Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
38/20.1PKSNT.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CID GERALDO
Descritores: RECURSO PENAL
DUPLA CONFORME
REFORMA DE ACÓRDÃO
RETIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS
LAPSO MANIFESTO
IRRECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 07/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Nos termos do art. 613.º, n.º, 1 do CPC, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, o que significa que, decidida a causa, não é possível ao tribunal que a emitiu alterar a decisão. Concede, porém, a lei que, excepcionalmente, possa a decisão ser alterada o que, em processo civil – art. 613.º n.º 2, do CPC – acontecerá quando se justifique rectificar erros materiais – art. 614.º, do CPC – reformá-la quanto a custas e multa ou, dela não cabendo recurso, corrigir erros manifestos na aplicação do direito ou na fixação dos factos – art. 616.º, n.ºs 1 e 2, do CPC – e suprir nulidades – art. 615.º n.ºs 1 e 2 do CPC.
II - Porém, mais restritivo é o regime do processo penal que arreda inapelavelmente a possibilidade da reforma quanto a erro manifesto, de direito ou de facto, e, no tocante à rectificação de erros materiais – para o que dispõe da norma, específica, do art. 380º –, apenas admite eliminação do «erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade» até ao ponto em que «não importe modificação essencial» do decidido, entendimento jurisprudencial claramente dominante neste Supremo Tribunal.
III - Mas, mesmo que assim não se entenda, são pressupostos da aplicação do art. 616.º, n.º 2, do CPC, que não haja lugar a recurso e que tenha ocorrido lapso manifesto. O lapso manifesto a que se reporta esta norma tem de ser evidente e incontroverso, “não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido”.
Decisão Texto Integral:


Proc.º nº 38/20.1PKSNT.L1.S1  

Reforma de acórdão

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.

I. RELATÓRIO

I.1. Por acórdão proferido em 23 de abril de 2021, pelo Juízo Central Criminal ..., o arguido, AA, foi condenado, pela prática, em coautoria material com os arguidos BB, CC e DD, dos seguintes crimes:

- de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punível pelos artigos 131.º, e 132.º, n.º 2, alínea h), do Código Penal, e artigo 4.º do DL n.º 401/82, na pena de 8 (oito) anos de prisão; e

- de um crime ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada, previsto e punível pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.os 1, alínea a), e 2, por referência à alínea h) do n.º 2 do 132.º, todos do Código Penal, e artigo 4.º do DL n.º 401/82, na pena de 1 (um) ano de prisão.

- Em cúmulo jurídico das sobreditas duas penas, o arguido AA foi condenado na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.

- Mais foi condenado a pagar a EE, mãe da vítima FF, em regime de solidariedade com os coarguidos não recorrentes, a quantia de 25.000 euros, arbitrada nos termos do art. 82.º-A do CPP, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora

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I.2. Não se conformando com o Acórdão condenatório proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, o arguido AA, recorreu para o TRL, impugnando alguns dos factos provados (conclusões 4.ª, 8.ª e 10.ª a 13.ª), invocando a violação do in dubio pro reo (conclusões 14.ª a 19.ª), questionando o enquadramento da agressão ao ofendido GG no tipo de ofensa à integridade física qualificada por que foi condenado (conclusões 20.ª a 33.ª), preconizando que a sua actuação contra o malogrado FF deve ser reconduzida ao crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, e 145.º, n.os 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. h), todos do CP, e punida com a pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na execução (conclusões 36.ª a 39.ª), defendendo, para a hipótese de este último entendimento não prevalecer, a aplicação de uma pena inferior a 5 anos de prisão suspensa na execução pela prática do crime de homicídio qualificado (conclusão 40.ª) e, por último, a improcedência, condicionada à sua absolvição do crime de homicídio qualificado, do arbitramento da indemnização civil (conclusão 41.ª).

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I.3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por Decisão Sumária de 17/11/021, proferida pelo relator, rejeitou, por manifesta improcedência substantiva, o recurso interposto pelo recorrente.

