Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1003/20.4T9MFR.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA
Descritores: RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRAZOS
TEMPESTIVIDADE DO RECURSO
IMPUGNAÇÃO
CONTRAORDENAÇÃO
TRÂNSITO EM JULGADO
INADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Data do Acordão: 10/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Os acórdãos recorrido e fundamento divergem quanto à natureza do prazo para interposição de recurso de impugnação da decisão administrativa num processo de contraordenação: administrativa ou judicial.

II. O Recorrente entende que o Acórdão recorrido só transita em julgado depois de decorridos 30 (trinta) dias. Porém, uma vez que a decisão não era suscetível de recurso (art. 432, a contrario, do CPP), terá, pelo contrário, transitado 10 (dez) dias após a data da sua notificação às partes, por ser esse o prazo para apresentar reclamação (art. 628 do CPC e 105 do CPP).

III. Por outro lado, sendo certo que tal suspensão também não seria de molde a tornar o ato tempestivo, a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro igualmente não se aplicaria, em virtude de o art. 6.º B, n.º 5, al. a) estabelecer que a suspensão dos prazos não obsta à tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes.

IV. A questão da tempestividade do recurso é prejudicial relativamente ao conhecimento das demais. E, face ao exposto, o recurso não é tempestivo.. Assim se acorda, nos termos dos arts. 414, n.° 2, 420, n.° 1, al. b), 437, n.° 2, e 438, n.° 1, todos do CPP, em rejeitar, por legalmente inadmissível, o presente recurso.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I
Relatório


1. O Grupo Associativo de Fonte Boa da Brincosa, mais detidamente nos autos identificado, discordando de Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16/03/202,  que lhe foi desfavorável, versando sobre a natureza do prazo de 20 dias estabelecido no art. 60 do RGCO para a impugnação judicial da decisão administrativa, veio impetrar recurso extraordinário para fixação de jurisprudência com a invocação da oposição de julgados entre a decisão proferida no referido Acórdão e a proferida no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 19/05/2015 (Proc.º n.º 7/14.0T8ORQ.E1), considerando que, no domínio da mesma legislação, aqueles acórdãos, relativamente à mesma questão de direito, teriam determinado soluções entre si opostas.


2. Das suas alegações de recurso, elencou as seguintes Conclusões:

“A) Nestes autos vem a Apelante recorrer do despacho que indefere liminarmente o Recurso de impugnação judicial de Contraordenação.

B) A Recorrente apresentou, via email, no dia 24/08/2020 a Impugnação Judicial. Após notificação em 20/07/2020 da decisão administrativa.

C) Quer a primeira Instância, quer o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa negaram a admissibilidade do Recurso por ser extemporâneo.

D) Alegando o Acórdão recorrido que o prazo é administrativo, corre em férias e não se aplica o disposto no art.° 103.° do CPP.

E) Inconformada com o conflito de Jurisprudência a Recorrente dá como Acórdão fundamento o Acórdão da Relação de Évora de 19 de Maio de 2015 publicado em w.w.w.dgsi.pt (Proc. n.° 7/14.0T8ORQ.E1)

F) Do qual consta

"1 - Ao recurso de impugnação judicial em processo contraordenacional é aplicável o artigo 279°, ai. e) do Código Civil que determina que «o prazo que termine em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil; aos domingos e dias feriados são equiparadas as férias judiciais, se o acto sujeito aprazo tiver de ser praticado em juízo»."

"2 - Assim, o termo do prazo de recurso de impugnação judicial que caia em período de férias judiciais transfere-se - ao menos -para o primeiro dia útil seguinte ao fim das férias judicias."

"4 - Existe "recurso de impugnação judicial" desde a entrada do recurso na entidade administrativa e, para este efeito, são irrelevantes as "fases " do processo contra-ordenacional."

G) O art.° 103.° do CPP define os dias em que os actos podem ser praticados e a interposição de recurso é um acto judicial (dirigido a um Juiz de Direito).

