Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LEONOR FURTADO | ||
Descritores: | HABEAS CORPUS MEDIDA DE COAÇÃO OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA IMPROCEDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 06/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | HABEAS CORPUS | ||
Decisão: | IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO | ||
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Sumário : | I - Na apreciação do pedido de Habeas corpus testa-se o preenchimento dos pressupostos legal e taxativamente exigíveis pela providência, quando se invoque a privação da liberdade de determinada pessoa em decorrência de ilegalidade da sua prisão por abuso de poder ou erro grosseiro. II - Tendo o JIC considerado indiciado o crime de violação, há que atender a que, nos termos do art. 215.º, n.os 1 e 2, do CPP, os prazos máximos de prisão preventiva são elevados, no que ao caso interessa, para seis meses sem que tenha sido deduzida acusação, para dez meses sem que tenha sido proferida decisão instrutória e para um ano e seis meses, sem que tenha havido condenação em primeira instância. III - Por isso, não se consideraram verificados nenhuns dos fundamentos exigidos nos termos do art. 222.º, do CPP, porquanto a prisão foi ordenada por entidade competente – o juiz –, foi determinada pelo tribunal competente e pela prática de crime que admite a aplicação de pena de prisão, sem que tenham sido ultrapassados quaisquer prazos, designadamente o prazo para a dedução da acusação. Assim sendo, não ocorre qualquer motivo para que se considere que a prisão actual do arguido é ilegal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Providência de Habeas Corpus Processo: n.º 619/22.9JAFUN-B.S1 5ª Secção Criminal I - RELATÓRIO 1. AA, ao abrigo do disposto no art.º 222.º e 223.º, do Código de Processo Penal (CPP), efectuou pedido de providência de Habeas Corpus, relativamente ao arguido BB, alegando que a prisão do arguido é ilegal e, em síntese, os seguintes factos: “i. O Arguido BB foi sujeito a detenção, a 08 de Dezembro de 2022, tendo ficado em prisão preventiva de imediato. ii. Sujeito ao primeiro interrogatório judicial, foi aplicada ao Arguido a medida de obrigação de permanência na habitação, com recurso a vigilância eletrónica, o que se verifica. iii. Até à data, não foi proferida qualquer acusação ao Arguido, tendo lhe sido transmitido que se encontra indiciado um crime de violação, previsto e punido pelo art. 164.º, n.º 2, al. a) do Código Penal. iv. Desde o dia 08 de Dezembro de 2022 e até à presente data, decorreram mais de seis meses..”. Termina, pedindo que se “(…) admita a presente providência, declarando a ilegalidade da prisão preventiva e ordene consequentemente a imediata libertação do Arguido.”. 2. Nos termos do art.º 223.º, do CPP, foi prestada a seguinte informação: “ (…)- O arguido BB foi detido no dia 8 de Dezembro de 2022. - Por despacho de 10 de Dezembro de 2022, proferido no âmbito de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi determinada a sujeição do arguido “cumulativamente, a Termo de Identidade e Residência, já prestado nos autos, com proibição de contatos por qualquer meio ou por interposta pessoa, com a ofendida ou com a mãe da ofendida e prisão preventiva, (…), sem prejuízo da substituição desta medida coativa pela obrigação de permanência na habitação do arguido nos Açores, com recurso à vigilância eletrónica, se verificados os pressupostos legais necessários. - Por despacho de 9 de Janeiro de 2023 foi determinado que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito, para além do TIR já prestado, às medidas de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica e de proibição de, por qualquer forma, contactar com a ofendida ou com a mãe desta. - Por despacho de 25 de Março de 2023 foram mantidas as medidas de coacção aplicadas ao arguido. - No dia 6 de Junho de 2023 foi deduzida acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de crime de violação, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal. - No dia 9 de Junho de 2023 o estatuto coactivo do arguido foi reexaminado e mantida a medida de coacção aplicada. - Por força dessa decisão a sujeição do arguido a medida de coacção privativa da liberdade, designadamente, a obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica do arguido mantém-se..”