Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
95/20.0YRPRT.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO DE FACTO
ESCRITURA PÚBLICA
DOCUMENTOS PASSADOS EM PAÍS ESTRANGEIRO
Data do Acordão: 11/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : A declaração exarada numa “Escritura Pública de Declaração de União Estável”, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) no sentido de que os outorgantes declaram viver em união de facto não se encontra abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. AA, de nacionalidade brasileira e portuguesa, e BB, instauraram ação especial de revisão de sentença estrangeira.

Para tanto, e em síntese, alegaram que por escritura pública outorgada em 23.5.2017 no Tabelião do … Tabelionato de Notas da cidade de …, Estado …, Brasil, formalizaram, entre si, uma «união estável».

Alegaram, ainda, que estabeleceram uma relação familiar, social, afetiva e que residem juntos, inicialmente no Brasil, e, atualmente, em Portugal, mantendo uma convivência análoga à dos cônjuges, há mais de dois anos, contribuindo ambos para a economia do casal, mediante mútuo auxílio em relacionamento tipicamente de marido e mulher.

E que, no ordenamento jurídico brasileiro, a união estável assume a qualidade de instituição familiar, podendo ser constituída por escritura pública perante tabelião de notas, e pode extinguir-se por via consensual através da mesma forma, sem dependência de homologação judicial, por equiparação ao divórcio consensual.

Entendem por isso, que, não obstante os efeitos jurídicos serem distintos, podem encontrar-se semelhanças entre a união estável brasileira e a figura da união de facto consagrada pela legislação nacional no art.º 1º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio.

Em conclusão, pedem que seja revista e confirmada a “sentença” (sic), para que a mesma possa produzir em Portugal todos os seus efeitos legais.

2. Foi ordenado o cumprimento do disposto no art.º 982º, nº 1, do CPC, tendo o Ministério Público emitido parecer no sentido da improcedência da ação.

3. Seguidamente, foi proferido acórdão a julgar a ação improcedente.

4. Inconformados com o assim decidido, os requerentes interpuseram recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

1. Estão reunidos todos os pressupostos de recorribilidade previstos no artigo 985.º, n.º 1, do CPC, pelo que o presente recurso de revista deve ser admitido.

2. O presente recurso reporta-se ao Acórdão proferido em 14/07/2020, no âmbito do processo n.º 95/20…., que correu termos na ….ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, o qual negou a revisão da escritura pública de união estável celebrada pelos Requerentes no Brasil, “subsistindo o seu valor em Portugal como meio de prova”.

3. O Acórdão recorrido decidiu que “a escritura pública outorgada pelos Requerentes no Brasil, de 23.5.2017, ao traduzir uma declaração conjunta de uma união estável entre as duas pessoas declarantes, não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Daí que se dava ter por verificado também o requisito da al. f) do art.º 980º”.

4. A controvérsia surge ao nível do requisito da decisão, ou seja, saber se a escritura pública, in casu, pode ser entendida como uma decisão estrangeira relevante para efeitos da sua revisão, se deve ser objeto de revisão para produzir efeitos em Portugal.

5. O Acórdão recorrido, conclui que a escritura pública não deve ser objeto de revisão para produzir efeitos em Portugal, ainda que não viole valores fundamentais na nossa ordem jurídica.

6. Todavia, in casu, a não confirmação da sentença, essa sim, resultará em grave injustiça.

7. Só quando o resultado da sentença choque flagrantemente os interesses de primeira linha protegidos pelo nosso sistema jurídico é que não se deverá reconhecer a sentença estrangeira, conforme acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2006, relator Oliveira Barros; de 26-06-2009, relator Paulo Sá e de 23-10-2014, processo n.º 1036/124YRLSB.S1, relator Granja da Fonseca.

8. De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-03-2011, relator Fonseca Ramos, processo n.º 214/09.8YRERVR.S1, o Tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do ato jurídico vertido na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na aceção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte aquela decisão, ainda que formalmente não seja exatamente aquilo que a lei interna nacional preenche o conceito de sentença.

9. Nesse sentido, no Acórdão recorrido os Exmos. Desembargadores entendem que “Não se nos oferecem dúvidas sobre a autenticidade da escritura pública estrangeira que os Requerentes celebraram no Brasil, nem sobre a sua inteligibilidade, pelo que se verifica o pressuposto da al. a) do art.º 980º”.

