Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JSTJ00004121 | ||
Relator: | HORTA E VALE | ||
Descritores: | FOGO POSTO INTERPRETAÇÃO DA LEI FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA | ||
Nº do Documento: | SJ195704100294173 | ||
Data do Acordão: | 04/10/1957 | ||
Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||
Referência de Publicação: | DR IªS 30-04-1957; BMJ 66, 309 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PARA O PLENO. | ||
Decisão: | FIXADA JURISPRUDÊNCIA | ||
Indicações Eventuais: | ASSENTO 1/1957 | ||
Área Temática: | DIR CRIM - CRIM C/PATRIMONIO. | ||
Legislação Nacional: | CP886 ARTIGO 5 ARTIGO 18 ARTIGO 450 N1 ARTIGO 463 ARTIGO 464 N2 ARTIGO 470 ARTIGO 481. D 26895 DE 1936/08/17 ARTIGO 5. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO RL DE 1955/05/27 IN BMJ N51 PAG356. ACÓRDÃO STJ DE 1949/07/13 IN BMJ N14 PAG90. ACÓRDÃO STJ DE 1926/03/09 IN CO ANO25 PAG59. | ||
Sumário : | A palavra "seara" empregada no n. 2 do artigo 464 do Codigo Penal compreende tanto a seara de pe como a ja cortada ou ceifada. | ||
Decisão Texto Integral: | Na comarca de Coruche foi pronunciado o arguido A, casado, jornaleiro, identificado nos autos, como autor do crime de fogo posto previsto e punivel pelos artigos 463 e 464, n. 2, do Codigo Penal, visto se mostrar dos autos que ele, pelas 3 horas da manhã do dia 27 de Junho de 1955, voluntariamente, pegou fogo a uma meda de trigo de B, no valor de 33 000 escudos, fogo que se propagou a outras medas de trigo, sendo uma de C, no valor de 2 000 escudos e outra do proprio arguido. Do despacho de pronuncia, de folhas 39, recorreu o arguido para a Relação de Lisboa que, por seu douto acordão de folhas 68, deu provimento ao recurso em materia de incriminação, revogando o despacho para ser substituido por outro que incrimine o dito arguido simplesmente pela autoria do crime de dano por meio de incendio, previsto e punivel pelos artigos 470 e 481 do citado Codigo. Do acordão da Relação recorreu o excelentissimo Procurador da Republica para este Tribunal que, por acordão da sua Secção Criminal de folhas 121 e aceitando os factos da acusação, os qualificou como constituindo o crime de fogo posto previsto e punivel pelos citados artigos 463 e 464, n. 2, revogando nesta parte o acordão recorrido e restabelecendo, assim, a incriminação operada pelo Tribunal da primeira instancia. Deste acordão, a folhas 134, interpos o reu o presente recurso para o Pleno com o fundamento de que tal acordão estava em manifesta oposição com o acordão deste mesmo Tribunal, de 9 de Março de 1926, publicado na Colecção Oficial dos acordãos doutrinarios do Supremo Tribunal de Justiça, ano 25, pagina 59, proferido sobre a mesma questão de direito, no dominio da mesma legislação e em processo diverso. Alega que a oposição resulta de que naquele acordão de 1926 se entendeu e decidiu que a palavra "seara" do artigo 464, n. 2, do Codigo Penal, designa apenas o cereal de pe no campo, enquanto que no acordão ora recorrido se entendeu e decidiu que o mesmo termo ou palavra compreende tanto a seara ainda na terra, em germinação, como as searas ceifadas e atadas em molhos, para debulha. Alega mais que, sendo o objecto do fogo posto, nos dois processos, searas ja ceifadas e acondicionadas em medas, no acordão de 1926 se incriminou o facto como constituindo o crime previsto e punivel pelos artigos 470 e 481, enquanto que no acordão de folhas 121 se incriminou o mesmo facto como constituindo o crime dos artigos 463 e 464, n. 2, todos do Codigo Penal. Perante a invocada oposição dos dois acordãos em confronto pronunciou-se a Secção Criminal tirando o acordão de folhas 146 a reconhecer a oposição e os requisitos legais para o recurso prosseguir. E prosseguindo, apresentou o reu a sua alegação de folhas 152, defendendo a orientação do acordão da Relação e sustentando que aquela palavra "seara" do n. 2 do artigo 464 so pode referir-se a cereal de pe, no campo e ainda não ceifado, pelo que so com violação dos principios contidos nos artigos 5 e 18 do Codigo Penal se pode entender, extensivamente, que aquele preceito de lei se aplica ao incendio voluntario e intencional de medas ou paveias de cereal ceifado. Por isso se deve revogar o acordão recorrido, incriminando-se o reu pelos artigos 470 e 481 do dito Codigo e tirando-se assento que traduza e contenha esta doutrina. Contraminutou o ilustre Ajudante do Procurador-Geral, a folhas 162, apresentando novamente um proficiente trabalho sobre interpretação da lei e atingindo a conclusão de que a palavra "seara" em discussão compreende o cereal ja ceifado e acondicionado