Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1718/02.9JDLSB-ZZ.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM
INCONCILIABILIDADE DE DECISÕES
INJUSTIÇA DA CONDENAÇÃO
VÍCIOS
RETRATAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - A sentença definitiva do TEDH que declara uma violação da Convenção, vincula o Estado parte no litígio em que é demandado, embora sem efeito anulatório automático no regime jurídico do direito interno.

II - O Estado, sempre que da mesma não resulte expressamente o contrário, pode escolher os meios do seu ordenamento jurídico para reparar a vulneração de direitos fundamentais declarada pelo TEDH.

III - O TEDH tem enfatizado que a execução deve ser feita de boa-fé e de maneira compatível com as "conclusões e espírito" da própria sentença.

IV - Se o legislador não está obrigado a plasmar, ipsis literis, recomendações de instâncias internacionais de que é parte. Contudo, legislando com o propósito de ajustar o direito nacional à Recomendação, exige-se que explicite e motive suficientemente qualquer não coincidência.

V - Numa interpretação meramente literal do art. 449.º, n.º 1, al. g), do CPP, a sentença do TEDH seria uma latae sententiae, que implicava a revogação, sem alternativa, do acórdão da Relação de Lisboa de 07-12-2011, com repercussão no julgamento do recurso. A ser assim, interpretava-se aquela norma adjetiva penal no sentido de que o TEDH – qualquer instância internacional -, permitiria mais um grau de recurso destinado ao reexame da regularidade das decisões judiciais definitivas, funcionando como tribunal de instância, ainda que supranacional, assumindo poderes de cassação, podendo decretar a anulação, ispo facto, da decisão de um tribunal nacional.

VI - Porque a Constituição da República somente admitindo a revisão de condenações penais injustas (art. 29.º, n.º 6), não toleraria a interpretação normativa de que uma sentença do TEDH, inconciliável com a decisão nacional, obrigue à reabertura do processo e à revisão da sentença interna mesmo que daquela não resulte evidenciada grave injustiça da condenação.

VII - Os vícios do procedimento só podem justificar a “desconstituição” da sentença transitada em julgado quando, pela sua patente e extrema gravidade, suscitem sérias e graves dúvidas sobre o mérito da condenação.

VIII - Para não incorrer na leitura extrema de ter de rever-se, toda e qualquer condenação inconciliável com sentença de uma instância internacional, independentemente de não evidenciar, quanto ao mérito da causa, injustiça grave e insuportável da condenação, a norma em aanálise demanda uma interpretação em conformidade com a Recomendação N.º R (2000) 2 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, com o próprio sistema da Convenção, com as competências do TEDH e, sobretudo, com a norma do art. 29.º, n.º 6, da CRP.

IX - O elemento teleológico que se retira do sistema consagrado no art. 29.º, n.º 6, da CRP, regulamentado no art. 449.º do CPP, aponta claramente para a não admissibilidade de recurso de revisão se os novos factos ou meios de prova não estiverem intimamente ligados, à facticidade que fundamentou o juízo de culpabilidade, ou, dito de outra maneira, se não respeitarem ao objeto do processo.

X - Assim, a violação declarada pela constatação de algum vício procedimental em que tenha incorrido a decisão nacional somente pode fundamentar a autorização da sua revisão se assumir uma tal importância e tiver tido uma influência tão decisiva que, só por si, compromete seriamente e gravemente a justiça da condenação, tornando insuportável que na ordem jurídica coexistam as duas decisões inconciliáveis.

XI - A jurisprudência e a doutrina enfatizam decorrer da Constituição da República e do disposto no art. 449.º do CPP que “somente em circunstâncias substantivas e imperiosas (substantial and compelling)” pode-se relativizar-se a sentença penal transitada em julgado para que o recurso de revisão não se transforme em “apelação de apelação disfarçada” (appeal in disguise)”.

XII - Também nas situações previstas na norma adjetiva convocada pelo recorrente a revisão só se revela indispensável quando a violação do direito a um processo equitativo consagrado na Convenção, declarada pelo TEDH, decorrente de vício do procedimento da decisão interna, inconciliável com a sentença daquele, assuma tal importância, que não seja suportável manter na ordem jurídica a condenação do arguido por se suscitarem dúvidas insuperáveis sobre a sua justiça material.

XIII - A não verificação deste pressuposto está claramente evidenciado na sentença do TEDH que não só recusou a atribuição de qualquer indemnização ao recorrente, como fundamentou que “no presente caso, o Tribunal entende que o dano moral sofrido pelo Requerente fica suficientemente reparado com a constatação da violação do artigo 6.º, n.ºs 1 e 3, alínea d), da Convenção, a que o Tribunal chegou como no dispositivo.” E, em conformidade, no dispositivo, declarou (“dit”) “por unanimidade, que a constatação da violação constitui, em si mesma, reparação razoável bastante do dano moral sofrido pelo Primeiro Requerente”, aqui recorrente.

XIV - Decorre, assim, daquela sentença do TEDH que se a declarada violação do direito do arguido, recorrente, a um processo penal equitativo, fica suficientemente e razoavelmente reparada com a constatação daquela violação dos direitos de defesa do mesmo, é porque se entendeu que nenhuma outra providência reparatória se impunha adotar, incluindo a desnecessidade da reabertura do processo.

XV - A interpretação no sentido de que a norma do art. 449.º, n.º 1, al. g), do CPP dispensa da exigência de que a inconciliabilidade suscite dúvidas qualificadas de graves, sobre a justiça da condenação, designadamente quando a violação declarada na sentença da instância internacional assenta na constatação de um erro procedimental, criaria um regime especialíssimo e desigual para a revisão de sentenças/ acórdãos condenatórios, conforme a inconciliabilidade decorresse de sentença de tribunal internacional ou de tribunal nacional.

XVI - O requisito da injustiça da condenação, tem assento na Constituição – art. 29.º, n.º 6 - e vale, indistintamente, para qualquer pedido de revisão de sentença transitada em julgado.

XVII - Nem o art. 18.º da CRP permitiria privilegiar os condenados pela simples razão de a inconciliabilidade decorrer de sentença internacional, dispensando o requisito da grave injustiça, que exige à inconciliabilidade das sentenças nacionais.

Decisão Texto Integral:

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, em conferência, acorda:

A - RELATÓRIO:


a) a condenação:

Na extinta … Vara Criminal de …, no processo em epigrafe, atualmente a correr termos no Juízo Central Criminal de … – Juiz …, mediante acusação do Ministério Público e pronúncia da Juíza de Instrução, foi o arguido:

- AA, com os demais sinais dos autos,

julgado e, por acórdão de 3 de setembro de 2010, alterado e confirmado em parte, in mellius, pelo acórdão do Tribunal da Relação de … de 23 de fevereiro de 2012, transitado em julgado em 20 de Fevereiro de 2013, condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão por cada e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos de prisão.

Esgotados os recursos ordinários admitidos na ordem jurídica interna, apresentou – assim como outros arguidos condenados no mesmo processo - queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos/THDH, que, quanto ao recorrente, a admitiu, com o n.º 53…6/12 (caso AA e OUTROS c. PORTUGAL).

O TEDH, apreciando as pretensões formuladas pelo recorrente, por sentença datada de 26 de junho de 2018, decidiu (na parte com relevância para o vertente recurso):

- considerar por unanimidade que não houve violação do artigo 6 §§ 1 e 3 (d) da Convenção em razão da impossibilidade de confrontar as vítimas com o conteúdo das declarações por elas proferidas durante a investigação

- considerar, por quatro votos a três, que houve violação do artigo 6.º, n.ºs 1 e 3, alínea d), da Convenção devido à recusa do Tribunal da Relação de … em admitir prova de defesa no âmbito do processo de recurso;

- considerar, unanimemente, que a constatação da violação constitui, por si só, a satisfação justa e suficiente do dano imaterial sofrido pelo requerente.

Decisão daquela instância internacional europeia que se tornou definitiva em 26 de setembro de 2018.


b) o recurso:

O arguido recorrente veio, em 23 de dezembro de 2020, “interpor recurso extraordinário de revisão do acórdão proferido pela … Vara Criminal de … de 03 de Setembro de 2009, alterado por acórdão da Relação de … de 23 de Fevereiro de 2012”, invocando o disposto nos artigos 449.º, n.º 1, al. g), 450.º, n.º 1, al. c), 451.º e 452.º, todos do CPP.  

Resumiu a alegação concluindo:

--- O FUNDAMENTO DO PEDIDO DE REVISÃO ---

A.      O acórdão do TEDH, em que se funda o presente pedido de revisão, entendeu ter havido violação do art. 6.º §§ 1 e 3 d) da Convenção “en raison du refus de la cour d’appel de Lisbonne d’admettre des preuves à décharge dans le cadre de la procédure d’appel pour autant qu’il s’agit du premier requérant” [1] – ponto 5 da parte decisória.

B. As provas em apreço – devidamente mencionadas pelo acórdão do TEDH nos seus n.ºs 211, 220, 221 e 223 – são as seguintes:

i)    dois pareceres médico-legais juntos aos autos em 08/11/2010 pelo Recorrente no recurso interposto do acórdão de 03/09/2010, cuja junção não foi admitida pelo acórdão da Relação de … de 23/02/2012;

ii) entrevistas em DVD dos Assistentes BB e CC e um livro publicado por BB, juntos aos autos com a resposta ao recurso do Ministério Público em 11/01/2011, cuja junção não foi admitida pelo acórdão da Relação de … de 07/11/2011;

iii) entrevistas em DVD e em suporte de papel do co-Arguido DD e do Assistente EE, juntas aos autos por requerimento de 01/04/2011, cuja junção não foi admitida pelo acórdão da Relação de … de 07/11/2011;

iv) entrevistas em suporte de papel e em DVD das testemunhas FF e GG, juntas aos autos por requerimento de 14/11/2011, cuja junção não foi admitida pelo acórdão da Relação de … de 07/11/2011;

v) as reinquirições do coarguido DD, do Assistente EE e das testemunhas FF e GG, requeridas pelo Recorrente nos requerimentos supramencionados de 01/04/2011 e em 14/11/2011, as quais haviam sido igualmente requeridas pelos próprios, cuja tomada de declarações não foi admitida pelo acórdão da Relação de … de 07/11/2011.

C.     Está assim em causa o acervo probatório que a Relação de … não apreciou, supra identificado na conclusão B. Porém, mesmo que se leia de forma restritiva o acórdão em apreço, circunscrevendo os seus efeitos à reinquirição de DD e aos documentos atinentes a BB e CC – itens que foram decisivos para a condenação do Estado Português –, a questão não se altera em substância, uma vez que efectivamente aquilo que diz respeito ao co-Arguido DD e aos Assistentes BB e CC constitui a base nuclear do presente pedido de revisão. De qualquer forma, os outros elementos probatórios sempre terão de ser considerados no quadro da ponderação conjunta da prova produzida nos autos.

D.     O acórdão do TEDH é inconciliável com a condenação do Recorrente, uma vez que o TEDH decidiu que a recusa da Relação de …, em reinquirir o coarguido DD e em examinar os documentos relativos aos Assistentes BB e CC, desrespeitou as exigências de um processo equitativo, tendo a decisão condenatória sido fundada – em termos relevantes – nas declarações de DD, e tendo supostamente os referidos BB e CC acompanhado o Assistente HH no momento da suposta prática dos factos que incriminariam o Recorrente. Assim sendo, considerando o acórdão do TEDH e a sua mera compaginação com a condenação do Recorrente (nos termos em que ela ocorreu), existe, por si só, sem necessidade de outras indagações, fundamento suficiente para que seja deferido o presente recurso de revisão de sentença, com as consequências legais.

E.     Por cautela, deixa-se arguida a inconstitucionalidade do art. 449.º, n.º 1, al. g), do CPP, no sentido de que a condenação do ESTADO PORTUGUÊS pela violação do direito a um processo equitativo, nos termos do art. 6.º §§ 1 e 3 d) da CEDH, por o tribunal de recurso não ter admitido novas provas cuja apreciação foi requerida pela defesa, não impõe, por si só, o deferimento do pedido de revisão, por violação das garantias de defesa consagradas no art. 32.º, n.º 1 da CRP. Se o TEDH entende que as falhas processuais ocorridas relevam para os efeitos da condenação, nessa sede, do Estado-membro, não se compreenderia, à luz daquelas garantias de defesa que a CRP consagra, que a vítima do erro não tivesse direito a um novo e equitativo julgamento no quadro de um recurso de revisão. É que o direito a produzir a prova pertinente é um direito fundamental da defesa.

F.    Todavia, considerando a jurisprudência restritiva do STJ supra mencionada nos n.ºs 39 e 40, não estando em causa uma incompatibilidade do acórdão do TEDH com a decisão de mérito da Relação de …, estando, outrossim, em apreciação erros processuais que não garantiram o princípio do processo equitativo, admite-se, sem conceder, que o STJ mantenha essa orientação, o que implica que neste recurso se apreciem os dois requisitos suplementares cumulativos de admissibilidade, a saber:

•      por um lado, a ocorrência de erros ou falhas processuais de uma tal gravidade que suscitem fortes dúvidas sobre a decisão nacional, o que implica que se proceda a uma análise conjugada com o teor dos segmentos decisórios que levaram à condenação, devidamente articulados com os pertinentes meios probatórios constantes dos autos;

•     por outro lado, a circunstância da parte lesada continuar a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional, o que, in casu, é incontroverso, considerando a natureza fortemente estigmatizante e vexatória da condenação, bem como as suas consequências ao nível do registo criminal e da fiscalização administrativa suplementar a que o Recorrente ficou sujeito.

--- O FUNDAMENTO DA CONDENAÇÃO ---

G.    Os factos incriminadores atribuídos ao Recorrente constam dos factos provados sob os n.ºs 106 a 106.23 do acórdão de 03/09/2010 (cfr. doc. 10, de fls. 66.557 a 66.569 dos autos), pelos quais foi condenado por dois crimes de abuso sexual de crianças na pessoa de HH. A respectiva fundamentação de facto consta do ponto 13.1.16. do acórdão de 03/09/2010 (cfr. doc. 10, págs. 1.049 a 1.078), que se dá por reproduzido.

H.     No quadro de uma ponderação global da prova produzida, para a qual o Recorrente tem direito a convocar as declarações e os documentos pertinentes, nos termos supra enunciados nos n.ºs 55 e 58, é pacífico que, à luz do acórdão condenatório, o que foi determinante na condenação do ora Recorrente foi o seguinte:

i)     as declarações do Assistente HH (cfr. pág. 1.054), malgrado o acórdão ter reconhecido que as mesmas comportavam discrepâncias, divergências e/ou contradições;

ii) as declarações do co-Arguido DD (cfr. pág. 1.054), não obstante o acórdão ter reconhecido que as mesmas comportavam discrepâncias, divergências e/ou contradições;

iii) o sentido “concorrente” das declarações de CC (cfr. pág. 1.054), apesar de se lhe serem igualmente apontadas discrepâncias, divergências e/ou contradições;

iv) as declarações de BB, muito embora a sentença recorrida refira não ter conseguido “captar, decifrar o seu modo   de funcionar intelectualmente” (cfr. pág. 1.288), uma vez que o tribunal incluiu BB no rol dos declarantes que contribuíram para a formação da sua convicção (cfr. pág. 320), não podendo o seu depoimento deixar de ser considerado, já que o tribunal deu como assente que ele também teria estado presente na primeira situação de abuso da pessoa de HH (cfr. factos provados n.ºs 106.4 e 106.5).

--- A RETRACTAÇÃO DE DD ---

I.    O depoimento do Arguido DD é um dos pilares do acórdão condenatório (cfr. supra n.ºs 49 e 50). E é precisamente na necessidade da sua re-inquirição que se funda, em boa parte, a decisão proferida pelo TEDH.

J.   Com efeito, o Arguido DD, já após a prolação de tal acórdão e na pendência do recurso interposto, veio a retractar-se, quer junto da comunicação social, quer em texto por si próprio subscrito e entregue no Tribunal da Relação de … . Em entrevistas divulgadas na …, em …/01/2011, e na revista …, em …/01/2011, veio dizer que não seria verdade aquilo que relatara em audiência de julgamento quanto ao transporte de jovens da … para lugares onde se encontrariam os restantes co-Arguidos do processo, entre eles o Recorrente.

K.    Em face de tal retractação, não podia a Relação de …, tendo em conta os seus poderes para conhecer a matéria de facto, à luz do que foi julgado pelo TEDH, deixar de ter ouvido o co-Arguido DD para avaliar, por ela própria, a genuinidade da retractação, bem como, considerando tais novas declarações, a credibilidade do que haviam sido as suas declarações em audiência de julgamento, as quais já padeciam de manifesta fragilidade. Tal omissão é, por si só, geradora de uma pertinente dúvida quanto à condenação do Recorrente.

--- OS DOCUMENTOS RELATIVOS A BB E CC ---

L.     O segundo argumento utilizado pelo TEDH tem a ver com a desconsideração pela Relação de … da documentação junta ao processo, em sede de recurso, relativa aos Assistentes BB e CC, cuja falta de ponderação violou o princípio de um processo equitativo.

M.    Nessa sede, estão em primeira linha uma entrevista de BB e um livro que ele deu à estampa, o que, articulado com o que consta dos autos, permite evidenciar um discurso errático e delirante de BB, a que tem de ser reconhecido um carácter efabulatório. São as fotografias que existem, e depois não existem, são tempos e locais que passam a outros tempos e locais, são as narrativas ostensivamente fantasiosas e contraditórias, são os abusadores que deixam de o ser, e os que não o são e passam a sê-lo, são as descrições de locais incompatíveis entre si e sem reflexo na realidade, são as pessoas que se conhecem como públicas, e depois deixam de se conhecer, etc..

Pelo exposto, é evidente que as novas provas são muito relevantes para traçar o quadro fantasioso, efabulatório ou mentiroso de BB. É verdade que a sentença desvaloriza o depoimento de BB pelo facto de não ter conseguido “captar, decifrar o seu modo de funcionar intelectualmente, não conseguimos distinguir o porquê do que disse e como disse” (cfr. doc. 10, pág. 1.288), mas estes novos elementos probatórios permitem ir mais longe, reforçando a natureza efabulatória da sua intervenção, inquinadora de outras declarações. Aquilo que antes gerara apenas uma incapacidade para decifrar o modo de funcionamento de BB, agora, com estes novos elementos, é susceptível de “lançar uma luz” sobre o grau de manipulação de que este jovem foi capaz. E essa circunstância contribui para a formação de um juízo de forte dúvida quanto à condenação do Recorrente.

N.    No que respeita a CC, a entrevista dada à … no dia da leitura do acórdão – onde CC, depois de ter beneficiado dos apoios que o ESTADO e a … lhe prestaram ao longo do processo, declara estar preso por tráfico de droga, responsabilizando a … por aquilo que lhe aconteceu – é relevante para a apreciação do seu perfil psicológico, com fortes marcas anti-sociais, o que deve ser ponderado na valoração do seu depoimento.

--- A RETRACTAÇÃO DO ASSISTENTE EE ---

O.    EE, Assistente nos autos – cujo depoimento também foi considerado pelo acórdão condenatório (cfr. doc. 10, pág. 320) –, retractou-se das acusações que formulou contra AA e outros Arguidos nos autos, em documento que entregou na Relação de …, em 12/04/2011, a que acresceu idêntica retractação em entrevistas ao …, de …/03/2011 e ao jornal “…”, de …/03/2011.

P.     Perguntar-se-á então qual a relevância da retractação de EE para a formação de uma dúvida séria relativamente à condenação do Recorrente pelos crimes alegadamente cometidos na pessoa de HH? A resposta é simples: para a defesa – e o Tribunal tem de ponderar o ponto de vista da defesa – as declarações prestadas por HH, BB, CC e EE fazem parte de um quadro de inquinação e efabulação que a retractação de EE contribui para evidenciar ou, pelo menos, suscitar uma dúvida séria sobre se não terá sido exactamente como o Recorrente sustenta.

Nunca o Recorrente sustentou que o processo … teve origem numa conspiração ou acção malévola de investigadores, magistrados ou jornalistas; antes foi fruto de uma efabulação em que as vítimas – sim, foram vítimas, mas não do Recorrente – foram construindo uma história à medida do que achavam que era esperado pelos seus interlocutores.

