Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
33/12.4TVLSB-A.L1.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
FALTA DE CITAÇÃO
DOCUMENTO
TRADUÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
MATÉRIA DE FACTO
MEIOS DE PROVA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / ACTOS PROCESSUAIS / ACTOS EM GERAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 133.º, N.º 1, 134.º, N.º 1 E 662.º, N.º 1.
Sumário :
I - Não carecem de tradução os documentos em língua estrangeira, quando sejam de fácil compreensão para o fim destinado, nomeadamente a prova de uma morada.

II - Estando em causa prova sujeita a livre apreciação, o juízo formulado pela Relação, no âmbito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, é definitivo, não podendo ser modificado pelo STJ.

III - Sendo a morada atualizada dos réus do conhecimento do autor da ação, a falta de citação pessoal daqueles, por indicação de outra morada, não pode ser imputada aos réus.

IV - Litiga de má fé quem, sabendo que a outra parte tinha outro domicílio e, por esse motivo, não foi citada na ação declarativa, não devia ignorar a falta de fundamento da resposta ao recurso de revisão, baseado na falta de citação na ação.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO

AA e BB interpuseram, em 17 de dezembro de 2014, nos Juízos Centrais Cíveis de Lisboa, Comarca de Lisboa, recurso de revisão da sentença proferida na ação ordinária que CC Construções, Lda., lhes moveu, alegando a falta de citação ou a nulidade da citação.

Admitido o recurso, foi notificado a Recorrida, que, respondendo, pugnou pela improcedência do recurso de revisão.

No seguimento da resposta, os Recorrentes requereram que a Recorrida fosse condenada como litigante de má fé.

Em 18 de setembro de 2015, foi proferida sentença, julgando-se improcedente o recurso de revisão.

Inconformados, apelaram os Recorrentes para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 14 de dezembro de 2017, revogou a sentença, anulando os termos do processo posteriores à entrada em juízo da petição inicial, ordenando que se procedesse à citação dos Réus e condenando ainda a Recorrida na multa de 10 UC, como litigante de má fé.

Inconformada, a Recorrida recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:

a) Nos atos judiciais usa-se a língua portuguesa, porém os Recorrentes juntaram, com o recurso, vários documentos em língua estrangeira.

b) Entre esses documentos, sem tradução, estão as missivas que levaram a Relação a dar como boa a suposta alteração de morada dos Recorrentes.

c) A junção desses documentos devia motivar o juiz, oficiosamente, a ordenar que o apresentante juntasse a sua tradução.

d) Por isso, houve uma errada aplicação da lei de processo (art. 674.º, n.º 1, alínea b), do CPC).

e) Nenhuma das cartas juntas pelos Recorrentes contém qualquer manifestação de comunicação de alteração de morada.

f) A vontade dos declarantes tem de ser manifestada de forma adequada (art. 224.º, n.º 1, do CC).

g) O documento particular não faz prova plena.

h) Houve ofensa a disposições da lei que fixam a força de determinado meio de prova (documental), in casu, arts. 224.º, n.º 1, 236.º, n.º 1, 371.º, 373.º, 376.º, n.º s 2 e 3, todos do Código Civil.

i) Não se vislumbra como possa ter ficado provado que a falta de citação dos Recorrentes provenha de facto que não lhes seja imputável.

j) Inexiste qualquer conduta dolosa e, muito menos, gravemente negligente na sua conduta da lide.

Com a revista, pretende-se a revogação integral do acórdão recorrido.

Contra-alegaram os Recorrentes, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está essencialmente em discussão a falta de citação na ação e a litigância de má fé.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. No documento no qual foi reduzido a escrito o acordo celebrado entre as partes consta a cláusula:Para efeitos do cumprimento do presente contrato entende-se que as únicas comunicações válidas entre os contraentes são as efectuadas por correio registado para as moradas constantes deste contrato ou que venham a ser indicadas por escrito por uma à outra parte. A inobservância das formas de comunicação acordadas neste contrato equivale à falta de comunicação, sendo imputáveis ao contraente faltoso as consequências daí resultantes. Qualquer alteração das referidas direções deverá ser comunicada à outra contraente por meio de carta registada com aviso de receção”.

2. A morada dos Recorrentes era: “...., The...., W..... .... BN ... SL, em Inglaterra”.

3. Os pedidos dos Recorrentes para serem registados como eleitores na morada .................., B... 3PL, foram deferidos, com efeitos a partir do primeiro dia útil de setembro de 2006.

4. Em abril de 2007, os Recorrentes enviaram à Recorrida carta registada, constando dela, a seguir às assinaturas dos Recorrentes, os seguintes dizeres: “. ...... Hove,....., England”.

5. E no decorrer de 2009, seguiu-se correspondência entre as partes na qual sempre foi indicada, a final, pelos Recorrentes, a morada mencionada em 4. (introduzido pela Relação).