H) Tanto mais que, "De acordo com a nossa jurisprudência, quando o prazo estabelecido nos artigos 59.°, n.° 3 e 60.° do RGCOC (20 dias úteis) termine em férias judiciais, o prazo para apresentação da impugnação judicial transfere-se para o primeiro dia útil após férias - cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, processos n.° 0318/11 e 0311/14, de 21.09.2011 e 28.05.2014, respetivamente, ambos em www.dgsi.pt;".

I) Ainda que a Recorrente tivesse sido notificada da decisão administrativa em 21/07/2020, o prazo para apresentação da impugnação judicial terminaria em período de férias judiciais, esse prazo para impugnar judicialmente transfere-se para o primeiro dia útil após as férias (01/09/2020).

J) Tanto mais que, ao ser alterado o DL 433/82 com a Lei 244/95 de 14 de Setembro que modificou o art.° 60.° do RGCO ao suspender os prazos nos dias não úteis veio também modificar o regime de férias.

K) O Acórdão fundamento (TRE) faz a correta aplicação do Regime Jurídico das Contraordenações e impõe que ao presente recurso seja aplicado o Regime ali fixado.

L) Acresce que, o RGCO foi alterado pela Lei 9/2021 de 29 de Janeiro que expressamente resolve o problema subjudice ao declarar suspensos os prazos de contraordenações nas férias (art.° 44.°).

M) Tal regime aplica-se aos processos pendentes (art.° 182.°) se mais favoráveis ao arguido.

N) O Tribunal "a quo " ignorou tal comando legal, que também resulta do regime Processual Penal.

O) Ao decidir em contrário o Acórdão recorrido violou também o disposto nos art.° 18.°, 20.° e 32.° da Constituição da Republica Portuguesa.

P) Assim, deve ser firmado a Jurisprudência que face ao supra exposto, reconheça que ao recurso de decisão de entidade administrativa dirigido ao Tribunal Judicial, se aplicam as regras do Processo Penal e como tal os prazos suspendem-se no período de férias judiciais.

Q) Sendo de admitir o Recurso apresentado nestes autos perante o Tribunal Criminal de Mafra (Instância Local) por o prazo só se cumprir em data posterior ao dia 24/08/2020.

R) Mais sendo de admitir o Recurso, por entretanto ter sido publicada a Lei 9/2021 de 27 de Janeiro que altera o RJCO consignando expressamente o regime de contagem de prazos que se suspendem em férias judiciais.

S) Ao estabelecer o regime mais favorável ao arguido há que aplicar a alteração introduzida pela Lei 9/2021.

T) Assim,

- Há oposição de julgados entre o Acórdão fundamento e o Acórdão recorrido.

-  É a mesma questão de Direito.

-  A situação factual é idêntica.

-  Os Acórdãos são sobre a mesma legislação.

U) Com o que, deve ser fixada a seguinte Jurisprudência "O prazo de recurso, em processo de contra-ordenação para o Tribunal Criminal, suspende-se nas férias judiciais, no âmbito da Lei 433/82 com a redação anterior à Lei 9/2021 de 29 de Janeiro ".

E revogada a decisão do Acórdão recorrido se fará

Justiça!”


3. A Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quo pronunciou-se numa desenvolvida Resposta, tendo assim concluído:

“1. A questão objeto de oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento é a natureza do prazo para interposição de recurso de impugnação da decisão administrativa em processo de contraordenação: administrativa ou judicial.

2. O recurso foi interposto decorrido o prazo para o efeito.

3. De todo o modo, sobre a questão o STJ no AUJ 2/94 fixou jurisprudência obrigatória no sentido de atribuir natureza não judicial ao recurso de impugnação da decisão administrativa em processo de contraordenação.

4. O acórdão recorrido aplicou a jurisprudência fixada no AUJ 2/94.

5. É legalmente inadmissível e de rejeitar o presente recurso, nos termos conjugados dos arts. 414.°, n.° 2, 420.°, n.° 1, al. b), 437.°, n.° 2, e 438.°, n.°1, todos do CPP.”


4. Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta igualmente se pronunciou pela extemporaneidade do presente recurso e, mesmo que assim não ocorresse, pela sua inadmissibilidade, “face ao disposto na parte final do nº 2, do art. 347º, do CPP, como bem demonstra a Magistrada do Mº Pº no Tribunal da Relação de Lisboa na resposta que apresentou e que subscrevemos.

