Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
78/11.1TBMDB.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
POSSE
PENHORA
BENFEITORIAS
RESSARCIMENTO
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO ( REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO ) - DIREITOS REAIS / POSSE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PENHORA DE BENS IMÓVEIS.
Doutrina:
- Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, II, AAFDL, 1985, p. 306 ; Acção Executiva, AAFDL, 1980, p. 100.
- Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 2006, p. 252.
- Miguel Assis Raimundo, in Cadernos de Direito Privado, n.º 26, p. 51.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. II, 4.ª ed., pp. 91/92.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 204.º, N.º3, 216.º, 442.º, 754.º, 755.º, N.º1, AL. F), 819.º,1251.º, 1253.º, 1263.º, AL. A), 1273.º, N.ºS 1 E 2, 1682.º-A, N.º1, AL. A)
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC), NA REDACÇÃO ANTERIOR À INTRODUZIDA PELO D.L. N.º 38/2003, DE 08.03, ATENTO O PRECEITUADO NO ART. 4.º, N.º/S 1 E 2 DO RESPECTIVO PREÂMBULO: - ARTIGOS 842.º, N.º1, 865.º, N.ºS 1 E 2, 869.º, NºS 1 E 2, 886.º, 886.º-A, NºS 1, ALS. A) E B) E 2, 889.º, NºS 1 E 2, 890.º, N.ºS 1 A 4, 891.º, 900.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 09.04.92, BMJ 416º/700.
-*-

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28.05.02, DE 06.02.07, E DE 05.03.09, TODOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 12.10.04, PUBLICADO NA CJ/STJ - 3º/50.
Sumário :
I - Não tem idoneidade para, por si só, conferir posse em nome próprio, a “traditio”, efectuada por promitente-vendedor a promitente-comprador, de prédio que, anteriormente, tenha sido objecto de subsistente penhora.

II - Em tal situação, a “traditio” efectuada não o foi por quem, então, poderia ser considerado titular da respectiva posse (o Estado), atenta a correspondente indisponibilidade - inoponibilidade objectiva ou situacional, na terminologia do Prof. Castro Mendes -, sendo, nos termos do disposto no art. 819º do CC, considerados ineficazes em relação ao exequente os actos que envolvam alienação ou oneração dos bens penhorados.

III - A obrigação de ressarcimento, segundo as regras do enriquecimento sem causa, do valor das benfeitorias introduzidas no prédio penhorado pelo promitente-comprador que obteve a respectiva “traditio” do promitente-vendedor não tem natureza “propter” ou “ob rem”.

IV - Por isso, caso aquele prédio tenha sido adjudicado ao exequente, não se transmite para este a obrigação aludida em III, antes continuando a impender sobre quem (no caso, e no binómio enriquecimento-empobrecimento que integra o instituto do enriquecimento sem causa, o aludido promitente-vendedor/executado) era titular do direito de propriedade incidente sobre o prédio penhorado, à data da realização das benfeitorias.

V - Partes integrantes do prédio penhorado são as que assim devam ser qualificadas à sombra do preceituado no art. 204º, nº3, do CC, não deixando de o ser pelo simples facto de, entretanto, terem sido objecto de benfeitorias.
Decisão Texto Integral:

Proc. nº 78/11.1TBMDB.P1.S1[1]

             (Rel. 212)

                          Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 - AA e mulher, BB, instauraram, em 21.04.11, na comarca de Mondim de Basto, acção declarativa, com processo comum e sob a forma ordinária, contra “Caixa CC, S. A.”, pedindo que:

                                                        /

   I - Lhes seja restituída a posse do imóvel em discussão nos autos, ordenando-se que a R. lhes entregue/devolva as chaves do mesmo;

 II - A R. seja condenada a pagar-lhes a quantia de, pelo menos, € 50 000,00, pelas benfeitorias que efectuaram no prédio, acrescida dos juros legais, contados desde a citação até integral pagamento; e

III - A R. seja, ainda, condenada a indemnizá-los, na quantia de € 30 000,00 (€ 15 000,00 para cada um deles), acrescida de juros legais, contados desde a citação até integral pagamento.