10. No Acórdão recorrido o TR… declarou que a escritura pública outorgada pelos Requerentes no Brasil, de 23.5.2017, não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, pelo que se dá por verificado também o requisito da al. f) do art.º 980º.

11. No tocante aos requisitos legais da revisão e confirmação previstos no art.º 980º, al.s b) a e), do CPC, verificou-se: “impõe-se a respetiva análise conjugada com o subsequente art.º 984º, 2ª parte, daí se extraindo que a lei presume que existem”, em razão da presente ação de revisão não se estabelecer numa relação processual antagónica, mas numa simples demanda ao Estado de atribuição de eficácia à sentença estrangeira.

12. Com efeito, verificou que o reconhecimento de união estável entre duas pessoas entre si conviventes como se de cônjuges se trate, in casu, do ponto de vista da relação pessoal, tem paralelo no sistema jurídico nacional, desde logo de acordo com a Lei nº 7/2001, de 11 de maio, que define esta união como a situação jurídica duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos, e adota medidas para a sua de proteção (respetivo art.º 1º, nºs 1 e 2).

13. O Código Civil brasileiro legitimou no art.º 1723º como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, assim como, no nosso sistema jurídico, a jurisprudência também vem reconhecendo a união de facto como uma instituição familiar.

14. Assim, além do resultado não ser “manifestamente incompatível” com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, conforme descrito no próprio Acórdão recorrido, a revisão da escritura pública para produzir efeitos em Portugal não abala os princípios fundamentais da ordem jurídica interna.

15. Nesse sentido, no acórdão o Tribunal de Relação de Lisboa de 04/02/2020, relatora Micaela Sousa, processo n.º 2490/19.9YRLSB-7, afirma que:

“Adita-se a seguinte passagem elucidativa do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-2017, relator Alexandre Reis, processo n.º 008/14.4YRLSB.L1. S1: O direito brasileiro não exige uma decisão judicial para o reconhecimento da união de facto e o direito português não exige que a prova seja feita por uma declaração da junta de freguesia competente. Em todo o caso, a prova feita por uma declaração da junta de freguesia não tem uma força superior à de uma escritura pública, como escrevem os Professores Francisco Manuel Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, razão pela qual não abalam os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade.” [negritos nossos].

16. De facto, a legislação brasileira autoriza que os interessados compareçam perante notário para fins de declaração e registo por escritura pública da sua relação conjugal, conforme artigos 215º e 1723º a 1727º do Código Civil Brasileiro e Lei 9278/1996, de 10 de outubro.

17. Acresce que, uma relação de convivência entre duas pessoas, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família, pode ser formalizada através da escritura pública declaratória de união estável e esta tem efeitos equivalentes ao do casamento, inclusive para fins de benefícios junto à Segurança Social.

18. Assim, a escritura de união estável deve ser considerada como uma decisão sobre direitos privados abrangida pela previsão do art. 978/1 do CPC, já a produzir efeitos em Portugal.

19. Ressalta-se que a Autora possui autorização de residência de familiar da UE, conforme certificado de registo, que formaliza o direito de residência em Portugal, junto aos autos, com fundamentação no art. 15 da Lei n.º 37/2006, de 09 de agosto

20. O Acórdão recorrido sustenta que não haveria ato de vontade formal do tabelião ou controlo do procedimento, razão pela qual entende que não poderia equiparar a união estável à uma decisão, que possa ser revista.

21. Esta conclusão, contudo, viola manifestamente o atual entendimento de que uma vez emitida pela autoridade administrativa brasileira legalmente competente para o efeito, uma tal escritura pública tem, no ordenamento jurídico daquele país, força igual à de uma sentença que reconheça uma união estável e, assim, deve ser considerada como uma decisão sobre direitos privados.

22. De acordo com o Acórdão do TRL de 10/11/2009, proc. 1072/09.8YRLSB-7; também neste sentido, os acórdãos do STJ de 25/06/2013, proc. 623/12.5YRLSB.SI, e de 12/07/2005, proc.05B1880, o critério a ter em conta paraasujeiçãoaoprocessoderevisãoassentananaturezadasentença,importando avaliar se a decisão estrangeira produz efeitos idênticos ou equivalentes a uma decisão judicial propriamente dita.