Com efeito, o acórdão recorrido aplicou a orientação perfilhada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/94, de 10 de Março, publicado no DR, 1ª série, de 7 de Maio de 1994, que fixou jurisprudência obrigatória no sentido de atribuir natureza não judicial ao recurso de impugnação da decisão administrativa em processo de contraordenação e que se mantém em vigor, como se demonstra no acórdão recorrido, nomeadamente através da citação de jurisprudência deste Supremo Tribunal”.


6. Foi cumprido o disposto no art. 417, n.º 2 do CPP, tendo a recorrente apresentado os seguintes argumentos:

“I. DA TEMPESTIVIDADE DO RECURSO

1. O último Acórdão proferido foi certificado no Sistema Citius com data de 17/03/2021. Pelo que, se considera notificado a (20/03 (sábado)) 22/03/2021.

2. O trânsito em julgado ocorre quando não há mais possibilidade de recurso.

O que só ocorreria 30 dias após o dia 22/03. Porém, há que atender a que os prazos se suspenderam nas férias da Páscoa de 28/03 a 05/04. E ainda a suspensão dos prazos por efeito do disposto na Lei 4-B/2021 (até ao dia 06/04/2021).

Com o que, o trânsito só ocorreu a 10/05/2021. Donde o dia 08/06 se inscrevo nos 30 dias de prazo e o Recurso deverá ser admitido por tempestivo.

Por outro lado,

3. Caso não se considerasse a suspensão supra (da Lei 4-B/2021) o trânsito em julgado teria ocorrido a 05/05/2021 (30 dias + 3 dias úteis).

4. Terminando o prazo de 30 dias para recurso no dia 04/06/2021.

5. A que acrescem os 3 dias úteis (com multa a que alude o art.º 107.º n.º 5 do CPC por remissão para o art.º 139.º n.º 5 do CPC).

6. E assim, o presente é tempestivo (ainda que sujeito a liquidação de multa pela secretaria).

7. Por fim, por despacho de fls. 167 dos autos foi admitido o recurso.

(22/06/2021)

Despacho que já transitou em julgado.

Termos em que, deve ser admitido o Recurso Extraordinário.

II.

8. Quanto à Jurisprudência fixada no Acórdão n.º 2/94 de 10 de Março, o mesmo tem sido contrariado pela Jurisprudência aqui já apresentada na Fundamentação. A qual é posterior a 1994, e que apresenta aquele Acórdão de 1994 desconforme à Lei entretanto aprovada e que alterou o regime dos prazos nas Contra-Ordenações recorridas.

Termos em que, se mantém todo o Alegado em sede de Fundamentação e em consequência deve ser dado provimento ao presente recurso.”

Efetuado o exame preliminar, remeteu-se o processo a vistos legais e de seguida à Conferência, de acordo com o disposto no art. 440 do CPP.



II

Do Acórdão recorrido



Particularmente relevantes se afigura o seguinte segmento do Acórdão recorrido, sem prejuízo, como é óbvio, da atenção que merece a integralidade do mesmo:

“ (…) Com base nas disposições legais invocadas pelo recorrente, embora sob a capa da denominação que lhe deu "reclamação", veio a recorrente suscitar a nulidade do acórdão desta Relação por omissão de pronúncia nos termos do art.° 379° n.° 1 al, c) CPP, sem contudo apontar em concreto qual a questão suscitada no recurso que não foi objecto de apreciação no acórdão ora sob reclamação.

Por outro lado, quando invoca o art.° 380° n.° 1 al. b) CPP, o qual confere a possibilidade de correcção de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial, também não vislumbramos, a utilização dessa prerrogativa pois a pretensão da reclamante representa uma inversão total dos sentido da decisão reclamada, ou seja, dar provimento ao recurso e determinar a admissão a impugnação judicial, inversão da decisão que se mostra incompatível com o preceito invocada pois traduzir-se ia numa modificação essencial.           

Noutra abordagem, a argumentação desenvolvida agora em sede de "reclamação/reforma" nada mais revela que, sob a capa da nulidade, a recorrente apenas manifesta o seu inconformismo com a opção que se tomou e que lhe é desfavorável. Porém, o inconformismo com a decisão só pode ser atacado por via de recurso, isto se o mesmo for admissível.        