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegaram, em resumo e essência:

                                                      /

--- Em 30.12.04, celebraram com DD um contrato escrito, no qual formalizaram um contrato-promessa verbal de compra e venda que haviam outorgado em Agosto de 2004, em que aquele lhes prometeu vender e eles prometeram comprar o prédio identificado na p. i.;

--- Com o acordo verbal, os AA. entregaram ao promitente-vendedor a quantia de € 75 000,00, a título de pagamento integral do preço acordado, do que aquele lhes deu quitação;

--- A parcela de terreno prometida vender foi-lhes, então, entregue, ficando os AA. autorizados pelo promitente-vendedor a realizar as obras e benfeitorias que pretendessem;

--- O promitente-vendedor era, à data, o legítimo possuidor e proprietário da parcela de terreno e, com a aludida “traditio”, passaram, desde então, a ser eles (AA.) os seus legítimos possuidores, nela praticando os actos de posse descritos na p. i. e com os sinais, aí, alegados;

--- A parcela de terreno beneficiava, à data da promessa de venda e da “traditio”, de licenciamento/alvará de construção, que havia sido requerido pelo promitente-vendedor, o qual, naquela data, também já, aí, tinha iniciado a construção de uma moradia que os AA. vieram a concluir;

--- Na conclusão da moradia (aquisição de materiais e pagamento a trabalhadores que executaram as obras) gastaram, pelo menos, a quantia de € 50 000,00;

--- Apesar das várias solicitações verbais que fizeram ao promitente-vendedor, este não se dispôs a celebrar o contrato prometido e apenas em 04.07.07 outorgou uma procuração ao A. com poderes para, designadamente, celebrar negócio consigo mesmo relativamente à dita parcela/lote de terreno;

--- Munido desta procuração, o A. contactou um advogado para que levantasse os documentos necessários e marcasse a escritura de compra e venda, o qual, então, constatou que da ficha do prédio constavam diversas penhoras sobre ele incidentes, impeditivas da concretização da projectada escritura;

--- O imóvel havia sido penhorado e já vendido/adjudicado à R., no âmbito do Proc. executivo nº 386/2002, da 1ª Vara Mista de Guimarães;

--- Confrontados com uma diligência para entrega do imóvel à R., com as benfeitorias que lhe haviam incorporado, os AA. recusaram-se a entregá-lo;

--- Em 11.01.09, na diligência de entrega do imóvel, a mandatária da R., acompanhada de funcionário judicial e de agentes da GNR, obrigaram-nos a sair de casa e a entregar as chaves, sob pena de uso da força, o que fizeram, por se sentirem coagidos e ameaçados;

--- O prédio que a R. penhorou e adquiriu na dita acção executiva (uma parcela de terreno para construção) não corresponde ao que lhe foi entregue (casa com uma sala, 3 quartos, 2 wc, cozinha e parqueamento);

--- Com as benfeitorias introduzidas, o prédio valorizou-se em, pelo menos, € 36 694,46, com as quais a R. se está a enriquecer ilegitimamente, tanto mais que o colocou à venda pelo preço de € 63 000,00, apesar de o ter adquirido, na aludida execução, por € 38 100,00 e de ele valer, efectivamente, não menos de € 125 000,00;

--- Os AA. consideram-se esbulhados do que lhes pertencia, estão a viver, em situação de favor, em casa de familiares que está degradada e não tem condições mínimas de habitabilidade e sentem-se tristes, deprimidos e inconformados, estando o A. com depressão e ideias suicidas, pretendendo ser indemnizados também destes danos morais.

       Citada, contestou a R., por excepção e por impugnação.

       Naquela vertente, deduziu a excepção peremptória da caducidade da acção de restituição de posse, por decurso do prazo legal de um ano para a sua propositura e invocou a falta de poderes do promitente-vendedor para prometer vender o prédio aos AA., por o mesmo ter sido adquirido quando aquele estava casado com EE e por não ter havido partilha dos bens do casal até à data em que foi celebrado o contrato-promessa.