--- A RETRACTAÇÃO DE FF e GG ---

Q.    FF e GG foram testemunhas no processo e foram também, eles próprios, vítimas de abusos sexuais, ainda que os seus casos não tenham sido abrangidos pela acusação deduzida no processo. Todavia, as suas declarações foram consideradas no acórdão condenatório (cfr. doc. 10, págs. 428 e 429) e efectivamente tais testemunhas haviam imputado a vários dos Arguidos, entre eles o Recorrente, a prática de abusos sexuais.

R.    Ora, tais testemunhas também se retractaram nos termos dos docs. 33 e 35, que consubstanciam as declarações por eles prestadas em entrevistas efectuadas na pendência do recurso para o Tribunal da Relação. Ouvidas as gravações de tais entrevistas constantes do DVD, é impressionante escutar a aparente autenticidade com que estes dois jovens se retractaram das incriminações que fizeram.

S.   Mais uma vez a pergunta: qual a importância dessas declarações, se o Recorrente não foi condenado pela prática de qualquer crime cometido sobre as mesmas pessoas? A mesma resposta já dada quanto a EE: tais retractações contribuem para que se conclua que existe uma relevante dúvida quanto à genuinidade do processo que levou um conjunto de jovens da …, relacionados entre si – entre eles, HH, a alegada vítima do Recorrente –, a envolver o Recorrente na factualidade da acusação.

--- OS PARECERES MÉDICO-LEGAIS RELATIVOS A HH ---

T.     No recurso do acórdão de 03/09/2010, interposto em 08/11/2010, o Recorrente requerera a junção aos autos de dois pareceres de especialistas em medicina legal, II e JJ, os quais são importantes para demonstrar a inverosimilhança da versão de HH, relatada em audiência de julgamento, quanto ao período temporal em que teria sido vítima de abuso sexual.

U.    HH foi muito provavelmente abusado sexualmente num período relativamente próximo do eclodir do processo …, nos meses antecedentes ao exame a que foi submetido em Março de 2003, o que é compatível com a observação médica a que foi sujeito. Mas não foi objecto dos tais únicos abusos a que ele se reporta nas suas declarações, alegadamente perpetrados alguns anos antes por AA, KK e LL.

--- A CASA … ---

V.         Importa ainda avaliar conjugadamente os novos elementos probatórios rejeitados pela Relação e as declarações de BB, CC e HH relativamente aos factos em que teriam participado na …, de forma a que seja avaliado o seu impacto num juízo de dúvida quanto aos termos em que a condenação do Recorrente ocorreu.

W.       O conjunto probatório decorrente das declarações de BB, CC e HH, nos termos supra analisados nos n.ºs 167 a 174, evidencia manifesta fragilidade, como resulta do seguinte: i) o que disseram em julgamento é radicalmente diferente das primeiras declarações prestadas em inquérito; ii) o local de entrada no prédio indicado por BB – a tal porta das traseiras – é inviável para o efeito, a não ser que se contasse com cúmplices do estabelecimento a que dava acesso; iii) a distinção entre as portas do patamar do andar respectivo – o que teria permitido a BB distinguir aquela por onde entrava – pura e simplesmente não existia; iv) a descrição substancialmente divergente dos actos sexuais em que teriam participado CC e HH; v) a incompatibilidade das descrições do interior da casa efectuadas por CC e HH; vi) a divergente memória de HH, em inquérito e em julgamento, quanto ao que lhe teria permitido recordar-se da localização da casa.

O quadro traçado justifica a tese do Recorrente – que corresponde à sua convicção –, de que a casa … lhe saiu “na rifa” como podia ter sido qualquer outra. Foi para onde BB decidiu apontar naquele dia. Depois disso, houve uma tentativa de sincronização de narrativas, as quais, como é comum acontecer quando se falta à verdade, saíram cheias das incríveis discrepâncias apontadas. Acresce que DD, que no acórdão condenatório servira para corroborar a versão de HH, se veio a retractar.

X. A pergunta que se coloca é a seguinte: o que é que tais fragilidades probatórias têm a ver com os meios de prova rejeitados e que relevância é que elas têm para o presente pedido de revisão? A resposta é simples: os novos dados probatórios contribuem para dar relevo à defesa do Recorrente no sentido de que a casa … é apenas o produto de um processo efabulatório em que o Recorrente foi envolvido.

--- PONDERAÇÃO GLOBAL ---

Y.     Na compaginação dos dados relevantes para a formulação de uma conclusão sobre a existência de uma dúvida consistente quanto aos termos pelos quais o Recorrente foi condenado, devem também ser ponderadas outras circunstâncias gerais decorrentes dos autos que, conjugadas com os elementos probatórios em pauta, a reforçam.

Z.    Em primeiro lugar, impressiona que não exista nos autos qualquer corroboração circunstancial ou periférica do envolvimento do Recorrente em alegados abusos na pessoa de HH. Em segundo lugar, não obstante o intenso cruzamento efectuado de chamadas telefónicas, como provavelmente nunca ocorreu na história judiciária portuguesa, não foi estabelecida qualquer relação entre o Recorrente, as alegadas vítimas, os outros Arguidos e os donos ou frequentadores dos locais onde teriam ocorrido os supostos abusos. Em terceiro lugar, AA – nem, de resto, MM, NN, LL ou OO – alguma vez foi referenciado pelas alegadas vítimas destes autos antes do seu nome ter sido apresentado na comunicação social como estando envolvido no processo da … . Em quarto lugar, é assinalável a fragilidade em que assentou o juízo conclusivo das instâncias quanto ao envolvimento de AA nos supostos abusos na pessoa de HH, basicamente assente nas contraditórias declarações do próprio HH (como o acórdão condenatório reconhece), bem como nas incongruentes declarações de DD (como o acórdão condenatório igualmente admite). Em quinto lugar, nunca antes, durante ou depois das acusações dirigidas pelas alegadas vítimas ao Recorrente, alguma vez alguém – e foram ouvidas mais de 900 pessoas nestes autos – lhe atribuiu qualquer suspeita de práticas pedófilas. Da audição dessas centenas de pessoas, resulta ainda que não foi estabelecida qualquer ligação, seja a que título fosse, entre AA e as supostas vítimas, os co-Arguidos ou os locais dos abusos.

Não é possível, à luz de tudo quanto se disse, negar que subsistem fortes dúvidas quanto à justiça da condenação de que o Recorrente foi alvo, o que deve determinar o deferimento deste pedido de revisão e a consequente realização de um novo julgamento.

Termos em que deve  ser dado provimento ao recurso, com as legais consequências.

JUNTA: 121 documentos, com os seguintes esclarecimentos:
a) os documentos n.ºs 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15 e 19, são cd’s que incorporam peças processuais com milhares de páginas.
b) o documento n.º 96, é um vídeo de uma inspecção ao local realizada em … pelo Tribunal;
c) os documentos n.ºs 23, 24, 27, 30 e 35, são cd’s, o documento n.º 25, é um livro.
d) os documentos n.ºs 43, 44, 52 a 58, 63 a 66, 69, 70, 76 a 80, são transcrições de declarações ou de excertos de declarações prestadas em audiência de julgamento.
e) os restantes documentos – com excepção dos documentos n.ºs 1, 2, 3 e 18, que dizem respeito ao processo do TEDH, e dos documentos n.ºs 16 e 17, que dizem respeito ao processo de execução da pena do Recorrente – constam dos autos principais.
f) não estando acessíveis as gravações das audiências de julgamento, as referências aos minutos e segundos das passagens seleccionadas no corpo do recurso foram feitas com base nos suportes que oportunamente haviam sido entregues aos mandatários signatários (com excepção dos que dizem respeito a DD, porque os signatários não os têm em arquivo); requer-se que cópias das gravações das declarações relativas aos documentos mencionados na al. d), que deverão estar gravadas no sistema informático do Tribunal, sejam incorporadas no apenso, facultando-se igualmente cópia das mesmas ao Recorrente, a fim de que seja eventualmente corrigida qualquer falha ou imprecisão;
g) como a digitalização dos documentos que ora se juntam excede o limite de 10 Mb previsto no artigo 10.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, serão os mesmos enviados aos autos em requerimentos sucessivos;
h) requer-se que o apenso Z-14 (composto por dois volumes) incorpore, como anexo, o apenso do presente recurso de revisão, tal como supra já requerido no n.º 189.

3. resposta do Ministério Público:

Os Procuradores da República no Tribunal recorrido responderam, pugnando pela não autorização da revisão.

Escorando-se na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que citam e em alguma doutrina, argumentam em síntese:

Como o recorrente reconhece (pontos 39 e 40 e ponto F das conclusões), é restritiva a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria, já que tem sustentado, de forma constante, que a reabertura dos processos só se revela indispensável perante sentenças em que o TEDH julgue que a decisão interna é, quanto ao mérito, contrária à Convenção, ou quando constate a ocorrência de uma violação da Convenção em virtude de erros ou falhas processuais de uma gravidade tal que suscite fortes dúvidas sobre a decisão e, simultaneamente, a parte lesada continue a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional, que não podem ser compensadas com reparação razoável arbitrada pelo TEDH e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a restitutio in integrum.

A jurisprudência é uniforme em considerar que as decisões do TEDH não podem ter efeitos na ordem jurídica interna, como se se tratasse de arestos de uma instância de recurso supranacional.

No caso, o TEDH considerou, por 4 votos contra 3, que a não admissão das provas requeridas pelo Recorrente em recurso, por decisão do TRL, constituía uma violação, que se considerava reparada pela constatação, esta última decisão tomada por unanimidade.
No Direito Processual Penal Português está vedado ao Tribunal de recurso conhecer novos factos e novas provas que não tenham sido apreciados pelo Tribunal cuja decisão se sindica. As declarações de testemunhas, arguidos e assistentes prestadas fora do julgamento só podem ser valoradas nas circunstâncias específicas dos artºs 356º e 357º do CPP.

Se o TEDH considerou reparação bastante a constatação da violação, é porque considerou que não atingia gravidade tal que obrigasse a outras soluções, nomeadamente, o arbitrar de uma indeminização.

A decisão do TEDH não se pronunciou sobre o mérito da causa, nem sobre a valia das provas que fundamentaram a decisão, limitando-se a assinalar um vício procedimental.
Por outro lado, o STJ tem considerado unanimemente que alegada retratação de testemunhas e coarguido não constitui fundamento de revisão.
Nos autos, as testemunhas e o coarguido DD foram sujeitos a Perícias e perícias à personalidade, ouvidos durante horas pelo Tribunal de 1ª Instância, instados e contrainstados pela Defesa e por Magistrados do Ministério Público.
Não há, pois, dúvida que fundamente recurso de revisão baseado na decisão do TEDH que apenas apreciou uma questão procedimental que julgou reparada pela sua constatação.
O TEDH não só excluiu que a sua decisão pudesse suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação, como também excluiu que a decisão interna seja, quanto ao mérito, gravemente contrária à CEDH.
Em suma, a decisão vinculativa do TEDH não é, nem inconciliável com a condenação, nem suscita graves dúvidas sobre a sua justiça, pelo que não se verificam os fundamentos indicados pelo recorrente para que o Supremo Tribunal de Justiça possa autorizar a revisão da decisão condenatória.
As demais questões suscitadas pelo recorrente relativamente à douta decisão recorrida, estão abrangidas pelo caso julgado.

4. resposta do assistente:

HH assistente nos autos respondeu pugnando pela não autorização da revisão.

Argumenta (em síntese): ---------------------
– INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTO DE REVISÂO DA DECISÃO DE 1.ª INSTÂNCIA
“a decisão cuja revisão o arguido pede é a sua condenação em 1.ª instância, mas o fundamento de revisão que invoca é a decisão do TEDH que é relativa ao acórdão do Tribunal da Relação de …, pelo que não é invocado fundamento que permita a revisão do acórdão da … Vara Criminal de …, mas somente do acórdão da Relação.
O recorrente funda o seu recurso na decisão do TEDH e, por seu lado, o TEDH afirma que a decisão que viola o princípio a um processo equitativo é o acórdão do Tribunal da Relação de ….
Nem podia ser de outra forma porque o arguido AA interpôs recurso para o TEDH do Tribunal da Relação de … proferido em recurso da condenação pela … Vara Criminal e não desta última decisão.
Assim, se a decisão que o recorrente subsume à previsão do artigo 449.º, n.º 1, g), do CPP, é relativa ao acórdão da Relação de …, só este poderá ser objecto de revisão, inexistindo fundamento legal para a revisão do acórdão da … Vara Criminal de …, que o arguido pretende efectivamente rever.
Se a revisão fosse deferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, a única consequência possível seria os autos baixarem ao Tribunal da Relação de … para novo julgamento do recurso do arguido AA.
– INSUSCEPTIBILIDADE DA DECISÃO DO TEDH SUBSUMIR-SE À ALINEA G)
“os erros processuais, ainda que censurados pela sentença vinculativa do Estado Português, mas dos quais não resulte a impossibilidade do tribunal que os cometeu voltar a proferir decisão no mesmo sentido, não podem constituir o fundamento de revisão previsto no artigo 449.º, n.º 1, alínea a), CPP.
Este fundamento “só se mostraria preenchido se os actos de prova cujo indeferimento pelo Tribunal da Relação feriu, no entendimento do TEDH, o direito a um processo equitativo garantido pelo artigo 6.º, §§ 1 e 3, d) da CEDH, fossem decisivos para a condenação, no sentido em que, sendo valorados, esta nunca poderia ter lugar.
Essa incompatibilidade entre a prova indeferida e a condenação só sucederia se a manutenção da decisão condenatória pelo acórdão de 23 de Fevereiro de 2012 da TRL, assentasse exclusivamente num juízo acerca dos meios de prova (depoimentos) cuja credibilidade se pretendia atingir com a reinquirição e junção de documentos indeferidos, o que não foi o caso.
“Para que a não realização das diligências de prova requeridas – o erro processual constatado na decisão do TEDH – representasse uma falta da gravidade suposta pela alínea g), do n.º 1, do artigo 449.º do CPP teria que ser virtualmente impossível o acórdão do TRL manter a condenação admitindo-se os meios de prova indeferidos, o que não é o caso.
Destarte, não se verificando a incompatibilidade material entre o erro processual violador das garantias do processo equitativo (indeferimento dos meios de prova em recurso) e o sentido da decisão (manutenção da condenação de 1.ª instância) não é sustentável que a violação constatada pelo TEDH seja inconciliável com a condenação ou suscite graves dúvidas sobre a sua justiça.

  INSTRUMENTALIZAÇÃO DA DECISÃO DO TEDH
“a admissão de um meio de prova não garante que tenha o efeito pretendido pela parte que o oferece, que no caso seria ferir a credibilidade do relatado pelos depoentes em questão (DD, BB e CC)”.
“Portanto, ainda que admitidos em recurso, a ponderação destes meios de prova não garante que a Relação passe a valorar os depoimentos no sentido pretendido pelo recorrente e sem haver uma possibilidade razoável que tal suceda não há fundamento para conceder a revisão. “Não permite um juízo de prognose favorável sobre a probabilidade da admissão de provas levar a uma decisão em sentido diferente.
da afirmação do TEDH que a não admissão da prova constitui violação da garantia de um processo equitativo, o arguido pretende extrair uma relevância que claramente não resulta daquele aresto e um efeito para a decisão a rever que manifestamente não foi pretendido por aquele Tribunal.
O que resulta do ponto 6 da decisão do TEDH em que se afirma, sem margem para sofismas, que a mera constatação da violação constitui uma satisfação justa e suficiente para os danos morais sofridos pelo arguido, nenhum outro efeito sendo atribuído à decisão por aquela instância.
“a posição que faz vencimento no acórdão reconhece que não cabe ao TEDH determinar a pertinência ou não dos elementos de prova, sendo esta matéria da exclusiva competência das jurisdições nacionais e, de forma ainda mais impressiva, que a constatação da violação não implica, de forma alguma, uma tomada de posição sobre a existência ou não do crime de abusos sexuais.
Para o próprio TEDH a decisão que proferiu [não] é inconciliável com a condenação do arguido ou suscita graves dúvidas sobre a sua justiça.
A pretensão em contrário do arguido é uma tentativa de instrumentalizar a decisão do TEDH de forma a obter um efeito útil que aquela não comporta: que a violação constatada é incompatível com a condenação e que, como tal, terá que dar lugar à revisão do processo em que se verificou aquela, quando na verdade a análise do acórdão TEDH “fundamento” revela que esta instância quis deixar claro que para além do juízo de censura contido na própria constatação da violação, nenhum outro efeito se podia extrair da decisão.

5.    informação do tribunal:

O Tribunal da condenação, observando o disposto no artigo 454.º do CPP, informa (em síntese):
No caso, o Recorrente sustenta o pedido de revisão de sentença invocando a prolação de decisão pelo TEDH, instância a que recorreu sob a alegação de, além do mais, ter sido violado o direito a um processo justo e equitativo previsto no artigo 6.º da Convenção.
É o seguinte o dispositivo da decisão do TEDH, nos segmentos que ora relevam:
“POR ESTAS TAZÕES O TRIBUNAL (…):
5. Afirma, por quatro votos contra três, que houve violação do artigo 6 §§ I e 3 d) da Convenção, devido à recusa do Tribunal de recurso de em admitir provas da defesa no processo de recurso, no que respeita ao primeiro requerente;
6. Afirma, por unanimidade que a constatação de uma violação, por si só, constitui uma satisfação justa e suficiente para os danos morais sofridos pelo primeiro requerente” (itálico nosso).
O fundamento de revisão de sentença invocado pelo Recorrente foi introduzido pela Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, em resultado de Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa, adotada na reunião de 19 de Janeiro de 2000, relativa ao reexame e reabertura de determinados processos ao nível interno na sequência de acórdãos do TEDH.
Na referida Recomendação, o Comité dos Ministros “encoraja, nomeadamente, as Partes Contratantes a examinar os respectivos sistemas jurídicos nacionais com vista a assegurarem-se de que existe possibilidades adequadas para o reexame de um caso, incluindo a reabertura de processos, nos casos em que o Tribunal constate a existência de uma violação da Convenção em particular quando: (i) a parte lesada continua a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional, que não podem ser compensadas com a reparação razoável e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura, e (ii) decorre do acórdão do Tribunal que (a) a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à da Convenção, ou (b) a violação constatada em virtude de erros ou falhas processuais é de uma gravidade tal que suscita fortes dúvidas sobre a decisão final do processo nacional”.

Da letra da alínea g) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, afigura-se que o legislador terá ido além do recomendado: não só considerou admissível a revisão de sentença (condenatória) perante sentença proveniente de qualquer instância internacional desde que vinculativa do Estado Português, como se limitou a exigir, como seu único pressuposto, a ocorrência de inconciliabilidade entre as duas decisões ou de graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender impor-se uma interpretação restritiva da lei quanto ao fundamento de revisão referido, interpretação “claramente assumida pela jurisprudência (…), designadamente nos casos em que se revele intoleravelmente postergado o princípio non bis in idem, obviamente na sua dimensão objectiva, ou outros direitos e princípios de matriz constitucional (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-11-2012, Processo 23/04.0GDSCD-B.S1., disponível em www.dgsi.pt).

Interpretação orientada pelo princípio segundo o qual “a reabertura de processos só se revela indispensável perante sentenças em que o TEDH constate que a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à Convenção, ou quando constate a ocorrência de uma violação da Convenção em virtude de erros ou falhas processuais de uma gravidade tal que suscite fortes dúvidas sobre a decisão e, simultaneamente, a parte lesada continue a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional, que não podem ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a restitutio in integrum” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-11-2012, cit.).

Posição pacífica e consistentemente adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça, entendendo que outra, mais ampla, teria por efeito, ainda que indirecto, que as instâncias internacionais passassem a constituir, no nosso ordenamento jurídico, uma nova instância de recurso, mais concretamente a “última instância”.
Este “novo grau de recurso” seria inconstitucional, por violador do caso julgado e atentatório dos poderes de soberania no que tange à administração da justiça.

No caso, o Acórdão do TEDH de 26 de Junho de 2018, tornado definitivo em 26 de Setembro de 2018, no âmbito do Proc. n.º 53…6/12, é vinculativo para o Estado Português, nos termos previstos nos artigos 8.º da CRP e 46.º da CEDH.
No mesmo, o Tribunal proveu parcialmente a queixa apresentada pelo Recorrente, declarando que, no processo que correu termos nos tribunais nacionais, houve violação do seu direito a um processo equitativo, nos termos do artigo 6.º, §§ 1 e 3, d), da CEDH, devido à recusa do Tribunal da Relação de … em admitir as novas provas então indicadas pela defesa e apresentadas no âmbito do recurso interposto.