. II - FUNDAMENTO Importa, pois, decidir se o arguido BB se encontra preso ilegalmente. 1. Antes de mais há que esclarecer que a providência de Habeas Corpus não é um recurso de uma decisão que determina a prisão de alguém, seja a prisão preventiva ou para cumprimento de pena ou medida, aplicadas ao sujeito peticionante. A providência de Habeas Corpus constitui uma garantia fundamental do direito à liberdade, inscrita no art.º 31.º da Constituição da República (CRP) como meio “(…) contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal…”, sendo um procedimento expedito e excepcional, a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória, conforme o art.º 31.º, n.º 3, CRP. Nas palavras de Eduardo Maia Costa, em anotação ao art.º 222.º do CPP, in Código Processo Penal Comentado, 3.ª Edição Revista, pág. 852, trata-se de uma “(…) providência extraordinária e expedita que se destina exclusivamente a salvaguardar o direito à liberdade, não visando, pois, a reapreciação da decisão que decretou a prisão. É um mecanismo situado à margem das garantias do processo penal, tendo por fim único a proteção dos cidadãos contra a prisão ilegal.”. Como este Supremo Tribunal tem afirmado, a providência de habeas corpus em virtude de prisão ilegal estabelecida pelo art.º 222.º, do CPP, concretizando a garantia constitucional estabelecida pelo art.º 31.º, n.º 1, da CRP, tem a natureza de um remédio extraordinário, vocacionado para acorrer e fazer cessar ofensas graves à liberdade individual consubstanciadoras de abuso de poder, mediante um procedimento de especial urgência que verifique a existência de uma situação de privação da liberdade resultante de violação directa, imediata, patente e grosseira dos pressupostos e das condições de aplicação da prisão. 2. A ilegalidade da prisão afere-se a partir dos factos documentados no processo, tendo por pressuposto legal o disposto no art.º 222.º, do CPP, cujos fundamentos são taxativos para a sua concessão, e depende da verificação pelo Supremo Tribunal de Justiça de uma situação de actualidade da prisão proveniente de: Artigo 222.º Habeas corpus em virtude de prisão ilegal (…) 2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. Deste preceito se extrai a noção de ilegalidade da prisão que se atém às situações taxativamente definidas nas als. a) a c), do citado preceito legal, sendo que se exige a verificação cumulativa dos pressupostos de abuso de poder e de prisão ou detenção ilegal que não se confundem com os exigidos para o recurso ordinário, nem com os seus fundamentos – vd. art.º 410.º, do CPP. Tal como este Supremo Tribunal disse no acórdão de 9/8/2013, Proc. 374/12.0JELSB-A.S1, na apreciação do pedido de habeas corpus testa-se o preenchimento dos pressupostos legal e taxativamente exigíveis pela providência, quando se invoque a privação da liberdade de determinada pessoa em decorrência de ilegalidade da sua prisão por abuso de poder ou erro grosseiro. Não é seu objecto imediato formular juízos de mérito sobre as decisões judiciais determinantes da privação da liberdade ou sindicar nulidades ou irregularidades dessas decisões – para isso servem os recursos ordinários – mas apenas verificar, de forma expedita, se a prisão só subsiste por patologia desviante (abuso de poder ou erro grosseiro), enquadrável em qualquer das três alíneas do n.º 2, do art.º 222.º, do CPP. No conceito de prisão ilegal não cabem aquelas situações que correspondam à aplicação dessa medida de coacção pelo juiz competente, sem violação grosseira do processo devido, com imputação de factos típicos para que a lei permite a prisão preventiva, mas em que se discuta a suficiência dos indícios ou os juízos cautelares e de necessidade, proporcionalidade e adequação a que a lei manda proceder. Neste tipo de casos, o que está em apreciação é a justeza da medida face aos pressupostos fácticos de que depende a sua aplicação e a sustentação dos juízos de prognose e de proporcionalidade, questionáveis em impugnação pela via de recurso ordinário. O que não significa, sobretudo após a actual redacção do art.