6. Na petição inicial que deu entrada a 6 de janeiro de 2012, dando lugar à ação declarativa, que constitui os autos principais, a Recorrida indicou, como morada dos Recorrentes, a morada referida em 2.

7. As cartas registadas com A/R, para citação dos Recorrentes nos autos principais, foram endereçadas para a morada referida em 2, tendo vindo devolvidas, com a indicação de não reclamadas.

8. Por despacho proferido nos autos principais, foi ordenada a citação dos Recorrentes “com a tramitação dos artigos 4.º e 7.º do Regulamento º 1393/2007”.

9. Do pedido de citação consta, quanto à forma da citação, “5.1 Segundo a lei do Estado-Membro requerido”, “5.2 pela forma específica seguinte:” e “5.2.1 Se esta forma específica for incompatível com a lei do Estado-Membro requerido, o ato ou atos devem ser citados ou notificados nos termos da lei daquele estado membro”.

10. O Estado-Membro requerido certificou que os documentos tinham sido entregues mediante o depósito na caixa de correio, em conformidade com a lei do Estado requerido.

11. Na ação executiva, para citação dos Recorrentes, foi afixado edital no sítio da A....., Castelo de Vide, a 15 de maio de 2014, e publicado edital eletrónico a 4 de junho de 2014.

12. Em 16 de janeiro de 2006, foi registada, na Conservatória do Registo Predial do País de Gales, a aquisição, por DD e Nova Upron, do imóvel localizado em L..............., mantendo-se tal registo, pelo menos, até 29/09/2015 (introduzido pela Relação).

13. Os correios britânicos enviaram aos Recorrentes a comunicação cuja cópia está junta a fls. 176 endereçada para “..........PL”, onde se lê: “Os seus detalhes de reencaminhamento: Nomes: nós incluímos os seguintes nomes (…) Sr. AA BB (…) a partir de: L....................L Reencaminhamento para: Endereço indicado no topo desta carta: Datas: O seu reencaminhamento postal está previsto acabar a 3 de janeiro de 2008. O seu serviço de reencaminhamento postal está a chegar ao seu termo… Exmo Senhor AA, o seu serviço de reencaminhamento postal está a chegar ao seu termo em breve. Não podemos oferecer-lhe a oportunidade de renovar o seu pedido de reencaminhamento uma vez que V. Exa já atingiu o período máximo que permitimos para o reencaminhamento postal. Por favor decorde-se de informar todos os vossos contactos do seu novo endereço postal. (…) A equipa de reencaminhamento postal dos correios britânicos” (introduzido pela Relação).


***

2.2. Descrita a matéria de facto, com a modificação decidida pela Relação, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente a falta de citação na ação e a litigância de má fé.

A Recorrida começou por alegar a violação e o erro de aplicação da lei de processo, nomeadamente do disposto no art. 133.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), por documentos em língua estrangeira, juntos aos autos, sem tradução, terem levado a Relação “a dar como boa a suposta comunicação de alteração de morada”.

Na verdade, nos atos judiciais usa-se a língua portuguesa, conforme prescreve o n.º 1 do art. 133.º do CPC.

Por outro lado, dispõe ainda o art. 134.º, n.º 1, do CPC, quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte.

As partes podem juntar ao processo documentos escritos em língua estrangeira, que poderão, ou não, ser traduzidos, oficiosamente ou a requerimento de qualquer uma das partes.

No entanto, a tradução pode não ser necessária, como se deduz da expressão normativa “careçam de tradução”, nomeadamente quando se possa compreender, sem qualquer dúvida, o facto pretendido demonstrar, o que pressupõe também a habilitação do juiz.

Ora, independentemente da tradução de tais documentos, percebe-se bem que os documentos de fls. 26 a 53, de que a Relação se serviu, constituem correspondência trocada entre o Recorrente e a Recorrida, e na qual se especifica a morada do Recorrente.

Dada a facilidade de compreensão, em particular nesse âmbito específico, tais documentos não careciam, efetivamente, de tradução.

De resto, nem sequer a Recorrida requereu a sua tradução, quando dispunha dessa faculdade, como já se viu. Provavelmente, a razão terá sido a de que não era necessário, coincidindo, certamente, com a razão do Tribunal.

Sendo manifestamente óbvio que tais documentos escritos em língua estrangeira não careciam de tradução para a língua portuguesa, nomeadamente quanto à morada neles indicada, conclui-se não haver qualquer violação, designadamente do disposto no art. 134.º, n.º 1, do CPC.

 

A Recorrida impugna também o acórdão recorrido, com fundamento em erro na apreciação da prova e na fixação dos factos.

Como decorre do disposto no n.º 3 do art. 674.º do CPC, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, conhece apenas de matéria de direito (art. 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), pertencendo ao Tribunal da Relação a derradeira decisão em termos de matéria de facto. No entanto, a verificar-se uma situação de violação do direito probatório material, nomeadamente nos termos previstos no art. 674.º, n.º 3, do CPC, essa questão, com eventual reflexo na delimitação da matéria de facto, pode já ser conhecida, a título excecional, pelo Supremo Tribunal de Justiça.