Teremos ainda de apontar que os termos em que esta invocação se mestra quando se refere à publicação do Regime Jurídico das Contra-ordenações Económicas (RJCE) pela Lei 9/2021 de 29 de Janeiro que o recorrente entende ser de seguir por força da respectiva aplicabilidade aos processos pendentes - parece-nos fundado no disposto no seu art.° 182° n.° 1 - em nada altera a apreciação que se mostra feita no acórdão reclamado.

Na verdade, a alteração feita ao Regime das Contra-ordenações Económicas cujo texto actualizado se mostra inserido em anexo àquela Lei não se encontrava em vigor seja à data de interposição da impugnação judicial, seja à data de interposição do recurso, seja à data da prolação do acórdão ora reclamado, nem sequer actualmente, isto por força do disposto no seu art.° 183° que estabelece a entrada em vigor 180 dias após a respectiva publicação.

Concluímos, pois, que a nulidade de omissão de pronúncia suscitada peio recorrente não se mostra cometida, sendo de indeferir a reclamação.


III.

Face do exposto, por infundada decide-se indeferir a reclamação feita pela recorrente. (…)”



III

Fundamentação



1. O Recorrente entende que o Acórdão só transita em julgado depois de decorridos 30 (trinta) dias, no seu entender “Terminando o prazo de 30 dias para recurso no dia 04/06/2021”.

Porém, uma vez que a decisão não era suscetível de recurso (art. 432, a contrario, do CPP, terá transitado 10 (dez) dias após a data da sua notificação às partes, por ser esse o prazo para apresentar reclamação (art. 628 do CPC e 105 do CPP).


2. Por outro lado, a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, também não se aplicaria, em virtude de o art. 6.º B, n.º 5, al. a) estabelecer que a suspensão dos prazos não obsta à tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes (sendo certo que tal suspensão também não seria de molde a tornar o ato tempestivo).


3. Assim, refazendo a cronologia:

3.1.   O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido a 16.03.2021, tendo sido colocado no sistema a 17.03.2021;

3.2.    Considera-se notificado às partes decorridos 3 dias, ou seja, no dia 22.03.2021 (atendendo a que esses 3 dias terminavam a 20.03.2021, que é um sábado, a data da notificação transfere-se para o dia útil seguinte, nos termos do art. 138.º, n.º 2 do CPC);

3.3.   O prazo de 10 dias para apresentar reclamação inicia-se a 23.03.2021 (dia seguinte ao da notificação) e suspende-se no dia 28.03.2021, por se iniciarem as férias da Páscoa (cfr. art. 138, n.º 1 do CPC e 28 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto);

3.4.   Reinicia-se o prazo a 6 de abril e termina a 10 de abril. Sendo este dia um sábado, transfere-se para o dia útil subsequente – acórdão transita em julgado no dia 12 de abril, segunda-feira (em conformidade com a certidão junta pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 02.09.2021);

3.5.    O art. 6.º B, n.º 5, al. a) da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro estabelece que a suspensão prevista no n.º 1 “não obsta à tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais”;

3.6.   Mesmo que tal suspensão tivesse lugar, a mesma terminaria no dia 06.04.2021 pelo que, tendo o recurso sido apresentado a 8 de junho de 2021, a decisão já havia transitado em julgado há mais de 30 dias.


4. A questão da tempestividade do recurso é prejudicial relativamente ao conhecimento das demais. E, face ao exposto, o recurso não reúne esse requisito.



IV

Dispositivo



Termos em que, decidindo em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça se acorda, nos termos dos arts. 414, n.° 2, 420, n.° 1, al. b), 437, n.° 2, e 438, n.° 1, todos do CPP, em rejeitar, por legalmente inadmissível, o presente recurso.

Custas pelo Recorrente.

Taxa de Justiça:  6 UCs

Nos termos do art. 420, n.º 3, do Código de Processo Penal, condenam o recorrente em 3 UC.


Supremo Tribunal de Justiça, 27 de outubro de 2021


Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)