       Em sede de impugnação, a R. contrariou a essencialidade do que os AA. aduziram na p. i., concluindo pela improcedência das pretensões por si formuladas, uma vez que não reclamaram o seu invocado crédito, proveniente das benfeitorias introduzidas no imóvel, na acção executiva onde este estava penhorado e onde foi adjudicado à R. que, aí, beneficiaria  do direito de retenção por o imóvel lhe ter sido adjudicado sem ónus e/ou encargos e por o direito indemnizatório relativo às benfeitorias poder ser accionado contra o promitente-vendedor, não sendo convocável o regime supletivo do enriquecimento sem causa.

       Replicando, pugnaram os AA. pela improcedência das excepções deduzidas pela R.

       Foi proferido despacho saneador onde, além do mais tabelar, foi relegado para final o conhecimento da excepção da caducidade, com subsequente enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória (b. i.), de que, em vão, reclamou a R.

       Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 02.12.13) sentença que, julgando improcedente a acção, absolveu a R. do pedido.

       Tendo apelado os AA., a Relação do Porto, por acórdão de 01.07.14 (Fls. 280 a 293), decidiu:

   I - Julgando procedente a ampliação do âmbito do recurso, requerida pela recorrida-R., declarar a caducidade da acção de restituição de posse;

  II - Julgar, parcialmente, procedente a apelação e alterar a sentença recorrida, condenando-se a R. a pagar aos AA., a título de benfeitorias, a quantia que vier a ser liquidada, no mais se mantendo o sentenciado.

       Daí a presente revista interposta pela recorrida-R., visando a revogação do acórdão recorrido, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:

                                                     /

1ª - O crédito emergente das despesas efectuadas para conservar ou melhorar a coisa nasceu no momento da incorporação dos melhoramentos, uma vez que o direito de propriedade ficou então valorizado com os mesmos nesse momento em que passaram a integrar o imóvel;

2ª - Também nesse mesmo momento, o possuidor sofreu o inerente empobrecimento decorrente da perda da propriedade dos materiais que incorporou e das despesas que realizou;

3ª - A obrigação de indemnização por benfeitorias é uma obrigação pura, cujo cumprimento pode ser exigido a todo o tempo, independentemente de em caso de benfeitoria útil o devedor não entrar em mora enquanto o crédito não se tornar líquido;

4ª - Deste modo o titular passivo, obrigado à indemnização, é o proprietário do imóvel à data em que ocorre o melhoramento que enriqueceu esse seu direito;

5ª - A entender-se de forma diferente, teria de se concluir-se que nas benfeitorias realizadas antes da penhora, o seu titular, além de beneficiar do direito de retenção, teria de reclamar esse crédito na execução e seria pago prioritariamente ao crédito exequendo, pelo produto da venda do imóvel, e se não reclamasse tal crédito, o mesmo transferir-se-ia para as sobras do produto da venda,– o que demonstrava que o devedor do valor das benfeitorias era o proprietário à data da sua incorporação – sendo as incorporadas após a penhora, o devedor já seria o adquirente!

Uma aberração!

6ª - Com a venda judicial o direito de propriedade do executado sobre o imóvel transferiu-se para a R., ora adquirente;

7ª - Assim e porque à data da venda o executado era titular do direito de propriedade sobre o bem vendido e que este incluía já os melhoramentos levados a cabo pelos ora AA., esse direito de propriedade com o objecto assim constituído, ou seja, integrando já esses melhoramentos, transferiu-se para a R. adquirente;

8ª - O facto de, eventualmente, o preço de aquisição ser inferior ao preço de avaliação actual e ao preço por que os AA., em tempos anteriores, teriam prometido adquirir o imóvel – fundamento invocado pelo tribunal “a quo - não tem qualquer consistência, desde logo porque a venda judicial e a adjudicação foram precedidas de avaliação reportada à fase da venda e fixado o valor mínimo em 70% do valor base;