Não está em causa, portanto, que a decisão interna que suscitou o recurso seja, quanto ao mérito, contrária à Convenção, mas sim a declaração, pelo TEDH, da verificação de um vício procedimental, violador do direito a um processo equitativo.

Aqui chegados, importa considerar que, conforme alegado pelo Assistente na sua resposta, a decisão cuja revisão o Recorrente requer é o acórdão proferido pela então … Vara Criminal de … a 3 de Setembro de 2010, alterado pelo acórdão do Tribunal da Relação de … de 23 de Fevereiro de 2012, transitado em julgado em 20 de Fevereiro de 2013 e pelo qual foi condenado.
O fundamento invocado é, porém, a decisão do TEDH que incidiu sobre o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de … a 7 de Dezembro de 2011, e pelo qual não foi admitida a junção aos autos dos documentos oferecidos pelo Recorrente com a resposta ao recurso do MP e dos Assistentes, em 11 de Janeiro de 2011, bem como dos apresentados com os seus requerimentos de 1 de Abril de 2011 e de 14 de Novembro de 2011, nem admitida a reinquirição do coarguido DD, do Assistente EE e das testemunhas FF e GG, nos termos por si requeridos.

O recurso extraordinário de revisão visa uma decisão judicial (revidenda) já coberta pela autoridade do caso julgado – e a sua substituição por outra que venha a ser proferida, sem a verificação da anomalia que sustentou a impugnação.
A anomalia verificada – o vício procedimental declarado pelo TEDH – traduziu-se na rejeição dos meios de prova oferecidos pelo Recorrente e acima referidos.
Considerou o TEDH que, tendo o Tribunal da Relação poderes de cognição quanto à matéria de facto e quanto à matéria de direito, nos termos do artigo 428.º do Código de Processo Penal, podendo proceder a um novo exame das provas nos termos previstos nos artigo 410.º, n.º 2, e 430.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, teria, quando confrontando com elementos susceptíveis de, no entender daquele TEDH, comprometer a decisão de primeira instância, “beneficiado com um novo exame das novas versões de DD, BB e PP dos factos relacionados com o edifício da Avenida …. em … . Ao recusar-se a ouvir DD, quando este o tinha expressamente solicitado, ou a examinar o conteúdo das peças relativas a PP e BB, o Tribunal da Relação preferiu uma abordagem contraditória, privando o primeiro requerente da oportunidade do exame dessas retractações tratando-se dos actos cometidos no edifício da Avenida … em … e, consequentemente, de um processo equitativo” (cf. parágrafos 223 a 229 do acórdão do TEDH).
Numa primeira abordagem, afigura-se-nos que, a decisão do TEDH seria, em abstracto e verificando-se os demais pressupostos que infra enunciaremos, fundamento para revisão do Acórdão do Tribunal da Relação de … de 7 de Dezembro de 2011 e não do Acórdão condenatório proferido em primeira instância, sem prejuízo, naturalmente, das ressonâncias processuais com impacto, neste último, da reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação de … em razão da admissão dos meios probatórios então rejeitados.
Em todo o caso, passando a apreciar os fundamentos do recurso de revisão e seu objecto tal como delineado pelo Recorrente, está em causa, conforme referido, a verificação de um vício processual que, nos termos decididos pelo TEDH, privou o ora Recorrente de um processo equitativo.
Entendemos ser de acompanhar a posição assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça: a violação da Convenção em virtude de erros ou falhas processuais deve revestir uma gravidade tal que suscite fortes dúvidas sobre a decisão e, simultaneamente, a parte lesada continue a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional que não podem ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH, mas apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo.
Com efeito, a interpretação restritiva referida resulta, desde logo, da constatação que a declaração, pelo TEDH de uma violação da CEDH “tem por consequência que a sentença por si proferida assuma, em princípio, uma dimensão declarativa, ou seja, a tarefa do Tribunal será, por natureza, a de averiguar, e declarar, uma violação que já existe, pondo fim a uma situação de incerteza na ordem jurídica. Daqui decorre a conclusão de que as suas sentenças não são constitutivas do direito pois que não acrescentam nada de novo ao ordenamento jurídico, limitando-se ao reconhecimento judicial de um facto jurídico, com a auctoritas que assume o acórdão. Na verdade, o Tribunal não anula actos jurídicos de direito interno, não modifica ou revoga normas jurídicas internas, não funciona como instância de cassação das decisões dos tribunais internos dos Estados (SANTOS CABRAL, A relação entre as decisões dos tribunais internacionais e as decisões dos tribunais supremos-efeito directo e reabertura do processo, 2017, p. 2, disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/04/santos_cabral.pdf, sublinhado nosso).
Como tal, trata-se, em nosso entender, de impor “limitações razoáveis que visam a harmonização entre o princípio non bis in idem, na sua dimensão objectiva (exceptio judicati), princípio inerente ao Estado de direito, e a necessidade de reposição da verdade e da justiça, designadamente quando estão em causa direitos fundamentais do cidadão, limitações impostas, também, pela necessidade de garantir, minimamente, a soberania nacional em matéria judicial” (in Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27-05-2009, Processo n.º 55/01.OTBEPS-A.S1, cit.).
A adopção de uma tese mais alargada equivaleria, reitera-se, na prática e conforme vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, a dotar o Tribunal de poderes de cassação, exigindo-se, portanto, especial cautela nos pressupostos a observar para determinar a reabertura como, de resto, resulta da Recomendação do Comité de Ministros acima citada.
Entendendo-se, como se entende, que tal compressão interpretativa é necessária e adequada aos fins visados – mormente respeito do caso julgado e inerentes necessidades de segurança, certeza e estabilidade jurídicas – impõe-se concluir que artigo 449.º, n.º 1, alínea g), do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a condenação do Estado Português pela violação do direito a um processo equitativo, nos termos do artigo 6.º §§ 1 e 3 d) da CEDH, por o tribunal de recurso não ter admitido novas provas cuja apreciação foi requerida pela defesa, não impõe, por si só, o deferimento do pedido de revisão, por violação das garantias de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da CRP, não padece de inconstitucionalidade.
No atinente ao pressuposto de ser o vício procedimental declarado de “gravidade tal que suscite fortes dúvidas sobre a decisão”, argumenta o ora Recorrente que o acórdão do TEDH é manifestamente inconciliável com a sua condenação. No seu entender, tal resulta de ter sido a decisão condenatória relevantemente fundada em meios probatórios cuja credibilidade seria abalada pelas provas cuja admissão o Tribunal da Relação de … indeferiu, a saber, reinquirição do coarguido DD e documentos relativos aos Assistentes BB e CC.
A este respeito, impõe-se considerar que, tal como tem sido entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente nos Acórdãos citados na resposta do Ministério Público, a gravidade das dúvidas sobre a justiça da condenação deve ser séria e qualificada.
Ora, conforme salientado em ambas as respostas apresentadas, a decisão cuja revisão se requer alicerçou-se, não só nas declarações do coarguido DD e dos Assistentes BB e CC, mas num vasto acervo probatório, incluindo, entre outros, declarações dos arguidos, declarações dos Assistentes, incluindo do Respondente, e prova pericial. Com efeito, foram ouvidas mais de 700 pessoas e realizadas perícias médico-legais para aferir da credibilidade das vítimas.
Assim, não pode, sem mais, concluir-se que caso tivesse sido produzida a prova rejeitada pelo Tribunal da Relação de …, a mesma seria incompatível com a condenação o que, como salientando pelo Assistente na sua resposta, apenas ocorreria se esta última tivesse assentado exclusivamente num juízo acerca dos meios de prova cuja credibilidade se pretendia atingir com a reinquirição e junção de documentos indeferidos.
Tal, manifestamente e conforme resulta da motivação da decisão cuja revisão se requer, não sucedeu.

Ademais, e no que importa ao caso, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que “a alteração posterior de depoimentos de intervenientes no julgamento (ofendidos, testemunhas, arguidos) não integra a noção de factos ou de meios de prova novos” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2017, Processo n.º 47/03.5IDAVR-L.S1, disponível em www.stj.pt - sumários).

De resto, o próprio TEDH, no Acórdão proferido, consta que “à luz da jurisprudência bem estabelecida do Supremo Tribunal na altura dos factos, a retractação de uma testemunha não podia ser considerada como novo meio de prova na acepção do artigo 449, § 1 d) do CPP para efeitos da reabertura de um processo penal (…). Além disso, o Supremo Tribunal decidiu em vários Acórdãos que, para se poder invocar o carácter errado de um testemunho em que se baseou uma condenação para reabrir um processo penal (…), o carácter errado do testemunho deve ser reconhecido como tal em primeiro lugar por uma decisão judicial, e isto ao abrigo da alínea a) e não da alínea d) do artigo 449 § 1 do CPP" (cf. parágrafo 230 da decisão).
Também consta do referido Acórdão que, apesar de concluir que os direitos de defesa do ora Recorrente foram restringidos de forma incompatível com as exigências de um processo justo “Esta conclusão não implica de modo algum que este Tribunal tome posição sobre a existência de abusos sexuais sobre crianças na instituição …” (cf. parágrafo 230 da decisão).

Acresce que, como resulta igualmente da decisão, àquele Tribunal não cabe apreciar se as provas são válidas ou não, nem que as declarações de uma pessoa no decurso do processo tenham mais peso do que outras feitas pela mesma pessoa no decurso de um processo.

Entende-se, portanto, que do vício procedimental apreciado pelo TEDH não resultam sérias dúvidas sobre a condenação.

No respeitante ao pressuposto referente “à circunstância da parte lesada continuar a sofrer             consequências particularmente graves da sequência da decisão nacional”, designadamente as invocadas pelo Recorrente, importa salientar que o TEDH decidiu que a constatação de uma violação do direito do Recorrente, por si só, constitui uma satisfação justa e suficiente para os danos morais por si sofridos (parágrafos 249.º a 252.º e ponto 6 do segmento dispositivo da decisão).

Assim, e contrariamente ao sustentado nas alegações de recurso, não pode concluir-se que, ainda que se demonstrasse a manutenção de consequências – que sempre teriam de ser particularmente graves – advenientes da decisão nacional, a sua reparação apenas poderia ser alcançada com o reexame ou abertura do processo, pois que o TEDH decidiu que a mera constatação da violação do direito constituía já adequada reparação.
Afigura-se-nos, outrossim, inexistir este pressuposto da revisão.

Atento o exposto, e à luz das normas legais citadas, afigura-se-nos não dever merecer provimento o pedido de revisão formulado, o que se deixa consignado nos termos da parte final do artigo 454.º do Código de Processo Penal.

5. parecer do Ministério Público:

A Digna Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal na vista a que alude o artigo 455.º do CPP, emitiu douto parecer, pronunciando-se pela não autorização da revisão. Aderindo à resposta dos Procuradores na 1ª instância e amparando-se na jurisprudência do STJ que cita, argumenta (em síntese) que “a decisão do TEDH não se pronunciou, nem sobre o mérito da causa, nem sobre a valia das provas que fundamentaram a decisão, limitando-se a assinalar um vício procedimental e considerou que a não admissão das provas requeridas pelo Recorrente em sede de recurso por decisão do Tribunal da Relação de …, constituía uma violação que se considerava reparada apenas por aquela constatação.

Sendo a decisão vinculativa do TEDH, porém, não é, nem inconciliável com a condenação, nem suscita graves dúvidas sobre a sua justiça, pelo que, sufragando o entendimento e considerações invocadas na resposta ao recurso pelo Mº Pº no Tribunal recorrido” conclui “que se não verificam os fundamentos indicados pelo recorrente para que o Supremo Tribunal de Justiça possa autorizar a revisão da decisão condenatória.


«»

O arguido aqui recorrente tem legitimidade para requerer a revisão de qualquer sentença ou despacho judicial que ponha termo ao processo e que, estando transitada/o em julgado, o condene definitivamente no processo (artigo 450.º, n.º 1, al. a), do CPP) a ter de cumprir uma consequência jurídica.

Este seu recurso encontra-se motivado e abundantemente instruído (artigos 451.º, n.º 3, e 454.º do CPP).

O Supremo Tribunal de Justiça é o competente para julgar e decidir o recurso extraordinário de revisão (artigos 11.º, n.º 4, al. d), e 454.º do CPP).

Recurso extraordinário que pode ser interposto a todo o tempo, mesmo que a pena aplicada já tenha sido cumprida.

Pelo que nada obsta ao conhecimento do vertente recurso.

Dispensados os vistos, o processo foi à conferência.

Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO:


a) o caso julgado penal:

A decisão judicial[2], a partir do momento em que não pode ser impugnada através dos procedimentos ordinários legalmente previstos, torna-se firme, regulando definitivamente o caso concreto na ordem jurídica. Na expressão de Manuel de Andrade a sentença constitutiva (que julga procedente uma ação) uma vez transitada em julgado (caso julgado material) traz o direito para a evidência[3].

O Código de Processo Penal não contém qualquer normativo do qual possa extrair-se, diretamente[4], a definição do trânsito em julgado das sentenças penais. Remete-nos – art. 4º - para o direito adjetivo subsidiário, o Código de Processo Civil. Neste diploma, o art. 628º estabelece: “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”. Adaptando a parte final ao processo penal, - no qual não há reclamação – deve ler-se “ou quando já não for suscetível de arguição de nulidade”.

Nas palavras de Eduardo Correia, “o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto”[5].

No entender de J. Figueiredo Dias também a segurança é um dos fins prosseguidos pelo processo penal, “o que não impede que institutos como o do recurso de revisão contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se poderia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos têm de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser, só, no fundo, a força da tirania[6].

Para J. Alberto dos Reis, “o recurso de revisão pressupõe que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa. Visa eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça”[7].

Nota-se, ainda que sumariamente, que o caso julgado será formal quando a decisão recai “unicamente sobre a relação processual”, circunscrevendo-se a sua força obrigatória à questão processual concreta julgada no processo (art.º 620.º do CPC). Será material quando decida do objeto do processo penal, aprecie e julgue do mérito da acusação ou pronúncia, decida “sobre a relação material controvertida” (art.º 619.º o n.º 1 do CPC).

O instituto do caso julgado, implicitamente reconhecido no art.º 282º n.º 3 da Constituição da República, é orientado pela ideia de conseguir maior segurança e paz nas relações jurídicas, bem como maior prestígio e rendimento da atividade dos tribunais[8], impedindo que, no processo penal, se repita a mesma causa já decidida por sentença firme, que o arguido seja julgado mais que uma vez pelos mesmos factos– non bis in idem -, evitando, assim, também a contradição prática de decisões judicias definitivas.

Conforme se expende no Acórdão n.º 194/97, do Tribunal Constitucional, “o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica (cfr. JORGE MIRANDA, 'Manual de Direito Constitucional', tomo II, 3ª edição, reimp., Coimbra, 1996, pág. 494); e que, fundando-se a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no princípio do Estado de Direito (GOMES CANOTILHO, 'Direito Constitucional e Teoria da Constituição', Coimbra, 1998, pág. 257), se trata, sem qualquer dúvida, de um valor constitucionalmente protegido”.

A favor do caso julgado em processo penal, invoca-se também o efeito nefasto da reabertura em relação ao coarguido e às vítimas, que seria potenciado pelas circunstâncias emergentes do distanciamento em relação ao material probatório derivado da passagem do tempo.

Todavia, como se adverte no aresto em citação, “a disposição constitucional (…), que consagra o princípio ne bis in idem, constitui, sem margem para qualquer dúvida, uma garantia do arguido, não podendo, pois, ser invocada contra ele, em manifesta violação da sua ratio”.

Dai que a firmeza ou definitividade da decisão penal, especialmente a condenatória, possa ter de ceder quando sobrevenham razões que, evidenciando patente e grave injustiça que materializa, tornam juridicamente insuportável mante-la.


b) o recurso de revisão:

Na expressão de M. Cavaleiro de Ferreira “a irrecorribilidade das decisões judiciais irrevogáveis tem por efeito a sua definitividade e a sua exequibilidade. Quer dizer, esgotou-se no respetivo processo quanto à matéria da decisão o poder jurisdicional, e ficou autorizada a execução da decisão[9]”.

Contudo “o princípio res judicata pro veritate habetur não confere ao caso julgado, ainda que erga omnes, uma presunção juris et de jure, de que a decisão consagra justiça absoluta, perenemente irreparável, e por isso irrevogável”.

Certamente que toda a revisão, qualquer que seja a sua génese, será sempre uma violação da segurança do caso julgado que é justificada em função de razões de justiça[10].

Todavia, socorrendo-nos das justificações do Tribunal Supremo de Espanha: “o problema político-social que se produz pelo facto de que sendo as decisões judiciais um ato humano não se deve cerrar o passo definitivamente à consideração de que possam estar equivocadas. O intérprete do sistema legal tem que sopesar se num momento determinado o valor da segurança jurídica deve sobrepor-se ao valor da justiça. Um Estado democrático deve buscar saídas e soluções para resolver os problemas que afetam a liberdade e os direitos individuais[11].

O recurso extraordinário de revisão, assenta na ideia de que as sentenças judiciais condenatórias firmes, embora esmagadoramente correspondam à verdade prático-jurídica, todavia podem não ser infalíveis, mas também não podem estar permanentemente abertas a qualquer reapreciação do julgado. É, na essência, um remédio que, atentando contra o efeito preclusivo do caso julgado e a inerente segurança e paz, cuida de manter o equilibro necessário entre o valor da certeza jurídica que lhe é imanente e a justiça material.

Por isso, somente se admite a revisão quando o Supremo Tribunal se depara com um caso de condenação notoriamente equivocada, enquadrável em algumas das situações que o legislador taxativamente erigiu como podendo justificar a revogação da sentença condenatória transitada em julgado.

O recurso ordinário da sentença eleva a tramitação a outra etapa do processo penal, a fase destinada ao reexame da decisão impugnada.

O recurso extraordinário de revisão não tem por objeto a reapreciação da decisão judicial transitada. Não é uma fase normal de impugnação da sentença penal. É um procedimento autónomo especialmente dirigido a obter um novo julgamento e, por essa via, rescindir uma sentença condenatória firme.

No entendimento seguido no Ac. n.º 376/2000 do Tribunal Constitucional, “no novo processo não se procura a correção de erros eventualmente cometidos no anterior e que culminou com a decisão revidenda, porque para a correção desses vícios terão bastado e servido as instâncias de recurso ordinário”, “os factos novos do ponto de vista processual e as novas provas, aquelas que não puderam ser apresentadas e apreciadas antes, na decisão que transitou em julgado, são indício indispensável à admissibilidade de um erro judiciário carecido de correção. Por isso, se for autorizada a revisão com base em novos factos ou meios de prova, haverá lugar a novo julgamento[12].

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), Protocolo 7, no artigo 3º (direito a indemnização em caso de erro judiciário) alude a “condenação penal definitiva” “ulteriormente anulada” “porque um facto novo ou recentemente revelado prova que se produziu um erro” de julgamento. E no artigo 4º estatui-se que a sentença definitiva não impede “a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento”.

Nesta linha, a Constituição da República, no artigo 29º, n.º 5, “obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto[13] e (n.º 6) atribui à pessoa injustamente condenada o direito à revisão da sentença, nos termos que a lei prescrever

A violação do caso julgado, permitida pela Constituição da República, e pela CEDH, visa a salvaguarda do elementar direito à liberdade e o direito a uma condenação justa de acordo com as regras constitucionais e do processo penal.

Traço marcante do recurso de revisão é, desde logo, a sua excecionalidade, ínsita na qualificação como extraordinário[14] e no regime, substantivo e procedimental, especial. Por isso, somente os fundamentos firmados – taxativamente - pelo legislador podem legitimar a admissão da revisão da condenação transitada em julgado. Regime normativo excecional que admitindo interpretação extensiva, não comporta aplicação analógica –art.11º do Código Civil.

Como se sustenta no Ac. de 26-09-2018, deste Supremo Tribunal, “do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários”.
c) regime legal:

Em execução daquele comando constitucional (e do referido preceito da CEDH), o Código de Processo Penal, consagra, e regula o recurso extraordinário de revisão, estabelecendo no artigo 449º (fundamentos e admissibilidade da revisão) n.º 1 do CPP:

1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

No n.º 2 estatui que para efeitos de revisão à sentença equipara-se o despacho que tiver posto fim ao processo.

E, no n.º 3 estipula:

3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

Por sua vez, o art. 451º (formulação do pedido), no n.º 2 exige que do requerimento conste a exposição circunstanciada dos fundamentos da revisão.

