assim a questão primordial que se impõe apreciar é a da fixação de uma data para entrega das solas.

Invoca a ré/ reconvinte que uma parte das solas teriam de ser entregues no dia 21 de Setembro, outra parte no dia 23 de Setembro e uma última remessa no dia 25 de Outubro.

Por sua vez, a Autora/reconvinda/apelante invoca que não incumpriu a obrigação com fundamento na entrega tardia das solas, porquanto o prazo de confirmação para entrega das solas é meramente indicativo, daí que esteja escrito "a partir de" e não "até".

 E assim impõe-se proceder à interpretação da declaração negocial emitida pela Autora/reconvinda a confirmar a entrega das solas pela forma seguinte "entrega a partir de 21 de Setembro", “entrega a partir de 23 de Setembro" e "entrega a partir de 25 de Outubro de 2013".

A propósito da interpretação da declaração negocial o art. 236, do Código Civil nº 1 preceitua: "A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário possa deduzir do comportamento do declarante salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

2- Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

Para a aplicação do nº 2 do citado artigo 236º não se provaram factos que a permitam.

Na verdade, o legal representante da ré declarou que nunca tinha reparado na expressão "a partir de" que consta por exemplo no documento junto aos autos a fls. 76.

E mais referiu que apenas olhava para a data de entrega, pois precisava de saber a data da entrega das solas a fim de poder organizar a produção dos sapatos.

A testemunha V, que fazia requisições de materiais e encomendas também referiu que nunca reparou em tal expressão e apenas via a data, porquanto era a data a partir da qual se organizaria a produção dos sapatos para entrega aos clientes.

E nos termos do nº 1, ter-se-á de verificar qual a interpretação que o homem médio daria à cláusula "entrega a partir de 21 de Setembro", "entrega a partir de 23 Setembro" e "entrega a partir de 25 de Setembro de 2013".

Tal como o tribunal recorrido entende-se que um fabricante da área do calçado que produz sapatos para vender aos clientes não pode estabelecer prazos para entrega de calçado, porque está dependente da entrega das solas por um fornecedor que se obriga a entregar as solas a partir de determinada data (data meramente indicativa) sem qualquer limite, ou seja, quando a Autora/reconvinda entender.

E poder-se-ia interpretar que a partir da indicada data para a entrega (prazo indicativo) verificar- se ia um” período razoável” para a entrega das solas deixá-las findo o qual a Autora entraria em mora, caso não entregasse as solas.

No caso dos autos, as partes não adiantaram critérios para o preenchimento do conceito indeterminado de "período razoável" para entregar as solas.

E não obstante, a testemunha M, encarregado ao serviço da autora na produção, ter referido que por exemplo "a partir da data de 23 Setembro de 2013" constante de folhas 57, significava que a entrega poderá ser feita até 30/40 dias a partir de 23/09/2013, certo é que não se provou que a Autora tivesse esclarecido a ré à cerca do acréscimo dos 30/40 dias a partir de 23/09.

Com efeito, tal não consta dos documentos de fls. 57 a 59, fls. 61 a 63, fls. 68 a 70, fls. 72 a 74, fls. 76 a 78, e, igualmente nenhuma testemunha inquirida declarou que "o prazo de 30/40 dias” tivesse sido comunicada à Ré.

É ainda de salientar que a testemunha M referiu que qualquer comunicação com os clientes é feita por e-mail. Não foi junto aos autos qualquer e-mail, através do qual se comunique o referido período de 30/40 dias para entrega das solas.

E a Autora /reconvinda não alegou que a partir de 21 de Setembro ou 23 Setembro apenas estaria em causa um período razoável para a entrega das solas, apenas se referiu à diferença entre "entrega a partir de" e "entrega até" e que os prazos eram meramente indicativos.

Entende-se, tal como Tribunal recorrido, que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário interpretaria a cláusula dos prazos pela forma seguinte "a autora ficaria responsável pela entrega das solas nunca antes do dia 21 de Setembro, 23 de Setembro e 25 de Outubro, mas seguramente no dia 21 e 23 de Setembro, e 25 de Outubro”.

Com efeito, como bem se refere na sentença recorrida "uma estrutura produtiva de calçado que necessita de solas para a fabricação do calçado para entregar ao cliente não pode estar dependente de prazos indicativos, sendo que a entrega a partir de uma determinada data sempre teria de ser tempestiva, nem que ocorresse meses depois”.

Também a referida interpretação é a que tem correspondência com o texto do documento (art.º 238, n.º 1, do Código Civil).

E por último, e, mesmo que se considerasse que se está perante um caso duvidoso - art.º 237, do Código Civil - a aplicação deste normativo sempre conduziria à interpretação acolhida por ser a que conduz a um maior equilíbrio entre as prestações.

Assim sendo e face à interpretação sufragada coincidente com a do Tribunal recorrido mantém-se inalterada a alínea i) dos factos assentes.».