9ª - A par disso, a venda ou a adjudicação ao exequente são sempre precedidas de publicidade pelo que qualquer interessado o pode adquirir por aquele valor ou valor superior se achar o preço atraente e esse mesmo interessado é convidado a adquirir não o prédio que existia à data da penhora, mas sim o que existe à data da venda e foi avaliado;

10ª - Mesmo a obrigação de mostrar os bens aos interessados demonstra que o bem a vender é aquele que pode ser observado e no estado em que então se encontra;

11ª - Uma vez que a penhora abrange o prédio com todas as suas partes integrantes, não é aceitável que se considerem, para o efeito, apenas as partes integrantes que já existam e não também outras que pudessem vir a ser incorporadas até ao momento da venda;

12ª - A obrigação de indemnizar os AA. pelas benfeitorias e que nasceu na esfera jurídica do proprietário à data da sua incorporação não se transmitiu para o adquirente da coisa em venda judicial, por se tratar de uma obrigação pecuniária e não qualquer obrigação “propter rem” ambulatória que estivesse ligada ao domínio do imóvel e cujo proprietário em cada momento devesse ser também o sujeito que devesse realizar a prestação;

13ª - Também não ocorreu qualquer enriquecimento ilegítimo ou infundado, à luz do direito vigente, por parte da R. adquirente pois que, ainda que o preço de aquisição tivesse sido abaixo do preço de mercado, o mesmo destinou-se a pagar o imóvel tal qual ele existia à data da venda/adjudicação, ou seja, com as benfeitorias incluídas;

14ª - Quem enriqueceu com as benfeitorias foi o proprietário à data da sua realização e incorporação porque as mesmas aditaram um valor à moradia e foram posteriormente consideradas e tidas em conta na alienação em processo executivo; dito de outro modo: foram também utilizadas para pagar uma dívida do executado;

15ª - Decidindo de modo diverso, o tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 777 nº 1, 824, nº 1, 204, nºs 1 a 3, 1273, nº 2 e 473º e segs., todos do C Civil, e ainda os artigos 889 nº 2, 875 nºs 2, 3 e 4, 886 –A nº 2 b) e 3 a 5, 890º, 876º, 891º e 842 nº 1 todos do CPC que se mostrava em vigor à data da execução em que foi adjudicado o imóvel á Ré e que era o aplicável).   

       Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a douta decisão recorrida na parte em que condenou a recorrente CCC a pagar aos AA., a título de benfeitorias, a quantia que viesse a ser liquidada em execução de sentença e substituindo-se por outra que absolva a recorrente.

       Assim se fará JUSTIÇA!

       Inexistem, nos autos, contra-alegações.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                       *

2 - A Relação teve por provados os seguintes factos (que temos por imodificáveis, dada a ausência de fundamento para a respectiva alteração):

                                                       /

1 - Encontra-se descrito, na Conservatória do Registo Predial de Mondim de Basto, sob o nº …, um prédio urbano, sito em …, freguesia de …, ali descrito como sendo composto por parcela de terreno para construção, com a área de 500 m2, e inscrito na matriz sob o art. …;

2 - Através da Ap. 3, de 2001/02/20, foi inscrita a favor de DD, casado com EE, na comunhão de adquiridos, a aquisição, por compra, do prédio supra id;

3 - No Proc. executivo nº 386/2002, que correu termos na 1ª Vara Mista de Guimarães, foi lavrado, em 24.02.03, o seguinte termo de penhora: “(…) Descrição do imóvel: imóvel descrito na C. R. Predial de Mondim de Basto sob o nº …, da freguesia de … e concelho de Mondim de Basto, omisso à matriz, sito no lugar do …, da dita freguesia e concelho (…)”;

4 - Através da Ap. 3, de 2003/05/13, foi inscrita a favor da R. a penhora do prédio supra id.;

5 - O prédio supra id., pelo preço de € 38 100,00, foi adjudicado à R. por despacho de 07.07.06, proferido no Proc. executivo nº 386/2002, que correu termos na 1ª Vara Mista de Guimarães;