Exige-se também que o requerimento venha instruído com cópia autenticada da decisão revidenda e a certificação do seu trânsito em julgado (n.º 3). E, fundando-se a revisão em outra decisão judicial, o requerimento tem de vir instruído com a mesma, com a definitividade devidamente certificada, por se tratar de documentos absolutamente indispensáveis à instrução do pedido  

Com o requerimento, apresentado no tribunal da condenação, inicia-se o procedimento destinado à verificação dos requisitos formais e dos pressupostos substantivos para poder ser formulado um juízo rescindente, da competência exclusiva do STJ.

O juízo rescindente só pode ser formulado e, consequentemente, autorizado novo julgamento, se proceder algum dos fundamentos constitucional ou legalmente previstos para que o caso julgado tenha de ceder perante a grave injustiça da condenação.

Não estando presentes todos os requisitos ou não existindo ou não se demonstrando os fundamentos invocados, ou se, alicerçando-se em novos factos ou novos elementos de prova, visa corrigir a medida da pena, a revisão deve ser negada –art. 456º.

Sendo autorizada, inicia-se a fase do juízo rescisório, a processar na 1ª instância territorialmente competente.


d) sentença vinculativa do TEDH:

Dispõe o art. 8º, n.º 1 da Constituição da República que “as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português”

E, o n.º 2 que “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português”.

Por sua vez, no art.º 16º, n.º 1 estatui que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e regras aplicáveis de direito internacional”.

E, no n.º 2, que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentias devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (doravante CHDH/ou simplesmente Convenção), adotada pelo Conselho da Europa, em 4 de novembro de 1950, em Roma, com início de vigência na ordem internacional em 3 de setembro de 1953, foi assinada por Portugal em 22 de setembro de 1976, passando a vigorar no direito interno a partir de novembro de 1978 – Lei n.º 65/78 de 13 de outubro.

Pelo que, desde então, os tribunais nacionais estão obrigados a aplicá-la diretamente, fazendo respeitar os direitos nela consagrados. Entre os quais se inclui o processo justo, consagrado no art. 6º da Convenção.

Como refere Henriques Gaspar, “os juízes nacionais estão, assim, vinculados à CEDH e em diálogo e cooperação com o TEDH. Vinculados porque, sobretudo em sistema monista, como é o português (artigo 8.° da Constituição), a CEDH, ratificada e publicada, constitui direito interno que deve, como tal, ser interpretada e aplicada, primando, nos termos constitucionais, sobre a lei interna. E vinculados também porque, ao interpretarem e aplicarem a CEDH como primeiros juízes convencionais (ou juízes convencionais de primeira linha), devem considerar as referências metodológicas e interpretativas e a jurisprudência do TEDH, enquanto instância própria de regulação convencional.[15]

Para garantir o respeito, pelos Estados parte, dos compromissos resultantes da Convenção e seus protocolos, instituiu-se o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos/TEDH –art. 19º -, com competência para apreciar e decidir todas as questões relativas à interpretação e à aplicação da Convenção e respetivos protocolos que lhe sejam submetidas, tanto de tipo estatal – art. 33º - como, sobretudo, de demandas de ordem individual – art. 34º. Em qualquer caso, os Estados partes não podem opor reservas e decidir si aceitam ou não a jurisdição do Tribunal.

O TEDH, aceitando queixas dos particulares, quando não se se resolvam por composição amigável, julgando-as fundadas, declara que o Estado requerido violou um ou mais direitos consagrados na Convenção e respetivos protocolos.

O Tribunal, se concluir que o direito interno do Estado parte não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências da violação declarada, pode, se necessário, atribuir à/ao queixoso uma reparação razoável.

Em algumas situações o TEDH, tem entendido que a constatação da violação da Convenção, do ato jurídico ou judicial do Estado parte requerido, constitui satisfação equitativa suficiente para o requerente.

As sentenças definitivas do TEDH que declaram uma violação da Convenção, vinculam o Estado parte nos litígios em que é demandado, ainda que sem efeito anulatório automático no regime jurídico do direito interno desse Estado, nem possibilidade de execução direta pelos respetivos tribunais estaduais. O Estado parte declarado em violação de algum direito consagrado na Convenção está obrigado a cumprir essa sentença definitiva do TEDH – art. 46º n.º 1. Obrigação de execução decorrente do compromisso internacional assumido com a assinatura da Convenção.

O Estado declarado em violação da Convenção pode escolher os meios do seu ordenamento jurídico interno para dar execução, plena, efetiva e rápida das sentenças vinculativas do TEDH ou, de outra perspetiva, reparar internamente a vulneração de direitos constatada pelo Tribunal.
A execução de uma sentença definitiva do TEDH pode exigir medidas gerais, nomeadamente alterações legislativas destinadas essencialmente a prevenir que a violação declarada se repita no ordenamento jurídico interno. E, sempre que necessário e possível, medidas individuais para garantir o respeito pelo direito do requerente que o Tribunal considerou ter sido violado. Entre as quais se pode incluir uma alteração legislativa. Mas também a reabertura do processo interno onde foi decretada a condenação do queixoso.

O TEDH não executa nem vela pela execução das suas sentenças definitivas. A competência para velar pelo cumprimento e/ou execução das sentenças definitivas do TEDH está atribuída ao Comité de Ministros (órgão politico-executivo do Conselho da Europa) - art. 46º n.º 2.

Conforme se enfatizou no Protocolo 14 de 13.05.2004, anexo à Convenção, a execução rápida e completa das sentenças definitivas do Tribunal é essencial, por um lado para a proteção dos direitos do requerente e, por outro lado, porque a autoridade do Tribunal e a credibilidade do sistema dependem, em grande parte, da execução efetiva das mesmas.

Na sentença/arret de 29.05.2019, tirado no caso ILGAR MAMMADOV c. AZERBAÏDJAN, (um kay case) o TEDH, em Plenário, “sublinhou reiteradamente que as suas sentenças são essencialmente declaratórias e que, em geral, cabe principalmente ao Estado em questão, sob a supervisão do Comité de Ministros, escolher os meios a utilizar para cumprir a sua obrigação nos termos do artigo 46 da Convenção, desde que esses fundamentos sejam compatíveis com as conclusões contidas no acórdão do Tribunal”.

Na síntese de J. H. Santos Cabralo Tribunal não anula actos jurídicos de direito interno, não modifica ou revoga normas jurídicas internas, não funciona como instância de cassação das decisões dos tribunais internos dos Estados”. “O contencioso dos direitos do homem é um contencioso de legalidade e não um contencioso de anulação[16].

O acórdão/arret em citação “também sublinhou a natureza vinculativa das suas sentenças na acepção do Artigo 46 § 1 e a importância da sua execução efetiva, de boa fé e compatível com as "conclusões e espírito" da sentença”.

Com relação aos requisitos do artigo 46, deve-se primeiro lembrar que o Estado demandado considerado responsável por uma violação da Convenção ou de seus Protocolos é obrigado a cumprir as decisões do Tribunal nas controvérsias das quais seja parte. Por outras palavras, a não execução ou execução incompleta de uma sentença do Tribunal pode envolver a responsabilidade internacional do Estado parte. Este é obrigado não só a pagar aos interessados ​​as importâncias atribuídas a título de justa satisfação, mas também a tomar medidas individuais e / ou, se for caso disso, gerais no seu ordenamento jurídico interno, a fim de pôr termo à violação apurada pelo Tribunal e de apagar as suas consequências, com o objectivo de colocar o requerente, na medida do possível, numa situação equivalente àquela em que se encontraria se não tivesse havido violação dos requisitos da Convenção. Ao exercer a sua escolha de medidas individuais, o Estado Parte deve ter em mente que o objetivo principal é alcançar a restitutio in integrum”.

Estas obrigações evocam os princípios do direito internacional segundo os quais um Estado responsável por um ato ilícito tem o dever de garantir a restituição, que consiste em restabelecer a situação que existia antes de o ato ilícito ter sido cometido, desde que esta restituição não seja "materialmente impossível e" não imponha um ônus desproporcional ao benefício que derivaria da restituição ao invés da compensação». Por outras palavras, se a restituição é a regra, pode haver circunstâncias em que o Estado responsável se veja desonerado - no todo ou em parte - da obrigação de restituir, desde que, no entanto, estabeleça devidamente a existência de tais circunstancias”.

Reiterando a liberdade do Estado parte de escolher os meios de cumprimento da condenação salienta que “em certas situações específicas, o Tribunal considerou útil indicar a um Estado demandado o tipo de medidas a serem tomadas para por fim à situação - muitas vezes estrutural - que motivou a constatação de uma violação. Às vezes, mesmo a natureza da violação encontrada não deixa escolha quanto às medidas a serem tomadas”.

Conforme salientou no caso Ocalan c. Turquia (acórdão/arret de 6.07.2010) “às vezes, mesmo a natureza da violação encontrada não deixa escolha quanto às medidas a serem tomadas”.

Nessas situações a sentença do TEDH deve ser executada, nos precisos termos, na ordem jurídica interna do Estado parte. Que deve fazer cessar imediatamente a violação constada, apagando, tanto quanto possível, as consequências produzidas e impedindo que se repitam idênticas violações.

Ainda no caso Ocalan c. Turquia, o TEDH realça que “não tem competência para ordenar, em particular, a reabertura do processo. No entanto, se um indivíduo for condenado no final de um processo viciado por violação dos requisitos do artigo 6 da Convenção, o Tribunal poderá indicar que um novo julgamento ou a reabertura do processo, a pedido do interessado, representa, em princípio, um meio adequado de reparar a violação encontrada”.

Também considerou, (…) que “as medidas específicas de reparação a serem tomadas, se houver, por um Estado demandado a fim de cumprir as obrigações que lhe incumbem nos termos do artigo 46 da Convenção , dependem necessariamente das circunstâncias particulares do caso e devem ser definidas à luz do acórdão proferido pelo Tribunal no processo em causa, tendo devidamente em conta a jurisprudência do Tribunal  Ao usar a expressão “quando aplicável”, o Tribunal não excluiu que as circunstâncias particulares do caso pudessem isentar o Estado em questão de tomar qualquer medida específica de reparação em relação a um requerente”.

Por sua vez no acórdão/arret de 11.01.2012 tirado no caso EMRE c. SUISSE (N.º 2), reafirma que “a reabertura de um processo que viola a Convenção não é um fim em si mesmo, é apenas um meio - ainda que privilegiado - susceptível de ser executado com vista a um objectivo: a correcta e completa execução da sentença do Tribunal”.
Assim, no acórdão/arret de 23.01.2001 tirado no caso BRUMĂRESCU c. ROUMANIE , realça que “Se a natureza da violação permitir a restitutio in integrum, cabe ao Estado demandado realizá-la. Se, por outro lado, a legislação nacional não permitir ou apenas permitir que as consequências da violação sejam apagadas de maneira imperfeita, o artigo 41 confere ao Tribunal o poder de conceder, se necessário, à parte lesada a satisfação que lhe pareça adequada”.

No acórdão primeiramente citado sublinha que “o objetivo das quantias atribuídas a título de justa satisfação é apenas a de indemnizar os danos sofridos pelas partes interessadas na medida em que constituam uma consequência da violação que não pode, em caso algum, ser apagada”.

A jurisprudência do TEDH enfatiza que a execução de uma sentença definitiva sua que constatou e declarou uma violação, por um Estado parte, de um direito consagrado na Convenção, deve ser feita de boa fé e de maneira compatível com as "conclusões e espírito" da própria sentença.
e) a norma adjetiva invocada:

O legislador processual penal, de modo a permitir a execução na ordem jurídica interna de sentenças definitivas do TEDH, condenatórias do Estado Português, através da Lei n.º 48/2007 de 29 de agosto, alterou o art. 449.° n.º 1 do CPP, acrescentando a alínea g), permitindo aos interessados – e ao Ministério Público -, através do recurso extraordinário de revisão, verificados determinados parâmetros, rescindir a condenação, permitindo reabrir o processo onde foi decretada, para que se realize novo julgamento no qual, observando os direitos fundamentais consagrados na Convenção que, segundo a sentença do TEDH, tenham sido gravemente violados, se decida se é de absolver ou condenar e, neste caso, em que espécie e medida.

Aquela norma adjetiva convocada pelo recorrente - única que importa ao vertente recurso extraordinário – estabelece que “a revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando:

“g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.”

Como o recorrente avisadamente salienta, tem sido objeto de interpretação pela jurisprudência deste Supremo Tribunal. Pelo que informa esclarecer pelas quais se prossegue na mesma linha interpretativa que o recorrente qualifica de restritiva mas que este Tribunal entende ser a que resulta das regras da hermenêutica jurídica.

Na determinação do sentido, alcance e finalidade deste preceito importa considerar o respetivo iter legislativo iniciando-se com a consulta das Atas da Unidade de Missão para a Reforma Penal (2001-2005), colhendo-se nestas a  breve referência de que o seu acrescentamento visou criar “um parâmetro de respeito pelas decisões internacionais que vinculam o Estado português” – cfr ata n.º 21, pag. 5.

Da exposição de motivos da proposta de lei n.º 109/x, que suportou a reforma do CPP de 2007, mais não consta que a informação do aditamento daquela norma e respetivo teor.

Sustentação essa proposta aquando da respetiva apresentação na Assembleia da República, o então Ministro da Justiça, salientou que a introdução daquela norma visou apenas criar “os termos adequados para uma reconciliação entre decisões jurisdicionais internas e de instâncias internacionais que nos vinculem, no espírito da Europa e do mundo em que vivemos”, que perspetivou para os casos “em que a única maneira de repor a situação, eliminando a violação, é reabrir e rever a decisão de um tribunal”.

Norma que o legislador não retocou, embora esteja ciente da interpretação, que se tem qualificado de restritiva, uniformemente adotada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, inclusivamente para igual preceito existente no CPC.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal, interpreta que “a introdução da al. g) do n.º 1 do art. 449.° do CPP, pela Lei48/2007, de 29-08, teve em vista prever um procedimento de execução das decisões do TEDH condenatórias do Estado Português, permitindo aos interessados obter a execução da sentença definitiva proferida pelo TEDH através do recurso extraordinário de revisão[17].

Independentemente das lacónicas justificações apresentadas, dúvidas não restam de que com a adoção da norma em análise, o legislador do CPP não podia deixar de observar a RECOMENDAÇÃO Nº R (2000) 2 do Comité de Ministros do Conselho da Europa[18] dirigida aos Estados parte, relativa ao reexame e reabertura de determinados processos ao nível interno na sequência de sentenças do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

O referido Comité[19], considerando que a obrigação dos Estados de observar as sentenças definitivas do TEDH, em certas circunstâncias, “pode implicar, ademais da reparação razoável atribuída nos termos do artigo 41.º da Convenção, a adopção de outras medidas destinadas a, sendo possível, repor o lesado na situação em que se encontrava antes da violação da Convenção (restitutio in integrum); considerando também competir às autoridades do Estado requerido determinar quais as medidas disponíveis no respetivo sistema jurídico interno, mais adequadas para aplicar a restitutio in integrum; considerando ainda que há circunstâncias excepcionais em que o reexame de um caso ou a reabertura de um processo se revela ser o meio mais eficaz, mesmo único, para aplicar a restitutio in integrum;
I. Convidou as Partes Contratantes a assegurarem-se de que existe ao nível interno possibilidades adequadas para aplicar, na medida do possível, a restitutio in integrum.
II. Encorajou-as, nomeadamente, a examinar os respectivos sistemas jurídicos nacionais com vista a assegurarem-se de que existe possibilidades adequadas para o reexame de um caso, incluindo a reabertura de processos, nos casos em que o Tribunal constate a existência de uma violação da Convenção em particular quando:
(i) a parte lesada continua a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional, que não podem ser compensadas com a reparação razoável e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a
reabertura, e
(ii) decorre do acórdão do Tribunal que
(a) a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à da Convenção, ou
(b) a violação constatada em virtude de erros ou falhas processuais é de uma gravidade tal que suscita fortes dúvidas sobre a decisão final do
processo nacional.

Como o TEDH notou no caso Moreira Ferreira c Portugal (N.º 2), “O memorando explicativo [da Recomendação] tece comentários mais gerais sobre questões que não são explicitamente abordadas na Recomendação supramencionada. No que concerne aos casos que correspondem aos critérios acima mencionados, diz o seguinte:

“12.  O sub-parágrafo (ii) visa indicar (...) o tipo de violações nas quais a revisão do caso ou a reabertura do processo será particularmente importante. Exemplos de situações visadas pela alínea (a) incluem as condenações penais em violação do artigo 10º por as declarações caracterizadas como criminais pelas autoridades nacionais constituírem um exercício legítimo da liberdade de expressão da parte lesada ou em violação do artigo 9º por o comportamento caracterizado como criminal ser um exercício legítimo da liberdade de religião. Exemplos de situações visadas pela alínea b) incluem aquelas em que a parte lesada não dispôs de tempo nem de meios para preparar a sua defesa em processo penal, situações em que a condenação tiver sido baseada em declarações extraídas sob tortura ou em prova que a parte lesada não teve a possibilidade de verificar, ou, no caso de processo civil, situações em que as partes não tenham sido tratadas de forma a respeitar devidamente o princípio da igualdade de armas. Qualquer vício deve, como decorre do texto da própria recomendação, ser de tal gravidade que levante sérias dúvidas sobre o resultado do processo interno.[20]

Compreende-se que o legislador nacional não está obrigado a plasmar, ipsis literis, estritamente, no seu direito interno recomendações de instâncias internacionais das quais é parte. Contudo, se o propósito foi o de ajustar o nosso direito aquela Recomendação, impunha-se que explicitasse claramente e motivasse suficientemente qualquer não coincidência.

Importa realçar que a restitutio in integrum em caso de erro judiciário em matéria penal, - quer através da revisão da sentença condenatória -, sempre que ela possa e deva ter lugar, como também através do direito a adequada compensação, estavam consagradas na nossa Carta Magna, desde a Lei Constitucional n.º 1/82, como direito fundamental do condenado – art. 29º n.º 6 (“Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.”). E as situações em que até à revisão de 2007 podia ter lugar, catalogadas na respetiva lei adjetiva – art. 449º do CPP.

Claro está que a força vinculativa das sentenças do TEDH aconselhava a adoção, no direito interno de um mecanismo que regule os requisitos e o procedimento destinado a, quando necessário, restabelecer a harmonia entre as decisões judiciais internas e as sentenças daquele tribunal europeu (não confundir esta designação com os tribunais da União/EU)

Porém, o legislador processual penal português, com a introdução da norma em apreço - a citada al.ª g) -, generalizou, diferentemente de outros Estados Parte[21], [22] e [23], de modo tal que utilizou uma formulação que, na sua literalidade, parece admitir a revisão da condenação decretada pela justiça nacional não apenas quando a condenação interna seja inconciliável com sentença definitiva do TEDH[24], - como estava recomendado pelo Comité de Ministros -, mas também quando seja inconciliável com sentença vinculativa de outra qualquer instância internacional independentemente da sua competência material.

Por outro lado, ainda em dissemelhança com regimes jurídicos próximos[25],  pode parecer que admite – como decorre da conjuntiva alternativa ou - a revisão de condenação interna que, embora conciliável com a sentença vinculativa de instância internacional, todavia suscite graves dúvidas sobre a justiça da condenação. Leitura que, sem termo distintivo ou sem nenhuma especificação, redundaria praticamente ininteligível e ostensivamente violadora da norma do art. 29º n.º 6 da nossa Lei Fundamental.

É entendimento generalizado que, com a exceção do direito dos tratados da União Europeia (o TUE e o TFUE), todo o restante direito internacional, embora com nível supralegal, tem força infraconstitucional. Na nossa Lei Fundamental somente admitem revisão as condenações penais injustas.

Neste conspecto não se compreende, nem a Constituição da República toleraria tal interpretação, que uma decisão do TEDH inconciliável com a decisão nacional obrigue à reabertura do processo e consequente revisão da sentença interna mesmo que daquela não resulte a grave injustiça da condenação nela decretada.

Recorda-se que, conforme se expende no Acórdão de 14.01.2009, deste Supremo Tribunal, “graves dúvidas sobre a justiça da condenação são todas aquelas que são «de molde a pôr em causa, de forma séria, a condenação de determinada pessoa, (…). As dúvidas têm de incidir sobre a condenação enquanto tal, a ponto de se colocar fundadamente o problema de o arguido dever ter sido absolvido» – Ac. do STJ de 25-01-2007, Proc. n.º 2042/06 - 5.ª”.