23. Nesse cenário, mostra-se ser irrelevante o órgão de que emana, dado que cada Estado é livre em definir as matérias que cabem na competência dos tribunais, não se mostrando o respetivo critério uniforme em todos os Estados.

24. De acordo com o Acórdão do TRL proferido no processo n.º2403/19.8YRLSB, em 24 de Outubro de 2019, pelo relator Pedro Martins, se não aceitar a possibilidade de revisão da escritura declaratória da união de facto, também não se poderá aceitar a escritura declaratória do divórcio, pondo em causa o entendimento reiterado e uniforme de que para que haja uma “decisão” basta que se esteja perante um ato caucionado pela ordem jurídica em que foi produzido.

25. Assim, com este entendimento, o Acórdão do TRL proferido no processo n.º 2403/19.8YRLSB, traz a seguinte jurisprudência do STJ:

“A posição recém-assumida - e que não há razões para considerar consolidada, ao contrário do que diz o MP -, em três acórdãos do STJ (de dois coletivos, um deles com um membro do outro, o que dá 5 juízes conselheiros) e num coletivo do TRL, admite que desde há muito estava assente aquilo que era sintetizado em dois acórdãos do STJ de 2013 (que citam inúmeros outros no mesmo sentido, que, por sua vez, citam muitos outros também nesse sentido, sendo possível retroceder, por aí, até pelo menos 1983, revelando uma jurisprudência reiterada e uniforme):

Ac. do STJ de 22/05/2013, processo 687/12.1YRLSB.S1:

A escritura pública outorgada pelos cônjuges, de acordo com a lei brasileira, com vista ao divórcio consensual por conversão da separação, pode ser fundamento de um pedido de revisão e confirmação de sentença estrangeira, nos termos do art. 1096 do CPC.

Este acórdão só tem o seu sumário publicado (no sítio do STJ na internet), mas tem o seu teor transcrito no acórdão do STJ que se citará de seguida, pelo que se sabe que dizia o seguinte:

“A interpretação do acórdão sob recurso do que seja uma decisão da autoridade administrativa estrangeira peca por demasiado restritiva”.

“O que interessa para a ordem jurídica portuguesa é mais o conteúdo do ato administrativo, ou seja, o modo como regula os ditos interesses privados”.

“Do ponto de vista formal apenas releva que o ato administrativo provenha efetivamente duma autoridade administrativa”.

“Se não ofende a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou esses interesses privados e provém duma autoridade administrativa, estão preenchidos os requisitos para a confirmação do seu conteúdo”.

“Não releva, portanto, o modo ou a via como se chegou à produção desse ato, ou seja, se através duma emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo ato, ainda que de carácter meramente homologatório, ou se de maneira mais «contratual» apenas através das declarações dos outorgantes. Por outras palavras, basta que se trate de um ato caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido (Cfr. artigo 1º da Convenção de Haia Sobre o Reconhecimento dos Divórcios e Separação de Pessoas, de 01/06/1970).”

26. Portanto, o referido entendimento afirma que se, assim não fosse, estaria a denegar a força do dito ato, como idóneo para produzir os seus efeitos, como se de sentença fosse. Ou seja, estava-se a denegar a competência da entidade que o produziu, quando é certo que a competência para o ato, como é de jurisprudência, é definida pela lei nacional dessa entidade.

27. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 11-12-2019, relator luís Filipe Sousa, processo n.º 1535/19.7YRLSB afirmando que:

“A ordem jurídica brasileira atribui efeitos e reconhece a união estável, formalizada por escritura pública, sem necessidade de intervenção judicial. E, no que tange quer à extinção do casamento por divórcio consensual quer à extinção da união estável, não exige que as escrituras que os determinam sejam objeto de homologação judicial. Nos termos do artigo 1º da Convenção da Haia sobre Reconhecimento de Divórcios e Separações de Pessoas (Resolução da Assembleia da República n.º 23/84), «A presente Convenção aplica-se ao reconhecimento num Estado contratante de divórcios e separações de pessoas obtidas noutro Estado contratante na sequência de um processo judicial ou outro oficialmente reconhecidos neste último Estado e que aí produzam efeitos legais». Ou seja, a aplicação da convenção não está condicionada à existência de um processo judicial, mas de um procedimento que seja reconhecido no outro Estado e que aí produza efeitos legais. Esta Convenção reforça o que acima foi dito no sentido de que a interpretação do conceito de sentença/decisão não deve ficar limitado ao quadro concetual do Estado onde se procede à sua revisão.” [negritos nossos]

28. Portanto, para concluir pela não revisão da união estável que se pretende revista, o Acórdão recorrido conheceu de mérito.