6 - Através da Ap. 1, de 2008/04/01, foi registada a favor da R. a aquisição, por adjudicação em venda judicial, do prédio supra id.;

7 - Em 29.04.08, os AA. foram confrontados com uma diligência para entregar o imóvel supra id., tendo sido concedido o prazo para entrega do imóvel por 30 dias;

8 - Os AA., convencidos do direito de posse, propriedade e de retenção sobre o imóvel supra id., não procederam à sua entrega;

9 - Em 11.01.10, a mandatária da, aqui, R., acompanhada de funcionário do tribunal e de agentes da GNR obrigaram os AA. a sair da casa e a entregar as chaves;

10 - O valor do prédio supra id. é superior ao valor pelo qual o mesmo foi adjudicado à R.;

11 - Foi emitido em nome de DD, pela Câmara Municipal de Mondim de Basto, o alvará de construção nº … para construção de uma moradia unifamiliar, composta por r/c e andar, com 163 m2, no prédio referido em 1;

12 - Por documento datado de 04.07.07 e assinado, autenticado em 04.07.07, DD declarou constituir seu bastante procurador o A.-marido, conferindo-lhe, além de outros, poderes para celebrar todo o tipo de escrituras públicas, nomeadamente venda do prédio inscrito na matriz sob o art. … e registado na Conservatória do Registo Predial de Mondim de Basto sob o nº … e negócio consigo mesmo;

13 - Por documento escrito, com a epígrafe “contrato-promessa de compra e venda”, em 30.12.04, assinado por DD, divorciado, natural da freguesia de …, do concelho de …, na qualidade de 1º outorgante e promitente-vendedor, este declarou prometer vender ao 2º outorgante, o, aqui, A.-marido, e este prometeu comprar o prédio id. em 1;

14 - O documento referido em 13 corresponde ao acordado, verbalmente, em Agosto de 2004, entre FF e o, aqui, A.;

15 - O prédio em causa foi entregue, em Agosto de 2004, como referido no documento mencionado em 13;

16 - Em Agosto de 2004, a título de pagamento total do preço acordado, foi entregue pelo A.-marido a DD a quantia de € 75 000,00, tendo sido dada quitação através do documento mencionado em 13;

17 - DD autorizou o A.-marido a realizar as obras que bem pretendesse;

18 - Os AA., por si e seus antecessores, vêm cultivando e colhendo milho, batata, erva, vinhos e outros produtos, ou consentem que o façam, no prédio id. em 1, há mais de 30, 40 e 50 anos, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, na intenção e convicção de que o mesmo lhes pertencia, o que ocorreu até 11.01.10;

19 - Os AA. têm pago todas as contribuições e impostos e custas relativas ao prédio referido em 1, nomeadamente o Imposto Municipal sobre Imóveis referente ao ano de 2005, em 2006.04.19, no montante de € 31,12, o IMI do ano de 2006, no montante de € 32,00, e o IMI do ano de 2007, este com juros e custas, no montante total de € 46,80, em nome de DD;

20 - Os AA. requereram  e foi instalada a baixada de electricidade à EDP e a ligação de água para o local do imóvel id. em 1;

21 - DD iniciou a construção da moradia no prédio referido em 1 e levantou a mesma em grosso;

22 - Após a data referida em 15, os AA. encheram as paredes, colocaram os pisos, colocaram portas e janelas, telhado e procederam aos demais trabalhos e obras que fizeram com que o prédio ficasse em condições de ser habitado;

23 - Para o efeito, contrataram, pelo menos, dois trabalhadores da construção civil;

24 - Os AA. pagaram pela referida mão-de-obra, entre Novembro de 2004 e o ano de 2007, quantia não apurada;

25 - Os AA. gastaram a quantia de € 6 000,00 em portas, janelas, portadas e vidros para fechar a casa;

26 - Os AA. adquiriram materiais de construção necessários à execução das obras referidas, entre o ano de 2004 e o ano de 2010, de valor não apurado;

27 - Os AA. gastaram, ainda, em materiais de construção e mão-de-obra não concretamente discriminados, com a construção da moradia no prédio referido em 1, quantia não apurada;