Não se vislumbra como uma sentença definitiva do TEDH inconciliável com a decisão condenatória interna pode ter outra leitura que não seja a resultante da grave injustiça material da própria condenação porque violadora de algum direito fundamental do condenado, consagrado na Convenção. Não se deve perder de vista que o fundamento material da rescisão de uma sentença firme só colhe justificação no interesse superior de eliminar da ordem jurídica e judiciária uma condenação gravemente injusta, mesmo depois de ter sido integralmente executada. No nosso regime adjetivo penal a revisão não serve para corrigir vícios procedimentais. Para as nulidades de que possa enfermar e os vícios que patenteia a decisão devem bastar os recursos ordinários. Consequentemente, os vícios do procedimento só podem justificar a “desconstituição” da sentença transitada em julgado quando, pela sua patente e extrema gravidade, suscitem sérias e graves dúvidas sobre o mérito da condenação. Facilmente se compreende que assim deve ser. De outro modo, se as nulidades e os vícios da sentença ou outros vícios procedimentais que não assumam aquela densidade, pudessem justificar a rescisão de uma sentença firme, o recurso ordinário e o respetivo prazo legal poderiam qualificar-se de pouco mais que excrescências processuais, com utilidade prática restrita ao protelamento do início de execução da condenação. Não fora esse propósito, porque haveria o condenado de interpor recurso ordinário no prazo de 30 dias quando, exatamente com os mesmos fundamentos poderia apresentá-lo, sem qualquer limitação temporal e, portanto, com o tempo que quiser para o preparar recurso extraordinário de revisão?

Dai que, para não incorrer na leitura extrema de ter de reabrir-se e, subsequentemente rever, toda e qualquer condenação que seja simplesmente inconciliável com a sentença de uma instância internacional, independentemente de não evidenciar, quanto ao mérito da causa, injustiça grave e insuportável da condenação, a norma adjetiva em análise demande uma interpretação em conformidade com a respetiva fonte direta, isto é, com a citada Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa, com o próprio sistema da Convenção, com as competências do TEDH e, sobretudo com a norma do art. 29º n.º 6 da Constituição da República.

Quanto à Recomendação citada, repete-se que, ao pressuposto consistente em o condenado continuar a sofrer consequências particularmente graves, que não podem ser compensadas com a reparação razoável e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, antepõe-se, cumulativamente, – como impõe a conjuntiva e, ali empregue -, que decorra da sentença do Tribunal Europeu do Direitos Humanos que:

(b) a violação constatada em virtude de erros ou falhas processuais é de uma gravidade tal que suscita fortes dúvidas sobre a decisão final do processo nacional.

O que inclui, exemplificativamente, aquelas situações em que o arguido “não dispôs de tempo nem de meios para preparar a sua defesa em processo penal”; “a condenação tiver sido baseada em declarações extraídas sob tortura ou em prova que a parte lesada não teve a possibilidade de verificar”.

Sendo que “qualquer vício deve, como decorre do texto da própria recomendação, ser de tal gravidade que levante sérias dúvidas sobre o resultado do processo interno.[26]

Quanto ao regime da Convenção, a reabertura do processo surge como uma exceção a regra do non bis in idem, admitida nos termos da lei e do processo penal do Estado parte, “se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento” - art. 4º n.º 2 do Protocolo 7.

Como se deu conta e aqui se repete, na interpretação do Comité do Conselho de Ministros – órgão político a quem compete velar pela execução das decisões do TEDH – “O sub-parágrafo (ii) alínea (a) visa indicar (...) o tipo de violações nas quais a revisão do caso ou a reabertura do processo será particularmente importante”. Exemplificando com direitos substantivos.

Exemplos de situações visadas pela alínea b) incluem aquelas em que a parte lesada não dispôs de tempo nem de meios para preparar a sua defesa em processo penal, situações em que a condenação tiver sido baseada em declarações extraídas sob tortura ou em prova que a parte lesada não teve a possibilidade de verificar, ou, no caso de processo civil, situações em que as partes não tenham sido tratadas de forma a respeitar devidamente o princípio da igualdade de armas. Qualquer vício deve, como decorre do texto da própria recomendação, ser de tal gravidade que levante sérias dúvidas sobre o resultado do processo interno.[27]

Na definição do acórdão de 20.02.2019, deste Supremo Tribunal, “«Vício fundamental» será, deste ponto de vista, o uso de provas proibidas que determinaram a condenação – a violação das regras do processo justo pela utilização de provas proibidas levou a uma condenação injusta”.

Em suma, a violação declarada pela constatação de algum vício procedimental em que tenha incorrido a decisão nacional somente pode fundamentar a autorização da revisão da decisão condenatória interna se assumir uma tal importância e uma influência tão decisiva que, só por si, comprometa seriamente e gravemente a justiça da condenação, tornando insuportável que na ordem jurídica possam continuar a coexistir as duas decisões inconciliáveis entre si.

Finalmente (e surpreendentemente), - diversamente de outros regimes europeus[28] – o legislador processual penal também não estabeleceu qualquer prazo para a execução, a petição do condenado, da sentença vinculativa do TEDH.

Porque parece haver quem queira generalizar ainda mais, pretendendo incluir qualquer decisão de instância internacional, – como a fundamentação de alguns arestos deixam antever ao convocar resoluções e recomendações de Comités (órgãos de natureza estritamente política ou não mais que consultiva) -, o legislador foi claro e expresso, socorrendo-se do termo “sentença”, que, na semântica processual penal, está legalmente definida no art.º 97º n.º 1 al.ª a) e 2 do CPP como o ato decisório de juiz ou de tribunal que conhece a final do mérito da causa. Entre nós denominada sentença se proferido por juiz singular ou acórdão se ditado por tribunal colegial.

Neste sentido, no acórdão de 17.06.2015, deste Supremo Tribunal de Justiça (3ª secção), expendeu-se: “da hermenêutica deste preceito resulta que só as sentenças vinculativas do Estado português proferidas por instância internacional são susceptíveis de fundamentar o recurso de revisão, o que significa que só as decisões do TEDH, do Tribunal Internacional de Justiça e dos tribunais penais internacionais, são relevantes em matéria deste recurso extraordinário[29].

Assinala-se que no regime processual do TEDH “uma decisão é normalmente proferida por um juiz singular, um comité ou uma secção do Tribunal. Diz exclusivamente respeito à admissibilidade e não ao fundo da queixa”. Sentença é o ato decisório da secção, apreciando, em regra ao mesmo tempo, a admissibilidade e o mérito da queixa.

Conforme realçado, o nosso legislador, por razões que não deu à estampa, não adotou a formulação literal proposta pelo Comité de Ministros, não destrinçando a violação decorrente de condenação de mérito – cfr. alínea a) -, da resultante de algum vício no procedimento – cfr alínea b). Todavia, deixou vincado nos trabalhos preparatórios e na motivação proposta de introdução da norma que mais não visava que compatibilizar o nosso regime interno com a referida recomendação. É certo que não adotou uma formulação clara.

Mas, o Supremo Tribunal de Justiça, conhecedor da norma constitucional, da fonte do preceito legal, dos respetivos trabalhos legislativos e da sua finalidade, adotou uma leitura daquela norma “no sentido dos princípios consignados na referida Recomendação, concretamente do princípio segundo o qual a reabertura de processos só se revela indispensável perante sentenças em que o TEDH constate que a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária à Convenção, ou quando constate a ocorrência de uma violação da Convenção em virtude de erros ou falhas processuais de uma gravidade tal que suscite fortes dúvidas sobre a decisão e, simultaneamente, a parte lesada continue a sofrer consequências particularmente graves na sequência da decisão nacional, que não podem ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH e que apenas podem ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a restitutio in integrum”, como sucedeu no Ac. de 27.05.2009, no qual se trata a com profundidade e de várias perspetivas a interpretação e aplicação do precieto, informando ainda que foi essa “a solução legislativa consagrada na lei processual penal francesa que permite, também, a revisão de sentença penal condenatória perante decisão proferida pelo TEDH”.
Motivando a interpretação adotada, acrescenta-se no aresto em citação: “Para além destas limitações, decorrentes da própria Recomendação, há que ter em consideração, ainda, a partir de uma interpretação histórica e teleológica, o desejo e a intenção do Comité de Ministros do CE que aprovou a Recomendação, desejo e intenção expressos na respectiva exposição de motivos, através da indicação das situações em que se justifica a revisão, quais sejam:
a) pessoas condenadas a longas penas de prisão e que continuam presas quando o seu caso é examinado pelo TEDH;
b) pessoas injustamente privadas dos seus direitos civis e políticos;
c) pessoas expulsas com violação do seu direito ao respeito da sua vida familiar;
d) crianças interditas injustamente de todo o contacto com os pais;
e) condenações penais que violem os arts. 10.º ou 9.º, porque as declarações que as autoridades nacionais qualificam de criminais constituem o exercício legítimo da liberdade de expressão da parte lesada ou exercício legítimo da sua liberdade religiosa;
f) nos casos em que a parte não teve tempo ou as facilidades para preparar a sua defesa nos processos penais;
g) nos casos em que a condenação se baseia em declarações extorquidas sob tortura ou sobre meios que a parte lesada nunca teve a possibilidade de verificar;
h) nos processos civis, nos casos em que as partes não foram tratadas com o respeito do princípio da igualdade de armas”[30].

Foi neste sentido que subsequentemente se firmou a jurisprudência deste Supremo Tribunal.

Entendimento que não foi contrariado ou sequer questionado nos acórdãos de 6.10.2010, de 21.03.2012, de 26.03.2014, de 12.10.2016, de 20.02.2019 e de 21.01.20121.

No acórdão de 21-03-2012, o Supremo Tribunal de Justiça, conhecendo de recurso extraordinário de revisão em que a recorrente peticionava a rescisão da sentença condenatória e a consequente reabertura do processo no qual foi condenada, decidiu não autorizar a revisão da condenação por ter concluído que a decisão vinculativa do TEDH, que declarou ter o Estado Português violado o art.º 6º, n.º 1, da Convenção, ao não ter sido a arguida ouvida em audiência pública no Tribunal da Relação, não é nem inconciliável com a condenação nem suscita graves dúvidas sobre a sua justiça.

Sumariamente, no referido caso Moreira Ferreira c. Portugal, o TEDH por acórdão de 5.07.2011, declarou que a não audição da arguida pelo Tribunal da Relação, na audiência em fase de recurso, violou o artigo 6º, nº 1 da Convenção. Fundamentando expendeu que a Relação foi chamada “a pronunciar-se sobre várias questões relativas aos factos e à pessoa da requerente. Esta última levantava, nomeadamente e tal como havia já feito perante o tribunal de primeira instância, a questão de saber se a sua responsabilidade penal deveria ser considerada como diminuída, o que poderia ter tido influência importante na determinação da pena.

“Para este Tribunal, trata-se de uma questão que o Tribunal da Relação não poderia decidir sem apreciar directamente o testemunho pessoal da requerente, tanto mais que a sentença do Tribunal de Matosinhos divergia da perícia psiquiátrica, sem contudo enunciar os motivos dessa divergência tal como exige o direito interno (nºs 7, 9 e 23 anteriores). A reapreciação desta matéria pelo Tribunal da Relação deveria, pois, ter incluído nova e integral audição da requerente”.

O Supremo Tribunal de Justiça, justificou que “a revisão da sentença não pod[ia] ser autorizada, face à lei nacional, com o fundamento invocado pela recorrente, pois não há inconciliabilidade entre a sua condenação e a sentença do TEDH, para o efeito da referida al. g) do n.º 1 do art.º 449.º do CPP. O que há é uma inconciliabilidade entre o procedimento que a relação adotou na realização da audiência que antecedeu a decisão do recurso e aquele que o TEDH considerou indispensável para assegurar os direitos de defesa.

“Por outro lado, como o próprio TEDH refere, não é permitido fazer qualquer especulação sobre qual teria sido a decisão da relação se a condenada tivesse sido ouvida na audiência que antecedeu a decisão de recurso, designadamente, se a pena teria sido a que foi cominada ou uma outra diferente.

Assim, o TEDH excluiu, desde logo, que a sua decisão pudesse suscitar graves dúvidas sobre a condenação, (…)”.

Nesse caso, a condenada, inconformada dirigiu-se outra vez ao TEDH demandando novamente o Estado Português por violação do art.º 6º § 1. O Tribunal, aceitando a queixa, por acórdão de 11.07.2017, declarou-a infundada considerando que a decisão do STJ de negação da revisão não violou aquela norma da CEDH. Assim validando, ainda que implicitamente, a interpretação restritiva assumida naquele aresto e amparando a jurisprudência que nesta questão tem sido, desde então, uniformemente adotado por este Supremo Tribunal.

Para além do outro acórdão relatado pelo mesmo Juiz Conselheiro acima mencionado, também no acórdão de 13.10.2016, o Supremo Tribunal de Justiça, conhecendo de pedido de revisão da decisão condenatória do aí recorrente, com a reabertura do processo, com fundamento na inconciliabilidade com sentença do TEDH, decidiu indeferi-lo por ter concluído que do não conhecimento de recurso que o condenado havia interposto para o STJ não decorre que a condenação possa considerar-se materialmente injusta.

O TEDH, no caso Meggi Cala c. Portugal, por acórdão de 12.02.2016, - que fundamentava o pedido de revisão apreciado e decidido no aresto ora em citação - considerou que o Estado Português violou o art. 6 § da Convenção porque o STJ tinha feito uma “interpretação particularmente restritiva de uma norma processual e de não respeitar a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria … priva[ndo] o recorrente do seu direito de aceder a um tribunal com vista a que  o seu recurso de cassação fosse examinado”.

O TEDH concordou “não pode haver especulação quanto ao resultado do processo se o recurso de cassação do recorrente tivesse sido julgado procedente e examinado”.

O Supremo Tribunal de Justiça, não admitiu a reabertura do processo de condenação do recorrente, porque o direito interno apenas admite a revisão “quando existam graves dúvidas sobre a justiça de uma condenação”; porque a simples não admissão “do recurso por extemporâneo não suscita quaisquer dúvidas sobre a justiça da condenação do arguido relativamente aos factos criminais que praticou”, porque “o TEDH não determinou a reabertura do processo assim deixando ao estado português a liberdade para o decidir”; e porque “a restrição processual do recurso de revisão a simples sentenças condenatórias constitui um decorrência da limitação da violação do caso julgado a situações excecionais quando o arguido tenha sido condenado a sofrer uma qualquer pena através de uma decisão injusta quanto à materialidade da condenação”.

Neste conspecto, dúvidas não restam, pois, que este Supremo Tribunal, tem interpretado e aplicado a norma convocada pelo recorrente em consonância com os exatos termos da transcrita Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que tem mantido uniformemente esse entendimento e que não sobrevieram, entretanto, razões, designadamente, alteração legislativa, que possam justificar que aqui deva inverter-se.

Como o próprio TEDH tem realçado, constante e firmemente, não funciona como instância de recurso ordinário, Não anula atos jurídicos, nomeadamente decisões judiciais, dos Estados parte. Compete-lhe, isso sim, ainda que subsidiariamente – o dever primário incumbe aos Estados contratantes e, sobremaneira, aos respetivos tribunais -, velar pela observância dos direitos e liberdades fundamentais consagradas na Convenção. Verificando alguma violação desses direitos, cumpre-lhe declará-la e, sempre que entender conveniente, conceder uma satisfação adequada, condenando o Estado a reparar, pagando uma quantia monetária ao lesado. O Estado demandado está obrigado a executar a sentença do Tribunal. Mas, com a ressalva das situações em que a decisão do TEDH fixa os termos exatos da execução, o Estado parte tem alguma liberdade para escolher os meios existentes na sua ordem jurídica interna para dar execução à declarada violação de um direito fundamental. Em qualquer caso, deve cumprir a sentença vinculativa do TEDH de boa-fé, de acordo com o “espirito e as conclusões” da mesma e da Convenção que a decisão interpreta para cada situação concreta.

f) no caso:

i. a decisão no acórdão de 7.12.2011:

Os sujeitos processuais, incluindo o arguido aqui recorrente, impugnaram o acórdão da extinta …Vara Criminal de …, recorrendo para a 2ª instância.

O recorrente com a sua peça recursória juntou, em 8.11.2010, dois pareceres médicos.

Na resposta aos recursos de outros sujeitos processuais, requereu, em 11.01.2011, a junção ao processo de dois DVD’s com entrevistas que as estações de televisão … e … efetuaram aos assistentes BB e PP, depois de lido e publicado o acórdão condenatório de 3.09.2010, assim como o livro “Uma …”, também publicado supervenientemente pelo referido PP.

Mais adiante, em 1.04.2011, no contraditório ao parecer do Ministério Púbico, emitido na fase de recurso, o aqui recorrente requereu a junção de mais dois DVD’s com a gravação de entrevista efetuada (em 25.01.2011 – volvidos mais de 4 meses sobre a leitura do acórdão da 1ª instância-) pela estação televisiva … ao coarguido DD bem como a cópia da publicação de uma entrevista em 26.01.2011, que a revista … realizou ao mesmo arguido. E ainda cópia da publicação em 26 e em 30 de março de entrevistas dadas pelo assistente EE a dois jornais nacionais.

Mais tarde, - em 14.11.2011 -, veio, requerer a junção ao processo de entrevista às testemunhas FF e GG. E chamar a atenção para duas cartas existentes nos autos, uma datada de 8 e a outra de 12 de Abril de 2011, que teriam sido manuscritas e assinadas, respetivamente pelo coarguido DD, pelo o assistente EE e ainda pela testemunha GG, nas quais pediam para ser novamente interrogado – o coarguido – e inquiridos - o assistente e as testemunhas -, alegando que teriam mentido no decurso do processo e que pretendiam retratar-se e repor a verdade sobre os abusos sexuais.

Alegou ainda que a testemunha FF teria feito o mesmo pedido ao Tribunal através de carta datada de 3.09.20111, o qual teria sido entrevistado pelo jornal …, requerendo que a publicação da mesma, em … .09.2011, fosse junta aos autos.

O Tribunal da Relação de …, por acórdão de 7.12.2011, não admitiu a junção daqueles documentos (que mandou desentranhar e devolver ao apresentante, após trânsito da decisão), por considerar que haviam sido extemporaneamente apresentados. Aplicando o disposto no art.º 165º do CPP entendeu que o termo até ao qual os sujeitos processuais podem apresentar documentos é o do encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância, não os podendo apresentar na fase de recurso ainda que sejam documentos supervenientes.

Considerou também que “enquanto meios de prova, os documentos oferecidos pela defesa do arguido (…) são unicamente suscetíveis de demonstrar que, nas datas em causa (quando foram redigidos ou quando as entrevistas foram gravadas), o arguido DD e os assistentes BB, PP e EE, bem como as testemunhas FF e GG, afirmaram tudo aquilo que deles consta. Ou, dito por outras palavras, que eles escreveram em livro ou que eles apresentaram, em entrevista, perante órgãos de comunicação social, essa versão dos factos. Não mais do que isso. A prova do que se disse ou do que se transmitiu a um órgão de comunicação social não se confunde com a demonstração em juízo da ocorrência de um determinado facto. A prova em juízo pressupõe frequentemente a apreciação conjugada de vários meios de prova (muitos deles de cunho mais marcadamente objetivo), produzidos com observância de regras processuais próprias, com publicidade, na presença de todos os intervenientes processuais e com o cumprimento do princípio do contraditório, em que os interessados são confrontados com versões antagónicas dos factos. (…)”.  Concluindo, assim, que não se apresentavam como relevantes para a decisão do mérito da causa

Não admitiu, nos termos do artigo 430.º, n.º 1, do CPP, a reinquirição do coarguido DD, do assistente EE e das testemunhas de acusação FF e GG, uma vez que já tinham sido ouvidos, pelo tribunal recorrido e as sua audição não constituía novo meio de prova e, sobretudo porque, ainda que pudessem contrariar as declarações prestadas na audiência, o que disseram nas entrevistas a meios de comunicação social não invalidavam necessariamente as decisões proferidas e ainda porque, a prova em que se fundamentou a sentença recorrida não se apresentava insuficiente nem existiam contradições insanáveis entre a motivação e a decisão, nem erro notório na apreciação das provas, como era exigido pelo artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

Entendeu que o julgamento dos recursos devia fazer-se apenas em função dos meios de prova produzidos perante o tribunal recorrido.

ii.    decisão do Tribunal Constitucional:

O arguido recorreu dessa decisão para o Tribunal Constitucional deduzindo a inconstitucionalidade daquela interpretação, alegando violar as garantias de defesa e o direito ao recurso consagrados no artigo 32.º, n.º 1, bem como o direito a um processo equitativo previsto no artigo 20.º, n.º 4, ambos da Constituição da República.