29. Em suma, é nosso entendimento que não assiste qualquer razão à decisão proferida, tendo a mesma efetuado uma interpretação restritiva. Com efeito, procedeu-se a uma análise incompatível, no nosso entendimento, quer com o estatuído na lei, quer com a teleologia da norma.

30. Ac. do STJ de 29/01/2019, proc. 896/18.0YRLSB.S1 [que não juntaram, mas que o GAJD deste TRL obteve junto do STJ; o acórdão não está publicado na base de dados da DGSI/MJ], que tem o seguinte sumário (publicado no sítio do STJ na internet):

I – A escritura pública, lavrada em cartório do registo civil situado no Brasil, que reconhece a “união estável e de endereço comum” entre uma pessoa com nacionalidade brasileira e outra com nacionalidade portuguesa, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença.

II – Verificados os requisitos previstos no art. 980º do CPC, e não relevando saber se a referida escritura é suficiente para atribuir nacionalidade portuguesa ao membro com nacionalidade brasileira, como pretendido, deve a mesma ser revista e confirmada por tribunal português.

31. Efetivamente, a forma como o reconhecimento da união de facto teve lugar na escritura pública realizada no Brasil, não afeta qualquer princípio de ordem pública internacional portuguesa, tal como declarado no Acórdão recorrido.

32. Além disso, a escritura pública declaratória de união estável apresentada para revisão e confirmação não se reconduz a um simples meio de prova, para efeitos do estatuído na art. 978.º, n.º 2 do CPC.

33. De facto, a escritura pública, lavrada em cartório do registo civil situado no Brasil, que reconhece a união estável, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença, e, assim, deve ser considerada como uma decisão sobre direitos privados, em condições de realizar a revisão em Portugal.

34. Acresce que se encontram semelhanças entre a união estável brasileira e a união de facto consagrada na legislação nacional no art. 1º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, cujo n.º 2 define como “a situação jurídica de duas pessoas que independentemente do sexo vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”, conforme ocorre, in casu, com a escritura pública que se pretende revista.

35. Posto isto, a decisão encontra-se em condições de ser revista e confirmada em Portugal nos termos do disposto no artigo 978.º e seguintes do Código de Processo Civil.

Nestes termos, deve o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado e substituído por outro que julgue procedente o pedido formulado pelos Autores de revisão e confirmação de sentença estrangeira, com todas as consequências legais, assim se fazendo JUSTIÇA!

5. O Ministério Público pronunciou-se no sentido da confirmação do acórdão recorrido.


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6. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n. º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.

Sendo assim, a única questão de que cumpre conhecer consiste em saber se estão reunidos os requisitos legais de que depende a procedência da ação de revisão e confirmação, prevista nos art.s 978 e ss. do CPC.


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II – Fundamentação de facto


7. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1- AA, luso-brasileiro, e BB, brasileira, outorgaram, em … de maio de 2017, no Tabelião do …º Tabelionato de Notas da cidade de …, Estado da …, na República Federativa do Brasil, uma escritura pública de União Estável;

2- Nessa escritura pública, os aqui Requerentes declararam, além do mais, o seguinte1:

«(…)»

3 - O A. é nacional português por atribuição da nacionalidade pelo registo do assento de nascimento n.º 1…9/2…7 pela Conservatória dos Registos Centrais;

4 - A A. é de nacionalidade brasileira, portadora de licença de residência de familiar, temporária, nº 5…0, com atribuição de NIF e número de beneficiário da Segurança Social, em Portugal.

8. Por sua vez, foi considerado não provado que:

Os AA. nutrem uma relação familiar, social, afetiva, e residem juntos desde a morada em …-…, Brasil, atualmente, com residência em Portugal, na Rua …, 8…5D, …-… Porto;

Os AA. mantêm entre si a condição de conviventes de facto, análoga à dos cônjuges há mais de dois anos, ambos contribuindo para a economia do casal, mediante mútuo auxílio em relacionamento tipicamente de marido e mulher.