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I.4. O arguido reclamou para a conferência invocando a nulidade da decisão sumária por falta de fundamentação – discute o conceito de “manifesta improcedência” - artº 420 n.º 1 al. a), pretendendo-o afastar como fundamento da decisão sumária, concluindo, assim, que a decisão não estava fundamentada - e omissão de pronúncia - por o tribunal não se ter pronunciado acerca do que considerava ser um erro de Direito, que já antes tinha invocado, (remetendo para os n.º 20 a 35 das Conclusões do recurso que havia interposto do Acórdão proferido em 1ª instância)

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I.5. Em Conferência, o Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão proferida em 10/2/022, confirmou, a Decisão Sumária proferida, indeferindo a reclamação apresentada para a conferência por AA.

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I.6. Desse acórdão veio o arguido AA interpor recurso para o STJ, concluindo que o acórdão do TRL é nulo por falta de fundamentação quanto ao exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal da 1.ª instância e por omissão de pronúncia quanto à questão do enquadramento jurídico-criminal dos factos em que é ofendido GG, insistindo que a sua actuação contra a vítima FF deve ser subsumida ao crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. h), todos do Código Penal e punida com a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na execução, que a ser absolvido do crime de homicídio qualificado, o arbitramento da indemnização civil deve improceder, e que, a manter-se o entendimento de que cometeu um crime de homicídio qualificado, a pena deve ser fixada em medida igual ou inferior a 5 anos de prisão e ficar suspensa na execução com regime de prova.

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I.7. Por acórdão de 23.06.2022, este Supremo Tribunal julgou o recurso improcedente, por inadmissibilidade legal, face ao disposto nos arts. 420.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.º 2 e 3, 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), todos do Código de Processo Penal.

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I.8. Notificado do acórdão, vem agora o arguido requerer a sua reforma “ao abrigo dos artigos 666.º e 616.º do CPC, aqui aplicáveis ex vi do artigo 4.º do CPP

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II. FUNDAMENTAÇÃO


II.1. Antes de mais, adiantamos desse já que, nos termos do art.º 613º n.º 1 do CPC, aplicável em processo penal por via do art.º 4º do CPP, «Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa», o que significa que, decidida a causa, não é possível ao tribunal que a emitiu alterar a decisão. Concede, porém, a lei que, excepcionalmente, possa a decisão ser alterada o que, em processo civil – art.º 613º n.º 2 do CPC – acontecerá quando se justifique rectificar erros materiais –  art.º 614º do CPC – reformá-la quanto a custas e multa ou, dela não cabendo recurso, corrigir erros manifestos na aplicação do direito ou na fixação dos factos – art.º 616º n.os 1 e 2 do CPC –  e suprir nulidades – art.º 615º n.os 1 e 2 do CPC.
Porém, mais restritivo é o regime do processo penal que arreda inapelavelmente a possibilidade da reforma quanto a erro manifesto, de direito ou de facto, e, no tocante à rectificação de erros materiais – para o que dispõe da norma, específica, do art.º 380º –, apenas admite eliminação do «erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade» até ao ponto em que «não importe modificação essencial» do decidido, entendimento jurisprudencial claramente dominante neste Supremo Tribunal – neste sentido, cfr. o Acórdão do Pleno das Secções Criminais de 6.2.2014, Proc. n.º 414/09.0PAMAI-B.P1-A.S1, e recente Acórdão do STJ de 2.6.2021, 5ª Secção, Relator: Eduardo Loureiro, Proc. nº 156/19.9T9STR-A.S1.
Assim sendo, não poderia deixar de ser indeferido o requerimento.
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II.2. Mas, mesmo que assim não se entenda, não poderemos deixar de ter em atenção o artº 616.º, n.º 2, do CPC, quando dispõe:
Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”.
São pressupostos da aplicação desta norma que não haja lugar a recurso e que tenha ocorrido lapso manifesto:
- na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos [(al. a)];
- na omissão de consideração de “documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, implicasse decisão diversa da proferida” [al. b)].
O lapso manifesto a que se reporta esta norma tem de ser evidente e incontroverso, “não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido”.[1]
Não se trata de “erros revelados pelo próprio contexto da sentença ou de peças do processo para que ela remete, nem de omissões sem consequência no conteúdo da decisão, mas de erro revelado por recurso a elementos que lhe são exteriores[2]
No mesmo sentido tem decidido a jurisprudência deste Supremo Tribunal, citando-se, por todos, o recente acórdão deste Supremo Tribunal de 02/12/2021, proc. 9/21.0YFLSB, da Secção do Contencioso, Relator: Fernando Samões:
«I – É pressuposto da reforma da sentença ou acórdão ao abrigo do disposto no art. 616.º, n.º 2, do CPC, além de não caber recurso da decisão, a existência de lapso manifesto na determinação da norma aplicável, na qualificação jurídica dos factos ou na desconsideração de documentos com força probatória plena ou outros meios de prova com efeito semelhante, com influência direta e causal no resultado, se atendidos.
II – O lapso manifesto tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos exteriores à sentença ou acórdão reformandos, não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido».
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 II.2. Requer o autor a reforma do acórdão de 23.06.2022, deste Supremo Tribunal por entender que o mesmo “tem por base um normativo legal que o reclamante considera inconstitucional na interpretação que lhe é dada pelo acórdão reclamado: o artigo 400.º, n.º 1, al. f), do CPP” [n.º 5 da reclamação] e que, por conseguinte, impunha-se “ao STJ conhecer […] i) da invocada nulidade da decisão por falta de fundamentação; ii) da alegada nulidade por omissão de pronúncia relativamente à questão do enquadramento jurídico-criminal dos factos em que é ofendido GG […]; iii) subsidiariamente, do erro de direito/erro de enquadramento jurídico balizado no recurso […]; também supletivamente, de que a actuação do arguido contra a vítima FF deve ser subsumida ao crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. h), todos do C.P, e punida com a pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na execução […]; e, ainda subsidiariamente, na hipótese de se perspectivar o crime de homicídio qualificado, na vertente de dolo eventual, tendo presente a moldura abstrata aplicável, em face da atenuação especial da pena, de que a pena a aplicar ao arguido deve ser sempre inferior a 5 anos de prisão ou, pelo menos, igual a 5 anos, e deve ser suspensa, na respectiva execução, pelo período de 5 anos, com regime de prova.” [n.º 11 da reclamação].