O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 90/2013, de 7.02.2013, em linha com a sua jurisprudência – que cita -, decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido em que não é admissível, após a prolação da sentença da 1ª instância, a junção de documentos em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após aquele momento, só então sendo do conhecimento do arguido

Da motivação daquele aresto respiga-se: ------------------------

“a interpretação sindicada está diretamente conexionada com a perspetiva sobre os termos em que a lei ordinária define o âmbito dos recursos em processo penal, particularmente no que concerne à reapreciação da matéria de facto”.

“Em matéria penal, o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição que, relativamente à sentença condenatória, se traduz na necessidade de assegurar ao arguido a faculdade de pedir a sua reapreciação, quer quanto à matéria de direito, como à matéria de facto, por um tribunal superior.

Mas, o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, com direito à produção de novos meios de prova, designadamente os supervenientes, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando, face às provas produzidas na 1.ª instância”.

“Daí que o direito do arguido recorrer da sentença condenatória, na parte em que decidiu a matéria de facto, possa não contemplar a possibilidade do tribunal de recurso apreciar novas provas que o arguido apresente em sede de recurso, mesmo que estas sejam supervenientes. É que tal fundamento de recurso já não se situa em sede de apreciação da correção do julgamento da instância inferior que não teve a possibilidade de ponderar tais provas, visando antes a realização de um novo julgamento pelo tribunal de 2.ª instância, que também valore a prova apresentada já em sede de recurso.

“(…) é verdade que a solução de fechar as portas dos recursos ordinários à avaliação de novas provas, mesmo que elas sejam supervenientes à prolação das decisões recorridas, e ao remeter a sua apreciação para um momento posterior ao trânsito em julgado da decisão final, introduz limitações temporais à produção dessas provas, permitindo que o processo termine com uma condenação e se inicie o cumprimento da respetiva pena, sem que elas tenham sido valoradas.

Todavia, há que ter presente que a possibilidade de novos meios de prova serem valorados pelo tribunal de recurso, o que, não se esqueça, poderia também acontecer por iniciativa da acusação, introduziria sérias perturbações e dilações à tramitação da instância recursória, pondo em causa a estabilidade e celeridade da sua tramitação, apresentando-se como uma solução dificilmente praticável.

Daí que, existindo interesses e valores dignos de tutela que justificam que se fixe um marco temporal na tramitação processual para a apresentação de provas, que exclua a fase de processamento do recurso ordinário, o legislador tenha liberdade para compatibilizar os diferentes valores em jogo, impedindo a produção de novas provas em sede de recurso ordinário, mesmo que supervenientes, mas assegurando, designadamente, que as mesmas poderão fundamentar a dedução imediata de um recurso de revisão, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, com uma tramitação caracterizada pela celeridade e pela possibilidade de ser ordenada a suspensão do cumprimento da pena entretanto iniciada, como sucede com as regras do recurso extraordinário de revisão acima descritas. É uma solução de distribuição dos custos do sacrifício de valores que respeita as exigências de proporcionalidade e que preserva o conteúdo essencial daqueles.

Além disso, não está excluída também a possibilidade de documentos supervenientes, com determinadas características, poderem excecionalmente relevar em mecanismos como o reenvio para novo julgamento ou de renovação da prova, em caso de deteção dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, possibilidade que a decisão recorrida não deixa de encarar ao considerar que os documentos em causa não eram suscetíveis de “incontestavelmente influírem na decisão da causa”.

Em suma, existindo no regime processual penal, quanto à matéria em questão, outros mecanismos, cujo regime confere ao arguido uma suficiente exequibilidade do seu direito de defesa perante a superveniência de provas, e não tendo a interpretação sindicada afastado o exercício desses meios de reação, denota-se que tal interpretação não coloca em causa a garantia do direito de defesa do arguido, designadamente do direito ao recurso de uma sentença condenatória, nem do direito a um processo equitativo”.

iii.     acórdão que confirmou a condenação:

Entretanto, o Tribunal da Relação de …, apreciando os recursos dos sujeitos processuais, por acórdão de 23.02.2013, decidiu, quanto ao arguido ora recorrente e no que pode relevar para o vertente recurso extraordinário:

- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido (…) da decisão final, quanto à invocada nulidade parcial do acórdão recorrido, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, por não ter sido feita a comunicação prevista no art. 358.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, no que respeita à alteração não substancial dos factos constantes do ponto 6.7.2. do despacho de pronúncia, com os efeitos já determinados supra em U).

- Em tudo o mais, nega[r] provimento ao recurso interposto pelo arguido (…).

- Mant[er] as duas penas parcelares de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão impostas pela 1.ª instância ao arguido (…), pela prática de dois crimes p.p. pelo art. 172.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na pessoa do assistente QQ (factos dados como provados sob os pontos 106. a 106.25., com referência ao capítulo 4.3.1 do despacho de pronúncia).

- Em cúmulo jurídico destas duas penas parcelares, nos termos do disposto no art. 77.º, n.ºs 1 e 2, do CP, conden[ar] o arguido (…) na pena única de 6 (seis) anos de prisão.

Porque outros arguidos no mesmo processo interpuseram recursos ordinários, a condenação só se tornou definitiva, - com o trânsito em julgado da última decisão (a do Tribunal Constitucional) -, em 20 de Fevereiro de 2013.

iv.     a decisão do TEDH:

O arguido ora recorrente havia apresentou entretanto queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, onde foi recebida com o n.º 56…6/12.

Alegou, em síntese, que “o processo penal que culminou com a sua condenação em penas de prisão violou as exigências de equidade e de celeridade previstas no artigo 6.º da Convenção”.

Apreciando “a alegada violação do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção, baseada na recusa do Tribunal da Relação de … em admitir provas da defesa no âmbito do procedimento de recurso”, o TEDH, depois de centrar que “a questão que se coloca neste caso é a de saber se, por causa da recusa do Tribunal da Relação em aceitar, no âmbito do recurso que lhe estava confiado, estes novos elementos de prova e de ouvir as testemunhas que pretendiam retratar-se, os direitos do (…) Requerente, garantidos pelo artigo 6.º, n.º 3, alínea d), da Convenção, foram ignorados e se a equidade do processo foi violada” entendeu, por maioria de 4 contra 3 dos Juízes do respetivo coletivo, que “o Tribunal da Relação viu-se confrontado com elementos suscetíveis de abalar a sentença proferida pelo Tribunal de …, uma vez que estes elementos provinham do coarguido DD e de testemunhas que tinham acompanhado HH, à data dos factos, ao prédio da Avenida …, em …”. Salientou, além disso, “que, relativamente à parte do processo que incidia sobre os factos praticados na cidade de … e que foi reenviado à primeira instância, em cumprimento do acórdão do Tribunal da Relação de …, de 23 de Fevereiro de 2012, embora o Tribunal de … tivesse julgado que as retratações do coarguido DD e do assistente EE não eram credíveis, aceitou, em contrapartida, que as contradições deste último fragilizavam o seu depoimento, a tal ponto que julgou não provados os abusos que este dizia ter sofrido”. Entendeu que isso “demonstra que o Tribunal da Relação de … teria tirado partido de um exame das novas versões dos factos de DD, BB e PP, referentes ao prédio da Avenida …, em ….. Ao não querer ouvir DD, quando este o pedira expressamente e, ao não examinar o conteúdo das peças respeitantes a PP e a BB, o Tribunal da Relação privilegiou uma abordagem contraditória, que privou o (…) Requerente do exame destas retratações no que respeita aos factos ocorridos no prédio da Avenida …, em …, e, assim, de um processo equitativo”.

O TEDH, com a mesma maioria “mínima”, indagando sobre “se havia no direito interno outros meios que permitissem ao (…) Requerente obter o exame destas peças, constatou que “o Tribunal Constitucional referiu, no acórdão de 7 de Fevereiro de 2013, que o (…) Requerente podia interpor recurso de revisão perante o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art.º 449.º, n.º 1, alínea d) do CPP, com vista a obter o exame destes novos elementos de prova, em caso de dúvida séria sobre a justiça da condenação (…)”. Pareceu-lhe, “contudo, que as hipóteses de sucesso de semelhante recurso eram poucas. Com efeito, à luz da jurisprudência bem firmada do Supremo Tribunal de Justiça à data dos factos, a retratação de uma testemunha não podia ser considerada como um novo meio de prova, nos termos do artigo 449.º, n.º 1, alínea d) do CPP, para efeitos da reabertura de um processo penal (parágrafo 152, supra). O Supremo Tribunal de Justiça considerou, ainda, em diferentes acórdãos, que, para efeitos da reabertura de um processo penal, a inexatidão de um depoimento testemunhal sobre o qual se fundou uma condenação (…) devia, antes de mais, ser reconhecida como tal por uma decisão judicial, à luz da alínea a) e não da alínea d) do artigo 449.º, n.º 1, do CPP. Acrescentando que “mesmo que esta via estivesse realmente aberta ao Requerente, (…) tal procedimento implicava uma carga excessiva para as pessoas condenadas, tanto mais que o processo penal relevante para esse efeito dependia da iniciativa do Ministério Público.

Ao TEDH, com a mesma maioria, pareceu que nesse quadro, o “Requerente não tinha à sua disposição outros meios para fazer examinar estes novos elementos de prova na parte referente aos factos que ocorreram em … e que lhe estavam imputados.”

O TEDH, com a mesma maioria, expendendo não lhe caber “avaliar da relevância ou irrelevância dos meios de prova, competência que cabe aos tribunais internos, mas tendo em conta as observações que precedem, em particular, o facto de as declarações do coarguido DD terem fundamentado em parte a condenação do (…) Requerente, e que BB e PP acompanhavam HH à data dos factos (…)”, entendeu que “não pode deixar de concluir que, devido à recusa em ouvir DD e em examinar as peças relativas a BB e PP, os direitos de defesa do (…) Requerente sofreram uma limitação incompatível com as exigências do processo equitativo (ver mutatis mutandis, Orhan Çaçan c. Turquia, n.º 26437/04, § 41, 23 de Março de 2010). Advertindo que “esta conclusão não significa, em qualquer caso, que o Tribunal tome posição sobre a existência de abusos sexuais sobre as crianças da …”.

Em conformidade o TEDH, neste ponto, decidiu: --------

5. declarar(dit), por quatro votos contra três, que houve violação do artigo 6.º, n.ºs 1 e 3, alínea d) da Convenção, devido à recusa do Tribunal da Relação de … em admitir as provas de defesa no âmbito do recurso, no que respeita ao (…) Requerente.

O recorrente, ali primeiro Requerente, pediu ao TEDH “50 000 Euros a título de dano moral”.

Quanto a este pedido, o TEDH, por unanimidade, “record[ou] que, nos termos do artigo 41.º da Convenção, a finalidade dos montantes atribuídos a título de reparação razoável, é apenas o de oferecer uma compensação pelos danos sofridos pelos interessados, na medida em que constituem uma consequência da violação que não pode ser apagada. No presente caso, o Tribunal entende[u] que o dano moral sofrido pelo Requerente fica suficientemente reparado com a constatação da violação do artigo 6.º, n.ºs 1 e 3, alínea d), da Convenção, a que o Tribunal chegou”.

Em conformidade:

6. Declarou (dit), por unanimidade, que a constatação da violação constitui, em si mesma, reparação razoável bastante do dano moral sofrido pelo (…) Requerente.

Dos autos não consta que o Comité de Ministros tenha instaurado procedimento para execução daquela decisão do TEDH. O que somente pode ter sucedido por ter lido e concluído que carecesse ou carça de execução, uma vez que o Tribunal declarou, ipsis literis, que “o dano moral sofrido pelo Requerente fic[ou] suficientemente reparado com a constatação da violação”.

Tendo a sentença/acórdão do TEDH assumido definitividade em 26.09.2018, no entanto, apenas em 23.12.2020, ou seja, dois anos e cerca de 3 meses depois, foi interposto o vertente recurso extraordinário de revisão.

Contudo, tempestivamente, porque a nossa lei adjetiva não estipula qualquer prazo para a interposição de recurso extraordinário de revisão.

iii.  da inconciliabilidade com a condenação:

A sentença do TEDH que vem de transcrever-se e o citado acórdão de 7.12.2011 do Tribunal da Relação de … são, entre si, inconciliáveis, a respeito da admissão, na fase de recurso, da junção de documentos com entrevistas ao coarguido DD e aos assistentes BB e GG e a respeito da reinquirição de provas pessoais produzidas em julgamento, mas que, depois da decisão condenatória da 1ª instância, alteraram, em entrevistas a meios de comunicação social ou em livro, a narrativa efetuada na audiência de julgamento, perante o tribunal coletivo, apresentando, posteriormente e à margem do processo, outra versão diferente dos mesmos factos. Enquanto o acórdão do tribunal nacional – da TR… - decidiu não admitir, por não ser permitido juntar documentos depois do encerramento da audiência (art. 165º do CPP) e não se verificarem os requisitos legalmente estabelecidos para a reinquirição de provas pessoais produzidas na audiência de julgamento (art. 430º do CPP) -; na sentença do Tribunal Europeu declarou-se que aquela recusa violou o direito do arguido a um processo equitativo, (entendeu-se que o TR…“teria tirado partido de um exame das novas versões dos factos de DD, BB e PP [terá querido dizer PP], referentes ao prédio da Avenida …, em …”).

Numa interpretação estritamente literal[31] da norma da alínea g) do n.º 1 do art. 449º do CPP, como defende o recorrente, tanto bastaria para justificar a autorização da reabertura do processo, com a consequente revisão da decisão judicial que materializou a declarada violação da Convenção e, por conseguinte, do subsequente acórdão do Tribunal da Relação de … que, julgando o objeto do recurso também em matéria de facto, confirmou, em parte (na outra parte, anulou o acórdão da 1ª instância, por enfermar de nulidade), a decisão condenatória do arguido que ali, em recurso, estava em reapreciação.

Em tal interpretação – meramente literal -, a sentença do TEDH seria uma latae sententiae, que implicava a revogação, sem qualquer alternativa, do acórdão da Relação de … de 7.12.2011, com a inerente repercussão no subsequente julgamento do recurso. Mas, a ser assim, interpretava-se aquela norma processual penal no sentido de que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos – genericamente qualquer instância internacional -, permitiria mais um grau de recurso destinado ao reexame da regularidade e do mérito das decisões judiciais definitivas, funcionando como tribunal de instância, ainda que supranacional, assumindo poderes de cassação, podendo decretar a anulação, ispo facto, da decisão de um tribunal nacional. No caso, seria o referido acórdão de 7.12.2011 do Tribunal da Relação de …, por ter sido esta a decisão que violou o direito ao processo justo. O que, sendo assim, obrigaria a jurisdição nacional anular a decisão judicial nele exarada e a impor a sua substituição por outra que admitisse a produção, na audiência a realizar na fase de recurso, e a apreciação no correspondente julgamento, das provas documentais apresentadas e das pessoais requeridas, com a consequente anulação do processado subsequente, que haveria de tramitar-se observando aqueles ditames.

Interpretação que se rejeita, por inadmissível, segundo as regras da melhor hermenêutica jurídica[32] evidenciadas também nas razões acima expostas, fundamentadas tanto à luz da Constituição da República, como da letra e do espírito da Convenção e bem assim do regime adjetivo penal interno.

Conforme salienta a doutrina mais avalizada , a interpretação em processo penal ademais das regras do regime adjetivo comum, tem de considerar dois parâmetros específicos:  “é o primeiro o da relevância que, para uma interpretação axiológica e teleológica nos domínios da nossa disciplina, assume a consideração do fim do processo; é o segundo o da necessidade de, por ser o direito processual penal verdadeiro «direito constitucional aplicado», se tomar na devida conta o princípio da interpretação conforme à Constituição.[33]"

Rejeição amparada também na jurisprudência tanto do Tribunal Constitucional, como do próprio TEDH e igualmente do Supremo Tribunal de Justiça, conforme resulta dos arestos citados e que têm doutrina firmada no sentido de aquele Tribunal internacional continental europeu não tem competência revogatória das leis, nem anulatória de atos jurídicos ou de decisões judiciais de um Estado parte, mas apenas função jurisdicional declarativa, isto é, cabe-lhe verificar e, se constatada,  declarar uma violação de algum direito fundamental consagrado na Convenção. Uma vez sentenciada definitivamente a violação por parte de um ato jurídico ou de uma decisão judicial de qualquer Estado parte, este tem liberdade para escolher e adotar os meios de a eliminar se ainda estiver a ocorrer e/ou de reparar as consequências que produziu. Trata-se de uma obrigação de resultado consistente na restituição do lesado à situação anterior à violação se tal ainda for materialmente possível, ou em a apagar ou compensar de algum modo os efeitos que da violação tenham resultado para o lesado. Não exige sempre e necessariamente à reabertura do processo e a “desconstituição” da condenação.

Contramotiva o recorrido assistente e acentua-se na informação do Juiz titular do processo, que o acórdão da 1ª instância não violou, nem podia, fisicamente, violar o direito do arguido a um processo justo porque à data da sua prolação ainda não existia a versão diferente das provas pessoais que o recorrente pretendia que fossem ponderadas na julgamento do recurso, quer para fundamentar a reinquirição, na audiência a realizar nessa fase, das aludidas provas pessoais. De outra perspetiva, expressam que a decisão da instância internacional não declara que a violação constatada foi cometida no acórdão revidendo. Querendo dizer, extrai-se, que não haveria lugar que realizar novo julgamento em 1ª instância, como vem reclamado pelo recorrente, mas tão-somente novo julgamento do recurso.

É realmente evidente que o TEDH não podia declarar que o acórdão da 1ª instância cometeu aquela violação, desde logo porque a versão divergente apresentada (em entrevista e livro) pelas referidas provas pessoais ainda não existiam à data da prolação dessa decisão judicial interna. Não existindo tais versões à data, obviamente que não podia o Tribunal de julgamento considerá-las na decisão condenatória que proferiu em 3.09.2010. Mas também porque, mesmo que lhe tivessem sido apresentadas depois de lida e publicada aquela decisão – e note-se que as diferentes versões das mesmas provas são posteriores -, não podia anulá-la e reabrir a audiência de julgamento para a produção daquelas ou quaisquer provas. É que, com a leitura e publicação do acórdão esgotou-se, imediata e definitivamente, o seu poder jurisdicional quanto ao objeto do processo – art. 613.º n.º 1 do CPC, aplicável ex vi art. 4.º do CPP. A partir daí mais não pode que, oficiosamente ou a requerimento, corrigir erros de escrita ou de cálculo, lapsos manifestos ou esclarecer obscuridades ou ambiguidades de que possa padecer o seu acórdão, mas somente quando a correção não importe modificação essencial da fundamentação e da decisão – art. 380º do CPP.

A anulação daquele acórdão só podia ser decretada por tribunal superior em fase de recurso ordinário (como, em parte, sucedeu).

Pode ser objeto de revisão, mas apenas se for autorizada pelo Supremo Tribunal de Justiça em recurso extraordinário intentado para o efeito, verificado que seja algum dos pressupostos taxativamente estabelecidos na lei.

Um desses pressupostos é o previsto na al.ª g) do n.º 1 do art.º 449º do CPP. Esclarecendo aquela objeção salienta-se que desta norma não consta nem se pode extrair-se que a revisão que houvesse de autorizar-se teria de cingir-se à decisão judicial que incorporou a violação constatada e declarada pela instância internacional. Ao invés, permite que se autorize a revisão da condenação que, sendo inconciliável nos termos referidos, suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça. A condenação torna-se definitiva quando a decisão que a decretou transita em julgado. Destarte, se fosse autorizada, a decisão a rever seria a condenatória. 

Efetivamente, quando um pedido de novo julgamento é autorizado, significa geralmente que esse novo julgamento ou a reabertura da decisão inicial devem ser realizados pelo órgão jurisdicional que decidiu em primeira instância, uma vez que os factos são suscetíveis de ser reavaliados. O que se visa é um julgamento novo, em que a decisão final haverá de formar-se sobre a produção e apreciação das provas nele produzidas. Não se basta com a anulação da decisão intermédia ou final que na cadeia de recursos tiver incorrido na declarada violação do direito fundamental consagrada na Convenção.