28 - Os AA., bem como a sua filha menor, estão a viver de favor em anexos de uma casa de familiares que não tem as mínimas condições, por velha e degradada, para os acolher;

29 - O prédio referido em 1, composto por casa de habitação com três quartos, uma sala, uma cozinha, duas casas de banho, garagem no rés-do-chão e terreno de logradouro, tem o valor de, pelo menos, € 125 000,00;

30 - Os AA. encontram-se tristes e inconformados com a sua situação e por verem a sua filha triste;

31 - O A.-marido, em consequência do referido em 30, fala em suicidar-se;

32 - Após 11.01.10, a R. substituiu as fechaduras das portas do prédio referido em 1, ficando com as chaves, e permitiu que, durante uma semana, os AA. lá mantivessem os seus haveres e animais;

33 - Desde a referida data de 11.01.10, a R. vem pagando todas as contribuições devidas relativamente ao prédio referido em 1, mandando efectuar uma limpeza profunda na moradia para, posteriormente, a pôr à venda, colocando-a à venda e anunciando essa intenção na internet e nas agências, entregando a terceiros (mormente imobiliárias) as chaves do imóvel para que estas mostrem o seu interior a interessados na aquisição, de modo ininterrupto, à vista de todos, de modo pacífico, sem oposição de quem quer que seja e no convencimento de que não lesa interesses de terceiros por ser proprietária do mesmo;

34 - A presente acção foi instaurada, em 21.04.11;

35 - Previamente a esta acção, os AA. intentaram contra a R., em 18.01.10, um procedimento cautelar de restituição provisória de posse, que foi julgado improcedente por decisão da 1ª instância, de 29.01.10, confirmada por acórdão da Relação do Porto, de 14.06.10, já transitado.

                                                      *

3 - Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente e não havendo lugar a qualquer conhecimento oficioso, a questão por si suscitada e que, no âmbito da revista, demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso consiste em saber se deve manter-se a condenação daquela a pagar aos AA. o valor dos melhoramentos - por si, apressadamente, qualificados de “benfeitorias” - por si introduzidos no prédio penhorado e, posteriormente, adquirido pela recorrente.

       Apreciando:

                                                     *

4 - I - Nos termos do disposto no art. 1273º, nº 1, do CC, “Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento”. Aditando o respectivo nº 2 que: “Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa”.

       As transcritas disposições legais convocam, por seu turno, o preceituado no art. 216º do mesmo Cod., onde se refere que “Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa (1) As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias (2) São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante (3)”.

       Segundo entendimento que reputamos pacífico[2], a posse a que o art. 1273º do CC se reporta é a verdadeira e própria, ou seja, o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, o mesmo é dizer a que ocorre em nome próprio (art. 1251º do CC). Com efeito, a lei estabelece (art. 1253º do CC) que não são possuidores, mas meros detentores ou possuidores precários, os que exercem o poder de facto sem intenção de agirem como beneficiários do direito, os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito e os representantes ou mandatários do possuidor e, em geral, todos os que possuem em nome de outrem.

                                                      /

II - No caso dos autos, está assente que, atenta a factualidade acolhida em 18 a 27 de 2 supra, em conjugação com o preceituado no art. 1263º, al. a) do CC, os AA. praticaram, de Agosto de 2004 a 11.01.10, actos de posse em nome próprio sobre o prédio que veio a ser adjudicado à R., não tendo, pois, sido relevado, em tal perspectiva, o estatuído na al. b) do mesmo preceito legal, porquanto, estando, já então, penhorado - com subsequente inscrição no registo - o prédio prometido vender, a respectiva “traditio”, efectuada pelo promitente-vendedor para o promitente-comprador, não o foi por quem, então, poderia ser considerado titular da respectiva posse (no caso, o Estado), atenta a correspondente indisponibilidade - inoponibilidade objectiva ou situacional, na terminologia do Prof. Castro Mendes[3] -,”sendo considerados ineficazes em relação ao exequente os actos que envolvam alienação ou oneração dos bens penhorados (art. 819º do CC)”[4]. Isto, para além de, atento o coevo estado civil do promitente-vendedor e regime de bens (comunhão de adquiridos) do respectivo casamento, em conjugação com o preceituado no art. 1682º-A, nº1, al. a) do CC, a sua intervenção isolada no contrato-promessa de compra e venda poder[5] determinar a invalidade deste, com idêntica afectação da convenção de ”tradição” do prédio prometido vender e inerente transmissão da respectiva posse.    