em medas ou molhos, devendo manter-se a orientação do acordão recorrido e tirar-se assento que a traduza e domine. Com os vistos legais, cumpre conhecer e decidir: E de reconhecer e verificar que duvida alguma se oferece de que os dois acordãos em confronto, versando a mesma questão de direito, sendo proferidos em processos diferentes e no dominio da mesma legislação, representada pelo Codigo Penal, contem doutrina manifestamente oposta quanto a interpretação do preceito do artigo 464, n. 2, daquele Codigo, no que respeita a significação e ambito da locução "seara". Reconhecida a oposição e os mais pressupostos para a uniformização por assento, importa discutir a questão para atingir a finalidade deste recurso. A materia de facto que leva a indiciação e a incriminação esta indiciariamente provada e aceite pelas instancias nos termos em que vem inicialmente descrita e relatada. Cumpre a este Tribunal acata-la e aceita-la na sua especial missão de qualificação juridica e na finalidade de uniformizar a jurisprudencia resolvendo e decidindo se tal materia integra o crime de fogo posto previsto e punivel pelos artigos 463 e 464, n. 2, ou o crime de dano por meio de incendio previsto e punivel pelos artigos 470 e 481, todos do Codigo Penal. Sobre a oposição das duas teses, a jurisprudencia tem oscilado mas, ultimamente, a do Supremo manifesta-se acentuadamente favoravel a tese do acordão recorrido, como se ve dos acordãos citados e publicados no Boletim do Ministerio da Justiça, n. 10, a pagina 162, n. 12, pagina 193, e n. 40, pagina 244. Toda a questão se concentra na pesquisa do significado e alcance da locução "seara" a face dos elementos etimologicos, linguisticos, historicos e sistematicos e ainda a face da interpretação logica com direcção ao justo equilibrio preventivo e repressivo. Com elevação e serenidade se vem discutindo o problema atraves do processo, todos procurando fornecer mais uma ideia, mais um elemento de estudo e mais um contributo para a formulação do comando juridico, sem quebra do salutar respeito e devida venia pela opinião contraria. E atacando a orientação do acordão recorrido afirma-se que a letra da lei e o primacial elemento da sua interpretação e desde que a palavra "seara" gramaticalmente significa o conjunto de cereal na terra, so a uma seara nestas condições se deve aplicar o preceito do artigo 460, n. 2, do Codigo Penal. Mas embora a questão seja complexa e possa oferecer duvidas, entendemos não ser de seguir uma tão rigida doutrina interpretativa. Em primeiro lugar, nem sempre o termo "seara" significa o cereal na terra. Em algumas regiões cerealiferas, por seara se entende tambem o cereal colhido e cortado. Tambem diplomas legais empregam o vocabulo como compreensivo do conjunto de cereal ceifado, como se ve do artigo 5 do Decreto n. 26 895, de 17 de Agosto de 1936, e de outros diplomas legais citados no acordão da Relação de Lisboa, de 27 de Maio de 1955, no Boletim, n. 51, pagina 356, e que adoptou a doutrina constante do acordão recorrido. E este uso do vocabulo e sintomatico e tem relevo por se tratar de diplomas legislativos a autorizarem uma versão e uma significação de caracter oficial. Mas não basta so o elemento literal e etimologico para se operar a interpretação do preceito em causa. Com efeito, segundo o ilustre criminalista e Professor Beleza dos Santos (Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, ano XI, pagina 103) "nenhuma doutrina ou regra juridica pretende hoje converter o interprete em executor mecanico da sua letra, vinculando-o rigidamente as suas palavras legais. Pelo contrario, todos o autorizam a ir alem do texto procurar o sentido logico...". Pretende-se significar que afastando embora o emprego da anologia ou da interpretação extensiva em materia de incriminação, nada obsta a que sem torsão dos artigos 5 e 18 do Codigo Penal se formule uma interpretação declarativa, socorrendo-se o interprete de todos os mais elementos logicos e racionais que possam conduzir a determinação do espirito da lei e sua finalidade de protecção juridica. Digamos ainda com o mesmo ilustre Comentador que "...a pretexto de que a letra da lei e clara, não se deve deixar de indagar o seu sentido logico porque a letra, apesar da sua clareza, pode ser impropria e deficiente e, no conflito entre a letra da lei e o seu sentido logico e este que deve prevalecer". A este respeito e ilucidativo o acordão deste Tribunal, de 13 de Julho de 1949 (Boletim, n. 14, pagina 90) onde se entendeu que a interpretação declarativa e unanimemente admitida e que o legislador apesar dos principios dos citados artigos 5 