º 219.º, do CPP, conceber a providência numa relação de subsidiariedade aos meios de impugnação ordinários, mas reconduzi-la à sua natureza de providência vocacionada para a tutela da liberdade, perante situações de gravidade extrema e evidente de ilegalidade da prisão. A providência de habeas corpus destina-se, tão só, a apreciar e a decidir se, no caso, se verificou um dos fundamentos indicados no art.º. 222.º, n.º 2, do CPP. Não se aprecia ou decide o mérito da decisão que determina a prisão ou a privação da liberdade, nem tão pouco os eventuais erros processuais que se apontem à decisão, pois, esses devem ser apreciados em sede de recurso ordinário. 3. Importa, portanto, que se comece por relembrar o essencial da situação factual e das ocorrências processuais que caracterizam o caso, para confrontá-lo com qualquer destas previsões. No caso, o arguido BB, encontra-se sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica (OPHVE) por, contra si estar indiciada a prática de um crime de violação, p. e p. nos termos dos art.s 14.º, n.º 1, 26.º e 164.º, n.º 2, al. a), todos do Código Penal. Da informação junta e dos elementos constantes da certidão do processo, Ref.ª Citius n.º..., resulta demonstrado que: a. Por despacho judicial proferido em 10/12/2022, na sequência de interrogatório judicial de arguido detido, a que o arguido BB foi sujeito no Tribunal Judicial da Comarca ..., pelo Juiz de Instrução Criminal (JIC), foi-lhe aplicada a medida de coacção, de Prisão Preventiva com vista à aplicação de OPHVE, conforme os art.ºs 191.º a 194.º, 196.º, 201.º, n.ºs 1 e 2, e 204.º als. b) e c), todos do Código de Processo Penal. b. Por despacho de 09/01/2023, obtida a informação prévia da DGRSP, o JIC do Tribunal Judicial da Comarca do...determinou a “(…) ao abrigo do disposto nos arts. 191.o a 196.º,200.º, n.º 1, alínea d),201.º, n.ºs1 e 3 e 204.º, alínea c) do código de processo penal, determino que o arguido BB aguarde os ulteriores termos do processo sujeito, para além do TIR já prestado, às medidas de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica e de proibição de, por qualquer forma, contactar com a ofendida ou com a mãe desta.”. c. Em 25/03/2023, pelo JIC do Tribunal Judicial da Comarca do...foi proferida decisão e efectuado o reexame dos pressupostos da medida de OPHVE, determinando-se que o arguido continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de OPHVE, por se ter considerado não estarem ultrapassados os prazos máximos previstos no art.º 215.º do CPP e “(…) se manterem inalterados os pressupostos expostos no despacho que aplicou a ao arguido as medidas de coacção de obrigação de permanência na habitação.”. d. Em 06/06/2023, o Ministério Público junto da Procuradoria da República da Comarca ...– Departamento de Investigação e Acção Penal - Secção ... ..., deduziu acusação contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de um crime de violação, p. e p. nos termos do art.º 164.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, cometido no dia 29/08/2022.”. Verifica-se que ao arguido foram asseguradas todas as garantias processuais de defesa e pronúncia sobre o seu estatuto de liberdade no âmbito da indicada aplicação e verificação dos pressupostos para a manutenção da medida de OPHVE. 4. A Requerente invoca como fundamento do pedido de habeas corpus a ilegalidade da prisão preventiva do arguido, por se mostrar excedido o prazo máximo de prisão preventiva legalmente consentido atendendo à fase processual em que se encontra, por em seu entendimento terem decorrido seis meses desde a detenção do arguido e não ter sido deduzida acusação, exigindo a sua imediata libertação. É manifesto que, em face do disposto no art.º 222.º, do CPP, a pretensão do requerente não tem cabimento nas alíneas a) e b) do n.