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III – Fundamentação de Direito

9. Vêm os requerentes interpor recurso de revista do acórdão proferido pela Relação do Porto que negou “… a revisão da escritura pública de união estável celebrada pelos Requerentes no Brasil …”, sustentando que a escritura de união estável deve ser revista e confirmada, nos termos e para os efeitos do art. 978º, nº1, do CPC.

Não foi esse, porém, o entendimento do acórdão recorrido.

Vejamos, então.

A questão em discussão foi exaustivamente tratada nos acórdãos deste Supremo Tribunal proferidos em 21.03.2019, no proc. nº 559/18.6YRLSB.S1 e em 10.12.2019, no proc. nº 249/18.0YPRT.S2, ambos desta secção, relatados pelo Juiz Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins, em que foi decidido que a declaração exarada em Escritura Pública Declaratória de União Estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que os outorgantes vivem em união de facto não se encontra abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal.

Trata-se de orientação que merece a nossa inteira concordância e que sufragamos, sem reservas.

Efetivamente, e como se escreveu naqueles arestos:

“(…) O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é, em regra, de revisão meramente formal.

Assim, o tribunal português competente para a revisão e confirmação, deve verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa.

Nessa perspetiva, se o tribunal nacional verificar que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa.[1]

Este princípio de revisão formal é atenuado pelo estatuído no artº983º do Código de Processo Civil.

O sistema do direito português, como o do direito brasileiro, é, portanto, o do reconhecimento das sentenças estrangeiras mediante revisão ou controlo prévio (homologação). Antes de confirmada (homologada), a sentença não opera na ordem jurídica nacional os efeitos que lhe correspondem como ato jurisdicional. Ela é simplesmente um facto jurídico, cuja eficácia está pendente até que sobrevenha a condição legalmente requerida (condicio uiris), que é a decisão de confirmação ou homologação proferida no referido processo especial de revisão de sentença estrangeira.[2]

(…)

Nas palavras de Ferrer Correia, “reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem, Estado a quo), ou pelo menos alguns desses efeitos”.[3]

(…)

O princípio da harmonia jurídica internacional limita-se a afirmar que o direito aplicável deve ser definido, por forma a que a solução a encontrar seja, tanto quanto possível, idêntica à assumida pelos outros Estados, em especial, por aqueles que, em relação ao mesmo litígio, reclamam a competência dos seus Tribunais, não assumindo, portanto, o conteúdo da decisão qualquer importância na determinação da lei aplicável.

(…)

Não se trata de um sistema em que o tribunal nacional tenha que examinar o processo estrangeiro no qual foi proferida a sentença revidenda e, achando-a conforme, confirmá-la, dando-lhe o “exequatur”, o que implicaria maior morosidade e, levado até ao fim, inutilizaria a sentença estrangeira, obrigando à repetição de todo o processo, no foro nacional.

Não há, propriamente, um exame da sentença revidenda, no sentido de que o tribunal de revisão não aprecia o seu mérito, ou seja, se naquela sentença o julgamento foi ou não acertado.

No entanto, existe sempre um limite para esta subserviência perante decisões estrangeiras: a não violação dos princípios de ordem pública internacional do Estado Português.[4]

(…)

A exigência deste requisito está em consonância com o artº 22º do Código Civil, que estabelece que não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português.

No caso de revisão de sentença, a mesma só não será concedida quando contiver decisão que conduza a um resultado manifestamente incompatível com esses princípios.

Regressando, agora, ao caso em apreço:

Os requerentes pedem a revisão e confirmação de uma Escritura Pública de Declaração de União Estável lavrada no Tabelionato de …, a cargo da Tabeliã …, da qual consta, além do mais, que declararam conviver, desde 8.3.2015, sob o regime de união estável, como marido e mulher, sendo responsáveis pela manutenção do lar comum.

Estabelece-se no art. 978º nº1, do CPC que “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.” E no nº2, deste preceito estipula-se que “não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa.”.

A respeito do conceito de «decisão», a que se refere o normativo citado, refere Luís de Lima Pinheiro[5]que, por “decisão” se deve entender qualquer ato público que, segundo a ordem jurídica do Estado de origem, tenha força de caso julgado.