                                                       /

III - Pode, assim, assentar-se em que os AA., na qualidade de respectivos possuidores em nome próprio, introduziram, face à factualidade provada, melhoramentos no sobredito prédio, podendo estes ser qualificados como benfeitorias úteis, porquanto, não sendo indispensáveis para a conservação do mesmo prédio, lhe aumentaram, todavia, o valor.

       Assim, nos termos do disposto no art. 1273º, nº2 do CC e porque entendemos que, atenta a natureza de tais melhoramentos, os mesmos não poderão ser levantados sem detrimento para o prédio benfeitorizado, deverá o titular do respectivo direito de propriedade satisfazer aos AA. o valor dos mesmos melhoramentos/benfeitorias, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.

                                                       /

IV - Mas, qual proprietário? Quem o era ao tempo em que foram efectuadas tais benfeitorias, como decidiu a 1ª instância e pugna a recorrente, ou o proprietário actual, como decidido no acórdão recorrido, com o aplauso dos recorridos?

       Salvo o devido respeito por adversa opinião, não se nos oferecem dúvidas de que só o primeiro termo da alternativa tem suporte legal. Por várias razões:

                                                       /

--- Desde logo, porque a correspondente obrigação não pode, de modo algum, ser qualificada como obrigação “propter” ou “ob rem”, ambulatória ou não ambulatória[6], uma vez que o respectivo sujeito passivo não é determinado pela simples titularidade do direito real de propriedade em causa, mas, antes e como imposto pela lei, por quem, no binómio enriquecimento-empobrecimento que integra o instituto do enriquecimento sem causa, detém a qualidade ou posição de enriquecido, ao tempo em que são introduzidos os melhoramentos e que releva, pois, para o nascimento da correspondente obrigação. O que impõe que tenha de se considerar que tal obrigação não se transmite com a transmissão do direito de propriedade incidente sobre a coisa enriquecida (ou seja, no caso dos autos, para a R.);

--- Depois, porque a R.-adjudicatária do prédio benfeitorizado em nada beneficiou com a introdução dos melhoramentos em que se consubstanciaram as benfeitorias, uma vez que, sem concorrente, pagou o preço mínimo fixado judicialmente para a correspondente venda, com referência ao contemporâneo valor de mercado do mesmo prédio e em que, necessariamente, foram tidas em conta as benfeitorias no mesmo introduzidas pelos recorridos: como bem observa a recorrente, quem enriqueceu com a realização das benfeitorias foi, exclusivamente, o executado (no Proc. executivo nº 386/2002, da 1ª Vara Mista de Guimarães), DD, uma vez que, sem as mesmas o sobredito valor de mercado seria inferior, o que imporia que com a adjudicação, à exequente, do prédio penhorado tivesse de ser, correspondentemente, menor, a quantia exequenda havida por, assim, liquidada (Cfr., com interesse e designadamente, os arts. 886º, 886º-A, nº/s 1, als. a) e b) e 2, 889º, nº/s 1 e 2, 890º, nº/s 1 a 4, 891º e 900º, todos do CPC na versão aplicável àquela execução, ou seja, na redacção anterior à introduzida pelo DL nº 38/2003, de 08.03, atento o preceituado no art. 4º, nº/s 1 e 2 do respectivo Preâmbulo);

--- Também porque não podemos perfilhar o entendimento de que as benfeitorias introduzidas no prédio penhorado extravasam o objecto (Cfr. art. 842º, nº1, do CPC na indicada redacção) da respectiva penhora: partes integrantes do prédio penhorado são as que assim devam ser qualificadas à sombra do preceituado no art. 204º, nº3 do CC, não deixando de o ser pelo simples facto de, entretanto, terem sido objecto de benfeitorias[7];