º 2 – a prisão ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente ou ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite – , pelo que só a hipótese da alínea c) resta para fundamentar o seu pedido, importando atentar com mais detalhe. Sucede que a necessidade de sujeição do ora requerente a uma medida coactiva privativa da liberdade foi reconhecida, desde logo, no despacho judicial proferido em 09/01/2023, na sequência de interrogatório judicial de arguido detido, por indícios da prática de um crime de violação e existirem os perigos de perturbação do inquérito e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas que sustentam a aplicação ao arguido de medida de coacção privativa da liberdade, sendo-lhe imposta a medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, após verificada a existência de condições para tanto. Tendo o JIC considerado indiciado o crime de violação, há que atender a que, nos termos do art.º 215.º, n.º 1 e 2, do CPP, os prazos máximos de prisão preventiva são elevados, no que ao caso interessa, para seis meses sem que tenha sido deduzida acusação, para dez meses sem que tenha sido proferida decisão instrutória e para um ano e seis meses, sem que tenha havido condenação em primeira instância. Assim sendo, torna-se evidente que não há excesso de prazo de prisão preventiva, porquanto a acusação contra o arguido foi deduzida antes de decorrido o prazo de seis meses ainda, antes de decorridos seis meses sobre a data da prisão preventiva decretada em 10/12/2022 e que, é certo que a medida de coacção foi reexaminada pelo JIC em 25/03/2023 que reapreciou os pressupostos de aplicação da medida de coacção, mantendo-a. Por isso a prisão do arguido nada tem de ilegal, no sentido que corresponde examinar no âmbito da presente providência. O arguido BB está em prisão preventiva, por crime para que a lei abstractamente prevê tal medida de coacção, decretada pelo juiz de instrução, mediante o devido processo legal e cuja duração não excedeu o prazo máximo legalmente permitido em função da fase processual correspondente. Na apreciação da providência de Habeas Corpus, só se verifica a ilegalidade que configura abuso de poder, tal como expressamente resulta do comando constitucional contido no art.º 31.º, da Constituição da República, a saber: “1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o tribunal judicial ou militar, consoante os casos.”. Como tem sido reiteradamente repetido por este Supremo Tribunal, a providência de habeas corpus tem natureza extraordinária e expedita, vocacionada para dar resposta célere a situações de manifesta ilegalidade de prisão, donde resulta que a ilegalidade deve ser direta e imediatamente verificável. O que aqui cumpre verificar é se manifestamente ocorre algum dos vícios a que alude o n.º 2, do art.º 222.º, do CPP, acima mencionados – vd., por todos, o recente Ac. do STJ de 09/03/2022, Proc. n.º 816/13.8PBCLD-A.S1, e jurisprudência nele citada, em www.dgsi.pt. Por isso, quanto à decisão do pedido de Habeas Corpus não se consideraram verificados nenhuns dos fundamentos exigidos nos termos do art.º 222.º, do CPP, porquanto a prisão foi ordenada por entidade competente – o juiz – e não foi motivada por facto que a lei não permite, antes pelo contrário, foi determinada pelo tribunal competente e pela prática de crime que admite a aplicação de pena de prisão, sem que tenham sido ultrapassados quaisquer prazos, designadamente o prazo para a dedução da acusação. Assim sendo, não ocorre qualquer motivo para que se considere que a prisão actual do arguido é ilegal. Nestes termos, a situação actual de prisão do arguido BB não se tem por ilegal, não se verificando qualquer fundamento para o deferimento do presente pedido de habeas corpus, pelo que, não procedendo qualquer dos fundamentos previstos no n.º 2, do art.º 222.º, do CPP, o pedido tem de ser indeferido por falta de fundamento bastante – conforme art.º 223.º, n.º 4, al. a), do CPP. III - DECISÃO Termos em que, acordando, se decide: a. Indeferir o pedido da providência de habeas corpus apresentado pela requerente AA, em relação ao arguido BB, por falta de fundamento bastante, conforme art.º 223.º, n.º 4, al. a), do CPP. b. Fixar em 3 UC a taxa de justiça, nos termos do art.º 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa. Lisboa, 22 de Junho de 2023 (processado e revisto pelo relator) Leonor Furtado (Relatora) António Latas (Adjunto) José Eduardo Sapateiro (Adjunto) Helena Moniz (Presidente) |