Sucede que a escritura pública, cuja revisão e confirmação vem peticionada nesta ação, se limita a atestar as declarações dos requerentes, sem que o Tabelião tenha sobre elas feito incidir qualquer juízo vinculativo, com força de caso julgado, e que, enquanto tal, tivesse competência para emitir.

Em suma: a mencionada escritura invocada pelos requerentes não se encontra abrangida pela previsão do art. 978º, nº1, do CPC, valendo apenas como meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador.

Neste sentido, num caso similar ao destes autos, se pronunciou também o ac. do STJ, proferido em 28.2.2019, no proc. nº 106/18.0YRCBR.S1[6], desta mesma secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Nuno Pinto de Oliveira, onde se pode ler:

“O direito brasileiro não exige uma decisão judicial para o reconhecimento da união de facto[7] e o direito português não exige que a prova seja feita por uma declaração da junta de freguesia competente. Em todo o caso, a prova feita por uma declaração da junta de freguesia não tem uma força superior à de uma escritura pública.

Como escrevem os Professores Francisco Manuel Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “A prova da união de facto é normalmente testemunhal; mas a possibilidade de prova documental não deve excluir-se. Interpretando com largueza o termo vida no artº 34º nº 1, do Decreto-Lei nº 135/99, de 22 de Abril, que regula o modo como “os atestados de residência, vida e situação económica dos cidadãos” devem ser passados pelas juntas de freguesia, pode admitir-se que a junta de freguesia da residência dos interessados passe atestado comprovativo de que uma pessoa vive ou vivia em união de facto com outra. (…)

Não se tratando, porém, normalmente, de facto atestado “com base nas perceções da entidade documentadora” (artº 371º nº 1, C.Civ), o documento não faz prova plena, podendo provar-se que o facto não é verdadeiro, pois a união de facto não existiu ou não existiu durante determinado período. O documento prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”[8].

Entre a força probatória da declaração emitida pela junta de freguesia e da escritura pública há uma relação de semelhança — como a declaração emitida pela junta de freguesia, a escritura “prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”.

E continua o referido acórdão de 28.02.2019, “nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem (muito menos) a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o ato composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” - com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos Requerentes não pode ser confirmada / revista”.

Em face do exposto, impõe-se concluir pela total improcedência do recurso.


***


IV – Decisão

10. Nestes termos, acorda-se em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 12.11.2020


Relatora: Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado

1º Adjunto: Oliveira Abreu

2º Adjunto: Ilídio Sacarrão Martins

Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15º-A, do Decreto-Lei nº 20/2020, atesto que, não obstante a falta de assinatura, os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos deram o correspondente voto de conformidade.

______

[1] Cf. Alberto dos Reis – “Processos Especiais”, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, pág.141.
[2] Cf. Ferrer Correia “O Reconhecimento das Sentenças Estrangeiras no Direito Brasileiro e no Direito Português”, in “Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado”, Almedina, 1989, pág.267.
[3] In Lições de Direito Internacional Privado, I, Almedina, 2000, p. 454. “Os efeitos próprios da sentença considerada como tal – os que derivam da sua natureza de ato de jurisdição – são o efeito de caso julgado e o efeito executivo”.
[4]Ac STJ de 27.04.2017, Proc.º nº 93/16.9YRCBR.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[5] In Direito Internacional Privado, Volume III, Almedina 2002, pág.240.
[6]  Disponível em www.dgsi.pt.
[7] Como se escreve em Ricardo Fiúza / Regina Beatriz Tavares da Silva (coord.), Código Civil comentado, 8.ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2012, “[é] indispensável a demonstração da existência de união estável, em ação própria, em caso de litígio entre os interessados, sob pena de serem atribuídos direitos, inclusive sucessórios, sem que estejam presentes os respetivos requisitos. No entanto, com os instrumentos processuais da tutela antecipada e das ações cautelares, liminarmente, poderá́ haver o provimento jurisdicional, para acautelar direitos, como, p. ex., em ação de reconhecimento e dissolução de união estável com pedido cumulado de alimentos”.
[8] Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira (com a colaboração de Rui Manuel de Moura Ramos), Curso de Direito da Família, vol. I - Introdução. Direito Matrimonial, 5.ª ed., Imprensa da Universidade, Coimbra, 2016, págs. 71-72.