No entanto, aquela oportuna observação tem o condão de precisar e, de passo, acentuar que, no caso, a violação declarada naquela sentença/ acórdão do TEDH cinge-se a um vício do procedimento. Adaptando-a ao regime processual penal interno, estar-se-á perante a declaração de uma nulidade processual relativa, como adiante se vai notar .

De resto, nota-se que o próprio TEDH teve o cuidado de advertir não lhe caber “avaliar da relevância ou irrelevância dos meios de prova, competência que cabe aos tribunais internos”.

Concluindo, por maioria “à tangente”, que a recusa de admissão, pela Relação, em fase de recurso, dos documentos/ suportes com a gravação das entrevistas e a recusa de reinquirição do arguido DD e de examinar as peças relativas a BB e PP, limitou, incompativelmente as exigências do processo equitativo, Contudo, no mesmo § daquele aresto, sem que se vislumbre qualquer outro sentido e alcance que não seja o de deixar testemunho expresso que naquela decisão não foi avaliada a conformidade do mérito da condenação com direitos fundamentais consagrados na Convenção, advertiu que tal “conclusão não significa, em qualquer caso, que o Tribunal tome posição sobre a existência de abusos sexuais sobre as crianças da …”, ou, de outra perspetiva, que a violação declarada assentou exclusivamente na constatação de um vício procedimental em um error in procedendo do qual não se pode extrair a conclusão de a condenação do arguido ter sido decretada por grave erro da atividade judiciante dos factos e do direito aplicável ou error in judicando.

Efetivamente, como assinalado e se repete, o TEDH não constitui uma quarta instância de recurso, não lhe competindo proceder a um reexame do caso, a uma nova apreciação deste, tal como foi configurado nas instâncias internas, mas sim verificar se, na apreciação a que estas procederam, foram observados os ditames da Convenção.

Entendimento que o TEDH reiterou, mais recentemente, no caso PAIXÃO MOREIRA SÁ FERNANDES c. PORTUGAL, (por sentença/ acórdão de 25 fevereiro 2020), sublinhando não lhe caber “lidar com erros de fato ou de direito eventualmente cometidos por uma jurisdição interna, exceto se e na medida em que possam ter infringido os direitos e liberdades garantidos pela Convenção (ver por exemplo: García Ruiz c. Espanha [GC], no 30544/96, § 28, CEDH 1999-I, e Perez c. França [GC], no 47287/99, § 82, CEDH 2004-I), no caso em que excepcionalmente, podem constituir uma “falta de equidade” incompatível com o artigo 6 da Convenção. Se esta disposição garante o direito a um julgamento justo, no entanto não regula a admissibilidade das provas ou sua avaliação, questão que é principalmente da competência do direito interno e dos tribunais nacionais. Em princípio, questões como o peso que os tribunais nacionais atribuem a um determinado elemento de prova ou a uma determinada conclusão ou apreciação que deviam conhecer escapam ao controlo do Tribunal. Este não tem de tomar o lugar de um juiz de quarta instância e não põe em causa, nos termos do artigo 6, § 1 da Convenção, a avaliação dos tribunais nacionais, a menos que as suas conclusões possam ser consideradas arbitrárias ou manifestamente desarrazoadas (ver, por exemplo, Bochan v. Ucrânia (no 2) [GC], no 22251/08, § 61, ECHR 2015, De Tommaso v. Itália [GC], no 43395/09, § 170, 23 de fevereiro de 2017 (extratos), Moreira Ferreira v. Portugal (no 2) [GC], no 19867/12, § 83, 11 de julho de 2017, Zubac c. Croácia [GC], no 40160/12, § 79, 5 de abril de 2018 e López Ribalda e outros v. Espanha [GC], nº 1874/13 e 8567/13, § 149, 17 de outubro de 2019).”
Reiterou igualmente “que, de acordo com a sua jurisprudência constante que reflete um princípio ligado à boa administração da justiça, as decisões judiciais devem indicar de forma suficiente os motivos em que se baseiam. A extensão desse dever pode variar em função da natureza da decisão e deve ser analisada à luz das circunstâncias de cada caso. Sem exigir uma resposta detalhada a cada argumento do reclamante, esta obrigação pressupõe que a parte no processo judicial possa esperar uma resposta específica e explícita aos meios determinantes para a solução do processo em questão (Moreira Ferreira, citado acima, § 84 e Ramos Nunes de Carvalho e Sá c. Portugal [GC], n.º 55391/13 e 2 outros, § 185, de 6 de novembro de 2018). A decisão fundamentada visa também demonstrar às partes que foram ouvidas. Também permite que este último conteste a decisão em questão” em recurso.
Tendo declarado que a decisão judicial interna ali em causa violou o art. 6 da Convenção “em razão da condenação do requerente em segunda instância sem apreciação direta dos elementos de prova”, expendeu não poder “especular sobre o resultado que o processo impugnado teria conduzido se a violação do artigo 6 § 1 da Convenção não tivesse ocorrido (ver, mutatis mutandis, Moreira Ferreira c. Portugal, no 19808 / 08, § 42, 5 de julho de 2011)”.
É entendimento deste Supremo Tribunal que, no nosso regime constitucional e na sua regulamentação adjetiva, as graves dúvidas sobre a justiça da condenação têm de ser qualificadas, tornarem insuportável, objetivamente, a manutenção na ordem jurídica e judiciária da uma condenação notoriamente equivocada. E que o erro judiciária patente e intolerável tem, em regra, de respeitar à questão da culpabilidade.
Tem também entendido que o elemento teleológico que se retira do sistema consagrado no art. 29º n.º 6 da Constituição da República e vertido no CPP, concretamente no art. 449.º do CPP, aponta claramente para a não admissibilidade de recurso de revisão se os novos factos ou meios de prova não se reportarem, ou não estiverem intimamente ligados, à facticidade que fundamentou o juízo de culpabilidade, ou, dito de outra maneira, se não respeitarem ao objeto do processo.
Já não assim quando a decisão revidenda enferma unicamente de nulidades, sobretudo das que resultam supridas pela definitividade resultante do trânsito em julgado. Para a deteção e correção ou suprimento destas está previsto o recurso ordinário.
Conforme sustentado no Acórdão de 8/10/2015, “o instituto da revisão de sentença, de matriz constitucional, enquanto mecanismo processual conflituante com o do caso julgado material, também constitucionalmente consagrado através do princípio non bis in idem, consubstancia um incidente excepcional, sendo que só perante situações especiais, rigorosamente previstas na lei, decorrentes de uma decisão injusta, é admissível a sua utilização, tendo em vista a reposição da verdade e a realização da justiça, verdadeiro fim do processo penal.[34]
Por sua vez, no Acórdão de 4.07.2017, sustentou-se que a reabertura ou reexame do processo interno “só se revela indispensável, perante a verificação de duas condições cumulativas, ou seja, a constatação pelo TEDH que a decisão interna que suscitou o recurso é, quanto ao mérito, contrária aos princípios fundamentais da CEDH, ou violadora do «iter» procedimental e das respetivas garantias processuais, e cuja gravidade seja manifesta e, simultaneamente, que a parte lesada continue a sofrer, na sequência da decisão nacional, consequências negativas, particularmente, graves, que não possam ser compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH, mas que, apenas, sejam suscetíveis de ser alteradas com o reexame ou a reabertura do processo, isto é, mediante a «restitutio in integrum»”.
E ainda, “sempre que a decisão do TEDH (…) condena o Estado Português a pagar ao recorrente uma determinada quantia, acrescida dos montantes que sejam devidos, a título de imposto, por danos materiais e por custas e despesas, rejeitando o pedido de reparação razoável relativamente ao restante, não se está perante duas decisões inconciliáveis, mesmo quando a decisão nacional tenha julgado que não houve violação dos direitos consagrados pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a decisão do TEDH haja declarado o contrário, em virtude de a parte lesada não continuar a sofrer, em consequência da mesma, consequências negativas, particularmente graves, porquanto as mesmas já foram compensadas com a reparação razoável arbitrada pelo TEDH, (…) não exigindo a reparação do direito violado, com vista à reposição integral do “status quo ante’, para além da compensação financeira determinada, a medida complementar da reapreciação do caso judicial.[35]

Em conformidade com o exposto e na linha da jurisprudência citada, entende-se que o legislador nacional, quis plasmar na norma adjetiva em apreço, a RECOMENDAÇÃO Nº R (2000) 2 do Comité de Ministros do Conselho da Europa. Neste conspecto, em caso de violação decorrente de vício procedimental - em virtude de erros ou falhas processuais -, a norma em análise deve interpretar-se com o sentido de a inconciliabilidade entre a sentença vinculativa do TEDH e a decisão condenatória nacional exige, para que se possa autorizar a revisão desta que aquela violação seja de uma gravidade tal que suscita fortes dúvidas sobre justiça da condenação.

No caso, a primeira hipótese da norma – interpretada com o sentido de que -, está arredada, incontestavelmente, uma vez que a sentença do TEDH cuidou de advertir que não só não lhe cabia como efetivamente não entrou na sindicância da validade e da valoração das provas produzidas na audiência de julgamento. Tarefa que - realça aquele Tribunal -, bem como decorre do texto e do espírito da Convenção - e a sua jurisprudência tem afirmado e reiterado -, atribuem, em regra, aos tribunais nacionais do Estado parte.

Em suma, da decisão do TEDH não decorre que a condenação nestes autos, do recorrente, seja, quanto ao mérito, contrária ao processo equitativo consagrado no artigo 6 n.ºs 1 e 3, alínea d), da Convenção.

A sentença do TEDH constatou e declarou que com a recusa do Tribunal de recurso “em ouvir DD e em examinar as peças relativas a BB e PP, os direitos de defesa do [arguido, aqui recorrente) sofreram uma limitação incompatível com as exigências do processo equitativo”. Acrescentando que “o Tribunal da Relação de … teria tirado partido de um exame das novas versões dos factos de DD, BB e PP, referentes ao prédio da Avenida …, em ….”.

À luz do regime adjetivo penal interno, a violação declarada pelo TEDH, incorrida pela decisão vertida no acórdão interlocutório de 7.12.2011, não configura, evidentemente, a utilização de uma prova proibida, nem qualquer das nulidades insanáveis ou nulidades da sentença U/acórdão catalogadas no CPP.

Configura, pode traduzir-se, a nulidade consistente na omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, prevista na parte final da alínea d) do n.º 2 do art.º 120º CPP.

Segundo Henriques Gaspar, “a «omissão posterior de diligências» que sejam essenciais refere-se às fases de julgamento e recurso”. Exemplificando refere que “são omissões «essenciais» que podem ocorrer (…) na fase de recurso v. g., a omissão da audição do arguido quando a questão a decidir exija uma «apreciação direta» do testemunho «pessoal» (cf. acórdão TEDH de 5 de julho de 2011, no caso Moreira Ferreira c, Portugal (…).[36]

Trata-se, incontestavelmente, de um vício do procedimento ou vício da atividade processual, ou vício formal, por contraposição aos “vícios substanciais, que respeitam ao conteúdo da decisão, como, por ex. os cometidos na apreciação da matéria de fundo.[37]

Para Henriques Gaspara nulidade constitui o vício do ato a que faltam requisitos essenciais. É um ato com defeitos (…)”.

“(…) a construção e as finalidades do processo, em que os atos estão ordenados em sequência e ponderados à realização de determinada finalidade no processo supõem uma ligação ordenada e coerente em interdependência[38].

Há atos processuais cuja inobservância afeta irremediavelmente a validade e integridade do processo.

Não assim a postergação de outros, daqueles que constituindo também, mas apenas vício procedimental, todavia a lei não fulmina com a nulidade insanável.

Assente que o TEDH constatou e declarou que no processo, foi cometida, em fase de recurso, aquela nulidade, impõe-se apreciar e decidir se tal vício do procedimento é de uma gravidade tanta que faça suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação do recorrente, que torne intolerável a sua manutenção na ordem jurídica.

A resposta, conforme sublinham vivamente os sujeitos processuais recorridos e informa o Tribunal a quo, está claramente ínsita na própria sentença do TEDH.

Conforme assinalado e se repete, o Tribunal Europeu, por maioria à “tangente”, declarou que a recusa em admitir as provas documentais e pessoais que indica e a subsequente omissão de produção em audiência, a realizar nos termos do art.º 423º do CPP, limitou, incompativelmente, o direito de defesa do arguido. Mas, logo advertiu, de resto, que tal “conclusão não significa, em qualquer caso, que o Tribunal” tenha assim tomado “posição sobre a existência de abusos sexuais sobre as crianças da …”.

Nota-se que O TEDH entendeu exarar essa advertência no segmento da sua sentença que versa sobre aquela violação – entre as várias -, que o recorrente alegou, afirmando, logo de entrada – como agora repete -, além do mais, que o processo, na parte que lhe respeita, não passava de uma efabulação, principalmente de um dos assistentes.

A clara expressão de que a violação declarada não é de tal gravidade que suscite graves dúvidas sobre a justiça da condenação foi, pois, firmada pelo próprio TEDH quando decidiu dizer “por unanimidade, que a constatação da violação constitui, em si mesma, reparação razoável bastante do dano moral sofrido pelo” aqui recorrente, por ter entendido “que o dano moral sofrido pelo Requerente fica suficientemente reparado com a constatação da violação do artigo 6.º, n.ºs 1 e 3, alínea d), da Convenção, a que o Tribunal chegou”.

Deste modo, o TEDH deixou patenteada a relatividade do grau de gravidade do vício procedimental para o julgamento do objeto do recurso e, consequentemente, para que possam fundamente suscitar-se dúvidas graves sobre a justiça da condenação do recorrente.

Conforme observado, diz o TEDH que o TR…, na decisão do recurso, teria “tirado partido de um exame das novas versões dos factos de DD, BB e PP”.

Contudo, verifica-se que o TR…, ademais de não admitir as provas documentais requeridas, extemporaneamente, pelo arguido aqui recorrente, considerou também que os documentos em causa não eram suscetíveis de “incontestavelmente influírem na decisão da causa”, que as entrevistas dadas aos meios de comunicação e livro escrito, ainda que pudessem contrariar as declarações prestadas na audiência de julgamento não invalidavam necessariamente a condenação do arguido. Ou seja, o Tribunal de recurso não deixou de ponderar o valor probatório da diferente versão das mesmas provas pessoais e de concluir pela insusceptibilidade de poderem desamparar a decisão condenatória.

Analisando detalhadamente motiva-se que “os documentos oferecidos pela defesa do arguido AA são unicamente susceptíveis de demonstrar  que, nas datas em causa (quando foram redigidos ou quando as entrrevistas foram gravadas) o arguido DD e os assistentes BB, CC e EE afirmaram tudo aquilo que deles consta. Ou dito por outras palvras, que eles escreveram o livro ou que eles apresentaram, em entrevista, perante órgãos de comunicação social, essa versão dos factos.

Mas não mais que isso. A prova do que se disse ou do que se transmitiu a um órgão de comunicação social não se confunde com a demonstração em juízo de uma ocorrência de um determinado facto. A prova em juízo pressupõe frequentemente a apreciação conjugada de vários meios de prova (muitos deles de cunho mais marcadamente objetivo), produzidos com observância de regras processuais próoprias, com publicidade, na presença de todos os intervenientes processuais e com cumprimento do princípio do contraditório em que os interessados são confrontados com versões antagónicas.”

Em suma, o Tribunal da Relação, naquela decisão interlocutória, entrando na valia daqueles elementos de prova conclui que eram manifestamente insuscetíveis de influir no julgamento do mérito do recurso do arguido.

O TEDH, embora advertindo não lhe competir substituir-se aos tribunais nacionais na avaliação das provas, é certo que por uma maioria “`mínima”, não deixou sopesar – como vivamente realçam os votos da minoria que votou vencida - que a admissão e ponderação dessas provas poderia ter beneficiado o julgamento do recurso. Declaração que fez assentar não em um mero juízo abstrato ou de princípio extraído do direito fundamental em si mesmo que declarou violado, mas de uma avaliação concreta, comparativa com o resultado da valoração de prova, idêntica, produzida na audiência de julgamento que se realizou no processo resultante da separação deste quanto aos factos de que o arguido vinha acusado de ter cometido na casa de … .

Os três juízes “vencidos” salientaram estar “bem assente que, nos casos relativos à produção de prova, os tribunais nacionais gozam de uma larga margem de apreciação. O artigo 6.º, n.º 3, alínea d), atribui-lhes sempre, em princípio, a tarefa de julgar da utilidade de um meio de prova testemunhal. Este artigo não exige a convocação nem o interrogatório de todas as testemunhas de defesa. Assim, não cabe evidentemente ao Tribunal assumir o papel de um tribunal de quarta instância, nem substituir pela sua própria avaliação aquela que foi feita pelas instâncias nacionais.”

Seja como for, como pertinentemente se reforça nas peças dos sujeitos processuais e realça a informação do Tribunal a quo, a retratação superveniente de um coarguido, de um ofendido ou de uma testemunha, não é, normalmente, suficiente para, sem mais, suscitar graves dúvidas sobre a justiça da decisão condenatória em que tenha sido utilizada como elemento de prova. Pelo menos, enquanto uma sentença os não condenar por ter julgado falsas as declarações ou a falsidade do depoimento que aqueles tiverem prestado na audiência de julgamento da qual resultou a condenação da decisão a rever.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal, entende-se que a alteração do depoimento prestado por uma testemunha no julgamento, só pode fundamentar autorização de revisão de sentença nos termos da al. a) do art. 449.° do CPP, depois de uma sentença transitada em julgado ter considerado falso tal meio de prova[39].

Assim mesmo, no recente acórdão de 27.05.2021, sustenta-se que “a revisão com fundamento em depoimento falso, só é viável se uma outra sentença, transitada em julgado, tiver considerado falso esse meio de prova (art. 449.º1/a, CPP) (…). A falsidade, a existir, tem de ser declarada pelo meio próprio, uma sentença transitada em julgado, dado que, nestas situações, por razões facilmente apreensíveis, a exigência do legislador é qualificada.[40]

 Decorre da Constituição da República e do disposto no art.º 449º do CPP que apenas em situações excecionais e justificadas “somente em circunstâncias substantivas e imperiosas (substantial and compelling)” pode-se relativizar-se a sentença penal transitada em julgado para que o recurso de revisão não se transforme em “apelação de apelação disfarçada” (appeal in disguise)”.

Também nas situações previstas na norma adjetiva convocada pelo recorrente a revisão só se revela indispensável quando a violação do direito fundamental consagrado na Convenção, constatada e declarada pelo TEDH, decorrente de vício do procedimento em que tiver incorrido a decisão condenatória interna, inconciliável com a sentença daquele, seja de tal importância, que não seja suportável manter na ordem jurídica a condenação do arguido por se suscitarem sérias e graves dúvidas sobre a sua justiça.

O que, segundo o próprio TEDH, não se verifica no caso. Não decorre da letra nem do espírito das conclusões da sentença do Tribunal Europeu que a não reinquirição, na fase de recurso, do coarguido DD e dos assistentes BB e GG, influiu com tanta importância na decisão do TR…, de 23.02.2012, de confirmar, parcialmente – quanto aos factos e crimes cometidos na casa da … em … -, o acórdão da 1ª instância, de 3.09.2010, que essa “omissão de diligência”, só por si ou, como bem se realça no acórdão da Relação de 7/12/2011, confrontada com as abundantes e diversificadas provas produzidas em julgamento, seja minimamente suficiente para suscitar dúvidas sérias, graves, qualificadas sobre a justiça da condenação por tais factos e crimes, em suma, que seja gravemente injusta.

Conclui-se assim que a sentença do TEDH sendo, evidentemente, vinculativa do Estado Português e inconciliável com a decisão de não admissão de elementos de prova supervenientes apresentados na fase de recurso, contudo, não é inconciliável com a condenação do arguido porque não constatou que os acórdãos que decidiram o mérito da causa tenham violado qualquer direito fundamental consagrada na CEDH e o vício procedimental constatado no acórdão interlocutório de 7.12.2011 que aquela sentença declarou violar o direito do recorrente a um processo penal equitativo não é de entidade tal que pudesse ter influído decisivamente no julgamento do recurso e, consequente, não é de molde a poder suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação do arguido, aqui recorrente nos termos confirmados pelo acórdão de 12.02.2012 do Tribunal da Relação de … . Pelo que não se verifica o fundamento invocado pelo recorrente para que pudesse autorizar a revisão da sua condenação neste processo penal.