--- Ainda porque, a entender-se o contrário, ficariam despojadas de qualquer sentido útil e sem qualquer interesse prático grande parte das execuções, correndo o exequente o risco de ser responsabilizado pelo pagamento de quantia superior à que visaria obter com a instauração da execução, mormente como desfecho de camuflados conluios entre o executado e o terceiro benfeitorizante;    

--- Finalmente, porque a R. não pode ser obrigada a assumir as consequências desagradáveis de condutas comissivas ou omissivas que a transcendem, seja por, no decurso de venda judicial de bem imóvel, não ter sido apresentada proposta de aquisição de valor mais elevado, seja por, no âmbito do contrato-promessa de compra e venda, o A.-marido ter pago um preço total de valor mais elevado, seja, finalmente, por, sem acatamento no valor fixado para a venda judicial, com base em precedente avaliação reportada ao respectivo valor de mercado e de que ninguém reclamou, se dizer que o questionado prédio tem hoje um valor de mercado muito mais elevado (sem que, estranhamente, tenha surgido alguém a oferecer pelo mesmo quantia superior àquela por que foi adjudicado à R!…) Além de que a penosidade da situação poderia ter sido evitada ou, pelo menos, suavizada se o promitente-comprador, antes de celebrar o contrato e pagar, logo, o preço total do negócio, atentasse no registo de penhora, já então, incidente sobre o prédio, ou tivesse, atempadamente, feito uso das faculdades que lhe assistiam, com referência ao preceituado, quer nos arts. 865º, nº/s 1 e 2 e 869º, nº/s 1 e 2 do CPC na sobredita redacção, quer nos arts. 442º, 754º e 755º, nº1, al. f), todos do CC.

       Procedendo, pois, da forma exposta, as conclusões formuladas pela recorrente.

                                                    *

5 - Na decorrência do exposto, acorda-se em, concedendo a revista, revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou a, ora, recorrente-R. a pagar aos, ora, recorridos-AA., a título de benfeitorias, a quantia que viesse a ser, ulteriormente, liquidada, pedido este de que, igualmente, se absolve a recorrente-R.

       Custas pelos recorridos, sem prejuízo do apoio judiciário com que litigam.

                                                    /

 

                                     Lx      05 /   05  /  2015   /

Fernandes do Vale (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

_______________
[1]  Relator: Fernandes do Vale (11/15)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Ana Paula Boularot
   Cons. Pinto de Almeida
[2]  Cfr., designadamente, os Acs. deste Supremo, de 28.05.02, relatado pelo saudoso Cons. Araújo de Barros, de 06.02.07, relatado pelo Ex. mo Cons. Nuno Cameira, e de 05.03.09, relatado pelo Ex. mo Cons. Salvador da Costa, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[3]  In “Teoria Geral do Direito Civil, II”, AAFDL, 1985, pags. 306 e “Acção Executiva”, AAFDL, 1980, pags. 100.
[4]  Prof. Menezes Leitão, in “Garantias das Obrigações”, 2006, pags. 252; e Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in “CC Anotado”, Vol. II, 4ª ed., pags. 91/92.
[5]  Neste sentido, designadamente, o Ac. deste Supremo, de 12.10.04, relatado pelo Ex. mo Cons. Alves Velho e publicado na COL/STJ - 3º/50.
[6]  Cfr. estudo publicado em “CDP”, nº26, pags. 51 e segs., da autoria de Miguel Assis Raimundo e abundante literatura jurídica, aí, referida, com interferência na temática.
[7]  No Ac. da Rel. de Lx., de 09.04.92 (BOL. 416º/700), relatado pelo, então, Ex. mo Desembargador Carvalho Pinheiro, decidiu-se mesmo e entre o mais  que “A penhora de um lote de terreno para construção estende-se igualmente ao prédio entretanto nele edificado…