    

A impugnação recursória no caso sujeito assenta, na tese da Autora, aqui Recorrente, no facto de a teoria da impressão do destinatário não impor ao declaratário uma investigação sobre o que o declarante pretendeu significar com o seu comportamento, mas antes a apreensão do sentido objetivo que resulta da declaração, independentemente da cognoscibilidade da verdadeira intenção do declarante, de onde a inserção num qualquer contrato da expressão “entrega a partir de” nunca poder ser entendida, por um normal destinatário, com o significado de “entrega no dia X”, pois que “a partir de” estabelece um limite/um termo inicial e nunca um limite/um termo final e assim sendo a inexistência de qualquer interpelação a fixar um prazo essencial para o cumprimento dos contratos, nem a fixação de um prazo pelo Tribunal, nos termos do disposto no artigo 777° do CCivil, impede a conclusão de que o prazo de execução foi ultrapassado e que a mora, a existir, se converteu em incumprimento definitivo.

Vejamos, então.

Decorre do disposto no artigo 236º, nº1 do CCivil que «A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.».

A interpretação nos negócios jurídicos surge-nos, assim, como uma actividade destinada a fixar o sentido e alcance decisivo do seu conteúdo, determinando o conteúdo das declarações que o suportam e, consequentemente os efeitos que visam produzir, cfr Mota Pinto, Teoria Geral Do Direito Civil, 3ª edição, 444/445; Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral Do Direito Civil, 6ª edição, 546/547.

In casu, o aporema consiste na interpretação da expressão “a partir de”.

Com interesse para a dilucidação da questão, convoca-se a seguinte materialidade dada como assente:

«c) No âmbito das suas atividades comerciais a Autora e a Ré encetaram negociais comerciais, tendo a Autora requisitado 985 pares de solas por meio das requisições n.º R201300565, n.º R201300608, n.º R201300866, n.º R201300733, n.º R201300539, n.º R201300545, n.º R201300552, n.º R201300572, n.º R201300558 e n.º R201300822 (resposta aos artigos 3.º e 4.º da petição inicial e ao artigo 8.º da réplica).

d) As requisições identificadas em c) foram confirmadas pela Autora, as solas foram produzidas e embaladas (resposta aos artigos 5.º e 6.º da petição inicial).

h) A Autora/reconvinda confirmou a entrega das solas requisitadas em c), através por escrito com a menção de “entrega a partir de 21 de setembro”, “entrega a partir de 23 de setembro” e ”entrega a partir de 25 de outubro de 2013” (resposta aos artigos 4.º e 5.º da contestação e ao artigo 9.º da réplica).

i) A Autora/reconvinda não entregou as solas requisitadas em c), nas datas referidas em h).».

Tendo como boa a doutrina da impressão do destinatário, posição esta adoptada pela doutrina e pela jurisprudência como a mais razoável e mais justa na interpretação negocial, começamos por dizer que a aludida factualidade nos conduz, a priori, para a conclusão de que o que as partes quiseram dizer é que as solas objecto das encomendas não seriam entregues pela Autora à Ré antes dos dias indicados, e, sempre a partir dos mesmos, funcionando aquelas datas como uma baliza para a entrega, isto é, como termo «a quo», a partir do qual existiria para a Ré a expectativa do respectivo cumprimento.

Careceria de qualquer sentido, defender-se como defende a Autora, que aquela expressão apenas poderia significar um termo incial, o que nos colocaria perante uma obrigação cujo termo era certus an mas incertus quando, ficando-se, contudo sem saber, afinal das contas, qual seria o evento futuro e incerto do qual dependeria o cumprimento, a não ser que se entendesse que este ficaria na livre disponibilidade da Autora, o que se mostra absolutamente fora de todo o contexto negocial apurado, cfr Mota Pinto, ibidem, 574/575.

Tendo em atenção a natureza do negócio, a aquisição de solas para a produção de calçado pela Ré, aqui Recorrida, o qual, por sua vez, era objecto de contratos vários, havidos entre esta e terceiros, os quais ficaram por cumprir, factos constantes das alíneas t) a w), conduz-nos à asserção de que a essência do negócio residia na relevância do momento da entrega, elemento este primordial para a Ré, no desenvolvimento da sua actividade comercial normal: é a manifestação do princípio da razoabilidade de um qualquer destinatário, naquelas mesmas circunstâncias, tendo em atenção todo o complexo contratual que existiu entre as partes, cfr inter alia, os Ac do STJ de 4 de Junho de 2002 (Relator Garcia Marques); 22 de Setembro de 2016 (Relator Pinto de Almeida, aqui primeiro Adjunto); de 5 de Janeiro de 2016 (Relator Nuno Cameira); de 12 de Maio de 2016 (Relator Gonçalves Rocha), in www.dgsi.pt.

Aliás, sempre se adianta que uma pessoa normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, nunca iria pressupor que a aposição de um termo contratual “a partir de”, tendo em atenção as condições acordadas e o objecto negocial, implicaria, quiçá, a determinação de um prazo, nos termos do disposto no artigo 777º do CCivil, como esgrime a Autora em prol da sua tese e, por isso, a Ré nunca poderia contar com a mesma.

Soçobram as conclusões de recurso.

III Destarte, nega-se a Revista, mantendo-se a decisão ínsita no Acórdão impugnado.

Custas pela Autora.

Lisboa, 19 de Setembro de 2017

Ana Paula Boularot - Relatora

Pinto de Almeida

Júlio Gomes