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II.3. Porém, percorrido o acórdão reformando, verifica-se que a decisão aí tomada relativamente às questões objecto do requerimento de reforma está devidamente fundamentada, tem o amparo da jurisprudência [inclusive da jurisprudência do próprio TC], e, por conseguinte, não resulta de qualquer manifesto lapso.

Com efeito, quanto à improcedência do recurso por inadmissibilidade legal, face ao disposto nos arts. 420.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.º 2 e 3, 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), todos do Código de Processo Penal, o acórdão encontra-se devidamente fundamentado, nomeadamente, quando refere:

« (…) Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP ou, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21.12, visto o disposto no art. 5.º do CPP (ou seja, desde que da aplicabilidade imediata da lei nova não haja um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido ou quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo), sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432º.

Por sua vez, estipula o artº 432º, nº 1 do CPP [com a nova redação às alíneas a) e c) da Lei n.º 94/2021 de 21 de dezembro – artigo 11.º - que procede à alteração ao Código de Processo Penal].

1. Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

Nos termos da al. f) do mesmo art.º 400.º n.º 1, também «não é admissível recurso […] de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».

Assim, nos termos dos arts. 432.º, n.º 1, al. c), e 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, apenas são recorríveis para este Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos do Tribunal da Relação que, confirmando decisão de 1.ª instância, apliquem pena de prisão superior a 8 anos de prisão.

No caso presente o arguido AA foi condenado na 1.ª instância nas penas parcelares de 8 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.º 2, al. h), do CP, e 4.º do DL 401/82, de 23.09, e de 1 ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, e 145.º, n.os 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. h), todos do C.P, e 4.º do DL 401/82, de 23.09, e na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.

O arguido recorreu para o TRL, tendo sido o recurso rejeitado por decisão sumária do relator, tendo reclamado para a conferência, indeferindo o TRL a reclamação, no acórdão recorrido, não acolhendo a pretensão do recorrente de o ilibar da comparticipação nos crimes pelos quais foi condenado.

Ou seja, a decisão sumária (primeiro), e o acórdão do TRL (depois), mantiveram integralmente (confirmaram) o acórdão do tribunal colectivo ... no que toca à factualidade provada, à respectiva qualificação jurídica e às penas.

Esse juízo confirmativo garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32.º, n.º 1 da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (arts. 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP).

Daqui resulta que o recurso deve ser rejeitado na parte respeitante às condenações nos crimes e nas penas parcelares que lhes correspondem – 8 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.º 2, al. h), do CP, e 4.º do DL 401/82, de 23.09 e de 1 ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada.