e 18 procurou prever no Codigo Penal todos os tipos do ilicito que não provenham de novas condições sociais, politicas ou economicas imprevisiveis e posteriores a elaboração da respectiva lei geral. Por isso decidiu que era aplicavel o artigo 450, n. 1, ao mandatario que com poderes especiais vendesse um predio e, posteriormente, o doasse a outrem, embora ampliando o ambito dos termos "fingir-se senhor" e "alhear" contidos no citado preceito do Codigo Penal. Estes problemas, repete-se, são sempre complexos e de consideravel acuidade juridica. Tal se apreende não so no campo da Jurisprudencia, mas tambem no campo dos trabalhos legislativos que versaram a materia do preceito em discussão. Assim, cumpre dar relevo ao facto de ter havido um codigo penal, o de 1837, estatuindo que seara para efeitos de fogo posto compreendia não so o cereal de pe, na terra, como tambem o cereal ceifado. Tal expressão ampliativa desapareceu dos codigos posteriores. Mas tanto basta para marcar uma afirmação tradicional na finalidade ampliativa da protecção penal. Não se pode garantir se a mudança de redacção literal significa mudança de orientação legislativa ou traduz apenas o pensamento de que, empregando-se o vocabulo "seara", se continua a prevenir o crime de fogo posto dando-se amplitude ao termo para significar tanto uma seara ainda na terra e em germinação como uma seara ceifada e acondicionada em medas ou paveias. O vocabulo pode literalmente abranger os dois objectos como se tem jurisprudencialmente entendido e não se descortinando razões de ordem juridica, social, economica e moral que desaconselhem tal entendimento. E se a letra da lei se não opõe, a logica e o espirito justificam, ate, a significação lata da expressão. São comuns aos dois objectos do incendio doloso os perigos de propagação e os autos oferecem disso um exemplo vivo. Consideraveis são igualmente os prejuizos e possivelmente maiores quando toca a cereal cortado porque ja criado e amadurecido, representa riqueza positiva e segura enquanto que na terra e sujeita as contingencias do tempo, representa sempre uma incognita de incognito valor. O mesmo sentimento de reprovação social e moral recai sobre o incendiario de searas de pe e de searas ceifadas como autor de grave atentado contra a propriedade alheia e contra a economia nacional. Por tudo, e de concluir que igual protecção penal devem merecer tais bens e o direito a sua usufruição. Ainda, adentro de uma logica interpretação, se impõe ponderar a politica dos interesses maiores, mais justos e mais defensaveis e que são os interesses da sociedade a demandar intensa repressão de actos desta natureza, qualquer que seja o seu aspecto. Desprezar tais interesses em nome de uma duvida gramatical e substitui-los por beneficios aos autores de tão extensas lesões, não e atender a razão da lei, ao seu espirito e a sua finalidade preventiva e repressiva. E no campo dos interesses são de atender tambem os que se dirigem a uniformização da Jurisprudencia, de forma a evitarem-se desigualdades e de maneira que a factos identicos e a condutas semelhantes se aplique o mesmo tratamento juridico atraves de simples e autorizada interpretação declarativa. E todos os referidos elementos marcam a sua presença nos referenciados acordãos deste Tribunal cujos argumentos e fundamentos impõem a sua orientação em nome de uma interpretação mais aceitavel, razoavel e logica da lei, cuja letra pode compreender e não repele tal interpretação. Perante as razões e considerações que ficam expostas e reeditando as mais que constam do acordão recorrido, de folhas 134, se decide manter a sua doutrina, incriminando o arguido, pelos factos constantes da acusação, na sanção dos artigos 463 e 464, n. 2, do Codigo Penal, tirando-se o seguinte assento: "A palavra seara, empregada no n. 2 do artigo 464 do Codigo Penal, compreende tanto a seara de pe como a ja cortada ou ceifada". Imposto de Justiça, o minimo pelo recorrente. Lisboa, 10 de Abril de 1957 Horta e Vale (Relator) - Amaral Cabral - A. Baltasar Pereira - Lencastre da Veiga - Sousa Pinto - Lopes Cardoso - A. Sampaio Duarte - Agostinho Fontes - Eduardo Coimbra - Carlos Saavedra - Mario Cardoso - Piedade Rebelo - Julio M. de Lemos - A. Gonçalves Pereira (Vencido, porque sempre entendi que, quer etimologicamente, quer gramaticalmente, quer em face do direito comparado, a palavra "seara" do n. 2 do artigo 464 do Codigo Penal significa "campo de cereais em estado de ceifar", ou melhor "cereal em pe no campo, ainda não ceifado", não abrangendo assim o cereal colhido, ceifado, em frascais, medas, rolheiros ou amontoado na eira). |