Porque o vício procedimental em que incorreu a decisão de recusa de reaudição do coarguido DD e de BB e GG, vertida no acórdão interlocutório de 7.12.2011, do TR…, embora violando, conforme declarou o TEDH, o direito do arguido a um processo penal equitativo, não é de molde a suscitar duvidas séria e graves, isto é, qualificadas, sobre a justiça da condenação, fica prejudicada a apreciação do segundo e cumulativo requisito apontado pela jurisprudência e pela doutrina citadas – em linha com a Recomendação do Comité de Ministros -, consistente em o lesado continuar a sofrer consequências particularmente graves em consequência da condenação.

De qualquer modo, a não verificação no caso deste pressuposto está claramente evidenciado na sentença do TEDH. Não só recusou a atribuição de qualquer indemnização ao recorrente, como fundamentou que “no presente caso, o Tribunal entende que o dano moral sofrido pelo Requerente fica suficientemente reparado com a constatação da violação do artigo 6.º, n.ºs 1 e 3, alínea d), da Convenção, a que o Tribunal chegou como no dispositivo.” E, em perfeita conformidade, no dispositivo, declarou (“dit”) “por unanimidade, que a constatação da violação constitui, em si mesma, reparação razoável bastante do dano moral sofrido pelo Primeiro Requerente”, aqui recorrente.

Abundante parece ter de dizer-se que se a declarada violação do direito do arguido, recorrente, a um processo penal equitativo, devido à recusa em ouvir, na fase de recurso, o coarguido DD e em examinar as peças relativas a BB e PP, fica suficientemente e razoavelmente reparada com a constatação daquela violação dos direitos de defesa do mesmo, é porque se entendeu que nenhuma outra providência reparatória se impunha adotar. Decorre, assim, daquela sentença do TEDH a desnecessidade da reabertura do processo para que se realizasse a novo julgamento.

Se o TEDH tivesse entendido que o lesado continuava a sofrer consequências particularmente graves decorrentes da condenação, não deixaria de lhe arbitrar uma indemnização e, certamente que não declarava que a declaração da constatação da violação constitui, no caso, reparação razoável e suficiente.

Em consonância com o entendimento e a decisão do TEDH conclui-se também que o requisito ora em apreço não se verifica.

Não resultando preenchidos os pressupostos exigidos pela norma do art.º 449º n.º 1 al.ª g) do CPP, improcede a pretensão rescindente da condenação, formulada pelo recorrente nestes autos.

Em duas breves notas finais importa salientar, em primeiro lugar, que embora o recorrente junto 121 (cento e vinte e um documentos), incluindo as gravações com as entrevistas a que se refere, contudo, o único fundamento que invoca em amparo do pedido de revisão é o previsto na alínea g) do n.º 1 do art.º 449º do CPP. Estão aqui, por conseguinte, fora de apreciação qualquer dos restantes fundamentos catalogados naquela norma adjetiva, designadamente o constante da alínea d) consistente na descoberta de novos meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. Mas também o previsto na alínea a) do mesmo preceito legal, consistente na falsidade, judicialmente certificada, de meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão condenatória.

Apenas porque este último fundamento é aflorado tanto no acórdão do Tribunal Constitucional como na sentença do TEDH, referenciando-se aí, ora como não impeditivo do trânsito em julgado da decisão condenatória e do início da execução da pena aplicada, ora também como ónus excessivo a cargo do condenado e ainda porque dependente da atuação do Ministério Público, não pode deixar de notar-se que é praticamente seguro que, numa tramitação normal e corrente, se é que não foi instaurado oficiosamente inquérito, caso tivesse denunciado pelo recorrente, já há muito que os assistentes e testemunhas que alteraram substancialmente a versão dos factos que relataram na audiência de julgamento, estariam condenados ou absolvidos, isto é que o correspondente processo penal estaria findo. E, em caso de condenação daqueles por falsidade de declaração ou de testemunho, o aqui recorrente podia valer-se do fundamento em causa para requerer a revisão da decisão que o condenou neste processo caso a declaração ou depoimento falso tivesse sido o prestado na audiência de julgamento. Quanto à referida dependência da atuação do Ministério Público deve rememorar-se que no sistema português, o ofendido pode constituir-se assistente e em caso de arquivamento do inquérito, requerer a abertura da instrução. E, havendo pronúncia, sustentá-la em julgamento e, quando for o caso, impugnar, em recurso, decisão absolutória.

E salientar, em segundo lugar, que o recurso de revisão não é, por natureza ou em regra, salvo quando o fundamento é o da alínea d) do art.º 449º n.º 1 do CPP, um procedimento no qual se deva ou possa entrar na avaliação de elementos de prova.

No caso, o recorrente junta um acervo muito considerável de elementos – 121 documentos -, entre os quais se incluem os que apresentou na fase de recurso (os demais são cópias de atos do processo, não comportando, por isso qualquer novidade, ou então são decisões judiciais nele ou sobre ele proferidas). Todavia, o único fundamento que invoca é o da alínea g) daquele artigo.

Assim, não pode o Supremo Tribunal entrar na valia de tais elementos para ajuizar se são ou não são de densidade tal que possam suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação do recorrente.

Por outro lado, verifica-se que não são novos elementos de prova no sentido de não terem sido conhecidos no processo e pelo tribunal. Ao invés, foram nela apresentados. E trata-se de provas que foram produzidas na audiência de julgamento mas que terão alterado, posteriormente. o relato dos factos que ali efetuaram. Acresce que tendo sido apresentados na fase de recurso, o Tribunal da Relação considerou-os e concluiu que não eram “incontestavelmente” suficientes para poderem influir decisivamente no julgamento do recurso.

Pese embora o considerável esforço do recorrente para que aqui se reexamine o seu caso, este recurso extraordinário não é o meio processual próprio e ao Supremo Tribunal não cabe sindicar o julgamento dos factos a que procederam as instâncias. Aqui e neste processo, conforme o recorrente delimitou, está em causa apreciar e decidir se a inconciliabilidade da sentença do TEDH com a decisão vertida no acórdão de 7.12.2011 e a projeção desta no julgamento do recurso pelo acórdão de 23.02.2012, suscita dúvidas qualificadas sobre a justiça da condenação do recorrente. E ainda se, mesmo que suscitasse dúvidas de tal entidade, as consequências dessa hipotética injustiça eram tão insuportáveis que haveria que desconstituir a condenação, reabrir e proceder a novo julgamento.

O que, conforme se extrai da sentença do TEDH não é o caso.
g) da inconstitucionalidade suscitada:

O recorrente deduz a inconstitucionalidade material da norma do art. 449.º, n.º 1, al. g), do CPP, quando interpretada no sentido de que a condenação do Estado Português pela violação do direito a um processo equitativo, nos termos do art. 6.º §§ 1 e 3 d) da CEDH, por o tribunal de recurso não ter admitido novas provas cuja apreciação foi requerida pela defesa, não impõe, por si só, o deferimento do pedido de revisão, por violação das garantias de defesa consagradas no art. 32.º, n.º 1 da CRP.

Para tando argumenta em síntese conclusiva que “se o TEDH entende que as falhas processuais ocorridas relevam para os efeitos da condenação, nessa sede, do Estado-membro, não se compreenderia, à luz daquelas garantias de defesa que a CRP consagra, que a vítima do erro não tivesse direito a um novo e equitativo julgamento no quadro de um recurso de revisão. É que o direito a produzir a prova pertinente é um direito fundamental da defesa”.

Em suma, se bem interpretamos a alegação do recorrente, a norma em causa seria inconstitucional por fazer depender a revisão da condenação de qualquer outro pressuposto adicional à inconciliabilidade entre a sentença do TEDH e a decisão judicial interna. Dito de outra maneira, a inconstitucionalidade radicaria na exigência acrescida de a inconciliabilidade suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Antes de mais, conforme decorrer da interpretação acima exposta, entende-se que se que a inconciliabilidade respeitar diretamente ao mérito da causa, a medida a adotar pelo Estado parte, passa, em regra, se não mesmo necessariamente, pela restitutio in integrum, a não ser que o TEDH declarar a suficiência e razoabilidade de outra modalidade de reparação.

Quando a inconciliabilidade resultar de vício do procedimento, como é o caso, a não inconstitucionalidade da questão processual subjacente foi já apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 9../2013, acima citado e amplamente transcrito. Versando exatamente sobre a concreta questão colocada pelo recorrente consistente em saber se a não admissão, na fase de recurso, da superveniente junção de documentos e da produção de novas provas era ou não conforme ao processo equitativo e ao direito de defesa do arguido, o órgão judicial que tem a última palavra em matéria de controlo da conformidade dos regimes e das espécimes normativas com a nossa Lei Fundamental decidiu (sublinhamos para realçar): “não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido em que não é admissível, após a prolação da sentença da 1.ª instância, a junção de documentos em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após aquele momento, só então sendo do conhecimento do arguido”.

Incidindo sobre os requisitos que demanda o processo equitativo expende-se no citado aresto:

O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada;(c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94).

O direito de ação ou direito de agir em juízo terá de efetivar-se através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.

A jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o conceito de processo equitativo essencialmente através dos seguintes princípios: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de ação e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiado exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 415 e 416, do vol. I, da 4.ª edição, da Coimbra Editora).

A exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não deixa de permitir uma ampla liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. Contudo, impõe, no seu núcleo essencial, que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.

É certo que a norma agora colocada em crise é outra, a da alínea g) do n.º 1 do art.º 449º do CPP, quando interpretada com o sentido adotado, isto é, de ao requisito da inconciliabilidade acrescerem, quando a violação contatada decorre de vicio procedimental, os requisitos da suscitação de qualificadas dúvidas sobre a justiça da condenação e ainda de o lesado continuar a sofrer consequências particularmente graves decorrentes da condenação.

Não se vislumbra de que modo a interpretação normativa contestada pelo recorrente pode violar o direito fundamental ao processo penal equitativo.

Ao invés, a dispensa da exigência de que a inconciliabilidade suscite dúvidas qualificadas de graves, sobre a justiça da condenação, designadamente quando a violação declarada na sentença da instância internacional assenta na constatação de um erro procedimental, criaria um regime especialíssimo e desigual para a revisão de sentenças/ acórdãos condenatórios, conforme a inconciliabilidade decorrer de sentença de tribunal internacional ou de tribunal nacional.

As normas das alíneas c) e g) não são assim tão substancialmente diferentes que permitam justificar que no caso da primeira se continuasse a exigir que a inconciliabilidade dos factos provados numa e em outra das sentenças internas terá de suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação, enquanto no para a segunda, tal seria, inexigível, na tese do recorrente. Não vêm alegadas e não se vislumbram razões substanciais para que a lei pudesse estabelecer diferentes requisitos para sentenças inconciliáveis, simplesmente em razão da instância que as profere.

O requisito da injustiça da condenação, tem assento na Constituição – art.º 29º n.º 6 - e vale, ou deve ser aplicável a qualquer pedido de autorização de revisão de sentença transitada em julgado.

A Constituição da República reconhece o direito à revisão da condenação injusta. Não também de sentenças inconciliáveis. Não distinguindo em função do tribunal de onde promanam.

A tese do recorrente redundaria numa clara afronta do princípio da igualdade perante a lei, também consagrado na Constituição da República – art.º 18º. O condenado obteria tratamento de favor pela simples razão de a inconciliabilidade das sentenças resultar de uma decisão de uma instância internacional relativamente aqueles em que a inconciliabilidade resultar de duas sentenças nacionais, ou até de duas sentenças de diferentes Estados que sejam parte da Convenção.

Por outro lado, conforme realçado e aqui se repete, o recurso de revisão é um mecanismo extraordinário de “desconstituição” de uma sentença que goza da proteção constitucional do caso julgado. Mecanismo que somente encontra justificação nos casos de decisão notoriamente errada e profundamente injusta.

A dispensa do pressuposto da suscitação de dúvidas sérias e graves sobre a justiça da condenação, retiraria sentido e utilidade ao recurso extraordinário de revisão. A proceder a tese do recorrente, nesta situação, bastaria um mecanismo de reabertura do processo semelhante ao previsto no art.º 371º-A do CPP. Mais não seria necessário que o condenado requeresse ao tribunal a reabertura da audiência para suprimento do vicio procedimental constatado. Exemplificando com o caso, então, como nota o assistente e refere a informação do Juiz, bastaria que o arguido requeresse a reabertura do processo para que o Tribunal da Relação, em audiência na fase de recurso, reparasse a violação declarada pelo TEDH, ouvindo o coarguido DD e examinasse as provas relativas ao BB e ao PP. A recurso extraordinário aqui em apreço seria abundante e a intervenção do STJ uma mera formalidade.

Nessa interpretação, o TEDH passava a funcionar como instância de reexame e de anulação das decisões nacionais.

Não é assim. Com as palavras de Santos Cabral, rememora-se que “o contencioso dos direitos do homem [perante do TEDH] é um contencioso de legalidade e não um contencioso de anulação”, “não anula [ipso facto] actos jurídicos de direito interno, não modifica ou revoga normas jurídicas internas, não funciona como instância de cassação das decisões dos tribunais internos dos Estados[41]. Da sentença do TEDH inconciliável com a decisão judicial interna não decorre, como consequência direta e necessária, a anulação desta, designadamente quando a violação declarada pela instância internacional assenta na constatação de um vício do procedimento que, não sendo de gravidade tal, não suscite graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

A interpretação normativa questionada pelo recorrente não afronta o direito ao processo penal equitativo, com a extensão que lhe é conferido pelo Tribunal Constitucional - cfr. acórdão citado em último lugar - ou qualquer outro direito fundamental consagrado na nossa Carta Magna.

Improcede, por conseguinte, a deduzida inconstitucionalidade da norma do art.º 449º n.º 1 al.ª g) do CPP, na interpretação adotada neste acórdão.

Em conformidade com o exposto, inverificados os pressupostos exigidos pelo art.º 29º n.º 6 da Constituição e pela norma do art.º 449º n.º 1 al.ª g) do CPP – que não enferma de inconstitucionalidade – impõe-se denegar a peticionada autorização da revisão da condenação do recorrente, improcedendo, por conseguinte, o vertente recurso extraordinário.

C. DECISÃO:

Termos em que o Supremo Tribunal de Justiça, em conferência da Secção Criminal, acorda em: ----
a)  Negar a revisão da condenação do recorrente AA;
b) Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs.


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Lisboa, 2 de dezembro de 2021

Nuno A. Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

António Pires da Graça (Juiz Conselheiro presidente da secção)

_________
[1] Tradução: “por causa da recusa do Tribunal da Relação de Lisboa em admitir as provas da defesa no âmbito do recurso, naquilo que diz respeito ao primeiro requerente”.

[2] Nos termos do art. 449º do CPP, para efeitos de revisão “à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo”.

[3] Noções Elementares de Processo Civil, pag. 335.

[4] Referencia-se nos arts. 84º, 371º-A, quanto aos recursos extraordinários. máxime: nos art,s, 438º n.º 1, 446º n.º 1, 449º, 451º n.º 3 – e em outras da fase de execução da condenação penal (máxime: arts. , 467º n.º 1, 477º, 489º, 496º, 500º, 502º).

[5] A Teoria do Concurso em Direito Criminal (reimpressão), Almedina, 1983, pág. 302.

[6] Direito Processual Penal, 1º vol. pag 44.

[7] Código de Processo Civil Anotado, 1984 (reedição), volume V, pág. 158.

[8] Eduardo Correia, ob citada, pag. 403.

[9] Curso de Processo Penal, III, edição da AAFDL, 1963, págs. 35.

[10] J. H. Santos Cabral, “A relação entre as decisões dos tribunais internacionais e as decisões dos tribunais supremos-efeito directo e reabertura do processo”, pag. 9 e pag. 17.

[11] Sentencia de 22/11/1996.

[12] DRE II série de 13/12/2000.

[13] J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4º ed., pag. 497.

[14] Extraordinário é o que é fora do comum, raro, que sucede em circunstancias excecionais.

[15] A Influência do CEDH no diálogo interjurisdicional, Revista JULGAR nº7, pag 49.

[16] A relação entre as decisões dos tribunais internacionais e as decisões dos tribunais supremos-efeito directo e reabertura do processo.

[17] Acórdão de 29.01.2014, proc. 212/04.8PBCLD-B.S1.

[18] Adotada em 19 de janeiro de 2000, na 694ª reunião de Delegados dos Ministros.

[19] Órgão político do Conselho da Europa, a quem compete velar pela execução das sentenças definitivas do TEDH, que os Estados Contratantes têm obrigação de observar.

[20] Acórdão de 11.07.2017.

[21] Por ex.: artigo 954º n.º 3 da Ley de Enjuiciamento Criminal de Espanha: “Poderá solicitar-se a revisão de uma resolução judicial firme quando o Tribunal Europeu de Direitos Humanos tenha declarado que essa resolução foi decretada com violação de algum dos direitos reconhecidos na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais e seus Protocolos, sempre que a violação, pela sua natureza e gravidade, envolva efeitos que persistam e não possam cessar de nenhum outro modo que não seja mediante esta revisão”.

[22] Por ex. artigo 622-I do Code procédure pénale Francês: “A revisão de uma decisão penal definitiva pode ser requerida em benefício de qualquer pessoa condenada por um crime, desde que resulte de uma sentença proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de que a condenação foi pronunciada em violação da Convenção Europeia para a Proteção de Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais ou seus protocolos complementares, desde que, pela sua natureza e gravidade, a infracção apurada acarreta, para o condenado, consequências nefastas a que a justa satisfação concedida em aplicação do artigo 41 da citada convenção não poderia pôr fim. A revisão pode ser solicitada no prazo de um ano após a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O reexame de um recurso de cassação pode ser requerido nas mesmas condições.

[23] Por ex: artigo Artigo 363ª do Código de Processo penal Austríaco: “1. Se for estabelecido em uma sentença do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que houve uma violação da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (Bundesgesetzblatt [Diário Oficial] nº 210/1958) ou de um de seus Protocolos por decisão ou ordem de um tribunal criminal, deve ser realizado um novo julgamento a pedido, na medida em que não se possa excluir que a violação possa ter afetado o conteúdo da decisão de um tribunal criminal de forma prejudicial para a pessoa em causa” – Apud queixa n.º 27569/02, by Franz FISCHER c. Austria.

[24] De uma instância judiciária internacional com competência em matéria penal (máxime: o TEDH, o TIJ, o TPI, o TJUE).

[25] Art. 954º n.º 3 do Código de Enjuiciamento citado, parte final:

[26] Acórdão de 11.07.2017.

[27] Acórdão de 11.07.2017.

[28] Em Espanha, ademais de circunscrever a legitimidade ao requerente da decisão do TEDH, estabelece o prazo de um ano para requer a revisão, contado da data em que a decisão daquele Tribunal se tornou definitiva.

[29] Proc. 157/05.4JELSB-O.S1, in www.dgsi.pt.

[30] Proc. n.º 55/01.OTBEPS-A.S1; no mesmo sentido e com as mesmos termos, Ac. de 15/11/2012, proc. n.º 23/04.0GDSCD-B.S1 , ambos do mesmo relator, in www.dgsi.pt.

[31] O elemento literal ou gramatical, são as palavras em que a lei se exprime, constituindo o ponto de partida e o limite da interpretação.

Essencialmente tem a função, negativa ou de exclusão, de excluir interpretação que não tenha qualquer expressão no texto da norma (teoria da alusão) e, positiva ou de seleção, conferindo preferência, sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem.

[32]Na interpretação normativa importa determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica, socorrendo-nos dos elementos histórico (fontes, trabalhos preparatórios, exposição de motivos, e occasio legis), sistemático (a na norma no sistema onde se insere) e racional ou teleológico (a denominada ratio legis, o seu objetivo ou fim).

[33] Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, Limitada, -1974, pag. 95.

[34] Proc. n.º 1052/05.2TAVRL, in www.dgsi.pt

[35] Proc. n.º 5817/07.2TBOER.L1.S1, in www.dgsi.pt.

[36] Código de Processo Penal, comentado, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, 3: ed. pag. 344.

[37] Germano Marques da Silva, Curso de processo Penal, II, Editorial Verbo, pag. 69.

[38] Ibidem, pag. 329/3330.

[39] Ac. de 9/01/2013, in www.dgsi.pt.

[40] Proc. n.º 205/18.8GCAVR-B.S1, in www.dgsi.pt.

[41] A relação entre as decisões dos tribunais internacionais e as decisões dos tribunais supremos-efeito directo e reabertura do processo