Tem sido esta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, em interpretação conforme à Constituição, de acordo com as decisões do Tribunal Constitucional.

Assim se decidiu, por exemplo, no acórdão do STJ de 11-03-2021 (Rel. Helena Moniz), em cujo sumário pode ler-se:

II – Tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, onde se impede a possibilidade de recurso das decisões do Tribunal da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, e o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, segundo a jurisprudência deste STJ, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão; e das condenações em pena de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão, quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.” E, mais recentemente, no acórdão de 15/09/2021, proferido pela mesma Relatora, proc. 4426/17.2T9LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.

No mesmo sentido pode ler-se no acórdão do STJ de 17-02-2021 de 29.04.2015 (Rel. Raul Borges):

I – As penas aplicadas pelos crimes cometidos pelo recorrente, e integralmente confirmadas pela Relação, foram inferiores a 8 anos de prisão, sendo nos casos de furto qualificado – 2 anos e 2 meses e 2 anos e 5 meses – detenção de arma proibida – 1 ano e 4 meses – e roubo agravado – 6 anos de prisão. Em cúmulo jurídico, foi aplicada a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.

II – O STJ tem entendido, que em caso de dupla conforme total, como ora ocorre, à luz do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, são irrecorríveis as penas parcelares, ou únicas, aplicadas em medida igual ou inferior a 8 anos de prisão e confirmadas pela Relação, restringindo-se a cognição às penas de prisão, parcelares e única(s), aplicadas em medida superior a 8 anos”, ou no acórdão do STJ de 24-06-2021, proc. 2231/16.2T9LSB.S1. L1.S1, 5ª Secção (Rel: António Gama), com o seguinte sumário:

I- O acórdão da Relação que, em recurso, confirma integralmente a decisão da 1.ª instância, que aplicou penas singulares não superiores a 8 anos de prisão não é, nessa parte, recorrível para o STJ”.

No sentido da conformidade constitucional do entendimento do Supremo, o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que o direito ao recurso como garantia de defesa do arguido não impõe um duplo grau de recurso.

Com efeito, a constitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na actual redacção, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que decidiu não a julgar inconstitucional – acórdão n.º 263/2009, de 25 de Maio, processo n.º 240/09-1.ª Secção (Acórdãos do Tribunal Constitucional – ATC –, volume 75, pág. 249), acórdão n.º 174/2010, de 4 de Maio, processo n.º 159/10-1.ª Secção.

Por outro lado, no acórdão n.º 385/2011, de 27 de Julho de 2011, proferido no processo n.º 470/11, da 2.ª Secção, foi decidido “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado” e, mais recentemente, no acórdão nº 232/2018, de 2 de Maio de 2018, proferido no processo n.º 1291/2017, da 1.ª Secção, foi decidido “não julgar inconstitucional a norma contida nos artigos 400.º, n.º 1, alínea f), e 432.º, n.º 1 alínea b), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido da irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões dos tribunais da relação que, sendo proferidas em recurso, tenham aplicado pena de prisão não superior a oito anos e inferior à que foi aplicada pelo tribunal de primeira instância, alterando uma parte da matéria de facto essencial à subsunção no tipo penal em causa”.

Isto significa, visto o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (que indeferiu a reclamação, confirmando a Decisão Sumária proferida) é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), apenas podendo ser apreciado quanto à pena única que lhe foi imposta por ser superior a 8 anos de prisão.

Não sendo admissível o recurso, igualmente não podem ser analisadas todas as questões relativas à parte da decisão irrecorrível — “Como tem sido afirmado na jurisprudência do STJ, estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relativas à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.o do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como de questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito.” (Ac. do STJ de 14.03.2020, proc. nº 22/08.3JALRA.E1.S1, relator: Lopes da Mota, invocado no citado acórdão de 15/0972021, da 5ª Secção deste Supremo tribunal, no proc. 4426/17.2T9LSB.L1.S1.