No caso vertente, todavia, não está em causa qualquer violação do direito probatório material, estando a prova dos factos, decidida pela Relação, no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC, sujeita à livre convicção do juiz.

Foi, no âmbito da observância desse princípio da prova, que os documentos particulares considerados, como a correspondência postal trocada entre as partes, foram apreciados pela Relação, não podendo o Supremo Tribunal de Justiça interferir nessa decisão, por não se perfilar no quadro excecional de intervenção previsto no art. 674.º, n.º 3, do CPC.

A própria Recorrida não deixa de reconhecer tratar-se de documentos particulares sujeitos a livre apreciação do juiz, mas entende, também, que a sua força probatória, por vícios que lhe imputa, está excluída ou reduzida.

  Esta afirmação da Recorrida, porém, apresenta-se algo contraditória, pois, estando a prova sujeita à livre apreciação do juiz e considerando-a este realizada, não se pode vir depois alegar que a sua força probatória está excluída ou reduzida. É a formação da convicção do juiz, baseada na elevada probabilidade da existência do facto, a prevalecer em termos de prova, nomeadamente por decorrência expressa da lei.

Estando em causa prova sujeita a livre apreciação, o juízo formulado pela Relação, no âmbito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, é definitivo, não podendo ser modificado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Assim, mantém-se intocável a matéria de facto, nomeadamente nos termos decididos pela Relação.

Na decorrência da matéria de facto provada, é inequívoco que entre as partes, em particular durante 2009, foi trocada correspondência, na qual sempre foi indicada, como morada dos Recorrentes, “............................., England”, diferente da que constava no contrato que as partes celebraram entre si.

Essa troca de correspondência deixa perceber que a Recorrida tomou conhecimento da alteração da morada dos Recorrentes, ainda que não resulte ter sido formalizada nos termos exatamente previstos no contrato. No entanto, a Recorrida, tomando conhecimento da alteração da morada dos Recorrentes e trocando correspondência em conformidade, viu assegurada a finalidade prevista para a formalidade consagrada no contrato, nomeadamente o conhecimento atualizado do domicílio do outro contraente. Não correspondendo a uma formalidade ad substantiam, a prova da alteração da morada podia ser feita por qualquer de meio prova, desde que assegurado o conhecimento pela outra parte.

Deste modo, tendo os Recorrentes mudado de morada em relação à que constava no contrato e tendo a última morada sido indicada na petição da ação declarativa, não obstante o conhecimento da morada atualizada, torna-se imperioso concluir que os Recorrentes, não tendo ali a sua morada, acabaram por não ser citados pessoalmente para a ação declarativa, como por lei se impunha, porquanto a citação postal foi enviada para uma morada desatualizada, como se reconhece nos autos.

Sendo a morada atualizada do conhecimento da Recorrida, não se pode imputar aos Recorrentes a sua falta de citação pessoal

Nestas circunstâncias, é de reconhecer a falta de citação dos Recorrentes para a ação declarativa, nos termos do art. 195.º, n.º 1, alínea e), do CPC/1961, dando assim fundamento ao recurso de revisão interposto, ao abrigo do disposto no art. 696.º, alínea e), do CPC.

Por outro lado, quanto à condenação da Recorrida como litigante de má fé, não há motivo para alterar a decisão da Relação, nomeadamente pelo que antes se deixou afirmado.

Na verdade, a Recorrida, sabendo que os Recorrentes tinham outro domicílio e, por esse motivo, não foram citados na ação declarativa, não devia ignorar a falta de fundamento da resposta ao recurso extraordinário de revisão interposto por aqueles, baseado na falta de citação na ação declarativa – art. 542.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

Aliás, a má fé da Recorrida já se manifestara antes, nomeadamente quando não indicou, como era seu dever, a morada atualizada para a citação dos Recorrentes na ação declarativa, com um argumento meramente formal e desvalorizado pelo real conhecimento.

Nestes termos, não concedendo a revista, confirma-se integralmente o acórdão recorrido, que não enferma de qualquer ofensa à lei aplicável.

 

2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. Não carecem de tradução os documentos em língua estrangeira, quando sejam de fácil compreensão para o fim destinado, nomeadamente a prova de uma morada.

II. Estando em causa prova sujeita a livre apreciação, o juízo formulado pela Relação, no âmbito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é definitivo, não podendo ser modificado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

III. Sendo a morada atualizada dos réus do conhecimento do autor da ação, a falta de citação pessoal daqueles, por indicação de outra morada, não pode ser imputada aos réus.

IV. Litiga de má fé quem, sabendo que a outra parte tinha outro domicílio e, por esse motivo, não foi citada na ação declarativa, não devia ignorar a falta de fundamento da resposta ao recurso de revisão, baseado na falta de citação na ação.

2.4. A Recorrida, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

2) Condenar a Recorrida no pagamento das custas.

Lisboa, 13 de Setembro de 2018

Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

José Sousa Lameira