Neste sentido, podemos consultar, ainda, o acórdão do STJ de 06.01.2020, proc. nº 266/17.7GDFAR.E1.S1 (Relator: Nuno Gomes da Silva), onde se consigna: “IV – Nessa mesma linha de entendimento da jurisprudência também é de considerar que «toda a decisão referente a crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, incluindo questões conexas como a violação do princípio “in dubio pro reo”, invalidade das provas, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [e demais vícios a que se refere o nº 2 do art. 410º CPP – interpolação] violação do no 2 do art. 30º do CP, qualificação jurídica dos factos, consumpção entre os crime em concurso, violação do princípio da proibição da dupla valoração, reincidência e medida das penas parcelares, já conhecidas pela Relação, não é susceptível de recurso para o STJ».V – Nesse sentido, já se pronunciou também o Tribunal Constitucional no Ac. nº 659/2011 (e também nos Acórdãos nºs 194/2012, 399/2013 e 290/2014 remetendo estes expressamente para a fundamentação do Acórdão nº 659/2011) decidindo “não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido em recurso pela relação que confirme a decisão da 1ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão”, ou o já citado acórdão do STJ de 24-06-2021, proc. 2231/16.2T9LSB.S1. L1.S1, 5ª Secção (Rel: António Gama), “5. A irrecorribilidade das penas parcelares não significa apenas que a sua medida fica intocada, mas coenvolve a insindicabilidade de todo o juízo decisório – absolvição ou condenação – efetuado (ac. STJ 14.03.2018, Lopes da Mota, disponível em www.dgsi.pt) incluindo todas questões processuais relativas a essa decisão no tocante às penas singulares. De outro modo não se verificava irrecorribilidade” (…)».

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II.4. E, pese embora se tenha decidido que, não sendo admissível o recurso, igualmente não podem ser analisadas todas as questões relativas à parte da decisão irrecorrível [nomeadamente a invocada nulidade da decisão por falta de fundamentação, ou da alegada nulidade por omissão de pronúncia quanto à questão do enquadramento jurídico-criminal dos factos em que é ofendido GG (conclusões 17.ª a 23.ª), que a sua actuação contra a vítima FF deve ser subsumida ao crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. h), todos do C.P, e punida com a pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na execução (conclusões 25.ª, 27.ª e 28.ª)], o certo é que o acórdão reformando não deixa de referir que as nulidades invocadas não se verificam, visto que a Decisão Sumária especificou sumariamente os fundamentos da decisão, nos termos, aliás, do disposto no art. 420.º, n.º 2 do CPP, e também se pronunciou quanto à apreciação do dito “erro de direito”, ao exprimir a consonância relativamente à qualificação jurídica a que os factos foram subsumidos, ou seja, aos tipos de crime definidos, dos quais resultou a aplicação das referidas penas (conforme vem referido nas notas 4 e 5 do acórdão reformando).

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II.5. Verifica-se, assim, que o requerente não alicerça verdadeiramente o seu pedido de reforma em nenhuma das circunstâncias previstas no mencionado art.º 616.º (erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou existência no processo de documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida), mas, antes, na discordância do julgado (neste sentido, cfr. citado acórdão deste Supremo Tribunal de 02/12/2021, proc. 9/21.0YFLSB, da Secção do Contencioso: III - Não é permitida a reforma do acórdão quando apenas é fundada em manifestações de discordância do julgado e se pretende a alteração do decidido).
Com efeito, repetindo argumentos constantes da motivação do recurso apresentado, o requerente tece várias considerações que mais não são do que a manifestação de desacordo relativamente ao acórdão reformando, sem apontar ou demonstrar qualquer erro manifesto, palmar ou evidente quanto ao decidido, pretendendo alcançar com a reforma que o STJ retroceda e reaprecie novamente o recurso, em flagrante afronta ao princípio da extinção do poder jurisdicional consagrado no art. 613.º, n.º 1, do Código de Processo Civil [indiscutivelmente aplicável ao processo penal].
Nestes termos, não se vislumbra que tenha ocorrido qualquer “lapso manifesto”, na acepção do n.º 2 do art.º 616.º do CPC, que sustente a pretendida reforma do acórdão, pelo que a pretensão do requerente tem que improceder.

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III. DECISÃO


Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a pretendida reforma do acórdão.
Custas do incidente pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs [art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC e art.º 7.º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro) e tabela II anexa]

 

Lisboa, 14 de Julho de 2022

Cid Geraldo (Relator)

Leonor Furtado

Eduardo Loureiro (Presidente)

 

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[1] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, 2018, págs. 738-739.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 742.